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November 09, 2025

E você, que tipo de Giges é?

 


«Espera, há um sem-abrigo, vou dar-lhe dinheiro», exclamou o meu enteado enquanto caminhávamos pela rua, antes de se apressar a dar-lhe cinco euros. Surpreendida com essa explosão de altruísmo num adolescente que normalmente se preocupa mais com seus próprios problemas, perguntei-lhe o que motivava essa generosidade repentina. Que erro cometi!

“O quê, não estás a par?”, respondeu o meu enteado. «Hoje em dia, há influenciadores que se disfarçam de sem-abrigo e filmam a reação dos transeuntes. E ganham até 100 000 dólares para quem dá esmolas!» A ingénua que sou, imaginei que o nosso adolescente, cansado de ver vídeos de musculação, finalmente se preocupasse com o destino dos mais desfavorecidos. Infelizmente, não era o sentido de justiça social, mas a preocupação com a sua própria imagem — bem como a ganância — que o levavam a agir de acordo com o bem. Essa cena banal fez-me mergulhar novamente em velhas questões filosóficas sobre a nossa relação com a moral.

Na República de Platão, Glaucon conta a Sócrates a história de Giges, um pastor da Lídia. Giges encontra um anel de ouro que, quando vira a pedra para dentro, o torna invisível. Embriagado por esse incrível poder, Giges mata o rei e toma o seu lugar no trono, depois de seduzir a rainha. 

Ao expor este mito, Glaucon procura apoiar a tese de que o homem só age de acordo com a justiça por medo da punição. Por outras palavras, é o olhar dos outros que nos torna virtuosos: sem vigilância, seríamos todos criminosos! Sócrates, é claro, opõe-se a esses argumentos com uma refutação que visa mostrar que a verdadeira virtude, que é a justiça, só pode ser buscada por si mesma e não motivada apenas pela pressão social.

Antigamente, dizia-se às crianças travessas que Jesus as via pecar. Hoje, o smartphone é o nosso novo Deus, pensei ao ver o meu enteado preocupado com a possível presença de influenciadores na nossa rua. 
Já não tememos o julgamento do Senhor, mas o olhar difuso de uma sociedade de controlo que cada detentor de uma câmara encarna. 

Dizemos a nós mesmos que o menor gesto, a menor palavra inadequada pode ser transmitida, amplificada, julgada nas redes sociais... ou mesmo, como o meu enteado, que devemos nos comportar bem “caso sejamos filmados”. Esse novo jugo moral desagradaria muito a Sócrates, que preferiria a pureza das boas intenções. 

Mas isso é tão grave assim? Afinal, o medo de ser observado não é um incentivo como outro qualquer para fazer o bem?

O problema é quando as câmaras se desligam. Infelizmente, as notícias parecem dar razão a Glaucon, pensei eu ao ver as imagens chocantes dos nossos bravos polícias a atacarem violentamente os manifestantes de Sainte-Soline, parecendo sentir uma espécie de prazer extático nessa onda de violência. Sem esses vídeos gravados pelas suas próprias câmaras, a opinião pública nunca teria tomado consciência da gravidade desses actos que, longe de serem deslizes isolados, foram claramente encorajados pelos seus superiores hierárquicos. «Tem um filho da puta que eu tive na cabeça, meu!», exclama um deles. «Não digas isso diante da câmara», responde outro. Parece que só a certeza de poderem ser filmados em flagrante – não pela instituição, que parece ter fechado os olhos voluntariamente a esses excessos, mas pelo grande público – poderia ter contido essa violência arcaica.

Será que o homem nasce egoísta e violento, com todo o respeito a Sócrates? Não gostaria de acreditar nisso. As forças da ordem estão exasperadas com a violência dos manifestantes, que não hesitam em usar fogos de artifício e cocktails Molotov, argumentam os seus defensores. Afinal, também houve polícias feridos durante esses confrontos. 

Resta uma questão abissal: como confiar, na ausência de câmaras, nas forças da ordem que se tornaram manifestamente incapazes de controlar o seu thymos, essa mistura de raiva e coragem que, segundo Platão, constitui a virtude dos guardiões que deveriam proteger a Cidade? E quem vigiará os guardiões, senão o poder numérico? No fundo, a moral de Sócrates continua profundamente actual: o sentido da justiça é experimentado no íntimo, sem o qual não há verdadeira justiça. Isso vale tanto para os adolescentes quanto para os policiais. E você, que tipo de Giges é?

Anne-Sophie Moreau in philomag


October 15, 2025

Jonathan Lear (1948-2025)



Jonathan Lear foi um pensador filosófico idiossincrático e intelectualmente brincalhão que fundiu as ideias dos filósofos da Grécia Antiga com a teoria psicanalítica de Freud para explorar o significado do amor, da esperança e da perda.

O professor Lear desafiou normas académicas. Defendeu Freud, uma figura desprezada por muitos no meio académico e formou-se psicanalista para o compreender melhor. Estudou a resiliência visitando a reserva Crow em Montana — uma abordagem pouco ortodoxa para um professor de filosofia.

«Isso era típico do Jonathan. Ele estava interessado em ideias intelectuais, mas não apenas como ideias intelectuais. Era a experiência vivida que realmente o interessava — o que significa ser humano.» (Kay Long, professora de psiquiatria da Faculdade de Medicina de Yale, que estudou psicanálise com o professor Lear.)
«Freud -disse Lear- é um profundo explorador da condição humana, trabalhando numa tradição que remonta a Sófocles e que se estende por Platão, Santo Agostinho e Shakespeare até Proust e Nietzsche.»

Os primeiros estudos do professor Lear centraram-se na filosofia grega clássica. Nos seus livros Aristotle and Logical Theory (1980) e Aristotle: The Desire to Understand (1988), explorou a ideia de como o desejo de conhecimento molda os contornos de uma vida próspera.


