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November 03, 2024

A chave dos sonhos

 

O intervalo entre as palavras e a imagem da visão.


Magritte
"La Clef des Songes"


November 01, 2024

Re-presentação

 


O grande problema do conhecimento.

René Magritte, Representation, 1962

October 16, 2024

Bom dia

 


E há quem acuse a filosofia de ser muito abstracta e difícil...




Sérgio Feliciano


September 29, 2024

Pequenos momentos de reflexão - Até que ponto devemos amarmo-nos a nós próprios?



Até que ponto devemos amarmo-nos a nós próprios?



Os nossos dois corações de alcachofra encontram-se sozinhos, cada um por si. É um momento de introspecção. O momento ideal para aprender a descobrir-se a si próprio.





De facto, este é um conselho que se dá muitas vezes aos novos celibatários: “tira algum tempo para ti”, “faz coisas para te agradar”. Vejamos, então, esta forma muito especial de amor que é... o amor de si.

O amor de si é necessariamente narcisismo?




O que é o amor de si?


Segundo o filósofo Jean-Jacques Rousseau, o amor de si é um sentimento natural necessário à auto-preservação. É semelhante ao instinto de sobrevivência e permite-nos evitar as armadilhas da vida.

Por conseguinte, é natural e fundamental amarmo-nos a nós próprios, nem que seja para sobreviver. Portanto, não se trata necessariamente de narcisismo!

Existe há muito tempo?

Segundo Rousseau, o amor de si existia muito antes de o homem formar sociedades, quando o homem se encontrava num “estado selvagem”.
O amor de si é sempre bom. 
Jean-Jacques Rousseau in Emile ou Educação
É aqui que as coisas se complicam!

O amor de si é uma característica antropológica fundamental que faz parte da humanidade desde o início dos tempos.

O amor-próprio, por outro lado, é um sentimento artificial que nasce com a sociedade e que nos leva a compararmo-nos com os outros.

E o que é o  amor-próprio ?

Segundo Rousseau, é assim que o amor-próprio se manifesta quando se criam sociedades:
Toda a gente começa a olhar para os outros e a querer ser olhada, e a estima pública tem um preço. Aquele que canta ou dança melhor, aquele que é mais bonito, mais forte, mais hábil ou mais eloquente torna-se o mais estimado.

Jean-Jacques Rousseau, Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens

Brilhar a todo o custo


O amor-próprio é um afeto ligado à aparência. Trata-se de parecer bem, forte e elegante aos olhos dos outros.

És o profissional do ego?

“Émile, tendo até então olhado apenas para si próprio, o primeiro olhar que lança sobre os seus semelhantes leva-o a comparar-se com eles; e o primeiro sentimento que esta comparação lhe suscita é o de desejar o primeiro lugar. É neste ponto que o amor de si se transforma em amor-próprio.
Amor-próprio: superficial, vaidoso, social, perigoso

Amor de si: inato, natural, primitivo, bom, protector
Aqui, Rousseau mostra o momento em que o “amor de si”, que é saudável e fundamental, se transforma em “amor-próprio”, um sentimento que remete para o desejo de se comparar constantemente com os outros, para ser considerado o melhor.

Um exemplo real?

No tempo de Rousseau, no século XVIII, a corte do rei em Versalhes era palco de uma luta feroz para ser notado a todo o custo.

O filme Ridículo, realizado por Patrice Leconte, ilustra perfeitamente esta competição perpétua.

O amor-próprio não é uma forma de amar os outros... mas de se amar a si próprio com o intuito de agradar aos outros. Por outras palavras, é uma forma de se “pôr” no mercado do amor.

Agradar a todo o custo

Na curta-metragem Coup de cœur, as actrizes Léa Issert e Caroline Chottin participam numa forma extrema de speed dating: quem não conseguir seduzir arrisca-se a ficar sozinho.

Um pouco cínico, não é?

O amor-próprio não é, de facto, nada de especial.

Mas o que é que o amor-próprio tem de tão grave?


O problema do amor-próprio é que ele traz consigo uma exigência inatingível: colocar-se acima dos outros.

O amor-próprio leva-nos ao fracasso

O amor-próprio [...], ao preferirmo-nos aos outros, exigimos que os outros nos prefiram a eles mesmos, o que é impossível.

Jean-Jacques Rousseau in Emile ou Educação

Torna-se um problema lógico. Num mundo onde todos têm amor-próprio, ninguém pode estar satisfeito.

O que fazer?

Deixar de gostar de si próprio?

Odiarmo-nos?

Não, felizmente não!

Se quisermos acabar com o amor-próprio hipócrita baseado nas aparências, a melhor solução é tentar dar prioridade ao que é mais importante aos olhos de Rousseau: a autenticidade.

Trata-se de descobrir quem somos realmente, para além das aparências.

Como?

Segundo Rousseau, a autenticidade adquire-se longe da sociedade, que nos remete sempre para o nosso desejo de nos compararmos. Para nos amarmos verdadeiramente, para nos amarmos tal como somos, sem invejar os outros, é preciso aprender... a estar só.

É no meio de uma solidão alegre e consensual que aprendemos a desfrutar da nossa própria companhia sem limites nem perigos.

As consequências da solidão

A partir daí, o amor que sentimos um pelo outro deixa de ser um amor-próprio hipócrita e vaidoso. Pode voltar a ser a alegria simples e imediata de estarmos connosco próprios.

O círculo está completo

Tendo experimentado as dores do amor-próprio em sociedade, a pessoa solitária pode reaprender o amor de si mais pacífico e saudável.
As horas de solidão e de meditação são o único momento do dia em que sou plenamente eu mesmo e meu, sem distracções nem obstáculos.

Jean-Jacques Rousseau in Reverências do caminhante solitário

Então desistimos do amor?

Rousseau não está a dizer que devemos deixar de amar os outros! Ele está simplesmente a mostrar que nem sempre precisamos dos outros para sermos felizes.

O significa isto?

Amarmo-nos a nós próprios é natural. É, sem dúvida, uma condição para amar os outros. No entanto, Jean-Jacques Rousseau, um homem bastante pessimista por natureza, não acreditava que se pudesse viver em sociedade sem cair em relações artificiais onde o amor-próprio se sobrepõe ao amor de si.

Para Rousseau, “uma pessoa verdadeiramente feliz é uma pessoa solitária”. 

Terá ele razão? 

Qualificaremos esta posição, no mínimo radical, no próximo módulo. 

Amar os seus amigos pode também revelar a verdade sobre si próprio!


August 18, 2024

Heinz Wismann: "L'Europe n'est pas un gène, elle naît de la séparation avec l’Asie"

 

Guillaume Erner fala-lhe aqui do seu último livro, Lire entre les lignes, sur les traces de l'esprit européen. Remontando ao mito da Europa, o filósofo analisa os fundamentos culturais da integração europeia, que teriam precedido quaisquer considerações geográficas, políticas ou económicas.

Segundo Wismann, a Europa nasce da separação com a Ásia, num acto cultural e não num acto político e durante muito tempo (desde Heródoto) a Europa era referida como o Ocidente por comparação com o Oriente - o 'Grande Ventre' que é a China.

Na Europa, a situação de uma comunidade de línguas diferentes obriga a que cada um se desprenda da naturalidade linguística -significante/significado- em que se encerrava como coisa evidente. Então, a diversidade que leva ao descentramento é o primeiro gesto europeu em oposição a civilizações unitárias que invocam constantemente a origem pura para manter as tradições. A Europa é como a música onde o mesmo e o outro coabitam na harmonia as sua dissonâncias particulares. É uma renovação constante da identidade pela alteridade.

Uma conversa muito interessante sobre a filosofia, a cultura, a política, a economia, a música, a Europa - e o futebol.

Heinz Wismann : "À la manière d'Ulysse, il est de bon de quitter sa langue pour mieux y revenir"

 

Historiador franco-alemão, filólogo e helenista, Heinz Wismann é um pensador que encarna o espírito europeu. 



Segunda parte da masterclass: leitura e comentário de um extrato

Facto e sentido. O papel da linguagem na experiência de um mundo partilhado.

"Todas as línguas naturais têm a dupla dimensão do dizer e do querer dizer. Com efeito, se o discurso nasce da necessidade de objetivar a nossa relação com a realidade, a sua função denotativa é complicada por uma sobredeterminação conotativa, que reflecte o ponto de vista do locutor. 
Isto explica por que razão a maior parte das palavras que utilizamos para designar factos são inicialmente metáforas que lhes conferem um significado subjetivo e objetivo. Para evitar esta ambivalência, que alimenta a imaginação poética, a filosofia começou a desenvolver uma linguagem conceptual destinada a garantir a coerência lógica da sua argumentação. 
As ciências seguiram o mesmo caminho, desenvolvendo terminologias ad hoc capazes de formalizar os seus enunciados fundamentais para evitar qualquer risco de equívoco. Este processo culmina nas ciências naturais, que adoptaram uma ferramenta semântica emprestada da matemática pura. 
O resultado é uma situação problemática, caracterizada pelo divórcio entre o discurso da ciência e o discurso sobre a ciência.
Enquanto a primeira é utilizada no interior de campos disciplinares, dando prioridade à sua relevância interna, a segunda faz parte do horizonte mais vasto de uma linha de raciocínio que tematiza o conhecimento enquanto tal. 
Quando uma determinada ciência pretende dar respostas que se aplicam a todas as questões científicas, torna-se cientismo; e quando a epistemologia geral ignora a diversidade da investigação actual, torna-se ideologia. 
Para contrariar estas derivas simétricas e preservar a ideia de uma partilha efectiva de conhecimentos, é necessário repensar o destino das línguas à luz da experiência da tradução".

Heinz Wismann, Ler nas entrelinhas. Nas pegadas do espírito europeu (Albin Michel, 2024)


August 01, 2024

Leituras pela manhã - "o verdadeiro choque de civilizações é, como acredito, um choque no interior da pessoa individual" (Martha Nussbaum)

 

(re-publicação [do outro blog] de um discurso de Martha Nussbaum na Universidade de Antioquia [Colômbia], em 2015, sobre a educação e o mundo em que queremos viver versus o mundo para que caminhávamos em 2015 - infelizmente já lá estamos. Martha Nussbaum é uma das pensadoras mais importantes dos EUA, especialista em filosofia clássica, grega e romana, em ética e em filosofia política)


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Estamos no meio de uma crise de proporções gigantescas e de grande significado global. Não estou a referir-me à crise económica mundial que começou em 2008. Pelo menos nessa altura todos sabiam que a crise existia e muitos líderes mundiais trabalharam rápida e desesperadamente para encontrar soluções. Também não me refiro à crise criada pelo terrorismo internacional - essa também é reconhecida por todos. 

Estou a referir-me a uma crise que passa despercebida, uma crise que é susceptível de ser, a longo prazo, ainda mais prejudicial para o futuro da auto-governação democrática: uma crise global da ducação. 

Dado que as democracias do mundo estão agora a ser desafiadas também por questões de migração, terrorismo e compreensão global, esta crise da educação é potencialmente devastadora para o futuro da democracia no mundo.

