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January 02, 2023

Ladrilhozinhos de vitrais

 


É o que me faz lembrar a época filosófica em que vivemos. À semelhança da época helenística que a partir das grandes escolas filosóficas da Antiguidade se partiu em miríades de vidrinhos, de correntes filosóficas e suas subsidiárias, também a época actual é uma miríade de ladrilhozinhos multiplicados a partir das grandes escolas da idade moderna. É muito difícil alguém ter, nos dias de hoje, uma visão completa de tudo o que se pensa na filosofia, mesmo entre os investigadores universitários, tal é a catadupa de centenas artigos, textos, ensaios, teses e livros que se publicam constantemente. Isso em parte deve-se à obrigação que os professores universitários têm em publicar artigos (muito do que se publica acaba por ser, necessariamente, sem interesse) e aos milhares de pessoas que se dedicam à filosofia devido à democratização dos estudos universitários. 

É uma época interessante dado que há muita perspectiva nova a entrar no rio das ideias. Por outro lado, é preciso alguma inteligência para uma pessoa se orientar nesta enorme rede. Não sei até que ponto será possível um pensador desenvolver nos dias que correm uma grande filosofia - pensar requer tempo e dedicação para evoluir em profundidade e as exigências de burocracia e publicações que fazem aos investigadores juntamente com a sobrecarga de trabalho são um obstáculo à possibilidade de pensamento profundo e original de grande escopo. Muito do que se escreve (ou pelo menos do que leio do que se escreve, que é uma ínfima parte) são remakes de ideias do passado, sem nada daquele espírito típico dos filósofos que se reconhece imediatamente pela intuição penetrante e original com que perspectivam a 'realidade'.

Para uma pessoa como eu, que não sou investigadora e que ensino numa escola secundária, a vantagem dos dias de hoje é termos acesso a tudo o que se escreve e pensa. Há trinta anos isto não seria possível. Para ter acesso à investigação universitária era preciso ir às universidades consultar as teses de mestrado ou de doutoramento, procurar actas de colóquios, ler as revistas todas da especialidade, gastar rios de dinheiro em livros ou conhecer alguém de dentro que nos orientasse. E mesmo assim o que se acedia é um grão de areia quando comparado à situação actual. É certo que havia muito menos a que aceder e conhecíamos muito bem os grande especialistas neste ou naquele autor ou tema. Pois hoje temos acesso às mais recentes abordagens filosóficas à distância de um clique, se as sabemos procurar ou até mesmo sem procurar: o algoritmo envia-nos todos os trabalhos reputados dos temas que sabe que nos interessam.

Há bocado, à tarde, estava a preparar um pequeno plano para abordar na primeira aula do período a questão da possibilidade e valor do conhecimento. Pus-me a ver maneiras de estruturar a questão do cepticismo e o dogmatismo - não gosto da maneira como o tema é tratado no Manual adoptado. Fui dar com uma dúzia de tipos de cepticismo, alguns dos quais não sabia, como por exemplo, o neo-pirronismo, que tem origem no pensador brasileiro, Oswaldo Porchat e que hoje-em-dia domina o pensamento filosófico da América Latina. Muito interessante.

É claro que não me vou pôr a trabalhar todos estes tipos de cepticismo com os alunos, porque a Filosofia no ensino secundário não é um curso de especialização. Nem há a intenção que os alunos se posicionem a favor ou contra esta ou aquela perspectiva (isso são os totós que fizeram estas orientações do programa e que influenciam os exames). A maioria são trabalhadas para parecerem equipolentes (talvez algumas o sejam...) porque não estamos a ensinar verdades ou metodologias de verdade e essa diaphonía, embora apreça negativa para a mentalidade actual que quer respostas rápidas e enlatadas para tudo, é um caminho que leva à prudência no pensar e à consideração das perspectivas diferentes das nossas. De maneira que a Filosofia no ensino secundário é uma introdução -e se possível uma descoberta transformadora- às possibilidade do pensar crítico e racional e às virtudes da sua aplicação na vida de cada um e de todos, no pressuposto de que essa adolescência é uma idade em que o terreno ainda é permeável às sementes do pensar. 

Porém, podemos entrar um bocadinho nelas, porque é melhor que se perceba a complexidade da realidade, mesmo que não se consiga abarcá-la totalmente, do que se pense que tudo é trás-pás como se vê.


December 31, 2022

Mini Filosofia - plerosis e kinesis

 


Mini Filosofia

Há poucas coisas tão agradáveis como o alívio. Quando se está há muito tempo sem água e se toma o primeiro gole, é como se o próprio céu estivesse na bebida. Depois de uma longa e fria caminhada, quando se cai num banho quente, a sensação de doçura é indescritível. Quando se está muito aflito para ir à casa de banho...

Muitos prazeres são despendidos no alívio de uma necessidade ou na amenização de uma dor. No entanto, estes prazeres são de curta duração e no grande esquema das coisas, não o movem. Levam-no de volta a um estado neutro e estático - sem sede, sem frio ou sem necessidade de ir 
à casa de banho, mas não melhor do que no dia anterior.

É por isso que, para Platão, estes são prazeres de um tipo de inferior. São prazeres de que podemos desfrutar, mas que não devem distrair-nos de um prazer maior.

Na 'República', Platão distingue entre dois tipos de prazer: plerosis, traduzido como, "preencher uma necessidade, uma ausência". Os exemplos dados acima são exemplos de plerosis, mas também o são coisas mais subtis - beber vinho para esquecer uma dor ou procurar uma namorada para casar só porque se está só; ou quem toma drogas para esquecer o vazio da vida; o outro tipo de prazer, superior, é kinesis - ou "o movimento da alma". É um tipo de prazer activo, esforçado e próspero. É qualquer coisa na vida que nos transforma, nos deixa uma pessoa melhor. É algo de que se desfruta mas que também nos torna 'mais, nos evolve'.

A metáfora do movimento é uma boa metáfora, porque o prazer-kinesis é o que nos faz sair do imobilismo e avançar. Aproxima-nos um passo mais de uma versão idealizada de nós próprios (uma versão idealizada que, para Platão, só é possível com o uso adequado da razão).

Imagine duas pessoas às portas da morte. A primeira viveu uma vida de 
plerosis - muito prazer, divertimento e satisfação de necessidades temporárias, mas não evoluiu nada, não melhorou, nem os próprios prazeres melhoraram, possivelmente até está pior pois esgotou-se nessa corrida de preencher ausências e permanecer estático. A segunda viveu uma vida de kinesis. Fez algo com o que aprendeu no mundo e foi para a cama todas as noites satisfeita com o progresso que fez, com o esforço que fez. São estas últimas pessoas as que conhecem o maior prazer: as que têm a satisfação de sentir o movimento da alma a amadurecer.