Entre os 11 livros do professor Lear, Radical Hope: Ethics in the Face of Cultural Devastation (2008) foi o mais conhecido. O impulso para escrevê-lo foi uma citação do chefe Plenty Coups, da nação Crow.
«Quando os búfalos desapareceram, os corações do meu povo caíram no chão e nunca mais conseguiram levantá-los. Depois disso, nada aconteceu...»


by nytimes

July 23, 2025

Exame da Filosofia - 2ª fase

 

O exame é muito mais fácil que o 1º. Tem, não uma, mas várias perguntas directas, do género, 'o que é isto' que me parecem não dever fazer parte de um teste de Filosofia, perguntas que apelam ao 'despejanso'.

Tem uma questão muito interessante, que obriga a pensar e a ter de seleccionar conteúdos diferentes e a articulá-los com coerência para responder. É uma questão complexa e interessante sobre a ciência.

A questão é esta:

"Muitas pessoas consideram que a objetividade é uma característica fundamental da ciência, mas também
há quem entenda que a ciência nem sempre é objetiva.

Será a ciência objetiva?

Na sua resposta, deve

− apresentar inequivocamente a sua posição;

− argumentar a favor da sua posição."

Não gosto da exigência do aluno ter de apresentar a sua posição. Parece-me anti-pedagógico esperar e muito menos requerer que alunos de 16 anos tenham posições firmadas sobre assuntos tão complexos, tão cedo na vida.

Para mim é um sinal contrário a uma atitude filosófica que é, penso, o objectivo do ensino da filosofia no secundário: não produzir pessoas cheias de opiniões formadas, mas sim formar pensadores, capazes de crítica objectiva e de revisão racional.

Parece-me mais pedagógico pedir ao aluno que problematize a questão e argumente uma das perspectivas ou as perspectivas possíveis. Uma pessoa que seja a favor de certa tese, tem de ser capaz de compreender e argumentar com objectividade, a tese oposta. É isso que torna possível o diálogo frutífero entre pessoas com pensamentos diferentes a viver em sociedades comuns. 

O que é importante é que os alunos saiam das aulas de filosofia a compreender e saber argumentar as várias perspectivas sobre os problemas, mesmo que um dia tenham uma posição escolhida acerca deles. O que mais temos por aí são pessoas que têm posições firmes sobre cada e todos os assuntos, incapazes de pôr os óculos da perspectiva contrária e de considerar os problemas impessoalmente, de um ponto de vista universal.


July 11, 2025

Até que ponto é complicado? Faça o teste

 


Teste: até que ponto é complicado?
Cédric Enjalbert 


Cada um tem a sua maneira de se organizar e de avançar perante a incerteza. Para descobrir a sua abordagem filosófica da vida em toda a sua complexidade, faça o nosso teste!


Etapa 1 /
Responda a estas 15 perguntas


1. As férias estão a aproximar-se. O destino já está escolhido há muito tempo...

@ Mas espera até ao último minuto para comprar os seus bilhetes. Não gosta de se sentir bloqueado.

$ Vai diretamente para o local de compra assim que as reservas abrem para conseguir os melhores preços e libertar a sua mente.

# Espera pelos seus amigos e compra os seus bilhetes ao mesmo tempo que eles.


2. A sua lista de leitura é...

@ Romances policiais ingleses ou escandinavos. Verdadeiros “page-turners” para distrair!

$ O seu objetivo é ler a totalidade de À la recherche du temps perdu. Dois meses de leitura pela frente.

# Está a tentar acabar os livros em curso antes de passar a outra coisa.


3. O frigorífico está vazio...

@Vai à loja da esquina comprar algumas coisas para o almoço.

# Nunca faz as compras e deixa isso para a sua cara-metade.

$ Escreve uma lista para não se esquecer de nada no supermercado e não ter de lá voltar tão cedo.


4. Está a pensar ir a Roma por uns dias para...

@Visitar a Capela Sistina, saborear um gelado na Giolitti's, relaxar no parque do Palazzo Borghese.

$ Beber espressos e comer gelados no terraço. Em suma, desfrutar da dolce vita.

# Fazer uma pausa do mundo depois de um ano de trabalho duro.


5. Doodle, Slack, Evernote, Google Calendar...

@ O que é que são?

# São ferramentas reservadas à esfera profissional.

$ Trata-se de aplicações que facilitam a vida quotidiana.


6. Sente-se melhor...

@ Nas montanhas ou junto ao mar, na solidão e no ar puro.

$ Nas capitais, com toda a sua actividade agitada.

# Não importa onde esteja, desde que não estejas sozinho.


7. Andar à boleia é...

$ Uma anedota! Já não somos hippies.

# Divertido mas pouco realista... Quem é que ainda o faz?

@ Um desafio. Gostavas de fazer uma viagem com um orçamento limitado, com ênfase em conhecer novas pessoas.


8. Quando se trata de fazer dieta, você...

$ Pratica um jejum semanal, evitando geralmente o álcool e o café.

@ Nunca resiste a um bom restaurante ou a uma saída à noite com uma (penúltima) bebida.

# Não defende os excessos nem as proibições.


9. Vai viajar. O que é que faz com o seu gato e as suas plantas?


# Deixa-os com amigos, a quem empresta o seu apartamento.

@ Derrama garrafas nos vasos e leva o animal consigo.

$ Tem um sistema de rega automático e confia o seu gato a uma ama.


10. Este fim de semana...

$ Pede à IA que lhe planeie dois dias ocupados.

@ Espera por pedidos de última hora, mas não está preocupado em não fazer nada.

# Vai almoçar a casa dos seus pais, como faz todos os domingos


11. Está a organizar uma festa...

$ Prepara uma lista de músicas, compra uma caixa de vinho para evitar misturas e não se esquece da cerveja de gengibre para os abstémios.

# Em vez de irem para vossa casa, combinam encontrar-se num bar simpático.

@ Confia nos seus convidados para trazerem o que gostam... e o speaker que ainda não tem!


12. Durante uma discussão, vocês...

# Ouvem-se um ao outro e encontram uma forma de seguir em frente.

@ Foge e não se envolve neste jogo estéril.

$ Utiliza todos os meios à sua disposição sem receio de prolongar indefinidamente a discussão - na verdade, diverte-se!