Estão a ocorrer mudanças radicais naquilo que as sociedades democráticas ensinam aos jovens e essas mudanças não foram bem pensadas. Ansiosos por ganhos nacionais, as nações e os seus sistemas educativos estão a descartar descuidadamente competências que são necessárias para manter as democracias vivas. 

Se esta tendência se mantiver, em breve as nações de todo o mundo estarão a produzir gerações de máquinas úteis, em vez de cidadãos bem formados, capazes de pensar por si próprios, de criticar a tradição e de compreender o significado dos sofrimentos e das realizações dos outros. 

Que mudanças radicais são estas? As humanidades e as artes estão a ser eliminadas, tanto no ensino primário/secundário como no ensino técnico/universitário, em praticamente todas as nações do mundo, vistas pelos decisores políticos como ornamentos inúteis, numa altura em que as nações têm de cortar em tudo o que é inútil para se manterem competitivas no mercado global, estão a perder rapidamente o seu lugar nos currículos e também nas mentes e corações de pais e filhos. 

De facto, aquilo a que poderíamos chamar os aspectos humanistas da ciência e das ciências sociais - o aspeto criativo imaginativo e o aspeto do pensamento crítico rigoroso - também estão a perder terreno, uma vez que as nações preferem obter ganhos a curto prazo, cultivando competências úteis e altamente aplicáveis, adaptadas a fins lucrativos.

Consideremos estes dois exemplos, ambos retirados dos Estados Unidos, mas exemplos semelhantes surgem na Europa, na Índia (onde se concentra a maior parte do meu trabalho de desenvolvimento), no resto da Ásia, na Austrália e, claro, na América Latina - em todos os lugares onde os políticos vêem a educação acima de tudo como um meio de promover o crescimento económico.

No outono de 2006, a Comissão sobre o Futuro do Ensino Superior do Departamento de Educação dos EUA, liderada por Margaret Spellings, Secretária da Educação da Administração Bush, publicou o seu relatório sobre o estado do ensino superior no país: Leadership on Trial: A Map of the Future of Higher Education in the United States (Liderança em Julgamento: Um Mapa do Futuro do Ensino Superior nos Estados Unidos). 

Este relatório continha uma valiosa crítica à desigualdade no acesso ao ensino superior; no entanto, o seu conteúdo centrava-se inteiramente na educação para benefício económico nacional. O texto apontava para deficiências em engenharia, ciência e tecnologia - não para a investigação científica nestes domínios, mas sim para a aprendizagem de conhecimentos aplicados, que servem para gerar rapidamente estratégias de obtenção de rendimentos. As artes, as humanidades e o pensamento crítico são quase visíveis pela sua ausência. Ao omiti-las, o relatório dá a entender que não haveria qualquer problema se estas competências fossem esquecidas a favor de outras disciplinas mais úteis (a administração Obama, infelizmente, não alterou esta tónica).

Em 2013, Pat McCrory, o recém-eleito governador do estado da Carolina do Norte, falando num programa de televisão nacional conservador, disse que o seu plano era "alinhar o meu currículo educativo com o que as empresas e o comércio exigem para empregar os nossos filhos" e depois disse que os cursos tradicionais de humanidades deixariam de ser financiados por essa razão. Destacou a filosofia e os estudos femininos como duas áreas que eram inúteis e que não seriam financiadas. McCrory não tem realmente poder para decidir o que é financiado, não sem apoio legislativo; e ignorou claramente as nossas recentes estatísticas de emprego, que mostram que o desemprego entre os estudantes de informática é mais elevado do que entre os estudantes de humanidades; no entanto, as suas palavras reflectem uma opinião generalizada.

Há centenas de histórias destas e todos os dias oiço novas. Como o crescimento económico é tão avidamente procurado por todas as nações, muito poucas questões foram colocadas, tanto nos países desenvolvidos como nos países em desenvolvimento, sobre o rumo da educação e, com ela, da sociedade democrática. Na procura de rentabilidade no mercado global, os valores preciosos para o futuro da democracia correm o risco de se perderem.

A motivação do lucro sugere aos políticos mais preocupados que a ciência e a tecnologia são de importância crucial para a saúde futura das suas nações. Não deve haver qualquer objeção a uma boa educação científica e tecnológica e não sugiro que as nações deixem de tentar melhorar neste domínio. A minha preocupação é que outras competências, igualmente cruciais, correm o risco de se perderem no frenesim competitivo - competências cruciais para a saúde interna de qualquer democracia e para a criação de uma cultura global decente, capaz de abordar construtivamente os problemas mais prementes do mundo. 

Estas competências estão associadas às humanidades e às artes: a capacidade de pensar criticamente; a capacidade de transcender as lealdades locais e abordar os problemas globais como um "cidadão do mundo"; e a capacidade de imaginar com simpatia a situação do outro.

A minha argumentação será feita com base no contraste que já sugeri com os meus exemplos: entre uma educação para o lucro e uma educação para uma cidadania mais inclusiva. Para refletir sobre a educação para a cidadania democrática, temos de pensar no que são as nações democráticas e naquilo por que lutam. 

O que significa então, para uma nação progredir, melhorar a sua qualidade de vida? Por um lado, significa simplesmente aumentar o seu Produto Interno Bruto per capita. Esta medida de realização nacional foi durante décadas o padrão utilizado pelos economistas do desenvolvimento em todo o mundo, como se fosse um bom indicador da qualidade de vida global de uma nação.

O objetivo de uma nação, diz este modelo de desenvolvimento, deve ser o crescimento económico: sem se preocupar com a distribuição e a igualdade social, nem com as condições prévias de uma democracia estável, nem com a qualidade das relações raciais e de género, nem com a melhoria de outros aspectos da qualidade de vida de um ser humano, como a saúde e a educação. 

Um sinal do que este modelo não consegue perceber é o facto de a África do Sul, durante o apartheid, ter disparado os índices de desenvolvimento para o topo. Havia muita riqueza na antiga África do Sul e o antigo modelo de desenvolvimento recompensava esse feito (ou boa sorte), ignorando as chocantes desigualdades distributivas, o brutal regime do apartheid e as deficiências educativas e sanitárias que o acompanhavam.

Este modelo de desenvolvimento já foi rejeitado pelos principais pensadores do desenvolvimento, mas continua a dominar uma grande parte da elaboração de políticas. Os defensores do velho modelo gostam de afirmar que a procura do crescimento económico gera, por si só, as outras coisas boas que mencionei: saúde, educação, política e liberdade religiosa. 

No entanto, ao examinarmos os resultados destas experiências divergentes, descobrimos que o velho modelo não gera efetivamente as coisas boas que afirma. A liberdade política e a liberdade religiosa não acompanham o crescimento, como o impressionante sucesso da China demonstrou ao mundo, nem as realizações em matéria de saúde e educação, por exemplo, estão claramente correlacionadas com o crescimento económico, como podemos ver nos estudos de campo comparativos de diferentes Estados indianos realizados pelos economistas Amartya Sen e Jean Drèze.

Que tipo de educação sugere o velho modelo de desenvolvimento? A educação para o crescimento económico necessita de competências básicas, literacia e numeracia. Também precisa que algumas pessoas tenham competências mais avançadas em informática e tecnologia, embora a igualdade de acesso não seja extremamente importante: uma nação pode crescer muito bem, enquanto os pobres rurais permanecem analfabetos e sem recursos informáticos básicos, formando uma elite técnica que torna o Estado atractivo para os investidores estrangeiros. 

Os resultados deste enriquecimento ficam aquém da melhoria da saúde e do bem-estar dos pobres das zonas rurais, e não há razão para pensar que o enriquecimento passa por educá-los correctamente. Este foi sempre o primeiro e mais básico problema do paradigma PNB/capita do desenvolvimento: negligencia a distribuição e pode dar notas altas a nações ou Estados que contêm desigualdades alarmantes. 

Isto é muito verdade no que respeita à educação: dada a natureza da economia da informação, as nações podem aumentar o seu PNB sem se preocuparem demasiado com a distribuição da educação, desde que criem uma elite competente em tecnologia e negócios.

Depois disso, a educação para o crescimento económico precisa, talvez, de uma familiaridade muito rudimentar com a história e com os factos económicos - por parte das pessoas que frequentam o ensino primário, que são provavelmente uma elite relativamente pequena. Mas é preciso ter cuidado para que a narrativa histórica e económica não conduza a um pensamento crítico sério sobre a classe, sobre se o investimento estrangeiro é realmente bom para os pobres das zonas rurais, sobre se a democracia pode sobreviver quando há desigualdades tão grandes nas oportunidades básicas de vida. Assim, o pensamento crítico não seria uma parte importante da educação para o crescimento económico.

Falei sobre o pensamento crítico e o papel da história. Mas e as artes, tão frequentemente valorizadas pelos educadores democráticos progressistas, tanto nos países ocidentais como nos não ocidentais? Uma educação para o crescimento económico irá, em primeiro lugar, ignorar estes aspectos da educação de uma criança, uma vez que não parecem conduzir diretamente ao crescimento económico. 

Por esta razão, em todo o mundo, os programas de artes e humanidades, a todos os níveis, estão a ser eliminados em favor do cultivo de programas técnicos. Mas aqueles que educam para o lucro farão mais do que ignorar as artes, temê-las-ão. Porque uma afinidade cultivada e desenvolvida é um inimigo particularmente perigoso do embotamento, e o embotamento moral é necessário para levar a cabo programas de enriquecimento que ignoram a desigualdade. 

Falando sobre a educação na Índia e na Europa, Tagore disse que o nacionalismo agressivo precisa de obscurecer a consciência moral, por isso precisa de pessoas que não reconhecem o indivíduo, que falam jargões de grupo, que se comportam e vêem o mundo como burocratas dóceis. A arte é o grande inimigo desse embotamento, e os artistas não são servos de confiança de nenhuma ideologia, mesmo de uma meramente boa - pedem sempre à imaginação que ultrapasse os seus limites habituais, que veja o mundo de novas formas.

A famosa universidade de Rabindranath Tagore, na Índia (fundada em 1928), baseava-se nas artes e nas humanidades, porque ele queria criar a base para uma nova nação em que uma compreensão graciosa das diferenças moldaria a política e em que as nações fariam parte de uma comunidade global cultivada. A sua ideia foi uma experiência radical; é muito invulgar hoje em dia com os políticos que visam o sucesso nacional. Por isso, aqueles que educam para o crescimento farão campanha contra as artes como um ingrediente da educação básica. Este ataque está a ter lugar em todo o mundo.

De que outra forma podemos pensar sobre o tipo de nação e o tipo de cidadão que estamos a tentar construir? A principal alternativa ao modelo baseado no crescimento nos círculos internacionais de desenvolvimento, e à qual tenho estado associada, é conhecida como o paradigma do Desenvolvimento Humano. 