November 17, 2022

Livros - dia mundial da Filosofia

 


Hoje é o dia mundial da Filosofia, instituído pela UNESCO "A data é marcada na terceira quinta-feira do penúltimo mês do ano, com atividades de caráter artístico para enfatizar o valor da filosofia para o desenvolvimento do pensamento humano para cada cultura e indivíduo."

Para marcar este dia comprei um livrinho na Grádiva -que assinala o dia com uma promoção dos livros de Filosofia- que me parece poder ser interessante para desafiar os alunos. Vamos ver. 



October 09, 2022

Bruno Latour (1947-2022)

 


Morreu hoje Bruno Latour, pensador francês dedicado aos problemas da ciência e da tecnologia.

Um excerto do seu último texto que pode ser lido aqui, geopolitique.eu/en/articles/is-europes-soil-changing-beneath-our-feet/

"Hoje em dia, os índios e os paquistaneses, que lidam com temperaturas de quase 50°C, estão tragicamente situados em solos que arriscam ter de abandonar por causa de temperaturas que são insuportáveis para os corpos humanos - ou pelo menos para os corpos dos pobres. 
O que aconteceu quando tanques marcados com a letra "Z" invadiram a fronteira ucraniana e o que nós, europeus, viemos a compreender, é uma provação situacional, uma provação que define de diferentes maneiras o lugar onde nos encontramos e o que grupos formamos com aqueles que se preocupam e sofrem à nossa volta. 
De repente, já não estávamos no mesmo espaço e esta é a regra para qualquer situação que o início de Édipo Rex exprime tão bem. O lugar onde estamos e o grupo de pessoas que formamos nunca são uma abstracção, são sempre o resultado de um choque. 

Portanto, o meu argumento é suficientemente simples de compreender: devido à provação que nos é imposta pelos múltiplos conflitos que vivemos actualmente e que atinge os ucranianos com toda a força, em que solo é que os europeus se encontram agora? Poderá a actual acumulação de crises permitir à Europa encontrar finalmente o solo que se adequa a esta grande invenção institucional que continua a ser apresentado como que estando suspensa fora de qualquer solo e sem pessoas que lhe pertençam? 

Vou considerar esta questão de dois pontos de vista ligeiramente diferentes, pois não sou especialista em geopolítica nem em assuntos militares.

A primeira diferença é que estou interessado na Europa não só como instituição, mas também como Europa como território, como solo, como relva, como terra, ou, para usar a expressão alemã, como Heimat, com todas as dificuldades desse termo. 

Por outras palavras, quando se trata da França, por exemplo, fico sempre surpreendido por facilmente distinguirmos entre criticar o governo - Deus sabe que não negamos isto a nós próprios! - sem que isso ameace a ligação bastante visceral à França como país. Qualquer pessoa pode criticar o governo e no entanto sentir-se ligada e apegada a algo que é um espaço, um território, uma história, uma situação que define para ele ou ela o que é ser francês. 
Fico sempre surpreendido que este não seja o caso da Europa. Infelizmente, quando falamos da Europa, só pensamos em Bruxelas, embora a Europa seja também um solo, um lugar de pertença, uma multiplicidade de ligações devido às guerras, à memória, às provações do exílio e das migrações, das várias catástrofes que todos os europeus conheceram. E assim, estou sempre interessado nesta ligação essencial entre estes dois aspectos de uma mesma situação. 
Se uso a palavra "solo" é porque ela me permite expandir as conotações que derivam de um termo por vezes utilizado na literatura bastante reaccionária - solo como identidade - para inúmeros trabalhos científicos sobre o solo como húmus, geologia, clima, ecossistema - solo como em rematerializado - e que, como todos sabem, está terrivelmente ameaçado. Assim, a questão: em que solo podem os europeus aterrar?

A segunda diferença, que não será uma surpresa, é que considero necessário ligar estreitamente a guerra territorial que está a ser travada pelos russos na Ucrânia e esta outra guerra, igualmente territorial, a ser travada pela crise climática no seu sentido mais amplo, pois esta é também uma guerra territorial. 
Neste momento, tanto no Paquistão como na Índia, esta temperatura de 50°C está ligada a uma invasão por parte dos europeus, particularmente anglófonos, que durante dois séculos mudaram a temperatura do planeta; isto equivale a uma invasão do território indiano tão seguramente como no período das conquistas coloniais e da criação do Raj. 
Por outras palavras, não estamos a lidar com uma guerra territorial no sentido "clássico" e com "preocupações ambientais" adicionais, como ainda estranhamente dizemos, mas sim com dois conflitos que são tanto conflitos territoriais sobre a ocupação dos solos por outros Estados, como a violência exercida por Estados sobre outros territórios. Se é correcto caracterizar o conflito na Ucrânia como uma guerra colonial, então este é ainda mais o caso das guerras climáticas.

E no entanto, em ambos os casos, a palavra "guerra" não tem de todo a mesma conotação. Desde o início da guerra na Ucrânia, o extraordinário contraste entre a velocidade com que fomos capazes de mobilizar energia, emoções e conhecimentos para responder ao pedido de apoio de uma forma que atordoou os russos é impressionante. 
Infelizmente, nós, europeus, há muito que temos o repertório de acção apropriado quando se trata de guerras! O "grande continente" foi claramente criado, moldado e costurado por guerras territoriais. Contudo, quando se trata da questão da ecologia, do grande desespero daqueles que trabalham sobre o clima, as nossas atitudes parecem mais uma imobilização - e uma vergonha - do que uma mobilização. 
Por mais rápidos que sejamos a alinhar emoções que reflectem a guerra territorial número um e sejam capazes de criar instantaneamente um acolhimento extraordinário para os exilados ucranianos, enviar armas, e impor sanções, continuamos pendurados, incertos, paralisados, e cépticos na prática, se não em pensamento, sobre o outro conflito territorial número dois.

Uma excepção é uma observação feita por Naomi Klein num artigo fascinante para The Intercept, que foi traduzido e publicado pela revista AOC. Pierre Charbonnier, numa poderosa contribuição para Le Grand Continent sobre a "ecologia da guerra", também enfatizou claramente o mesmo ponto: O petróleo e o gás russos tornaram-se subitamente tanto uma arma estratégica como uma grande questão para a transição ecológica. 
Aqui, pelo menos, os dois conflitos territoriais convergem, porque todos consideram escandaloso pagar milhares de milhões de euros aos russos para atacar os ucranianos, que afirmamos apoiar. De repente, esta questão que acabou por ser associada ao conflito número dois com a sua habitual incapacidade de agir - "como mudar as nossas fontes de energia baseadas no carbono" - está ligada ao conflito territorial número um e tornou-se uma questão militar estratégica. 
De imediato observámos uma profusão de iniciativas para associar a questão da energia, gás e petróleo russos com emoções, atitudes e decisões administrativas que combinam a energia típica do conflito territorial número um com as questões fundamentais levantadas por todos os ambientalistas sobre o conflito territorial número dois. 
Tanto que, de repente, a questão da demarcação das fronteiras tornou-se imediatamente em como evitar a invasão por tanques marcados com a letra Z e, o que é novo e inesperado, como nos desabituarmos do gás e do petróleo russos o mais rapidamente possível.