13. Na sua mala...

# Faz sempre a mesma mala, pois o seu guarda-roupa é bastante limitado.

@ Faz as malas rapidamente na véspera da partida, colocando tudo o que consegue apanhar.

$ Adapta-a de acordo com a previsão do tempo.


14. A sua banda sonora atual é...

@ 4'33'' de John Cage, insuperável.

# Despechá de Rosalía, que põe toda a gente a mexer.

$ Rádio a todas as horas para se manter informado!


15. Aproxima-se o início da nova época...

$ Afia os seus argumentos para pedir um aumento ao teu patrão.

@ Não penses nisso! Em breve voltará ao assunto.

# Não há nada de novo debaixo do sol: vai voltar ao trabalho como sempre!



Passo 2 / 
Contar os pontos

Ninguém dificulta deliberadamente a sua vida e todos tentam fazer o seu caminho o melhor que podem num mundo cheio de altos e baixos. Mas quando se trata de lidar com a vida quotidiana, existem dois eixos distintos e duas opções: deixar ir vs. programar, e vazio vs. plenitude.

Algumas pessoas lidam com a imprevisibilidade, abraçando o movimento caótico do mundo, mesmo que isso signifique perder-se nele. Outros, pelo contrário, tomam a dianteira para nunca serem desestabilizados por surpresas desagradáveis, correndo o risco de tornar a sua vida rígida.

Por outro lado, algumas pessoas procuram a maior simplicidade, evitando todos os falsos problemas... à custa de um grande esforço! Outros querem desfrutar de todos os prazeres com intensidade, mesmo que para isso seja necessário fazer muitas acrobacias.

No teste que acaba de realizar:

- Todas as perguntas com número ímpar destinam-se a medir a sua posição no eixo largar vs. programar
- Todas as perguntas com um número par destinam-se a avaliar a sua posição no eixo vazio vs. cheio.


Pode agora calcular

O seu coeficiente de previsão = linha horizontal.
Cada vez que der a resposta $ a uma pergunta de número ímpar, conte 1 ponto. 
Se deu uma resposta #, conta 0. 
Se deu uma resposta @, conta -1.
O seu coeficiente é, portanto, a soma dos pontos obtidos considerando as suas respostas às perguntas 1, 3, 5, 7, 9, 11, 13 e 15

O seu coeficiente de intensidade = linha vertical
Cada vez que der a resposta $ a uma pergunta par, conte 1 ponto. 
Se deu uma resposta #, conta 0. 
Se deu uma resposta @, conta -1.
O seu coeficiente é, portanto, a soma dos pontos obtidos considerando as suas respostas às perguntas 2, 4, 6, 8, 10, 12 e 14.

Isto permitir-lhe-á situar-se num dos quatro perfis. Cada um deles corresponde a escolhas filosóficas específicas.

Qual é a sua posição?
Agora pode situar-se na seguinte referência:



Etapa 3 /
Em que perfil se encaixa?

O improvisador
A vida não cabe numa folha de cálculo Excel! Prefere a aventura, com os seus percalços, às viagens demasiado apertadas, que não deixam espaço para o inesperado. Não é muito exigente com os horários, gosta da experiência da duração e de desafiar o tempo abstracto dos relógios. 
Esquece-se um almoço marcado no restaurante para uma bela sesta na praia. Embora seja melhor não contar muito consigo quando se trata de organização e pontualidade, é frequentemente o primeiro entusiasta a seguir o fluxo. 
Confia na sua intuição e abraça aquilo a que Henri Bergson chamou o “fluxo da realidade”. 
Em La Pensée et le Mouvant (1934), o filósofo diz: 
Posso imaginar os pormenores do que me vai acontecer, mas como a minha representação é pobre, abstracta e esquemática em comparação com o acontecimento que realmente se realiza! A realização traz consigo um nada imprevisível que muda tudo. 
Em suma, acredita que a vida é complexa e que, demasiadas vezes, nos perdemos a tentar encaixá-la em caixas. Está atento à “criação contínua de novidades imprevisíveis” que ocorre a cada momento no Universo.


O previdente
É um artista do Calendário Google! Cada evento da sua vida está escrito nele como uma pintura abstracta. Encarrega-se de organizar as férias, convida os seus amigos a juntarem-se imediatamente à aplicação para controlar as despesas e otimizar as viagens com precisão. Graças às ferramentas digitais e à inteligência artificial, pode aperfeiçoar as suas escolhas, tanto pessoais como colectivas. Calcula o mais eficiente, o mais económico, o menos prejudicial. 
Tal como o deus omnisciente de Gottfried Wilhelm Leibniz nos seus Ensaios sobre a Teodiceia (1710), procura-se 
o melhor de todos os mundos possíveis, integrando todos os parâmetros para reformar o projeto mais adequado. Antes de tomar uma resolução completa, é como um grande arquitecto que se propõe como objetivo a satisfação ou a glória de ter construído um belo palácio, e que considera tudo o que deve entrar nessa construção: a forma e os materiais, o lugar, a localização, os meios, os trabalhadores, a despesa
É verdade que a sua organização meticulosa deixa pouco espaço para desvios e desvios... mas não evita muitas desilusões?

O flexível
Flexibilidade e adaptação são as suas palavras de ordem. Num grupo, nunca se coloca um problema, adaptando-se a tudo com serenidade. Aceita a vida como ela é e sabe viver com pouco. 
Poderá sentir-se tentado a juntar-se a uma comunidade nas Cévennes para escapar ao frenesim da vida citadina e às nossas alienações consumistas. 
O vazio, a tranquilidade, o desapego, a insipidez, o silêncio e a não-ação são o nível de equilíbrio do universo, a perfeição do caminho e da virtude”, acredita, seguindo os passos de Tchouang-tseu (século IV a.C.). 
Responde às preocupações da vida retirando-se, descansando e experimentando o desapego. Segundo a sabedoria taoísta, “este repouso conduz ao vazio, um vazio que é plenitude, uma plenitude que é totalidade”. 
Porém, esta falta de iniciativa, que não exprime um verdadeiro desejo, pode acabar por pesar sobre os que o rodeiam, que o censuram por se deixar levar: quer sair ou ficar em casa? O que é que há para jantar? O que é que queres fazer? "Feliz de quem não faz nada! pode pensar consigo mesmo. Ele não conhece a tristeza nem a miséria e vive muito tempo.