De acordo com este modelo, o que importa são as oportunidades, ou "capacidades" que cada pessoa tem, em domínios fundamentais que vão desde a vida, a saúde e a integridade física até à liberdade política, à participação política e à educação. Este modelo de desenvolvimento reconhece que cada pessoa possui uma dignidade inalienável que deve ser respeitada pelas leis e instituições. 

Uma nação decente reconhece, no mínimo, que todos os seus cidadãos têm direitos nestes e noutros domínios e concebe estratégias para que as pessoas ultrapassem o limiar de oportunidades em cada um deles. Este modelo enquadra-se bem nas aspirações prosseguidas nas constituições de muitos países modernos. Embora os Estados Unidos se distingam de muitos por não oferecerem proteção constitucional dos direitos económicos e sociais, o modelo de desenvolvimento humano continua a corresponder à velha ideia americana de que um governo só é legítimo se der aos seus cidadãos oportunidades para desfrutarem da "Vida, liberdade e procura da felicidade".

Se uma nação quiser promover esse tipo de democracia humana e sensível às pessoas, uma democracia dedicada à promoção de oportunidades de "vida, liberdade e busca da felicidade" para todos, que competências terá de desenvolver nos seus cidadãos? Pelo menos as seguintes parecem cruciais:

- a capacidade de deliberar bem sobre as questões políticas que afectam a nação, de examinar, refletir, discutir, argumentar e debater, sem deferência para com a tradição e a autoridade
- a capacidade de pensar no bem da nação como um todo, e não apenas no seu próprio grupo local, e de ver a sua própria nação, por sua vez, como parte de uma ordem mundial complicada em que problemas de muitos tipos exigem uma deliberação transnacional inteligente para a sua resolução
- a capacidade de se preocupar com a vida dos outros, de imaginar o que as políticas de muitos tipos significam para as oportunidades e experiências dos seus concidadãos, de muitos tipos, e para as pessoas fora da sua própria nação.

No entanto, antes de podermos dizer mais sobre a educação, precisamos de compreender os problemas que enfrentamos no processo de tornar os estudantes cidadãos democráticos responsáveis, susceptíveis de implementar um plano para o desenvolvimento humano. 

O que é que na vida humana torna tão difícil sustentar instituições democráticas igualitárias e tão fácil cair em hierarquias de vários tipos - ou, pior, na hostilidade de projectos de grupo violentos? Sejam quais forem estas forças, é contra elas que a verdadeira educação para o desenvolvimento humano tem de lutar: por isso, como defendi, seguindo as ideias de Mohandas Gandhi, tem de se empenhar no choque de civilizações dentro de cada pessoa, na medida em que o respeito pelos outros é confrontado com a agressão narcísica.

O conflito interno pode ser encontrado em todas as sociedades modernas, sob diferentes formas, pois todas elas contêm lutas pela inclusão e pela igualdade, quer o foco dessas lutas esteja nos debates sobre a imigração, quer na reconciliação das minorias religiosas, raciais e étnicas, quer na igualdade dos géneros ou na ação afirmativa. 

Em todas as sociedades, também existem forças na personalidade humana que militam contra o reconhecimento mútuo e a reciprocidade, bem como forças de compaixão que dão um forte apoio à democracia.

Então, o que é que sabemos até agora sobre as forças da personalidade que se opõem à reciprocidade e ao respeito democráticos? Em primeiro lugar, sabemos que as pessoas têm um elevado nível de respeito pela autoridade: o psicólogo Stanley Milgram demonstrou que os sujeitos experimentais estavam dispostos a administrar um nível de choque elétrico muito doloroso e perigoso a outra pessoa, desde que o cientista de serviço lhes dissesse que o que estavam a fazer não fazia mal - mesmo quando a outra pessoa gritava de dor (o que, evidentemente, era fingido para bem da experiência). 
[1] Solomon Asch, anteriormente, mostrou que os sujeitos experimentais estão dispostos a ir contra a evidência clara dos seus sentidos quando todas as outras pessoas à sua volta fazem juízos sensoriais diferentes: a sua investigação muito rigorosa e frequentemente confirmada mostra o servilismo invulgar dos seres humanos normais face à pressão dos seus pares. Tanto o trabalho de Milgram como o de Asch foram utilizados eficazmente por Christopher Browning para iluminar o comportamento de jovens alemães num batalhão da polícia que assassinou judeus durante a era nazi. 
[2] Segundo Browning, a influência da pressão dos pares e da autoridade sobre estes jovens era tão grande que aqueles que não conseguiam convencer-se a matar judeus sentiam vergonha da sua fraqueza.
Mas outros estudos mostram que as pessoas de aparência normal estão dispostas a adoptar comportamentos humilhantes e estigmatizantes se a sua situação for criada de uma determinada forma, colocando-as num papel dominante e mostrando-lhes que os outros são seus inferiores. 

Um exemplo particularmente assustador é o das crianças em idade escolar cujos professores lhes dão a entender que as crianças de olhos azuis são superiores às crianças de olhos escuros. Segue-se um comportamento hierárquico e cruel. O professor insinua então que houve um engano e que, de facto, as crianças de olhos escuros são superiores e as de olhos azuis são inferiores. O comportamento hierárquico e cruel é simplesmente invertido: as crianças de olhos castanhos parecem não ter aprendido nada com a dor da discriminação. 

Outras investigações sobre o papel do nojo na desigualdade social, sobre as quais tenho pensado escrever um livro sobre, mostram que as pessoas se sentem bastante desconfortáveis com os sinais da sua própria animalidade e mortalidade: o nojo é a emoção que guarda a fronteira entre nós e os outros animais. 

Em quase todas as sociedades, não é suficiente mantermo-nos livres da contaminação por resíduos corporais que são, na linguagem dos psicólogos, "lembretes animais". Em vez disso, as pessoas criam grupos subordinados de seres humanos que são identificados como nojentos e poluentes, dizendo que são sujos, malcheirosos, portadores de doenças, etc. Muito se tem trabalhado sobre a forma como esta atitude está presente no anti-semitismo, no racismo, no sexismo e na homofobia.

O que é que sabemos mais? Sabemos que estas forças são muito mais poderosas quando as pessoas são anónimas ou não reconhecem o agressor. As pessoas agem muito pior sob o disfarce do anonimato, como partes de uma massa sem rosto, do que quando são policiadas e responsabilizadas como indivíduos (qualquer pessoa que já tenha infringido o limite de velocidade e depois abrandado quando viu um carro da polícia no espelho retrovisor, saberá como este fenómeno é generalizado). 

Em segundo lugar, as pessoas comportam-se mal quando ninguém levanta uma voz crítica: os sujeitos de Asch aceitaram o juízo errado quando todas as outras pessoas que consideravam seus pares na experiência (mas que estavam a trabalhar para o experimentador) concordaram com o erro; mas bastava que uma pessoa dissesse algo diferente e já se sentiam livres para seguir a sua própria perceção e juízo. 

Em terceiro lugar, as pessoas comportam-se mal quando os seres humanos sobre os quais têm poder são desumanizados e desindividualizados. Num vasto leque de situações, as pessoas comportam-se muito pior quando o "outro" é representado como um animal, ou apenas como portador de um número em vez de um nome. Ao reflectirmos sobre a forma como podemos ajudar os indivíduos e as sociedades a vencer o choque de civilizações que existe em cada pessoa, faríamos bem em pensar como utilizar estas tendências em nosso benefício.

O outro lado do choque interno é a capacidade crescente das crianças de serem compassivas, de verem outra pessoa como um fim e não apenas como um meio. Como demonstrou o psicólogo Paul Bloom, as crianças a partir de um ano de idade têm a capacidade de adoptar a perspetiva de outra pessoa - mas, no início, esta capacidade é utilizada para controlar os movimentos dos outros, especialmente dos pais. 

No entanto, com o passar do tempo, se tudo correr bem, as crianças sentem gratidão e amor pelos diferentes seres que apoiam as suas necessidades e, por conseguinte, passam a sentir culpa pela sua própria agressão e uma preocupação genuína pelo bem-estar da outra pessoa. 

À medida que a preocupação se desenvolve, leva a um desejo crescente de controlar a sua própria agressão: a criança reconhece que os seus pais não são seus escravos, mas seres independentes com direito à sua própria vida. Estes reconhecimentos são tipicamente instáveis, uma vez que a vida humana é um assunto incerto e todos nós sentimos ansiedades que nos levam a querer mais controlo, incluindo o controlo sobre outras pessoas. É aqui que a educação é crucial: uma boa educação pode levar os jovens a sentir uma compaixão genuína pelas necessidades dos outros e pode levá-los a ver os outros como pessoas com direitos iguais aos seus.

Agora que temos uma noção do terreno em que a educação funciona, podemos voltar às ideias que mencionei anteriormente, dizendo algumas coisas provisórias e incompletas, mas ainda radicais na cultura mundial atual, sobre as competências que uma boa educação cultivará. Centrar-me-ei no ensino universitário, mas é claro que estas competências têm de ser cultivadas desde uma idade muito mais precoce.

Antes de começar, gostaria de abordar uma objecção que, sem dúvida, já se encontra nas vossas mentes: "As famílias fazem sacrifícios para ter acesso ao ensino superior e querem ter a certeza de que as suas despesas conduzirão a oportunidades de emprego. Já disse que, de facto, pelo menos nos Estados Unidos, os estudantes de artes liberais se saem muito bem no mercado de trabalho e melhor do que os estudantes de informática. Mas não quero basear a minha argumentação nas vicissitudes do mercado. 

Posso dizer que temos razões para estar muito orgulhosos da sabedoria inerente ao modelo americano de ensino superior. Na maior parte dos países do mundo, um estudante tem de escolher uma única disciplina a nível universitário e dedicar-lhe todo o seu tempo: assim, ou toda a literatura ou nenhuma literatura, ou toda a filosofia ou nenhuma filosofia. Dada esta escolha extrema, não é surpreendente que, no ambiente económico atual, muitos pais e jovens se afastem das humanidades - apesar das provas de que os empregadores valorizam efetivamente as competências que estas produzem - e mesmo da vertente teórica da ciência - e se agarrem mais aos estudos pré-profissionais. Mas os EUA, juntamente com a Coreia do Sul, a Escócia e, em parte, os Países Baixos, e juntamente com um número crescente de novas universidades em muitos outros países, seguem um caminho diferente.

Oferecemos uma educação que envolve uma disciplina principal, que muitas vezes, mas nem sempre, será entendida como preparação para uma carreira. Mas combinamos isto com uma componente de artes liberais, que pretende ser uma preparação para a cidadania e para a vida. 

O modelo das artes liberais tem sido bem desenvolvido na América Latina, principalmente pelas distintas universidades jesuítas, que há muito reconhecem o valor do estudo da filosofia e de outras humanidades a nível universitário. Mas as universidades públicas nem sempre seguiram este exemplo. Esperemos que aqui na Colômbia, onde existe um interesse entusiástico pela filosofia, esta distinta universidade assuma a liderança na defesa de uma preparação rica para a cidadania.

Três valores são particularmente cruciais para uma cidadania democrática decente. 