Isto ainda permitiria, como mostra claramente o artigo de Charbonnier, imaginar sacrifícios em nome do conflito número um, a fim de apoiar a Ucrânia. 
Este é um sacrifício que até agora tem sido impossível de alcançar em nome do conflito territorial número dois, ou seja, aquele que diz respeito ao que eu chamo o «Novo Regime Climático». Nada é certo, é claro. O Guardian publicou previsões terríveis sobre o que eles chamam "bombas de carbono" - os direitos de explorar novas fontes de petróleo, direitos concedidos pelos Estados que ainda fazem parte do Acordo de Paris - cujo número é suficiente para negar quaisquer esforços para controlar o clima. 
O slogan americano "Drill, baby, drill!" está a espalhar-se como fogo selvagem. Em França, para tomar um exemplo infeliz mas bem conhecido, a FNSEA está a agarrar-se à broca para se livrar de todas as regras ambientais por causa da guerra na Ucrânia. Mas existe no entanto uma oportunidade incrível a ser aproveitada, que está a redefinir a situação territorial na dupla forma de defesa da fronteira e de autonomia energética.

Este era obviamente o plano de muitos ecologistas, mas certamente não coincidiu com as decisões que foram tomadas relativamente à globalização nos últimos 50 anos, que, através dos "laços gentis do comércio", nos ligariam tanto à Rússia como à liberdade. Consequentemente, existe um momento histórico, ou, como é chamado, um kairos, uma oportunidade a ser aproveitada que aguarda os seus chefes de Estado, uma situação de guerra generalizada que daria à Europa um solo carregado com a questão energética que se tornou duplamente estratégica, tanto militar como ecologicamente, de uma forma que não era antes da guerra na Ucrânia. Daí o termo "ecologia da guerra".

É óbvio, contudo, que temos de lidar com este termo "guerra" com cuidado, uma vez que não é usado por nenhuma das partes em conflito da mesma forma. 
Os cidadãos russos não estão autorizados a utilizar esta palavra e podem ir para a prisão se não utilizarem a alternativa de "operações especiais". A palavra "guerra" é considerada como espalhando notícias falsas - fejk nius em russo-inglês. 
A situação é tanto mais curiosa quanto os russos não podem sequer questionar a história da «Grande Guerra Patriótica», como mostra um artigo fascinante de Florent Georgesco. Mesmo as datas estão escritas na Constituição e não podem ser alteradas sob pena de prisão. A sua Guerra Mundial começou em 1941 e não em 1940, ou pior em 1939, o ano do pacto germano-soviético. 
É significativo notar que os russos, embora não tenham o direito de pronunciar a palavra "guerra" em relação à Ucrânia, têm o direito - como aprendi com um colega da Universidade de São Petersburgo - de a usar para falar sobre a guerra que os ocidentais estão, segundo eles, a travar contra a Rússia! A ironia deve ser reconhecida: se o Ocidente não usa a palavra guerra com a Rússia, é para evitar estar em guerra com ela... Todas as autoridades militares, especialmente a NATO, estão a fazer todos os esforços para não usar esta palavra tabu nas suas relações com a Rússia, desta vez para não lhe dar um pretexto para se envolverem num conflito nuclear. Isto não resultaria numa "guerra", apesar de todos os esforços para dominar a sua utilização, mas numa aniquilação mútua escondida por detrás do termo bastante inocente da estratégia.

Consequentemente, este é um conflito muito assimétrico, já que os únicos que têm o direito e a vontade de usar a palavra guerra são os infelizes ucranianos que se encontram perante um inimigo que afirma que isto não é uma guerra mas "uma simples operação policial", e que têm por trás deles Estados que afirmam que "esta é uma guerra para vós ucranianos, mas certamente não para nós, ocidentais"! 
Estamos, portanto, a lidar com uma situação muito desconfortável com a ameaça nuclear que paira no horizonte, o que obviamente anula qualquer noção de conflito. 

Sem sermos discípulos de Carl Schmitt, podemos ainda perguntar-nos como pode um povo situar-se na história se é proibido reconhecer a ameaça existencial aos valores que lhe são caros no conflito que está a levar a cabo. Uma operação policial não é conduzida contra inimigos, mas contra criminosos. Não se pode fazer a paz com os criminosos, embora talvez com os inimigos.

Esta impossibilidade de nomear os conflitos territoriais número um encontra-se no conflito territorial número dois, porque não sabemos como nomear as controvérsias que, por razões de modéstia, são chamadas ecológicas, e que na realidade são conflitos de invasão territorial por outro poder. 
Aqui, se a palavra guerra é proibida, é porque se a proferíssemos, teríamos de tomar medidas que obviamente nos obrigariam a reconhecer verdadeiros inimigos dentro das fronteiras dos nossos "aliados", bem como em casa. 
Para nos convencermos disto, só temos de identificar aqueles que teríamos de aprender a combater se levássemos a sério o objectivo de nos livrarmos do gás e do petróleo de Putin. Talvez residissem na nossa rua, enchessem o depósito do nosso carro, ou aumentassem a nossa carteira de stock... Os conflitos aproximar-se-iam terrivelmente, e estaríamos então na mesma situação de Édipo que se apercebe, pouco a pouco, que quem está indignado com o crime é aquele que o cometeu - e que continua a cometê-lo...

Nestas áreas, a palavra guerra é tabu porque atinge demasiado perto de casa. Se falamos de "mudança do mundo" ou "interregno" em relação à guerra na Ucrânia, é devido à convergência entre estes dois tipos de conflitos territoriais ou coloniais. Por mais escandalosa que seja, a guerra só na Ucrânia não seria suficiente para nos dar esta impressão de mudança radical. 
É porque sentimos que os conflitos territoriais que começaram há muito tempo com o extrativismo estão finalmente a ressoar violentamente com as formas de guerra mais clássicas e a trocar as suas propriedades de uma forma aterradora. Sófocles escolheu a figura da peste; hoje reconhecemo-la mais claramente naquela outra maldição - o gás e o petróleo.