O metódico
O seu método é uma folha de papel limpa! Quando se vê confrontado com um problema, começa do zero, baseando-se no que já existe, sem se deixar dominar.
Organiza a sua vida procurando a maior clareza possível. Paradoxalmente, esta procura de simplicidade exige esforço, mas dá-lhe confiança. 
Estabeleceu uma disciplina para escapar ao ruído e à confusão, “evitando cuidadosamente a pressa e a prevenção”, conduzindo os seus pensamentos em “ordem”, como René Descartes. 
No seu Discurso sobre o Método (1637), o filósofo testemunha a sua resolução,
imitando os viajantes que, encontrando-se perdidos numa floresta, não devem vaguear, ora para um lado, ora para outro, e muito menos parar num lugar, mas caminhar sempre o mais direito possível para o mesmo lado. 
Porque “pelo menos acabarão por chegar a algum lado, onde provavelmente estarão melhor do que no meio de uma floresta”. 
O seu rigor efectivo pode não ser do agrado de todos mas, no fim de contas, não está a obrigar ninguém a segui-lo. O seu “objetivo aqui não é ensinar o método que todos devem seguir para conduzir corretamente a sua razão”, nem “aconselhar ninguém a imitá-lo”.

April 09, 2025

Uma atitude filosófica

 


Nos diálogos [platónicos], a conversa filosófica envolve uma espécie de jogo de papéis, com uma pessoa a actuar como “construtor de teorias”, que tenta estabelecer a verdade de uma ideia, e a outra a actuar como “refutador”, que tenta derrubar a ideia. Isto resolve um aparente paradoxo entre os dois compromissos de uma boa investigação: procurar a verdade (e, portanto, ter alguma confiança de que a encontrámos) e evitar a falsidade (e, portanto, ser céptico quanto à posse da verdade). - OLÚFÉMI O. TÁÍWÒ

Entendido desta forma, o método socrático divide o trabalho entre as pessoas, atribuindo-lhes papéis diferentes. Um dos papéis é o de afirmar e o outro, o do filósofo, é o de refutar - não para negar, per si, mas para encontrar os erros das afirmações e corrigi-los - fortalecê-las, rectificá-las ou substitui-las. A questão é que a maioria das pessoas vive vidas não examinadas em sociedades acríticas e afastados dos seus princípios. 

No final deste período conversei com os alunos do 11º ano (dado que estamos a um mês e uma semana do fim das aulas de filosofia - talvez nunca mais voltem a ouvir falar de filosofia) sobre o que espero que tenham guardado e desenvolvido nestes dois anos de aulas: pontos de referência filosóficos para pensar em problemas humanos, que são os deles; distanciamento crítico em relação à realidade; resistência ao dogmatismo; procura de informação em fontes fidedignas em vez de acreditar em tudo que lhes aparece à frente; capacidade de detectar erros em raciocínios; desconfiança das suas próprias 'verdades'; coragem moral para ser crítico, filosófico, nos ambientes em que estão e para não compactuar com maldosos e hipócritas, mesmo que isso implique sacrifício; desenvolver a empatia pelos outros e não confundi-la com o emotivismo fácil. 

É muito difícil, disseram-me eles, ser essas coisas todas. Pois é, mas não é obrigatório sê-las todas de modo perfeito o tempo todo. É uma trabalho em curso com avanços e recuos, mas é isso que significa a frase, Uma vida não examinada não vale a pena ser vivida e também a outra, mais vale sofrer injustiças do que cometê-las.

Outro dia resolvi escrever qualquer coisa no Linkedin. Era isso ou apagar aquilo completamente porque não tinha lá nada e é uma plataforma que não tem que ver com a minha actividade, mas como tenho lá muitos ex-alunos e gosto de saber o que andam a fazer, resolvi pôr ali as formações que fiz ao longo da vida. Descobri que, excepto em dois ou três anos, todos os anos fiz, pelo menos, uma formação. Este ano lectivo já fiz quatro, por exemplo. Enfim, um ex-aluno de há mais de quinze anos viu aquilo e mandou-me uma mensagem, 'professora, não sei se se lembra de mim, fui seu aluno assim e assado, gostei de ver notícias suas e queria dizer-lhe que nunca me esqueci das suas aulas e que o espírito crítico que aprendi consigo tem-me ajudado muito na carreira profissional'. Lembro-me perfeitamente dele e da sua voz de locutor de rádio. Um professor fica sempre contente quando ex-alunos validam o nosso trabalho naquilo que consideramos o mais importante: não o ficar com preceitos filosóficos na memória, mas sim desenvolver uma atitude filosófica.

March 05, 2025

Discurso sobre a Servidão Voluntária

 


La Boétie identificou-o perfeitamente no seu Discurso sobre a Servidão Voluntária: um tirano só pode exercer a sua tirania com o apoio e o revezamento que encontra nos “tiranos”, ou seja, todos aqueles que, para preservarem o seu conforto, a sua posição e a sua tranquilidade, permitem que ele os rebaixe, desonre e viole sem nunca serem incomodados. É, nas palavras de La Boétie, uma conspiração: “Quando os maus se reúnem, é uma conspiração, não uma companhia; não se apoiam uns aos outros, mas apoiam-se mutuamente; não são amigos, mas cúmplices”. Alguns podem ter agido inicialmente sob coação, porque o poder é então confundido com a força. No entanto, chega uma altura em que “servem sem arrependimento” e cumprem com zelo o que lhes é imposto.


March 04, 2025

Recordando Vladimir Jankélévitch (ainda)

 


A fidelidade -lealdade- não é uma virtude intrínseca, pois depende do seu objecto. A fidelidade a uma pessoa de poucas ou nenhuma virtude transforma-a num vício que ameaça as outras virtudes a que devemos ser fiéis como a justiça, a verdade, etc.
Pensamos no caso da lealdade de certos políticos a Trump, um homem sem virtudes ou, na fidelidade de Santos Silva (e outros) a Sócrates ou na fidelidade de Costa a Cabrita e, em geral, aos seus amigos, acima de tudo, inclusive o interesse do Estado ou a fidelidade de Merkele a Putin ou a fidelidade da esquerda a uma ideologia que traz a miséria e a injustiça ou a fidelidade da direita a religiões que trazem a miséria ou a morte ou a fidelidade de ambas as vertentes políticas a ideologias económicas. Etc.