1.  O primeiro é a capacidade socrática de autocrítica e de pensamento crítico sobre as nossas próprias tradições. Como Sócrates defendia, a democracia precisa de cidadãos que saibam pensar por si próprios, em vez de se submeterem à autoridade, que possam refletir em conjunto sobre as suas opções, em vez de se limitarem a negociar os seus argumentos e contra-argumentos. Comparava-se a si próprio a uma mosca varejeira na retaguarda da democracia, que comparava a "um cavalo nobre mas lento": estava a incitá-la a acordar e a conduzir os seus negócios de forma mais responsável.

O pensamento crítico é particularmente crucial para uma boa cidadania numa sociedade que tem de se confrontar com a presença de pessoas que diferem em termos de etnia, casta, religião e divisões políticas profundas. Só teremos hipótese de um diálogo adequado que ultrapasse as fronteiras se os jovens cidadãos souberem, em primeiro lugar, como dialogar e deliberar. E só o saberão fazer se aprenderem a examinar-se a si próprios e a refletir sobre as razões pelas quais estão inclinados a apoiar uma coisa em detrimento de outra - em vez de, como é frequentemente o caso, verem o debate político simplesmente como uma forma de se vangloriarem ou de obterem uma vantagem para o seu próprio lado. Quando os políticos fazem propaganda simplista, como acontece em todos os países, os jovens só podem ter esperança de preservar a sua independência se souberem pensar criticamente sobre o que ouvem, testando a sua lógica e imaginando alternativas.

Os alunos expostos ao ensino do pensamento crítico aprendem, ao mesmo tempo, uma nova atitude em relação àqueles que discordam deles. Aprendem a ver aqueles de quem discordam não como inimigos a derrotar, mas sim como pessoas que têm razões para o que pensam. Quando os seus argumentos são reconstruídos, pode revelar-se que até partilham algumas premissas importantes com o seu próprio "lado", e ambos compreenderão melhor de onde vêm as diferenças. Podemos ver como isto humaniza o "outro" político, fazendo com que a mente veja o adversário como um ser racional que pode partilhar pelo menos alguns pensamentos com o seu próprio grupo.

A ideia de que cada um assume a responsabilidade pelo seu próprio raciocínio e troca ideias com os outros numa atmosfera de respeito mútuo pela razão, é essencial para a resolução pacífica das diferenças, tanto no interior de um país como num mundo cada vez mais polarizado por conflitos étnicos e religiosos. 

É possível, e essencial, promover o pensamento crítico desde o início da educação. No entanto, durante o ensino universitário, pode ser ensinado com nova sofisticação e rigor, através de cursos de ética filosófica e do estudo atento de grandes textos, como os diálogos de Platão, que mostram o valor desta capacidade e desafiam os estudantes a empenharem-se nela.

Consideremos agora a importância desta competência para o estado atual das democracias pluralistas modernas, rodeadas por um poderoso mercado global. Em primeiro lugar, podemos referir que, mesmo que o nosso objetivo fosse apenas o sucesso económico, não só a curto mas também a longo prazo, os principais pensadores do mundo dos negócios têm sublinhado que os executivos compreendem bem a importância de criar uma cultura empresarial em que as vozes críticas não sejam silenciadas, uma cultura de individualidade e de responsabilidade. Por estas razões, a China e Singapura, que não estão certamente a tentar produzir cidadãos democráticos, realizaram recentemente reformas educativas maciças para introduzir muito mais pensamento crítico em todos os níveis do currículo - embora não fiquem satisfeitos quando o pensamento crítico se infiltra no domínio político.

Mas o nosso objetivo, já o disse, não é apenas o crescimento económico, por isso passemos agora à cultura política. Como já disse, os seres humanos têm tendência a ser subservientes à autoridade e à pressão dos pares; para evitar atrocidades, precisamos de contrariar estas tendências produzindo uma cultura de dissidência individual. 

Asch descobriu que, quando uma única pessoa do seu grupo de estudo defendia a verdade, os outros seguiam-na, pelo que uma voz crítica pode ter grandes consequências. Ao dar ênfase à voz activa do indivíduo, também promovemos uma cultura de responsabilidade. Quando as pessoas vêem as suas ideias como sendo da sua responsabilidade, é mais provável que também vejam os seus trabalhos como sendo da sua responsabilidade. A "vida examinada" de Sócrates desperta a consciência moral.

2. A segunda característica fundamental do cidadão democrático moderno, diria eu, é a capacidade de se ver a si próprio como membro de uma nação e de um mundo heterogéneos, de compreender algo da história e do carácter dos diversos grupos que os habitam. O conhecimento não é garantia de bom comportamento, mas a ignorância é praticamente garantia de mau comportamento. 

Os estereótipos culturais e religiosos simples abundam no nosso mundo, por exemplo, a equação simplista do Islão com o terrorismo, e a primeira maneira de começar a lutar contra eles é garantir que, desde muito cedo, os alunos aprendam uma relação diferente com o mundo. Devem compreender gradualmente as diferenças que impedem a compreensão entre grupos e nações e os interesses e necessidades humanos partilhados que tornam a compreensão essencial para a resolução de problemas comuns.

Esta compreensão do mundo só promoverá o desenvolvimento humano se ele próprio for instigado a procurar um pensamento crítico, um pensamento que se concentre na forma como as narrativas históricas são construídas, como podem ser tendenciosas e como é difícil classificar as provas dispersas. 

A história será ensinada com o objetivo de pensar criticamente sobre estas questões. Simultaneamente, serão ensinadas as tradições e religiões dos principais grupos da nossa própria cultura e do mundo, de modo a promover a compreensão da complexidade e variedade de crenças e práticas. Esta é uma boa maneira de começar a ver as pessoas que têm uma posição religiosa ou política, não como formas iminentes de ameaça, mas como seres humanos que têm razões complexas para o que fazem e que merecem respeito, quer concordemos com eles ou não.

Em termos curriculares, estas ideias sugerem que todos os estudantes universitários devem aprender os rudimentos da história mundial e ter uma compreensão rica e não estereotipada das principais religiões do mundo, aprendendo depois a aprofundar pelo menos uma tradição desconhecida, adquirindo assim ferramentas que podem depois utilizar noutros locais. 

Ao mesmo tempo, devem aprender sobre as principais tradições, maioritárias e minoritárias, no seu próprio país, concentrando-se em compreender como as diferenças de religião, raça e género têm estado associadas a diferentes oportunidades de vida. Em suma, todos deveriam aprender bem, pelo menos, uma língua estrangeira: ver que outro grupo de seres humanos inteligentes sulcou o mundo de outra forma, ver que toda a tradução é interpretação, dá ao jovem uma lição essencial de humildade cultural. Estou muito impressionado com a ênfase dada à aprendizagem de línguas no currículo universitário e gostaria que as universidades americanas dessem essa ênfase.

3. A terceira competência de cidadania, intimamente relacionada com as duas primeiras, é o que eu chamaria de imaginação narrativa. [Trata-se da capacidade de pensar como seria estar na pele de uma pessoa diferente de nós próprios, de ser um leitor inteligente da história dessa pessoa e de compreender as emoções, os desejos e as vontades que essa pessoa possa ter. 

Como já observei, a imaginação moral, sempre cercada pelo medo e pelo narcisismo, tem tendência a embotar-se, se não for vigorosamente refinada e cultivada através do desenvolvimento da afinidade e da preocupação. Aprender a ver o outro ser humano não como uma coisa, mas como uma pessoa inteira não é uma conquista automática: tem de ser fomentada por uma educação que refine a capacidade de pensar sobre o que pode ser a vida interior do outro - e também de compreender porque é que não é possível compreender totalmente esse mundo interior, porque é que uma pessoa é sempre, até certo ponto, um enigma para outra. 

Esta capacidade constitui um apoio crucial tanto para o pensamento crítico como para a cidadania global. É promovida, sobretudo, através do ensino da literatura e das artes.

Tal como acontece com o pensamento crítico, o mesmo se aplica aqui: o cultivo da imaginação é essencial não só para a cidadania, a minha ênfase nesta palestra, mas também para o crescimento económico a longo prazo. Se as pessoas aprenderem apenas a aplicar as competências adquiridas de forma mecânica, não serão capazes de inovar. A inovação precisa de imaginação qualificada. É por isso que, mais uma vez, a China e Singapura, que estão sobretudo interessadas no crescimento, reformaram recentemente o seu sistema educativo de modo a incluir muito mais arte e literatura. Mas, ao pensarmos na forma como as democracias podem florescer, podemos ver que precisamos das artes e das humanidades com mais urgência, uma vez que a compreensão amável entre grupos é tão essencial.

As artes podem cultivar a simpatia dos alunos de muitas maneiras, através do envolvimento com diferentes obras de literatura, música, artes plásticas e dança. Mas o pensamento tem de ser proposto de acordo com os possíveis pontos cegos de cada aluno, e os textos devem ser escolhidos em conformidade. 

Porque todas as sociedades têm sempre os seus pontos cegos particulares, grupos dentro da sua cultura e também grupos no estrangeiro que são especialmente propensos a serem tratados com ignorância e embotamento. As obras de arte podem ser escolhidas para promover a crítica a esse embotamento e uma visão mais adequada do oculto. 

O grande romancista afro-americano Ralph Ellison, num ensaio posterior sobre o seu romance clássico O Homem Invisível, escreveu que um romance como o seu poderia ser "uma jangada de percepção, esperança e entretenimento" na qual a cultura americana poderia "resistir aos obstáculos e redemoinhos" que se interpõem entre nós e o nosso ideal democrático. 

O seu romance tem como tema e objetivo a "visão interior" do leitor branco. O herói começa por dizer que é invisível para a sociedade branca, mas afirma que essa invisibilidade é uma falha imaginativa e educacional, não um acidente biológico próprio: a sua "visão de dentro" requer cultivo; e Ellison obviamente pensou que o seu romance poderia ser uma parte desse cultivo. 

Através da imaginação, podemos ter uma espécie de visão da experiência de outro grupo ou pessoa que é muito difícil de alcançar na vida quotidiana - particularmente quando no nosso mundo se construíram separações claras entre grupos e suspeitas que tornam difícil qualquer encontro. Parte da ideia de Ellison era que habitar o mundo interior de uma personagem de uma raça diferente seria uma forma poderosa de minar a repulsa que era uma grande parte do racismo americano, com as suas proibições de salas de jantar partilhadas, bebedouros e piscinas, para não falar das proibições de casamentos inter-raciais. A empatia é uma espécie de intimidade mental com o outro e um instrumento poderoso para a mudança de comportamentos.

Façamos um balanço: como estão as capacidades dos cidadãos no mundo atual? Muito mal, receio bem. 

O tipo de educação que recomendo está a ir razoavelmente bem onde o estudei pela primeira vez, nomeadamente nos currículos do ensino secundário e superior na parte das artes liberais dos Estados Unidos. 

De facto, é esta parte do currículo em instituições como a minha que atrai um apoio filantrópico particular, porque os ricos recordam com prazer o tempo em que liam livros de que gostavam e perseguiam questões inconclusivas. 