A incerteza sobre a palavra "guerra" é agravada por uma incerteza sobre a palavra "paz". Como muitos comentadores salientaram, se os europeus sentem que a paz foi quebrada, é porque têm vivido numa bolha de ar longe dos incontáveis conflitos que outros têm vindo a travar em seu nome. 
Temos vivido "em paz", mas apenas se esquecermos o guarda-chuva atómico dos Estados Unidos, a globalização do comércio, e a batalha implacável do extrativismo pelos recursos naturais. Estávamos, portanto, numa espécie de paz suspensa ou simplesmente adiada da qual saímos agora, o que não é necessariamente uma coisa má. 
Num texto publicado em New Statesman e analisado por Adam Tooze, Jürgen Habermas demonstra claramente que cada país - Alemanha, França, Inglaterra e, claro, Ucrânia - tem a sua própria trajectória desta relação entre paz e guerra, o que torna impossível apressar a unificação de todos eles num único esquema. 
O que é verdade para os Estados é também verdade para os indivíduos; seria estranho para as pessoas da minha geração que passaram da ameaça atómica à devastação climática falar como se a "paz" tivesse subitamente chegado ao fim em Fevereiro de 2022, quando nunca o souberam realmente. Sendo uma criança do baby boom, passei a minha vida a sentir a ameaça do holocausto nuclear e, sem qualquer transição, passei à ameaça do colapso ecológico. Por conseguinte, não vou analisar a chegada da guerra à Ucrânia como um colapso da paz, mas como a realização pelos europeus da ligação agora inquebrável entre os dois tipos de conflito em que estão agora envolvidos.

A pergunta que eu gostaria de fazer, então, é esta: o que é que estas lutas de ambos os lados - conflito territorial e colonial número um e conflito territorial e colonial número dois - acrescentam às definições clássicas da existência europeia? E sempre com este terceiro conflito de aniquilação nuclear a pairar sobre as nossas cabeças. A terra praticamente devastada pela energia nuclear, a terra realmente devastada pela mudança ecológica, e o território ucraniano devastado pelo Exército Vermelho sangrento. É aqui que corremos o risco de ser "gravemente abalados" e incapazes de "levantar [a nossa] cabeça acima das profundezas de uma morte tão crescente". Neste interregno, a que é que nos podemos agarrar?

Na última parte destas observações vou referir-me ao que parecerá um documento bastante invulgar: a famosa conferência Renan intitulada "O que é uma Nação?", apresentada nesta mesma sala em 1882. Dirão que isto está completamente desactualizado, que já não usamos tal raciocínio em momentos tão sérios. 
No entanto, devo confessar que me senti bastante intrigado durante esta recente campanha presidencial com o aparecimento da expressão "nação ecológica". Este é talvez apenas um termo de comunicação inventado, mas perguntei-me sobre o significado de justapor a velha ideia de "nação" com o adjectivo "ecológica". Não será esta uma ideia profunda que permitiria dar sentido à expressão de uma "nação ecológica europeia"?
(...)
Na versão de Renan da nação, é uma decisão voluntária de viverem juntos após catástrofes partilhadas, o que ele chama "as complexidades profundas da história". 
Assim, compreenderá a minha pergunta: poderá a Europa formar uma nação decidindo depender das condições materiais que pretendeu ignorar durante o período de falsa paz em que acreditava estar? Que um colectivo "auto-determinado" não significa que passe por um determinismo geográfico, mas que se torne finalmente capaz de determinar o lugar, a localização, o país, o solo, a geografia e o território em que se encontra, devido ao súbito aparecimento dos muitos conflitos territoriais e povos com os quais afirma conviver para viver.

Esta é a minha hipótese - e admito prontamente que é uma hipótese simples: tal como a guerra territorial acrescenta a Ucrânia à Europa sob todas as formas possíveis, incluindo talvez um dia na forma de adesão à União, também a guerra dentro do novo regime climático acrescenta as fontes, os lugares, as situações, e os países de extracção que permitem redefinir a definição das suas fronteiras, bem como a composição da nação que decide formar. Por outras palavras, trata-se de combinar o magnífico mas talvez um pouco datado argumento de Renan sobre a alma e a dimensão "espiritual" da nação com a redefinição do território concretizada por mudanças ecológicas.

(...)

August 26, 2022

Tolkien citando Simone de Beauvoir

 


"Não há nada de natural na morte... todas as pessoas morrem, mas para cada um de nós a morte é uma violação injustificável."


August 25, 2022

Quatro mulheres 'engagés'

 


Dos arquivos da BnF - Bibliothèque nationale de France, os cartões de leitoras de quatro mulheres:


📖 𝐒𝐢𝐦𝐨𝐧𝐞 𝐖𝐞𝐢𝐥: "𝐚𝐠𝐫𝐞́𝐠𝐞́𝐞 𝐝𝐞 𝐩𝐡𝐢𝐥𝐨𝐬𝐨𝐩𝐡𝐢𝐞"
Em 1931, a parisiense Simone Weil foi sétima na Agrégation em Filosofia mas logo deixou a sua carreira como professora para uma actividade política de extrema-esquerda. Trabalhou voluntariamente como operária de fábrica, participou na guerra espanhola ao lado dos combatentes anarquistas, e participou em acções da Resistência. Que livros Simone Weil consultou na Bibliothèque nationale? Tudo o que resta das suas visitas à rue Richelieu, antes de deixar a França ocupada com a sua família, é o seu cartão de leitor datado de 1939. Para encontrar a colecção Simone Wei
l na BnF https://c.bnf.fr/QfJ

📚 𝐍𝐚𝐭𝐡𝐚𝐥𝐢𝐞 𝐒𝐚𝐫𝐫𝐚𝐮𝐭𝐞: "𝐚𝐯𝐨𝐜𝐚𝐭𝐞 𝐚̀ 𝐥𝐚 𝐜𝐨𝐮𝐫"
Futura romancista, dramaturga e ensaísta, Nathalie Sarraute nasceu Natalia Tcherniak, na Rússia, em 1900. Prosseguiu os seus estudos em várias cidades europeias: sociologia em Berlim, inglês em Oxford, direito em Paris - daí o título "avocat à la cour" encontrado no seu cartão do seu leitora. Desistiu da sua carreira como advogada no final da guerra para se dedicar à escrita e tornou-se uma das líderes do movimento New Novel. Para encontrar todos os recursos e documentos sobre Nathalie Sarraute detidos na BnF
https://www.bnf.fr/fr/nathalie-sarraute-ressources-en-ligne 


📚 𝐇𝐚𝐧𝐧𝐚𝐡 𝐀𝐫𝐞𝐧𝐝𝐭: "𝐃𝐨𝐜𝐭𝐞𝐮𝐫 𝐞𝐧 𝐩𝐡𝐢𝐥𝐨𝐬𝐨𝐩𝐡𝐢𝐞 𝐝𝐞 𝐥'𝐮𝐧𝐢𝐯𝐞𝐫𝐬𝐢𝐭𝐞́ 𝐝𝐞 𝐇𝐞𝐢𝐝𝐞𝐥𝐛𝐞𝐫𝐠"
Em 1933, a jovem Hannah Arendt encontrou refúgio em França depois de ter fugido da Alemanha nazi. Foi nesta altura que a mulher que se tornaria uma das mais importantes intelectuais e filósofas do século XX pôde frequentar os salões da Bibliothèque Nationale na rue Richelieu. Interrompida pela ocupação da França em 1941, que a obrigou a refugiar-se nos Estados Unidos, esta estadia parisiense acrescentou à sua experiência a condição de refugiada. 