Recordando Vladimir Jankélévitch




O combatente da Resistência como filósofo

Recordando Vladimir Jankélévitch

Por Robert Zaretsky


Passaram 40 anos desde a morte de um dos intelectuais mais importantes de França, cujo nome provavelmente nunca ouviu: Vladimir Jankélévitch. Tendo em conta os riscos profissionais que Jankélévitch enfrentou enquanto judeu francês e combatente da resistência durante a ocupação nazi de França, é um golpe de sorte estar a ouvir o seu nome agora. No entanto, Jankélévitch sobreviveu a esses anos negros para escrever sobre uma variedade estonteante de assuntos, desde a morte à música, num estilo deslumbrante - e, por vezes, confuso.

As suas reflexões éticas - talvez melhor caracterizadas pela sua insistência em que “a moralidade não está inscrita em tabelas nem prescrita em mandamentos” - são especialmente impressionantes, moldadas como foram pela experiência pessoal.
(...)
Partimos do princípio de que o valor da maioria das virtudes, como a tolerância e a temperança, a coragem e a compaixão, é intrínseco. E embora os filósofos morais, desde Aristóteles, tenham debatido os pontos mais delicados destas ideias, existe um consenso geral de que a bondade é boa, a justiça é justa e as virtudes são vitais. Como conclui Alasdair MacIntyre no seu livro apropriadamente intitulado After Virtue, “o exercício das virtudes é, em si mesmo, uma componente crucial da vida boa para o homem”.

No entanto, a fidelidade - o sinónimo de lealdade que os filósofos morais tendem a utilizar - é diferente da maioria das virtudes. Sem ela, a vontade de levar uma vida boa é uma vontade de não fazer nada, mas não tem o valor intrínseco das outras virtudes. Embora a compaixão - ou seja, a nossa abertura ao sofrimento dos outros - seja inerentemente boa, a bondade da lealdade depende da bondade do seu objeto. 

Como Jankélévitch observa, o seu valor de louvor depende da forma como respondemos à pergunta: “Fiel a quê?” Que tolice gabar-me da minha fidelidade a, digamos, uma marca de sumo de laranja. Para além do fabricante, ninguém me elogiaria por esse apego. Mas se eu insistir na minha fidelidade à justiça, em princípio, essa fidelidade mereceria um elogio universal.

Desenvolvendo esta distinção, Jankélévitch observa que “ninguém chama ao ressentimento uma virtude, embora seja uma espécie de fidelidade aos ódios e às raivas. Ter uma boa memória das afrontas sofridas é uma má fidelidade. Ninguém chama virtude à mesquinhez, embora também ela seja uma espécie de fidelidade às pequenas coisas”. Não menos nociva é a fidelidade a um indivíduo cujos caprichos podem ameaçar as outras virtudes às quais devemos permanecer fiéis. Isto explica, creio eu, a afirmação de Jankélévitch de que a fidelidade é a “virtude da mesmidade” - é uma garantia que persiste sem pausa no tempo e no espaço.

Jankélévitch defende que a verdadeira fidelidade - ou aquilo a que chama fidelidade desesperada - é essencial para a “luta desigual entre a maré irreversível do esquecimento que acaba por engolir todas as coisas e os protestos desesperados mas intermitentes da memória”.

Embora não tão eloquentes como os filósofos, sobretudo se forem franceses, os historiadores partilham esta fidelidade ao passado. A memória é tão frágil como o passado e não pode salvá-lo sozinha. Em vez disso, o trabalho paciente e meticuloso de documentação e verificação corrige o que pensamos recordar e adverte aqueles que ignoram ou desprezam o passado. 

De que outra forma podemos manter o que há de melhor em nós e precavermo-nos contra o que há de pior? É claro que, na era das plataformas sociais e da inteligência artificial, esta fidelidade ao passado raia o quixotesco. Mas será que nos podemos dar ao luxo de o abandonar?

Em última análise, o passado precisa de nós tanto quanto nós precisamos do passado. Tão valioso e, no entanto, tão vulnerável, o passado, conclui Jankélévitch, “precisa da nossa compaixão e gratidão, pois não pode defender-se por si próprio”. 

Se permitirmos que outros rejeitem ou reescrevam o passado - o passado como ele realmente foi e deve permanecer - traímos necessariamente o futuro. Jankélévitch compreendia que essa consciência é exaustiva, mas também sabia que era essencial.


December 28, 2024

A tortura de uma vida não filosófica

 


A diferença entre uma vida filosófica e uma vida ensaística é que a primeira visa o conhecimento, enquanto a segunda visa a novidade.


A tortura de uma vida não filosófica

A mente merece uma tarefa digna dos seus poderes

Agnes Callard

Mesmo que não tenha lido a obra-prima modernista inacabada de Robert Musil, O Homem Sem Qualidades, provavelmente concorda que tem um ótimo título. Se o leu, tenho a certeza de que concorda, porque o romance volta obsessivamente ao tema de como a sua personagem principal, Ulrich, não consegue fazer a sua acção ou, mais fundamentalmente, a sua personalidade, ser consistente. Mas eu arranjei um título ainda melhor. Penso que Musil deveria ter chamado ao seu romance O homem sem filosofia.

Ao propor este melhoramento, reconheço que, ao longo do romance, Ulrich adopta explicitamente uma filosofia de vida; além disso, até cria o seu próprio nome para essa filosofia, “ensaísmo”. O ensaísmo é um modo de vida cuja expressão caraterística é uma extensão de reflexão inovadora e perspicaz, “explorando uma coisa de muitos lados sem a englobar”. 