Atualmente, porém, há uma grande tensão. No New York Times, o presidente da Universidade de Harvard, Drew Faust, refere que a crise económica reforçou a imagem de que o valor de um diploma universitário é, em grande medida, instrumental e que os dirigentes universitários estão a adoptar cada vez mais um modelo de mercado na sua missão, reduzindo, consequentemente, as artes liberais. 

Numa visita recente a Stanford, constatei que as artes liberais são um grande problema, graças à preferência pela capacidade técnica que é endémica na cultura do Silicon Valley - mas favorecida, creio eu, por erros cometidos por várias gerações de administradores, que alimentaram a ansiedade dos pais e dos estudantes em relação a empregos lucrativos em vez de uma cidadania responsável.

Fora dos Estados Unidos, muitas nações cujos currículos universitários não incluem uma componente de artes liberais estão agora a lutar para a construir, uma vez que reconhecem a sua importância na elaboração de uma resposta pública aos problemas de pluralismo, medo e suspeita que as suas sociedades enfrentam. 

Tenho participado neste tipo de debates em muitos países, e o facto de o meu livro sobre educação liberal estar agora traduzido em vinte línguas é muito estimulante para mim; no entanto, é difícil dizer se a reforma no sentido das artes liberais irá acontecer, porque há muitas pressões em sentido contrário.

Assim, as universidades do mundo têm grandes méritos, mas também grandes desafios e problemas crescentes.

Os políticos tendem a ter uma imaginação de curto prazo e não estão a pensar bem, muitas vezes, no que é necessário para criar democracias estáveis e frutuosas.

O que vamos ter, se estas tendências se mantiverem? Nações de pessoas tecnicamente formadas que não sabem criticar a autoridade, de pessoas úteis e lucrativas com uma imaginação desajeitada. 

As democracias têm grandes poderes racionais e imaginativos. São também propensas a graves falhas de raciocínio, ao paroquialismo, à pressa, ao desleixo, ao egoísmo, à deferência perante a autoridade e à pressão dos pares. Uma educação baseada principalmente na rentabilidade do mercado global amplia estas deficiências, produzindo um embotamento ganancioso e uma docilidade tecnicamente treinada que ameaçam a própria vida da democracia e impedem certamente a criação de uma cultura mundial decente.

Se o verdadeiro choque de civilizações é, como acredito, um choque no interior da pessoa individual, todas as sociedades modernas estão a perder rapidamente a batalha, pois alimentam as forças que conduzem à violência e à desumanização e não alimentam as forças que conduzem ao cultivo da igualdade e do respeito.

Se não insistirmos na importância crucial das humanidades e das artes, estas entrarão em colapso, porque não fazem dinheiro. Fazem apenas algo que é muito mais valioso do que isso, fazem um mundo em que vale a pena viver, pessoas que são capazes de ver outros seres humanos como pessoas plenas, com pensamentos e sentimentos próprios que merecem respeito e simpatia, e nações que são capazes de ultrapassar o medo e a suspeita em favor de um debate solidário e motivado.

Martha Nussbaum in el-duro-discurso-de-martha-nussbaum-sobre-el-futuro-de-la-educacion-mundial, 2015

July 22, 2024

O exame de Filosofia da 2ª fase

 


Exame de 2ª fase de Filosofia: veja aqui a prova e os critérios de correcção

Enunciado do exame nacional de 2ª fase de Filosofia de 2024.   Descarregar 

Critérios de correcção do exame nacional de 2ª fase de Filosofia de 2024 Descarregar

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O exame pareceu-me muito acessível e interessante. 



June 28, 2024

Um documento da Villa dos Papiros revela a última noite de Platão

 


A última noite de Platão revelada num pergaminho que estava enterrado no Monte Vesúvio

por Tasos Kokkinidis

As últimas horas de um dos filósofos mais influentes da história, Platão, são reveladas por passagens recentemente decifradas de um rolo de papiro que estava enterrado sob camadas de cinzas vulcânicas após a erupção do Monte Vesúvio em 79 d.C.

Descobriu-se que o antigo pergaminho continha uma narrativa até então desconhecida que descrevia a forma como o filósofo grego passou a sua última noite, descrevendo como ouviu música tocada numa flauta por uma escrava trácia.

Apesar de ter lutado contra uma febre e de estar à beira da morte, Platão - conhecido como discípulo de Sócrates e mentor de Aristóteles, e que morreu em Atenas por volta de 348 a.C. - manteve lucidez suficiente para criticar a musicista pela sua falta de ritmo, sugere o relato.

As palavras descodificadas também sugerem que o local de sepultamento de Platão foi no jardim que lhe foi destinado na Academia de Atenas, a primeira universidade do mundo, por ele fundada, adjacente ao Mouseion. Anteriormente, apenas se sabia que tinha sido enterrado algures na Academia.

Numa apresentação dos resultados da investigação na Biblioteca Nacional de Nápoles, o Prof. Graziano Ranocchia, da Universidade de Pisa, que liderou a equipa responsável por desenterrar o pergaminho carbonizado, descreveu a descoberta como um "resultado extraordinário que enriquece a nossa compreensão da história antiga".

Disse: "Graças às técnicas mais avançadas de diagnóstico por imagem, podemos finalmente ler e decifrar novas secções de textos que antes pareciam inacessíveis".


AI Helps Scholars Read Scroll. Credit: Vesuvius Challenge / scrollprize.org

O pergaminho revela também a data em que Platão foi vendido como escravo

O texto revela também que Platão foi vendido como escravo na ilha de Aegina, possivelmente em 404 a.C., quando os espartanos conquistaram a ilha, ou então em 399 a.C., pouco depois da morte de Sócrates.

"Até agora, pensava-se que Platão tinha sido vendido como escravo em 387 a.C., durante a sua estada na Sicília, na corte de Dionísio I de Siracusa", afirmou Ranocchia.

"Pela primeira vez, conseguimos ler sequências de letras ocultas dos papiros que se encontravam envolvidas em múltiplas camadas, coladas umas às outras ao longo dos séculos, através de um processo de desenrolamento que utiliza uma técnica mecânica que rompe fragmentos inteiros de texto."

Ranocchia disse que a capacidade de identificar estas camadas e de as realinhar virtualmente para as suas posições originais para restaurar a continuidade textual representava um avanço significativo em termos de recolha de grandes quantidades de informação.

O trabalho ainda está a dar os primeiros passos e o seu impacto só será visível nos próximos anos.

O pergaminho foi preservado numa luxuosa villa em Herculano e descoberto em 1750, e acredita-se que tenha pertencido ao sogro de Júlio César.

Ao longo dos anos, os estudiosos têm tentado decifrar os pergaminhos encontrados nesta villa, conhecida como a Villa dos Papiros.

April 26, 2024

Dogmatismos de Direita e Esquerda? SSDC

 

A maior parte dos ensaios que se seguem, escritos em diferentes alturas durante os últimos quinze anos, têm como objetivo combater, de uma forma ou de outra, o crescimento do dogmatismo, quer de direita quer de esquerda, que tem caracterizado o nosso trágico século. Este objetivo sério inspira-os mesmo que, por vezes, pareçam irreverentes, pois não se pode combater aqueles que são solenes e pontifícios sendo ainda mais solene e pontifício.

Bertrand Russel in Unpopular Essays, 1921



April 05, 2024

Ainda sobre a originalidade e importância de Platão

 


citação na página de dedicatória do autor, Robin Waterfield

Estou a ler uma biografia de Platão. As biografias de Platão são muito raras e a última tentada antes desta, que é de 2023, é do início do século XIX. Isto deve-se à figura de Platão, dada a envergadura e importância da sua obra, estar envolvida em muitas lendas e mitos (por exemplo, dizia-se que era descendente directo de deuses - que seu pai não tinha dormido com a sua mãe durante muitos meses e que foi nessa altura que ele nasceu...) e haver relatos contraditórios de episódios da sua vida. 

O autor da biografia, Robin Waterfield, consciente da dificuldade da tarefa que se propôs, constantemente cita as fontes da sua interpretação e argumenta-a face às interpretações diferentes da sua.

No entanto, uma característica que noto nas biografias e comentários actuais a figuras históricas -e que também vejo neste livro- é a inclinação para o extremo oposto da exaltação antiga e moderna das grandes figuras históricas. Quero dizer que se nota um esforço em mostrar que afinal aqueles homens e mulheres eram como nós, como o comum das pessoas e que aparecem envoltas em grandeza por conta da mentalidade das pessoas da época. 

Mas isso não é verdade. Lemos as obras de Platão e damos-nos conta, se temos alguma inteligência no sentido filosófico, da sua capacidade em compreender profundamente os seres humanos, a sua situação, os seus problemas fundamentais, a sua psicologia e de propor soluções. A maioria de nós está muito longe destas capacidades. 

Algumas ideias deles parecem agora óbvias, mas isso deve-se à sua influência continuar a fazer-se sentir, após dois mil e quinhentos anos; outras, ainda hoje são surpreendentes. É claro que há ideias nas suas obras muito polémicas e outras muito ultrapassadas porque ele era uma pessoa com os pés no seu tempo. Porém, no geral, dado que a sua cabeça ultrapassava largamente o seu tempo, as obras dele são uma fonte inesgotável de pistas para a sabedoria. 

Não sei ao certo de onde vem esta tendência para menorizar a distinção -positiva ou negativa- de algumas pessoas face à norma, mas parece-me que vem da Sociologia e das suas raízes deterministas e marxistas que desvalorizam o indivíduo para exaltar as forças inexoráveis da sociedade. Não por acaso os comunistas e marxistas em geral estão do lado da Rússia nesta guerra e negam a individualidade de Zelensky ao ponto de o tentarem reduzir a um instrumento de forças nazis. São o extremo oposto dos antigos que divinizavam certas pessoas e dos modernos que as elevavam a heróis sobre-humanos. Uns e outros, parece-me que perdem a oportunidade de perceber essa particularidade de algumas pessoas.

Parece-me inegável, por exemplo, que a pessoa de Zelensky é incomum e que o modo como os ucranianos -e a maioria de nós- reagiram à invasão russa e se lhe opuseram se lhe deve em grande parte. A reacção dele, a figura dele, o seu exemplo, a sua fortaleza e a sua inteligência no modo como lida com o invasor e os outros actores mundiais, não são algo que qualquer um no lugar dele fizesse e sabemos que, não fora isso e há muito que a Rússia teria conquistado a Ucrânia.

É como dizer que os cabecilhas nazis e os dos campos eram pessoas como nós. Não, não eram. Eram seres humanos como nós, mas não eram pessoas como nós, porque a maioria das pessoas não faz aquelas crueldades e imoralidades, mesmo em situação de guerra. São omissas, por medo (como vemos agora na maioria dos russos) mas não são activas na iniciativa de crueldade e imoralidade.