📖 𝐌𝐚𝐫𝐠𝐮𝐞𝐫𝐢𝐭𝐞 𝐘𝐨𝐮𝐫𝐜𝐞𝐧𝐚𝐫: "𝐞́𝐜𝐫𝐢𝐯𝐚𝐢𝐧𝐞 𝐞𝐭 𝐩𝐫𝐨𝐟𝐞𝐬𝐬𝐞𝐮𝐫𝐞 𝐔𝐒𝐀"
Originária de Bruxelas, Marguerite Yourcenar - um anagrama do seu verdadeiro nome, Crayencourt - foi a primeira mulher a ser eleita para a Académie Française. Através do seu amor pela língua grega, as suas viagens pelo Mediterrâneo e os seus encontros, desenvolveu um conhecimento extremamente fino da civilização greco-romana que brilha em vários dos seus romances, peças de teatro e traduções. A linha "título" do seu cartão de leitora na Biblioteca Nacional de França dificilmente contém os resultados da sua carreira como escritora e professora nos Estados Unidos, onde se estabeleceu a partir de 1939 e publicou "Memoirs of Hadrian" (1951).


via-argentic

August 07, 2022

Hipóteses interessantes

 


Um pensador cujo nome não recordo apresentou a seguinte hipótese: é de esperar que num futuro longínquo o ser humano tenha desenvolvido uma física que lhe permita viajar no tempo; é razoável pensar que quereria obter informações do passado e que enviasse seres ao passado - o nosso presente. Porém, sendo provável que os seres do futuro sejam muito diferentes e não querendo correr riscos, é provável que enviassem robots. Nesse caso enviariam robots, humanóides, tão parecidos com os humanos que não seriam distinguíveis deles - partimos do princípios que, sendo avançados ao ponto de saber viajar no tempo, também o seriam para construir esses humanóides perfeitos. Aliás, tão perfeitos que eles mesmos não saberiam ser robots do futuro, controlados por seres do futuro. Logo, tendo em conta estas possibilidades, também é possível que alguns de nós sejamos robots humanóides do futuro, pensando que somos seres humanos do presente.




July 26, 2022

Ser habitante e não ser

 


«A filosofia nasce no momento em que alguns homens se dão conta de já não poderem sentir-se parte de um povo, de que um povo como esse ao qual os poetas criam poder dirigir-se não existe ou se tornou qualquer coisa de estranho ou hostil. A filosofia é, antes de mais, esse exílio de um homem entre os homens, esse ser estrangeiro na cidade em que acontece ao filósofo viver e na qual, no entanto, continua a morar, apostrofando obstinadamente um povo ausente. A figura de Sócrates traz à expressão este paradoxo da condição filosófica: tornou-se tão estranho ao seu povo que este o condena à morte; mas ao aceitar a condenação, ele adere ainda ao seu povo, como aquele que ele expulsou irrevogavelmente de si.»

   — Giorgio Agamben
, A Loucura de Hölderlin - Crónica de Uma Vida Habitante (1806-1843)

July 03, 2022

"O mundo não pode ser reduzido ao que produzimos e reproduzimos dele"




Em que sentido é um céptico?

Sou um céptico da mesma forma que Descartes era um céptico, tal como Pascal e Montaigne eram. Sou um céptico no sentido de pensar que não podemos objectivar toda a experiência. Esta é a força do cepticismo e o seu grande poder libertador. Nunca esqueçamos o quanto Nietzsche teve de praticar o cepticismo para identificar a morte de Deus e sobretudo o fim da metafísica, a fim de criticar o que ele chama de ídolos. Isto é, causa, substância, necessidade, vontade... O momento céptico de Nietzsche é muitas vezes negligenciado. O perigo da racionalidade que entrou em pânico no século XX é querer absolutamente acabar com o cepticismo. Mesmo entre os filósofos: Husserl e os neo-Kantianos querem acabar com o cepticismo a fim de ter uma 'filo-sofia' como ciência rigorosa. A Filosofia só sobreviverá resistindo a este modelo. A ciência rigorosa só pode lidar com objectos. Sabemos como produzi-los e reproduzi-los, mas também sabemos, uma vez que os produzimos, que os objectos não representam a totalidade do mundo. Este é o ponto da crise ecológica. Vemos que o mundo não pode, mesmo tangencialmente, ser reduzido ao que produzimos e reproduzimos dele.
(...)
No amor, nunca poderei ter um conhecimento que me isente de ter confiança na pessoa que amo. Caso contrário, deixaríamos de amar. A fides, a fé, não é apenas verdadeira no sentido de pistis, nem é um substituto do conhecimento de certeza. É o único modo de aceder a certos tipos de verdades. É uma forma de conhecimento sem certeza positiva.
(...)
Por que é tão difícil definir o homem?

Jean-Luc Marion: Este é o ponto de partida do meu último livro, Certitudes négatives: qualquer tentativa de definir o homem traduz-se politicamente no direito de decidir quem é um homem e quem não é. Esta é a grande experiência do totalitarismo no século XX. Assim que alguém diz: Eu sei quem é o homem, não só estabelece a eugenia e todas as políticas racistas ou de classe, mas acaba com aquilo a que Camus chama o crime lógico. Ou seja, a possibilidade lógica, se não legítima, de escolher quem é um homem e quem não o é. Ao fazê-lo, destrói-se a noção de homem. A humanidade sempre teve esta tentação sem ter os meios, que agora pode ter, para a implementar. E mesmo para o justificar, pelo menos aparentemente, com base em fundamentos teóricos.
O homem é um animal não estabelecido na vida, um animal instável, para usar a fórmula de Nietzsche. 

Jean-Luc Marion em entrevista de Raphaël Enthove e Cédric Enjalbert, 2010

January 08, 2022

Uma palavra - princípio

 


Em grego, άρχή, - (arché) = origem, princípio.

Os filósofos gregos pré-socráticos defendiam que o universo era uma organização, uma ordem, κόσμος (cosmos), surgida de uma desordem, caos, χάος anterior, onde tudo o que existe estava como que numa amálgama indiferenciada, até que um elemento se tenha começado a diferenciar e a originar todos os outros por um processo de transformação/diferenciação. A esse elemento original, que podia ser a água (segundo Tales), o átomo (segundo Demócrito), o infinito (segundo Anaximandro), etc. davam o nome de άρχή «arché».