O ensaísta vive uma vida de observações ponderadas. Ulrich vive essa vida, tal como Musil, que está muito mais interessado em encher o seu romance de observações reflectidas do que em qualquer dos habituais artifícios de enredo ou desenvolvimento de personagens. Ulrich não quer ser “uma pessoa definida num mundo definido” e, em vez disso, aproveita a capacidade infinita de reavaliação da sua mente para imitar a infinita mutabilidade de “uma gota de água dentro de uma nuvem”. Ulrich descreve a sua relação com as ideias: “elas sempre me provocaram para as derrubar e colocar outras no seu lugar”.

Para Ulrich, tal como para Musil, “só havia uma questão em que valia a pena pensar, a questão da forma correcta de viver”. Não é isso, na sua essência, um projeto filosófico? Sim. Mas há boas razões para insistir que Ulrich é um homem sem filosofia, nomeadamente o facto de tanto Musil como Ulrich insistirem nela, uma e outra vez. 

Ulrich reconhece que, na sua situação difícil, “só podia ter-se voltado para a filosofia”, mas o problema é que a filosofia “não o atraía”. E repete: “Não era filósofo”. Tinha uma “visão algo irónica da filosofia”, porque, décadas antes do início do romance, já tinha perdido a esperança de encontrar a forma correcta de viver: “não se pode esperar que os nossos pensamentos se mantenham em sentido indefinidamente, tal como não se pode esperar que os soldados se mantenham em parada no Verão; se se mantiverem demasiado tempo em sentido, cairão desmaiados”.

Pensar muito faz sentido se quisermos respostas; faz menos sentido se a maior recompensa que esperamos dos nossos esforços intelectuais é a surpresa. A diferença entre uma vida filosófica e uma vida ensaística é que a primeira visa o conhecimento, enquanto a segunda visa a novidade. A resposta positiva caraterística a um ensaio é: “Nunca tinha pensado nisso dessa forma”; o principal inimigo do ensaísta é o tédio. Ulrich “fazia sempre algo diferente daquilo que lhe interessava fazer” para garantir a sua imprevisibilidade, mesmo para si próprio. O ensaísta é uma criatura reactiva.

Na narrativa de Musil, a vida de um ensaísta é uma vida torturada, porque é a vida da qual a filosofia está, não só ausente, mas, muito mais especificamente, desaparecida. Quando se olha para Ulrich, tudo o que se vê, a princípio, é um intelectual que sorri das suas próprias reflexões inteligentes; mas acaba-se por perceber que ao lado deste homem alegre e auto-confiante caminha, como lhe chama Musil, “um segundo Ulrich que está “à procura de uma fórmula mágica, de uma pega possível para agarrar, da verdadeira mente da mente, da peça que falta”, mas fica mudo, incapaz de encontrar palavras para se exprimir. Musil diz que este homem “tinha os punhos cerrados de dor e raiva”. Ulrich, o filósofo, está preso dentro de Ulrich, o ensaísta.

O próprio Musil recusou um trabalho académico em filosofia, para desgosto da sua família, em favor de escrever um livro de observações ponderadas. O livro, e a personagem de Ulrich, mostram-nos o que é ser um pensador sem uma missão: perpetuamente ocioso, apesar de toda a sua atividade intelectual incessante e inquieta.

Ulrich é um mulherengo em série, cuja relação com as mulheres é análoga à sua relação com as ideias e, por conseguinte, nos dá uma ideia da mesma. No início do romance, descreve uma noite com uma das suas amantes recorrendo a duas imagens: a primeira é uma “página arrancada” de um livro. A noite, embora agradável, não está ligada a uma narrativa mais alargada. 
Ulrich não está à procura de uma mulher, nem de uma família; gosta apenas de estar com elas, até não o fazer - o que faz com que as suas noites românticas sejam apenas como uma série de férias, sem nada de consistente que as ligue. 

Quando se corta o amor humano, ou o pensamento humano, em pedaços, o efeito é semelhante ao de cortar um corpo humano em pedaços: horrível.

Musil combateu na Primeira Guerra Mundial; durante a Segunda Guerra Mundial, os nazis proibiram os seus livros e ele viveu no exílio com a sua mulher judia na Suíça. Morreu em 1942, deixando inacabado O Homem Sem Qualidades, que tinha estado a rever obsessivamente durante décadas. Um facto notável sobre o romance é que Ulrich, o alter ego de Musil, não entra em nenhuma das guerras. 

O romance começa em agosto de 1913 e, em mais de mil páginas, nunca consegue atravessar os 11 meses que faltam para o início da Primeira Guerra Mundial. Musil conhecia algo das atrocidades da guerra moderna desumanizada e da brutalidade da opressão totalitária, mas não eram o seu objeto de estudo. Em vez disso, queria relatar, em primeira mão, o que tinha visto antes, quando os tempos eram supostamente bons, uma constatação tão perturbadora que nem mesmo duas guerras mundiais subsequentes o conseguiram distrair: “há qualquer coisa que falta em tudo”. Nos maus momentos, os objectivos a curto prazo enchem o nosso campo de visão; é precisamente quando os tempos são bons que estamos em posição de dar um passo atrás e perceber que o grande objetivo a longo prazo, aquele que é suposto manter tudo unido, é o que desapareceu.

Li O Homem sem Qualidades pela primeira vez quando estava a tirar o curso de Clássicos e, no espaço de um ano, abandonei esse curso e mudei para Filosofia. Porque é que, tendo em conta que devorava textos filosóficos desde o liceu, não me formei em filosofia na faculdade, ou não a segui depois? Na altura, acho que não o poderia ter dito desta forma, mas..: Tinha medo. O medo era, em parte, uma insegurança em relação a mim própria - que não estaria à altura, que não tinha nada para contribuir, que não era digna de percorrer os estimados corredores da filosofia - mas a outra parte, a mais profunda, era um medo em relação à filosofia. 

Tinha medo de que, se olhasse com atenção, descobrisse que não havia realmente respostas. Desde que nunca tentasse encontrar a forma correta de viver, não podia dizer definitivamente que não existia. Não estou a afirmar que Musil me tenha assegurado que existia. Não, o que O Homem Sem Qualidades me deu foi um vislumbre vívido e aterrador da vida de observações ponderadas; Musil foi o meu fantasma do futuro. 