Pessoalmente, não acredito, nem na divinização de certas pessoas, nem na mesmidade de todas as pessoas e o que me parece interessante é compreender a origem dessas diferenças fundamentais de algumas pessoas em relação ao comum, porque marcam profundamente os destinos de todos nós.

A Academia de Atenas, a escola fundada por Platão para o desenvolvimento da Filosofia baseada no exercício da razão dialética, esteve aberta e funcionou durante mil anos (pese embora, a certa altura o que se lá ensinava já não era Platão mas o platonismo, um Platão cristianazido) e é a ordem do seu fecho e a proibição de o ensinar, em 529 AD, pelo Imperador Romano Justiniano, que marca o fim da Antiguidade. Como se pode pensar que qualquer um conseguiria isto?


March 14, 2024

Filósofos ordenados segundo a sua 'punkidade'

 


Marx punk?? Todas as vezes que o sistema dele foi levado à partida deu origem a sociedades que são o oposto de punk... O que está Fanon a fazer nesta lista...? Irigaray? Burke? De facto, a ideia de filosofia varia muito de pessoa para pessoa e daí que haja tantas filosofias dentro da filosofia. Adiante. Porque é que Locke não está nos punks? Heidegger ser basicamente um polícia tem muita piada😄




The French History Podcast

February 28, 2024

Coisas boas - A biblioteca particular de Fernando Pessoa está online

 


A biblioteca particular de Fernando Pessoa está online: bibliotecaparticular.casafernandopessoa.pt

A biblioteca que pertenceu a Fernando Pessoa (1888-1935) – os livros que comprou, recebeu de amigos, ganhou, herdou, editou, leu e profusamente anotou – constitui o maior valor da Casa Fernando Pessoa. A Biblioteca Particular de Pessoa - cerca de 1300 títulos no total, mais de metade em língua inglesa – é o nosso espólio mais valioso e que está na origem da fundação da Casa Fernando Pessoa em 1993. Os livros escolhidos por Pessoa leitor.

A esta circunstância acresce um elemento fundamental: tecnicamente chamada marginalia,encontramos em muitos desses livros, notas, comentários, interrogações ou até um poema inteiro. Pessoa traduzia, sublinhava, escrevia à margem o que raciocínios, personagens e palavras de outros despoletavam no seu próprio pensamento e na sua prática de escrita.

Salienta-se que esta biblioteca, albergada na sua grande maioria na Casa Fernando Pessoa (1058 títulos), não conta com todos os exemplares que alguma vez dela fizeram parte; parcelas da mesma estão ainda com a família do escritor e no espólio número 3 da BNP. Mas neste site é possível percorrê-la na sua quase totalidade e descobrir por que razões constitui um objecto de estudo privilegiado; a este respeito, pode ser útil a consulta da revista Portuguese Studies, vol. 24, n.º 2, 2008; do livro Fernando Pessoa: o guardador de papéis, Texto Editores, 2009; e, claro, do volume A Biblioteca Particular de Fernando Pessoa, D. Quixote, 2010. Para ter uma visão rápida de certos exemplares que se optou por destacar, basta visitar Anotações, Assinaturas, Dedicatórias e Selos.

Pode ler-se e/ou descarregar-se os livros.

AUTOR:  BURY, J. B.
DATA:  1913



February 21, 2024

300 anos de Kant (1724–2024) - Kant em pequenas doses

 

Immanuel Kant (1724-1804) é um dos mais importantes filósofos da história. As suas ideias sobre epistemologia, ética, estética, bem como as suas reflexões sobre as formas de governo e o direito internacional continuam omnipresentes nos debates científicos e sociais em todo o mundo. Kant foi um dos mais importantes protagonistas do Iluminismo de língua alemã. O seu período criativo divide-se em duas fases: um primeiro período "pré-crítico" e um posterior período "crítico", no qual são publicadas as principais obras conhecidas até hoje, em primeiro lugar a "Crítica da Razão Pura" (1781). Esta obra constitui o ponto de viragem na obra filosófica de Kant. É tão fundamental e revolucionária que é também chamada de "revolução copernicana de Kant".


February 04, 2024

Porque deve considerar contratar licenciados em Filosofia



Pensamento crítico e capacidade de resolução de problemas


No fundo, a filosofia é a arte de colocar questões fundamentais e analisar problemas complexos. Aprimora a capacidade de pensar criticamente, dissecar argumentos e explorar perspectivas alternativas, que são todas competências que se traduzem perfeitamente no mundo dos negócios.

No mundo dos negócios, os líderes enfrentam frequentemente desafios multifacetados. Os licenciados em Filosofia que integram as suas equipas podem ser um trunfo importante para os ajudar a resolver esses desafios. Conseguem identificar rapidamente os pressupostos subjacentes, reconhecer preconceitos e avaliar objetivamente a informação para tomar decisões informadas, reduzir os riscos e conceber soluções inovadoras para problemas complexos. Num panorama empresarial em rápida evolução, estas capacidades são inestimáveis.

Tomada de decisões éticas

Os líderes empresariais são constantemente confrontados com dilemas éticos. Quer estejam a escolher entre ganhos a curto prazo e sustentabilidade a longo prazo ou a navegar na responsabilidade social das empresas, os líderes empresariais têm de tomar decisões éticas que sirvam os seus empregados, clientes, investidores, accionistas e comunidades.

Um curso de filosofia prepara as pessoas para lidar com teorias éticas, princípios morais e sistemas de valores. Dá-lhes as competências necessárias para navegarem nas complexidades dos dilemas éticos e tomarem decisões baseadas em princípios que se alinham com o bem maior.

Comunicação eficaz

Uma comunicação eficaz pode fazer ou destruir uma empresa. Basta apenas um ponto mal articulado para desencadear o caos e, dependendo da natureza do negócio, pôr em risco a vida das pessoas.

Os estudantes de Filosofia aprendem a articular ideias complexas, a construir argumentos bem fundamentados e a participar num diálogo ponderado. Estas competências de comunicação traduzem-se diretamente no mundo empresarial, onde a comunicação eficaz é essencial para liderar equipas, negociar acordos e muito mais. Os licenciados em Filosofia são capazes de apresentar as suas ideias de forma persuasiva e de participar em debates significativos, fomentando a colaboração e impulsionando o sucesso organizacional. Além disso, tendem também a ter uma excelente capacidade de escuta, cultivada através de longas discussões filosóficas na sala de aula. Essas excelentes capacidades de escuta permitem-lhes compreender diversas perspectivas e colmatar as lacunas de compreensão entre os diferentes membros da equipa.

Adaptabilidade e resiliência

O mundo dos negócios está a evoluir rapidamente; em algumas indústrias, a própria natureza da forma como as pessoas trabalham está a mudar. Os licenciados em Filosofia estão particularmente preparados para enfrentar essas mudanças.

O estudo da filosofia expõe as pessoas a um vasto leque de ideias filosóficas, teorias e escolas de pensamento. À medida que as pessoas aprendem sobre o assunto, tornam-se adaptáveis e resilientes, capazes de abraçar a mudança, desafiar os seus pressupostos e navegar na incerteza. Ao trazerem essas competências para o mundo dos negócios, os licenciados em filosofia podem pensar de forma inovadora para ajudar as empresas a enfrentar as perturbações - e a sair vitoriosas.



January 23, 2024

O que seria de Rousseau ou de Diderot sem o Giambattista Vico?

 

Conheça o "conselheiro secreto do Iluminismo", que morreu no dia de hoje, 23 de janeiro, no ano de 1744.

Com a Scienza Nuova (A Nova Ciência), mudou a forma de ver o mundo e influenciou figuras como Goethe, Coleridge, Benedetto Croce, Habermas, Horheimer, Joyce, Marx.

Giambattista Vico é sobretudo  conhecido pelo seu princípio verum factum, formulado pela primeira vez em 1710 como parte do seu De antiquissima Italorum sapientia, ex linguae latinae originibus eruenda (1710) ("Da mais antiga sabedoria dos italianos, desenterrada das origens da língua latina").

O princípio afirma que a verdade é verificada através da criação ou invenção e não, como afirmava Descartes, através da observação: "O critério e a regra do verdadeiro é tê-lo feito. Assim, a nossa ideia clara e distinta da mente não pode ser um critério da própria mente, muito menos de outras verdades. Porque, embora a mente se perceba a si própria, não se faz a si própria". 

Este critério de verdade moldaria mais tarde a história da civilização na obra de Vico, a Scienza Nuova (A Nova Ciência, 1725), porque ele argumentaria que a vida civil - tal como a matemática - é totalmente construída.

Na verdade, esta ideia não é nova. Não por acaso Platão (para quem Vico se virou, desiludido com a Metafísica de Aristóteles) situou o Mundo Inteligível -das Ideias- fora da mente humana, o que tem implicação, não apenas para o Conhecimento, mas também para a questão do Direito natural. 

Quem quiser ler a obra clique na imagem cujo link vai ter à página da Gulbenkian de onde pode descarregar gratuitamente a obra.



January 12, 2024

Determinismo e livre arbítrio

 


Daqui a um mês estou a trabalhar este tema nas aulas que é interessantíssimo e importante, mas como temos um currículo extenso e pouco tempo para o trabalho com as turma, enormes como estão, não vai haver tempo para explorar devidamente o tema. 


O destino do livre arbítrio

James Gleick


Em Free Agents: How Evolution Gave Us Free Will, Kevin Mitchell defende cientificamente a existência do livre arbítrio



Ninguém estava a apontar uma arma à tua cabeça quando começaste a ler isto. Fizeste uma escolha. Pelo menos, foi o que pareceu. Um sentido de agência - de controlo sobre as nossas acções, de contínua tomada de decisões - faz parte da experiência de ser humano, momento a momento e dia a dia. É verdade que, por vezes, nos limitamos a andar à deriva, como robots ou zombies, mas noutras alturas cingimos os nossos lombos e exercemos a nossa vontade. 

David Hume definiu a vontade, há quase três séculos, como "a impressão interna que sentimos e da qual estamos conscientes, quando conscientemente damos origem a qualquer novo movimento do nosso corpo, ou nova perceção da nossa mente". O sentimento era universal nessa altura e é universal agora.

No entanto, um facto peculiar sobre o estado das ciências no início do século XXI é que muitas autoridades - físicos, neurocientistas e até filósofos - dirão que este sentido de agência é uma ilusão. Na sua vida quotidiana, estes mesmos especialistas escolhem a roupa, escolhem o papel de parede e fazem pedidos nos menus dos restaurantes, mas quando estudam o assunto profissionalmente duvidam que tenham escolhido livremente. Entendem o "livre arbítrio" como um sentimento que as pessoas têm, mas não mais do que isso.

Para os físicos, o problema é que somos feitos de matéria, como todas as partículas e planetas do universo, e a matéria é regida por leis físicas. De acordo com o físico e autor de best-sellers Brian Greene, "precisamos de reconhecer que, embora a sensação de livre arbítrio seja real, a capacidade de exercer o livre arbítrio - a capacidade de a mente humana transcender as leis que controlam a progressão física - não é". Nós não causamos e não podemos causar nada; nós somos causados. "As nossas escolhas são o resultado das nossas partículas que correm de uma forma ou de outra através dos nossos cérebros", escreve ele.