O «arché» seria o elemento que deveria estar presente em todos os momentos da existência de todas as coisas do mundo. 

Um dos pré-socráticos, Diógenes de Apolônia, explicou o raciocínio que levou os filósofos desse período à ideia de «arché»:

[..] Todas as coisas são diferenciações de uma mesma coisa [de um mesmo princípio] e são a mesma coisa. E isto é evidente. Porque se as coisas que são agora neste mundo (terra, água, ar e fogo e as outras coisas que se manifestam neste mundo), se alguma destas coisas fosse diferente de qualquer outra, (...) diferenciava-se na natureza própria (...) e então as coisas não poderiam, de nenhuma maneira, misturar-se umas às outras, nem fazer bem ou mal umas às outras - nem a planta poderia brotar da terra, nem um animal ou qualquer outra coisa vir à existência, se todas as coisas não fossem compostas de modo a serem as mesmas. Todas as coisas nascem, através de diferenciações, de uma mesma coisa, ora em uma forma, ora em outra, mas retomando sempre a mesma coisa. (Fragmento 2 de Diógenes de Apolônia, OS FILÓSOFOS PRÉ-SOCRÁTICOS, GERD A BORNHEIM)


Robert FLUDD, 1574-1637, quadro negro representando o nada anterior ao universo





- simulação contemporânea da estrutura-formação com a expansão do Universo em escala - representa milhares de milhões de anos de crescimento gravitacional num Universo rico em matéria escura. (Crédito: Ralf Kaehler e Tom Abel (KIPAC)/Oliver Hahn)


Olhamos esta simulação e vemos o caos dos pré-socráticos . Quando sabemos a origem e evolução das ideias e conhecimentos tudo se torna mais fascinante e próximo - não ultrapassámos os pensadores antigos, no sentido de as suas ideias serem obsoletas (algumas ou muitas são, evidentemente) mas no sentido de termos melhorado, aprofundado, aprimorado, as suas intuições e explicações. E não apenas na física. Estamos já muito longe deles na complexidade das explicações e provas mas continuamos muito perto deles nas ideias fundamentais. As ciências, quantos mais se aproximam dos seus fundamentos, mais filosóficas são.

December 15, 2021

Philosophy quotes I like

 


“No great improvements in the lot of mankind are possible until a great change takes place in the fundamental constitution of their modes of thought.”

    — John Stuart Mill


November 25, 2021

Gadamer

 


Este pensador deve ter sido um professor extraordinário porque tanto a escrever como a falar tem uma grande facilidade em explicar qualquer conceito, mesmo complexo, iluminando a sua simplicidade estrutural. Uma pessoa aprender com um indivíduo destes... dos livros que tenho dele há um que ainda não li. Tantos livros para ler, tão pouco tempo... Outro dia tive uma conversa com o meu filho acerca do que fazer com os livros todos de filosofia, que a ele não lhe interessam, quando eu morrer. Não sei ainda. São muito e são bons. Vender? Quem é que quer comprar mil e tal livros de filosofia? Enfim, não sei, mas tenho que pensar nisso.

 

November 02, 2021

O rio da consciência





Vamos passar algum tempo dentro da nossa cabeça. Imagine a sua mente como uma sala enorme, cavernosa onde, espalhada em confusão por aqui e por ali, estão os acontecimentos da sua consciência. Dê uma olhadela à sua volta. Caminhe de peça em peça, de lugar em lugar. Fique e olhe para uma determinada memória, sentimento, sensação, ou objecto. Respire com o que vê, como um crítico numa exposição de uma galeria. Mas o que é isto? No canto, há um grande nevoeiro obscuro. Ali, uma forma coberta por um lençol. Há uma porta com um ponto de interrogação. Um buraco sem fundo. Também estes estão no quarto da sua mente.

E estes são o que William James chama a "franja" da mente.

James é um dos pilares da psicologia, mas as suas obras são tão filosóficas - fenomenológicas, especialmente - que não podem ser facilmente definidas. Um ponto-chave do seu The Stream of Consciousness de 1892 consiste em mostrar como a mente não é simplesmente constituída por aspectos "substantivos", como os objectos no nosso quarto. Estes "lugares de descanso" que são normalmente "ocupados por imaginações sensoriais" são muitos e são dominantes, mas não são o quadro completo. Há também os aspectos "transitórios" da nossa consciência - que nos movem entre pensamentos. Mas não podemos "pará-los para podermos olhar para eles", porque fazê-lo é aniquilá-los. Transformará os aspectos transitivos em substantivos.

E no entanto, por vezes, apanhamo-nos a olhar para uma ausência. A isto chama-se a "franja". Suponha-se, por exemplo, que eu digo "Espere! Nesse momento, é mantido no limbo relativamente a uma nova experiência. Ou, se estiver a tentar lembrar-se de um nome, ou de um facto para um questionário, então a sua mente rastreia-se a si própria como o holofote de um campo prisional, esperando com a esperança de tropeçar na resposta.

A nossa mente é feita de expectativas e antecipação. Temos uma prontidão para algo, mesmo que esse algo seja desconhecido.

O argumento de James é que a mente não pode ser reduzida aos objectos contidos no seu interior, tal como um rio não pode ser reduzido a decilitros, litros ou o que quer que seja. Como diz James, "cada imagem definida na mente é impregnada e tingida na água livre que corre à sua volta". A mente é um fluxo de água, não um balde de água. A mente é a pessoa a vaguear pela sala, tanto quanto os objectos contidos dentro dela.

Mini Philosophy

October 25, 2021

Contribuir, cada um à sua maneira, para o diálogo e melhoramento das sociedades humanas





A Cátedra de Filosofia Moral, de White, na Universidade de Oxford foi criada em 1621 com uma doação do clérigo Thomas White. 400 anos depois, uma nova doação resultou na mudança de nome daquela que se acredita ser a mais antiga cátedra universitária em filosofia em todo o mundo.

Após uma doação de £2,8 milhões (aproximadamente $3,85 milhões) da Fundação Sekyra, a cátedra passará a ser conhecida como a "Cátedra de Filosofia Moral de Sekyra e White".

A fundação foi criada por Luděk Sekyra, um empresário e filantropo checo e tem como objectivo "apoiar os direitos humanos, o universalismo moral, os valores liberais e a sociedade civil".