Teria de, de alguma forma, encontrar em mim os recursos para acreditar que a investigação era possível, tanto para os seres humanos em geral, como para mim em particular, porque, por mais assustadora que fosse a perspetiva de fracasso, tinha acabado de ver algo mais assustador.

Podemos pensar que a mente tem um botão que normalmente está muito baixo, excepto nas ocasiões em que precisamos de resolver um problema específico, mas mesmo assim, só o aumentamos um pouco. O que aconteceria se a colocássemos no máximo, a toda a hora? Ela roeria tudo - através das nossas habituais auto-justificações, através do conceito de inevitabilidade que se liga aos nossos hábitos e costumes, através do fino andaime da razão que mantém a vida unida. 

Uma mente assim tornar-se-ia, como Ulrich uma vez se descreveu, “uma máquina para a desvalorização implacável da vida”. A única maneira de evitar este resultado é dar à mente uma tarefa digna dos seus poderes, apresentando-lhe o tipo de questões sobre as quais se pode, sem timidez, refletir. Mas isso implica alguma esperança de chegar a respostas. Esta é uma forma de pensar a filosofia: um espaço seguro para o funcionamento livre da mente.

Acerca do conto de Kafka, 'Investigações de um Cão'

 


Este conto de Kafka, que não conhecia, é uma sátira ao filósofo, aqui descrito a certa altura como um cão voador (entre outras coisas), muito no género da piada que se conta acerca de Tales de Mileto, o primeiro filósofo pré-socrático, que caiu num poço por andar sempre com a cabeça nas nuvens. O cão-filósofo de Kafka tem essa necessidade profunda e obsessiva de filosofar, de teorizar, de compreender e não sabe, não-pensar. Nunca descontrai dessa necessidade e por isso dedica-se a essa empresa de investigar, mesmo desconfiando que não chegará a nenhuma resposta consistente e definitiva sobre os problemas últimos, mesmo sabendo que se tornará um estrangeiro aos olhos dos outros, alguém que não sabe acompanhar o espírito do mundo canino, o cão-filósofo não desiste da empresa da investigação e construção de saber. Mesmo que quisesse desistir não podia porque o seu faro está apurado para cheirar todas as inconsistências do mundo e as inconsistências incomodam-no.


November 03, 2024

A chave dos sonhos

 

O intervalo entre as palavras e a imagem da visão.


Magritte
"La Clef des Songes"


November 01, 2024

Re-presentação

 


O grande problema do conhecimento.

René Magritte, Representation, 1962

October 16, 2024

Bom dia

 


E há quem acuse a filosofia de ser muito abstracta e difícil...




Sérgio Feliciano


September 29, 2024

Pequenos momentos de reflexão - Até que ponto devemos amarmo-nos a nós próprios?



Até que ponto devemos amarmo-nos a nós próprios?



Os nossos dois corações de alcachofra encontram-se sozinhos, cada um por si. É um momento de introspecção. O momento ideal para aprender a descobrir-se a si próprio.





De facto, este é um conselho que se dá muitas vezes aos novos celibatários: “tira algum tempo para ti”, “faz coisas para te agradar”. Vejamos, então, esta forma muito especial de amor que é... o amor de si.

O amor de si é necessariamente narcisismo?




O que é o amor de si?


Segundo o filósofo Jean-Jacques Rousseau, o amor de si é um sentimento natural necessário à auto-preservação. É semelhante ao instinto de sobrevivência e permite-nos evitar as armadilhas da vida.

Por conseguinte, é natural e fundamental amarmo-nos a nós próprios, nem que seja para sobreviver. Portanto, não se trata necessariamente de narcisismo!

Existe há muito tempo?

Segundo Rousseau, o amor de si existia muito antes de o homem formar sociedades, quando o homem se encontrava num “estado selvagem”.
O amor de si é sempre bom. 
Jean-Jacques Rousseau in Emile ou Educação
É aqui que as coisas se complicam!

O amor de si é uma característica antropológica fundamental que faz parte da humanidade desde o início dos tempos.

O amor-próprio, por outro lado, é um sentimento artificial que nasce com a sociedade e que nos leva a compararmo-nos com os outros.

E o que é o  amor-próprio ?

Segundo Rousseau, é assim que o amor-próprio se manifesta quando se criam sociedades:
Toda a gente começa a olhar para os outros e a querer ser olhada, e a estima pública tem um preço. Aquele que canta ou dança melhor, aquele que é mais bonito, mais forte, mais hábil ou mais eloquente torna-se o mais estimado.

Jean-Jacques Rousseau, Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens

Brilhar a todo o custo


O amor-próprio é um afeto ligado à aparência. Trata-se de parecer bem, forte e elegante aos olhos dos outros.

És o profissional do ego?

“Émile, tendo até então olhado apenas para si próprio, o primeiro olhar que lança sobre os seus semelhantes leva-o a comparar-se com eles; e o primeiro sentimento que esta comparação lhe suscita é o de desejar o primeiro lugar. É neste ponto que o amor de si se transforma em amor-próprio.
Amor-próprio: superficial, vaidoso, social, perigoso

Amor de si: inato, natural, primitivo, bom, protector
Aqui, Rousseau mostra o momento em que o “amor de si”, que é saudável e fundamental, se transforma em “amor-próprio”, um sentimento que remete para o desejo de se comparar constantemente com os outros, para ser considerado o melhor.

Um exemplo real?

No tempo de Rousseau, no século XVIII, a corte do rei em Versalhes era palco de uma luta feroz para ser notado a todo o custo.

O filme Ridículo, realizado por Patrice Leconte, ilustra perfeitamente esta competição perpétua.

O amor-próprio não é uma forma de amar os outros... mas de se amar a si próprio com o intuito de agradar aos outros. Por outras palavras, é uma forma de se “pôr” no mercado do amor.

Agradar a todo o custo

Na curta-metragem Coup de cœur, as actrizes Léa Issert e Caroline Chottin participam numa forma extrema de speed dating: quem não conseguir seduzir arrisca-se a ficar sozinho.