As nossas acções são o resultado das nossas partículas se moverem desta ou daquela forma através dos nossos corpos. E todo o movimento de partículas - seja num cérebro, num corpo ou numa bola de basebol - é controlado pela física e, por isso, é totalmente ditado por decreto matemático.

É uma lição severa e final: "Não somos mais do que peças de teatro que são batidas de um lado para o outro pelas regras desapaixonadas do cosmos." Não há nada para ver aqui. Pode seguir.

Os cientistas do cérebro também duvidam do livre arbítrio e procuram as causas profundas - mecanismos subjacentes ao comportamento - no substrato material daquilo a que gostamos de chamar as nossas mentes. 

Isto é reducionismo: tal como os físicos começam por baixo, com as partículas elementares, também os neurocientistas olham para os neurónios. Tendem a chegar à mesma conclusão: a vontade é o fim, não a causa, de uma cadeia de atividade eléctrica e química. Os nossos desejos, intenções e planos flutuam acima da casa das máquinas, os sistemas do cérebro onde o verdadeiro trabalho é feito.

Algumas pessoas resistem aos argumentos da física recorrendo a uma fé obstinada e é difícil culpá-las. O filósofo matemático Martin Gardner continuou persuadido de que "de alguma forma, de um modo totalmente fora do nosso conhecimento, tu e eu possuímos esse poder incompreensível a que chamamos livre-arbítrio", mas desistiu de tentar explicá-lo: 
"Tal como o tempo, ao qual está ligado, é melhor deixar o livre arbítrio - de facto, creio que não podemos fazer outra coisa - como um mistério impenetrável. Não perguntem como funciona porque ninguém na Terra vos pode dizer."
O termo "livre-arbítrio" traz consigo muita bagagem; os condicionalismos da natureza e da educação, os nossos genes e os nossos hábitos inconscientes, as nossas histórias familiares e as condições sociais ajudam a determinar o nosso comportamento e, por conseguinte, tornam-nos menos do que totalmente livres. 

O termo mais geral é "agência", a capacidade de acção intencional. Apesar da terminologia, a convicção de que agimos com algum grau de liberdade está presente não só nos nossos pensamentos privados, mas também na nossa vida pública. As instituições jurídicas, as teorias de governo e os sistemas económicos são construídos com base no pressuposto de que os seres humanos fazem escolhas e se esforçam por influenciar as escolhas dos outros. Sem algum tipo de livre arbítrio, a política não tem sentido. Nem o desporto. Ou qualquer outra coisa, na verdade.

No entanto, Sam Harris, neurocientista e filósofo que escreveu o popular livro Free Will (2012), insistiu não só que o livre-arbítrio é uma ilusão, mas que o conceito "não pode ser conceptualmente coerente". Considera-o um desafio: "Nunca ninguém descreveu uma forma de surgirem processos mentais e físicos que atestassem a existência de tal liberdade."

Kevin J. Mitchell responde exatamente a este desafio em Free Agents: How Evolution Gave Us Free Will. Neurocientista e geneticista do Trinity College de Dublin, Mitchell propõe-se resgatar o nosso sentido intuitivo de agência de uma nuvem de ofuscação. Sim, diz ele, o livre arbítrio existe. Não é uma ilusão nem uma mera figura de estilo. É a nossa qualidade essencial e definidora e, como tal, exige uma explicação. "Tomamos decisões, escolhemos, agimos", declara ele.

Estas são as verdades fundamentais da nossa existência e absolutamente a fenomenologia mais básica das nossas vidas. Se a ciência parece estar a sugerir o contrário, a resposta correcta não é atirar as mãos ao ar e dizer: "Bem, acho que tudo o que pensávamos sobre a nossa própria existência é uma ilusão risível". É aceitar, em vez disso, que há um mistério profundo a resolver e perceber que podemos ter de questionar a base filosófica da nossa abordagem científica se quisermos conciliar a existência clara da escolha com o aparente determinismo do universo físico.

A agência distingue até as bactérias do universo sem vida. Os seres vivos estão "imbuídos de um objetivo e são capazes de agir nos seus próprios termos", diz Mitchell. O autor defende vigorosamente que a história da vida, em toda a sua grandeza complexa, não pode ser apreciada enquanto não compreendermos a evolução do arbítrio - e depois, em criaturas com complexidade suficiente, a evolução do livre arbítrio consciente.

Mitchell faz parte de uma nova geração de biólogos que defendem uma perspetiva de sistemas complexos como antídoto para o reducionismo. O seu objetivo é recuperar dos filósofos palavras como propósito, razão e significado, que os cientistas muitas vezes evitam por não serem quantificáveis. Evita sobretudo o jargão. 

Este é um livro de linguagem simples. Torna-se ligeiramente técnico em questões de biologia e neurociência, mas constrói um argumento que é metódico e nítido, e atravessa anos de disputas como uma faca no algodão doce. Isto é o que tu és, afirma Mitchell: "És o tipo de coisa que pode agir, que pode tomar decisões, que pode ser uma força causal no mundo: és um agente".

Se a negação do livre arbítrio foi um erro, não foi um erro inofensivo. A sua mensagem é sombria e etiolante. Retira o objetivo e a dignidade do nosso sentido de nós próprios e, já agora, dos nossos semelhantes. Liberta-nos da responsabilidade e trata-nos como objectos passivos, como bolas de bilhar ou folhas que caem.

O que é a vida? Foi um pequeno livro influente do pioneiro da quântica Erwin Schrödinger, reunido a partir de palestras que proferiu em Dublin em 1943. Quando é que podemos dizer que uma coisa está viva? Schrödinger deu uma resposta surpreendente:

Quando continua a "fazer alguma coisa", a mover-se, a trocar material com o seu ambiente, etc., e isso durante um período muito mais longo do que aquele que esperaríamos que um pedaço de matéria inanimada "continuasse" em circunstâncias semelhantes.

Primeiro, um organismo vivo tem de persistir. Fá-lo desafiando a segunda lei da termodinâmica, que diz que o universo e o seu conteúdo tendem inexoravelmente para a desordem. Deixado sozinho, um castelo de areia degrada-se num monte de areia. A nata dispersa-se no café. Tudo num sistema fechado chega à mesma temperatura, porque a desordem da entropia implica também o equilíbrio. Contra esta tendência universal, o organismo luta. Suga a ordem da desordem.

"O organismo não é um padrão de coisas", diz Mitchell; "é um padrão de processos em interação, e o eu é esse padrão que persiste". Nos primeiros organismos unicelulares, já existiam as matérias-primas para o mecanismo de replicação descrito por James Watson e Francis Crick em 1953. Os ácidos nucleicos - ARN e ADN - actuam como modelos, macromoléculas complexas que armazenam informação numa sequência codificada. O código no ADN permanece quimicamente estável, enquanto as moléculas de ARN lêem a sua informação e replicam-na. As células podiam dividir-se, fazendo cópias de si próprias. Depois, podem evoluir.

Esta parte da história é bem conhecida. As populações de microrganismos competem por recursos. Erros aleatórios no processo de transcrição criam mutações. Alguns organismos competem mais eficazmente do que outros e, assim, a natureza selecciona os mais aptos para sobreviver. Vale a pena notar que todas as partículas elementares envolvidas nesta atividade obedecem às leis do movimento, mas os processos que nos interessam - metabolismo, reprodução, mutação - têm lugar numa escala diferente de complexidade e abstração. 

Pode parecer paradoxal, mas o facto de as leis da física se aplicarem a tudo não significa que expliquem tudo. Por vezes, não são a ferramenta correcta. As equações dos físicos de partículas não explicam a evolução, tal como não explicam os genes ou as epidemias.

As entidades biológicas desenvolvem-se ao longo do tempo e, ao fazê-lo, armazenam e trocam informações. "Essa extensão no tempo gera um novo tipo de causalidade que não se vê na maioria dos processos físicos", diz Mitchell, "um tipo baseado num registo da história em que a informação sobre acontecimentos passados continua a desempenhar um papel causal no presente". Mesmo num organismo unicelular, as proteínas da parede celular respondem quimicamente às alterações das condições exteriores, actuando assim como sensores. No interior, as proteínas são activadas e desactivadas por reacções bioquímicas, e o organismo reconfigura efetivamente as suas próprias vias metabólicas para sobreviver. Essas vias podem funcionar como portas lógicas num computador: se as condições forem X, então faça A.

"Não estão a pensar nisso, claro", diz Mitchell, "mas é esse o efeito, e está incorporado no desenho da molécula". À medida que os organismos se tornam mais complexos, o mesmo acontece com estas vias lógicas. Criam mecanismos de feedback, positivos e negativos. Criam relógios moleculares, que respondem ao ciclo solar e depois o imitam. Cada vez mais, incorporam o conhecimento do mundo em que vivem.

Os microrganismos mais pequenos também desenvolveram meios de propulsão, alterando a sua forma ou utilizando cílios e flagelos, pequenos pêlos vibratórios. A capacidade de se mover, combinada com a capacidade de sentir o que os rodeia, criou novas possibilidades - procurar alimento, fugir ao perigo - continuamente ampliadas pela seleção natural. Começamos a ver os organismos a extrair informação do seu ambiente, a agir sobre ela no presente e a reproduzi-la para o futuro. "A informação tem assim poder causal no sistema", diz Mitchell, "e dá ao agente poder causal no mundo".

Podemos começar a falar de objectivos. Em primeiro lugar, os organismos lutam para se manterem. Esforçam-se por persistir e depois por se reproduzir. A seleção natural garante-o. "O universo não tem um objetivo, mas a vida tem", diz Mitchell.

E, ao contrário das máquinas e dos aparelhos concebidos que nos rodeiam no nosso quotidiano, que também têm um objetivo ou, pelo menos, servem um propósito, os organismos vivos estão adaptados apenas para uma coisa - para si próprios. Este facto traz algo de novo ao universo: um quadro de referência, um sujeito. A existência de um objetivo confere às coisas propriedades que antes não existiam relativamente a esse objetivo: função, significado e valor.

E, no entanto, por muito impressionados que fiquemos quando contemplamos o paramécio, a sua célula única oblonga coberta de pêlos móveis, que se move em espiral através da água em resposta a sinais eléctricos enviados por receptores iónicos, recolhendo alimentos e evitando obstáculos e até formando relações simbióticas com outros organismos - ninguém diria que tem vontade, livre ou não.

O determinista acredita que tudo o que acontece tinha de acontecer. As leis da natureza transportam o presente para o futuro como engrenagens de uma máquina inabalável ou como os estados sequenciais de um computador. Não é nenhum mistério o facto de os físicos serem atraídos pelo determinismo: as leis da natureza são o seu ganha-pão. A expressão canónica do determinismo científico veio de Pierre-Simon Laplace, um discípulo entusiasta de Newton:

Uma inteligência que conhecesse todas as forças que actuam na natureza num dado instante, bem como as posições momentâneas de todas as coisas no universo, seria capaz de compreender numa única fórmula os movimentos dos maiores corpos e dos mais leves átomos do mundo, desde que o seu intelecto fosse suficientemente poderoso para submeter todos os dados à análise; para ela, nada seria incerto, o futuro e o passado estariam presentes aos seus olhos.