Num comunicado de imprensa de Oxford, o Sr. Sekyra é citado como tendo dito:

Questiono-me frequentemente porque é que raramente nos perguntamos como viver uma boa vida, o que constitui o progresso moral, qual é a nossa responsabilidade para com as gerações futuras, porque é que a esfera pública não é também uma esfera de moralidade e como é que a continuidade da humanidade é afectada pela tecnologia e pelas alterações climáticas globais. Estes desafios, que foram, entre outros, o tema das minhas discussões com filósofos em Oxford, ajudam-nos a descobrir níveis mais profundos de realidade, a essência das vidas que levamos. Estou satisfeito por poder contribuir para este diálogo.

O actual Professor de Filosofia Moral de Sekyra e White é Jeff McMahan, que assumiu o cargo em 2014.

October 17, 2021

Pedagogia da dor





Aqueles que conheceram o sofrimento compreendem mais da vida. Qualquer pessoa que tenha sofrido a perda de alguém que ama verdadeiramente sabe o que significa ser humano. A nível intelectual, sabemos que todas as coisas devem morrer. Podemos apreciar racionalmente a transitoriedade da vida, a ruptura da biologia, e a entropia no universo. Mas conhecer a morte, sentir e suportar a perda, dá a alguém uma compreensão que nenhum poema, filme ou livro poderia permitir.

Esta é uma das observações que Soren Kierkegaard faz na sua obra existencial religiosa, "A Doença até à Morte".

Para muitas pessoas, como os jovens ou os sortudos, não há necessidade de enfrentar a mortalidade. Podem caminhar pelos seus dias sem um momento de reflexão para perguntas sobre a eternidade. Eles nunca pensarão na sua própria morte ou naqueles que os rodeiam. Nunca pensarão que as pessoas que têm nas suas vidas irão um dia desaparecer. Nunca apreciarão que um dia cada um de nós terá a sua última refeição, rir-se-á e respirará pela última vez. Que haverá um último abraço com alguém que amamos.

Eles sabem-no numa parte remota do entendimento, mas não o sentem. É intelectualmente "objectivo", mas falta-lhes um movimento subjectivo. É como se o "desespero" viesse de fora. Enquanto que, o desespero da verdadeira dor é algo sentido de dentro. Dói e pulsa dentro do seu próprio ser.

Para Kierkegaard, este desespero - este sentido visceral de mortalidade - é a primeira etapa na realização do nosso verdadeiro "eu". Quando nos damos conta em primeira mão de que as coisas na vida não são eternas e nada é para sempre, também apreciamos como desejamos o eterno. A fonte do nosso desespero é querermos esse "para sempre".

Como devemos responder a isto? Os Epicuristas e as Religiões Orientais acreditavam que isto poderia ser superado removendo esse anseio. Heidegger e Sartre argumentaram que dá um novo significado à liberdade de escolha. Camus acreditava que devíamos abraçar a seu absurdez. Para Kierkegaard, no entanto, significava a rendição. Existe um eterno para nos perdermos. Existe a fé.

Mesmo que discordemos da resposta de Kierkegaard, a sua reflexão sobre o desespero é uma reflexão poderosa. A dor e a perda mudam-nos e para muitos é o primeiro passo para um tipo de vida totalmente transformado.

Mini Philosophy

October 06, 2021

Gadamer acerca da liberdade humana

 


A verdade não é, fundamentalmente, o que se pode afirmar em relação a um conjunto de critérios, mas um acontecimento ou experiência em que nos encontramos envolvidos e alterados.

De Platão, Gadamer discerne a centralidade do diálogo como o meio pelo qual chegamos à compreensão. O diálogo está enraizado e empenhado em promover o nosso laço comum, na medida em que afirma a natureza finita do nosso conhecimento humano e convida-nos a permanecer abertos uns aos outros. É a nossa abertura ao diálogo com os outros que Gadamer vê como a base para uma solidariedade mais profunda. Com Aristóteles, Gadamer afirma o compromisso de que toda a filosofia parte da praxis (prática humana) e que a hermenêutica é essencialmente filosofia prática. Não devemos permitir que o saber permaneça apenas no nível conceptual (ou seja, distante e teórico); devemos lembrar que o saber emerge da nossa busca prática de sentido e significado. A hermenêutica de Gadamer elucida como o Ser torna a existência humana significativa, onde o Ser se refere à uniformidade que todos nós partilhamos.

(Lauren Swayne Barthold)

September 05, 2021

Merleau-Ponty - The Whole Picture




(agora lembrei-me de Merleau-Ponty e da gestalt, a propósito do artigo acerca de Putin e da maneira como os EUA subestimam a sua perigosidade, embora não tenha nada a ver com a Teoria das Formas, mas foi o facto do autor defender que os EUA não vêem ou não têm sido capazes de ver Putin na totalidade e vêem-no aos pedaços separados e por isso não retiram lições do passado.)



Merleau-Ponty - O quadro completo 

Olhe à sua volta agora, e diga o que vê? O que provavelmente fará é listar os objectos à vista - uma árvore, uma cadeira, uma pessoa, uma nuvem, uma porta e assim por diante. Porém, não é assim que se encontra o mundo

Em cada momento, não encontramos objectos discretos, mas sim um tableau. Estamos imersos numa cena em que todos os objectos pertencem juntos. A árvore junto à vedação, a porta emoldurada pela parede, ou as nuvens a manchar um céu azul. 

Isto é o que Merleau-Ponty observou numa discussão acerca da "Gestalt"[forma]. Merleau-Ponty foi amigo e contemporâneo de Sartre, Camus e de Beauvoir, mas não é tão famoso como eles. Talvez por ter sido psicólogo e filósofo em partes iguais, numa altura em que ambos se odiavam. 

Merleau-Ponty desafiou a visão dominante na época (descendente de Locke) de que o nosso conhecimento provém apenas de experiências individuais do mundo. Merleau-Ponty argumentou, em vez disso, que não experimentamos sensações separadas, como "amarelo", "oval" ou "ceroso", mas percebemos um 'já unificado' "limão". 

Vemos o quadro inteiro; vemos a "Gestalt". A percepção não se concentra nesta ou naquela sensação. Pelo contrário, é uma "organização espontânea do campo sensual" onde "cada elemento é determinado pela sua função no todo". Nenhuma experiência é isolada, mas somos inevitavelmente bombardeados com a totalidade de uma cena. 

Durante o nosso desenvolvimento cognitivo, aprendemos a experimentar a gestalt das coisas, e desconstruí-las em sensações componentes exige de facto um esforço artificial. 

Para Merleau-Ponty, não vivemos num reino abstracto. Somos encarnados, interagindo com a 'totalidade' das coisas a um nível muito mais prático e imediato. Isto é mais verdade na forma como vemos as pessoas (e nós próprios). Por exemplo, com raiva, não se vê uma cara vermelha, um maxilar cerrado, ou braços cruzados. Vê-se raiva. 
Tudo isto deve muito a Kant, que discutiu em linhas semelhantes - fazemos muito para tornar o mundo significativo. 
Merleau-Ponty merece melhor reconhecimento, até porque a ideia da psicologia gestalt chama a atenção para a indeterminação e entrelaçamento das nossas experiências. Os filósofos adoram uma abstracção, mas o que a gestalt mostra é que esta simplesmente não é a forma como os humanos lidam com o mundo.