Um pouco cínico, não é?

O amor-próprio não é, de facto, nada de especial.

Mas o que é que o amor-próprio tem de tão grave?


O problema do amor-próprio é que ele traz consigo uma exigência inatingível: colocar-se acima dos outros.

O amor-próprio leva-nos ao fracasso

O amor-próprio [...], ao preferirmo-nos aos outros, exigimos que os outros nos prefiram a eles mesmos, o que é impossível.

Jean-Jacques Rousseau in Emile ou Educação

Torna-se um problema lógico. Num mundo onde todos têm amor-próprio, ninguém pode estar satisfeito.

O que fazer?

Deixar de gostar de si próprio?

Odiarmo-nos?

Não, felizmente não!

Se quisermos acabar com o amor-próprio hipócrita baseado nas aparências, a melhor solução é tentar dar prioridade ao que é mais importante aos olhos de Rousseau: a autenticidade.

Trata-se de descobrir quem somos realmente, para além das aparências.

Como?

Segundo Rousseau, a autenticidade adquire-se longe da sociedade, que nos remete sempre para o nosso desejo de nos compararmos. Para nos amarmos verdadeiramente, para nos amarmos tal como somos, sem invejar os outros, é preciso aprender... a estar só.

É no meio de uma solidão alegre e consensual que aprendemos a desfrutar da nossa própria companhia sem limites nem perigos.

As consequências da solidão

A partir daí, o amor que sentimos um pelo outro deixa de ser um amor-próprio hipócrita e vaidoso. Pode voltar a ser a alegria simples e imediata de estarmos connosco próprios.

O círculo está completo

Tendo experimentado as dores do amor-próprio em sociedade, a pessoa solitária pode reaprender o amor de si mais pacífico e saudável.
As horas de solidão e de meditação são o único momento do dia em que sou plenamente eu mesmo e meu, sem distracções nem obstáculos.

Jean-Jacques Rousseau in Reverências do caminhante solitário

Então desistimos do amor?

Rousseau não está a dizer que devemos deixar de amar os outros! Ele está simplesmente a mostrar que nem sempre precisamos dos outros para sermos felizes.

O significa isto?

Amarmo-nos a nós próprios é natural. É, sem dúvida, uma condição para amar os outros. No entanto, Jean-Jacques Rousseau, um homem bastante pessimista por natureza, não acreditava que se pudesse viver em sociedade sem cair em relações artificiais onde o amor-próprio se sobrepõe ao amor de si.

Para Rousseau, “uma pessoa verdadeiramente feliz é uma pessoa solitária”. 

Terá ele razão? 

Qualificaremos esta posição, no mínimo radical, no próximo módulo. 

Amar os seus amigos pode também revelar a verdade sobre si próprio!


August 18, 2024

Heinz Wismann: "L'Europe n'est pas un gène, elle naît de la séparation avec l’Asie"

 

Guillaume Erner fala-lhe aqui do seu último livro, Lire entre les lignes, sur les traces de l'esprit européen. Remontando ao mito da Europa, o filósofo analisa os fundamentos culturais da integração europeia, que teriam precedido quaisquer considerações geográficas, políticas ou económicas.

Segundo Wismann, a Europa nasce da separação com a Ásia, num acto cultural e não num acto político e durante muito tempo (desde Heródoto) a Europa era referida como o Ocidente por comparação com o Oriente - o 'Grande Ventre' que é a China.

Na Europa, a situação de uma comunidade de línguas diferentes obriga a que cada um se desprenda da naturalidade linguística -significante/significado- em que se encerrava como coisa evidente. Então, a diversidade que leva ao descentramento é o primeiro gesto europeu em oposição a civilizações unitárias que invocam constantemente a origem pura para manter as tradições. A Europa é como a música onde o mesmo e o outro coabitam na harmonia as sua dissonâncias particulares. É uma renovação constante da identidade pela alteridade.

Uma conversa muito interessante sobre a filosofia, a cultura, a política, a economia, a música, a Europa - e o futebol.

Heinz Wismann : "À la manière d'Ulysse, il est de bon de quitter sa langue pour mieux y revenir"

 

Historiador franco-alemão, filólogo e helenista, Heinz Wismann é um pensador que encarna o espírito europeu. 



Segunda parte da masterclass: leitura e comentário de um extrato

Facto e sentido. O papel da linguagem na experiência de um mundo partilhado.

"Todas as línguas naturais têm a dupla dimensão do dizer e do querer dizer. Com efeito, se o discurso nasce da necessidade de objetivar a nossa relação com a realidade, a sua função denotativa é complicada por uma sobredeterminação conotativa, que reflecte o ponto de vista do locutor. 
Isto explica por que razão a maior parte das palavras que utilizamos para designar factos são inicialmente metáforas que lhes conferem um significado subjetivo e objetivo. Para evitar esta ambivalência, que alimenta a imaginação poética, a filosofia começou a desenvolver uma linguagem conceptual destinada a garantir a coerência lógica da sua argumentação. 
As ciências seguiram o mesmo caminho, desenvolvendo terminologias ad hoc capazes de formalizar os seus enunciados fundamentais para evitar qualquer risco de equívoco. Este processo culmina nas ciências naturais, que adoptaram uma ferramenta semântica emprestada da matemática pura. 
O resultado é uma situação problemática, caracterizada pelo divórcio entre o discurso da ciência e o discurso sobre a ciência.
Enquanto a primeira é utilizada no interior de campos disciplinares, dando prioridade à sua relevância interna, a segunda faz parte do horizonte mais vasto de uma linha de raciocínio que tematiza o conhecimento enquanto tal. 
Quando uma determinada ciência pretende dar respostas que se aplicam a todas as questões científicas, torna-se cientismo; e quando a epistemologia geral ignora a diversidade da investigação actual, torna-se ideologia. 
Para contrariar estas derivas simétricas e preservar a ideia de uma partilha efectiva de conhecimentos, é necessário repensar o destino das línguas à luz da experiência da tradução".

Heinz Wismann, Ler nas entrelinhas. Nas pegadas do espírito europeu (Albin Michel, 2024)