Mini Philosophy

July 22, 2021

Iniciativas interessantes - Projecto Memória e Perdão

 



Felipe De Brigard, professor de filosofia, psicologia e neuro-ciência na Duke University e líder do «Laboratório de Imaginação e Cognição Modal» ali existente, recebeu uma bolsa de $988.602 para o seu projecto, "Esquecer e Perdoar: Explorar as Ligações entre a Memória e o Perdão".

 A subvenção é da Fundação John Templeton.

O projecto adopta abordagens filosóficas e empíricas a questões conceptuais e psicológicas relacionadas com o perdão, emoções e memória, centrando-se nas vítimas de violência política:

As pessoas que sofreram actos de injustiça são frequentemente instadas a "perdoar e esquecer". De facto, esquecer os detalhes de experiências passadas que suscitam sentimentos dolorosos, por vezes debilitantes, de ressentimento, raiva e ódio, parece ser necessário a fim de substituir esses sentimentos negativos por outros mais positivos. No entanto, recordar os detalhes de erros passados também parece ser necessário para o perdão. Se a memória de uma pessoa de uma ofensa passada fosse de alguma forma apagada da sua mente, não diríamos que ela tinha perdoado o ofensor. O perdão, então, parece exigir uma contradição: é preciso lembrar e esquecer, para perdoar. Como devemos compreender a relação entre perdoar e esquecer de modo a resolver este paradoxo? Apesar de um corpo crescente de investigação sobre o perdão, a relação entre a memória e o perdão permanece pouco clara.

O projecto actual procura explorar esta relação tanto empiricamente como teoricamente. Com base na hipótese de trabalho de que o perdão desencadeia um processo psicológico de reavaliação emocional de memórias de ofensas passadas, o aspecto experimental do projecto visa investigar os efeitos do perdão na recordação subsequente, bem como os efeitos que diferentes técnicas de reavaliação podem ter na tendência das pessoas para perdoar ofensas. A investigação empírica será conduzida em três populações diferentes: uma amostra de vítimas directas de violência política de Montes de Maria, uma região rural no norte da Colômbia, uma amostra urbana de vítimas indirectas de Bogotá, e uma amostra comparativa de indivíduos nos Estados Unidos. A clarificação do papel que a memória desempenha no perdão não só fará avançar a nossa compreensão desta noção, mas também proporcionará uma base empírica sólida sobre a qual construir uma teoria da mudança emocional do perdão.

Pode saber mais sobre o projecto aqui e pode seguir o Dr. De Brigard no Twitter aqui. (enfim, se a sua conta não está suspensa pelo grande líder...)


July 05, 2021

'Des-centrar-se'

 



A maioria das pessoas, no seu dia-a-dia, não existe realmente. Pense em como é estar sempre consigo. O que irá descobrir é que não está realmente consciente de si próprio, mas apenas do mundo à sua volta. Vê a cara de um amigo, ouve o som do alarme, sente o sabor de uma cerveja, o flash de um filme, a batida de uma canção, etc. Somos telescópios a olhar para fora.

Este é um aspecto chave para Sartre, que segue o gosto de fenomenólogos como Husserl.

Muito do modo como nos vemos vem de Platão e Descartes. Platão pensava que o mundo "lá fora" é corrupto [no sentido de não permanecer, morrer], ilusório e que para procurar a verdade deveríamos recuar para dentro de nós para contemplar Ideias. Descartes pensava os nossos pensamentos como sendo uma espécie de substância cujo cerne era o 'eu'. O 'eu' é interno; o mundo é externo. E, pensava, nunca os dois se encontrarão.

Mas para Sartre, o oposto é o verdadeiro. Ele escreveu que uma "recusa em ser uma substância é o que faz a consciência". Se queremos encontrar-nos, não o podemos fazer fechando-nos numa sala escura, queixo na mão, contemplando. Em vez disso, escreveu: "Não é nalgum esconderijo que nos descobrimos; é na estrada, na cidade, no meio da multidão, uma coisa entre as coisas, um humano entre os humanos".

Em suma, durante a maior parte da nossa vida, estamos apenas ocupados com o mundo. Há uma união perfeita e discreta entre si e as coisas com as quais interage. Como Sartre escreveu, "quando olho para o tempo, quando estou absorvido num retrato, não há eu". Pense em voltar a hoje, quantas vezes pode dizer que estava ciente de 'si próprio'?

Mas tudo isto é muito Husserl, e não particularmente original de Sartre (Heidegger e Kierkegaard frisam  pontos semelhantes). No entanto, há alturas em que 'podemos' reflectir sobre os nossos pensamentos, ou quem somos e "o eu dá a si próprio transcendência" e toma uma visão de cima, uma posição de avaliador dos seus próprios pensamentos.

Contudo, estes momentos de reflexão são raros e deixam-nos com um paradoxo. O ego, o sujeito de toda a vida, faz-se, nessas alturas objecto. A mão desenha-se a si própria e o olho olha para dentro. Mas, por mais estranho que isto seja, sabemos exactamente o que ele quer dizer.

Mini Philosophy

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[Este texto fez-me lembrar um artigo de jornal escrito pela Isabel do Carmo, que li hoje num blog, sobre o 25 de abril. Ela enumera todos os males da ditadura e dá exemplos de outras ditaduras da época e posteriores, todas de 'direita'; não cita uma única ditadura de Leste, da Ásia... é como se nunca ali tivesse havido ditaduras. Estava a ler aquilo e a pensar exactamente no que diz este texto: das duas uma, ou ela é intelectualmente desonesta, uma vez que tenta esconder que há ditaduras de esquerda ou é alguém incapaz de ver o seu próprio pensamento, de ver-se a pensar e ajuizar das sua estreiteza de pensamento. Alguém que pôs o seu 'ego' no centro e não é capaz de 'des-centrar-se', de se opor ao seu 'ego' e ver outros pontos de vista. Parto do princípio que seja esta segunda opção e não uma desonestidade com dolo, porque já li outros textos dela cheios de contradições acerca da violência e do seu passado violento, em que não diz coisa com coisa. Seja como for, fica-se com a ideia de que é uma pessoa intelectualmente desinteressante. Excepto o testemunho do que fez na sua vida, sendo honesta em relação a isso, nada se aprende com ela, uma pessoa que mostra ser incapaz de 'des-centrar-se' do seu 'ego'. Confesso que a certa altura comecei a ler o artigo na diagonal porque aquilo parece um trabalho de escola do 10º ano...]