No que diz respeito às equações do movimento, o futuro e o passado parecem iguais. Einstein formalizou esta imagem dois séculos mais tarde, quando imaginou o universo como um contínuo espaço-tempo tetradimensional. Tudo é determinado, disse ele, tanto o início como o fim, por forças sobre as quais não temos qualquer controlo. É determinado tanto para o insecto como para a estrela. Seres humanos, legumes ou poeira cósmica, todos dançamos ao som de uma melodia invisível, entoada ao longe por um misterioso tocador.

Não há espaço para o deslizamento das engrenagens? Na verdade, há. Quando os físicos tentam executar o programa de Laplace, descobrem que não podem especificar perfeitamente o estado nem mesmo da partícula mais pequena e mais simples. Este é o famoso princípio da incerteza: Werner Heisenberg estabeleceu, na década de 1920, que quanto mais precisamente se determina a posição de uma partícula, menos se pode especificar o seu momento. Isto é por vezes discutido como uma questão de epistemologia, do que um observador pode saber, mas o problema é mais fundamental. Nenhum ser humano precisa de fazer parte do quadro. A incerteza é uma caraterística do universo.

Os teóricos lidaram com esta descoberta problemática substituindo a mecânica newtoniana por um novo sistema matemático. A mecânica quântica trata as partículas como ondas de probabilidade através de uma função de onda, utilizando uma equação que Schrödinger concebeu. A equação de Schrödinger permite aos físicos calcular - com um sucesso espantoso - como um sistema quântico evolui ao longo do tempo. Tal como as leis do movimento de Newton, a equação de Schrödinger é determinística na sua forma. Quando os físicos repetem o cálculo, obtêm sempre a mesma resposta, forçosamente. Mais uma vez, na mecânica quântica, o estado atual do universo parece determinar o estado seguinte.

É por isso que tantos físicos modernos continuam a adoptar o determinismo filosófico. Mas as suas teorias são deterministas porque as escreveram dessa forma. Dizemos que as leis governam o universo, mas isso é uma metáfora; é melhor dizer que as leis descrevem o que é conhecido. De certa forma, o erro começa com a palavra "leis". As leis não são instruções para a natureza seguir. Dizer que o mundo é "controlado" pela física - que tudo é "ditado" pela matemática - é pôr a carroça à frente dos bois. A natureza vem primeiro. As leis são um modelo, uma descrição simplificada de uma realidade complexa. Por muito bem sucedidas que sejam, permanecem necessariamente incompletas e provisórias.

Além disso, os cálculos quânticos da função de onda não produzem um resultado específico, mas sim uma distribuição de probabilidades - daí a situação do infeliz gato de Schrödinger, nem morto nem vivo até que a função de onda "colapse". Alguns físicos concordam que a indeterminação não pode ser eliminada, mas permanece inerente a todos os níveis. "O resultado destes pontos de vista é que o futuro está em aberto: de facto, é isso que faz dele o futuro", escreve Mitchell.

Como só habitamos o presente, não experimentamos esta indeterminação em primeira mão.... Se pudéssemos realmente vislumbrar o futuro, veríamos um mundo fora de foco. Não há caminhos separados, já bem delineados, à espera de serem escolhidos - apenas uma imagem difusa e instável que se torna cada vez mais difusa e instável quanto mais se olha para o futuro.

Entre o regime estrito do determinismo físico e o sentimento ingénuo do livre arbítrio, existe um território desconfortável onde encontramos muitos filósofos importantes. E se, perguntam eles, pudéssemos descrever uma versão do livre arbítrio, ou algo parecido com o livre arbítrio, que fosse compatível com o determinismo? Esta abordagem é designada por compatibilismo. Os compatibilistas defendem que, mesmo que aceitemos que o futuro já está fixado, podemos falar de liberdade psicológica de uma forma que preserve conceitos como a responsabilidade moral.

Daniel Dennett apresentou o caso moderno do compatibilismo no seu livro Elbow Room, de 1984: The Varieties of Free Will Worth Wanting - como ele disse, estava a "salvar tudo o que importava sobre o conceito quotidiano de livre-arbítrio, ao mesmo tempo que rejeitava os impedimentos". (Actualizando Elbow Room em 2014, expressou alguma frustração com o debate interminável: "É justo dizer que subestimei a persistência de algumas das ideias que procurei desmantelar e desacreditar nos anos 80.") 

O compatibilismo tem muitos sabores, mas o ponto essencial é pôr a física de lado, deixá-la calmamente num canto e estudar as formas como as pessoas falam do livre-arbítrio, as questões profundas que ele levanta, as consequências para o comportamento e a ética - em suma, continuar a investigação do livre-arbítrio como se o universo tivesse espaço para tal coisa.

Mitchell poderia ter feito do seu argumento um argumento compatibilista. Dennett fez algo do género, explorando muitos dos mesmos temas, no seu livro de 2017 From Bacteria to Bach and Back: The Evolution of Minds. Mas Mitchell considera insatisfatório agir como se "uma mudança de perspectiva fosse tudo o que é necessário para nos tirar do buraco metafísico em que parecemos encontrar-nos". Ele quer dizer: sim, vivemos num universo materialista; sim, as leis da física aplicam-se; no entanto, o futuro ainda não está escrito e os seres vivos têm o poder de o mudar.

Rejeitar a visão reducionista não significa recorrer ao dualismo mente-corpo - postulando alguma entidade extra, não-física, como uma alma ou um espírito. Não há fantasmas nesta máquina. "As nossas mentes não são uma camada extra situada por cima dos nossos cérebros físicos", diz Mitchell. São a soma holística dessa atividade contínua, dinâmica e distribuída.

O cérebro é material e as suas partes são cada vez mais bem compreendidas. Enquanto os primeiros organismos tinham sensores de proteínas e vias iónicas para realizar o tipo mais básico de processamento de informação, nós temos redes de neurónios que disparam sinais eléctricos que excitam ou inibem outros, organizados aos milhões em colunas e folhas - "níveis e níveis de processamento interno em que a informação está a ser processada, analisada e transformada de cada área cortical para a seguinte", como diz Mitchell. À informação sobre o olfacto e o tacto juntam-se sinais cada vez mais complexos dos córtices visual e auditivo. Estas informações são combinadas e estratificadas para revelar relações de ordem superior e, desta forma, os organismos constroem modelos internos do mundo exterior.

Continua a ser apenas química e eletricidade, mas o estado do cérebro num dado momento não conduz inexoravelmente ao seguinte. Mitchell enfatiza o ruído inerente ao sistema: flutuações mais ou menos aleatórias que ocorrem num conjunto de "componentes húmidos, irregulares e incompreensivelmente minúsculos que oscilam constantemente". Ele acredita que o ruído não é apenas inevitável; é útil. Tem valor adaptativo para os organismos que vivem, afinal, num ambiente sujeito a mudanças e surpresas. "Os desafios que os organismos enfrentam variam de momento para momento", observa, "e o sistema nervoso tem de lidar com essa volatilidade: é precisamente para isso que está especializado". Mas o simples facto de acrescentar aleatoriedade a uma máquina determinista não produz nada a que possamos chamar livre-arbítrio.

O livre-arbítrio, distinto do arbítrio, implica consciência e auto-reflexão. No entanto, muito do que fazemos é involuntário. Muitos neurologistas vêem o comportamento involuntário como a norma e a sensação de vontade como um complemento ocasional. Têm uma ladainha de exemplos de ação desligada da vontade. 

Respiramos, pestanejamos, sonhamos acordados, coçamo-nos, coramos, pegamos num copo, adormecemos (mais fácil do que querermos adormecer), percorremos o mesmo caminho familiar, tudo sem pensar um momento. As recordações surgem sem aviso prévio. Daniel M. Wegner ilustrou o seu influente texto de 2002, The Illusion of Conscious Will, com uma fotografia do Dr. Strangelove (interpretado por Peter Sellers no filme de Stanley Kubrick), cuja mão direita com luvas pretas estava sempre a disparar numa saudação nazi involuntária. A "síndrome da mão alienígena", explica Wegner, é um distúrbio genuíno "em que uma pessoa sente que uma mão está a funcionar com mente própria". A mão actua de forma contrária à intenção consciente do paciente, pelo menos tal como o paciente a percepciona.

Podemos pensar que é normal que a acção coincida com a vontade, mas Wegner argumenta o contrário:
Separam-se com frequência suficiente para nos fazer pensar que podem ser produzidas por sistemas separados na mente.... Assim que aceitamos a ideia de que a vontade deve ser entendida como uma experiência da pessoa que age, apercebemo-nos de que a vontade consciente não é inerente à acção - há acções que a têm e acções que não a têm.

As pessoas têm múltiplas "personalidades". Dizem: "Estou dividido". Têm um anjo num ombro e um demónio no outro.

Aos negacionistas do livre-arbítrio, é-lhes devido: em todos estes aspectos e noutros mais, a ideia do nosso "eu" consciente como um mestre fiável e competente do nosso destino - um piloto no cockpit - está muito desgastada. Mesmo nos nossos melhores dias, estamos sujeitos a ilusões e confusões. Agimos sem pensar, por hábito, reflexo ou instinto. Comportamo-nos de forma impulsiva, sem razões que possamos discernir. Mas uma decisão inconsciente não deixa de ser uma decisão. E, por vezes, pensamos. Reflectimos, ponderamos, hesitamos, pesamos as alternativas durante algum tempo antes de decidirmos agir.

Uma pedra de toque para os neurocientistas que duvidam do livre arbítrio é uma série de experiências controversas conduzidas por Benjamin Libet na década de 1980. Libet, neurocientista da Universidade da Califórnia, em São Francisco, colocou eléctrodos no couro cabeludo dos participantes e pediu-lhes que movessem um dedo sempre que quisessem e que comunicassem o momento em que tomavam a decisão. 

Descobriu que a atividade cerebral relacionada com o dedo começava muitos milissegundos antes da consciência de qualquer decisão. Se a decisão consciente veio depois da ação, como pode ela ser a causa? "A posição da vontade consciente na linha do tempo sugere talvez que a experiência da vontade é um elo numa cadeia causal que conduz à ação, mas na verdade pode nem sequer ser isso", escreveu Wegner. "Pode ser apenas uma ponta solta - uma daquelas coisas, como a ação, que é causada por eventos cerebrais e mentais anteriores."

Mas alguém mexeu aqueles dedos. Ninguém sugere que eles tinham fios de marioneta presos. Sam Harris diz que "eu" não escolho; as escolhas são feitas "por acontecimentos no meu cérebro que eu, como testemunha consciente dos meus pensamentos e acções, não posso inspecionar ou influenciar". Mas onde está a linha que separa os acontecimentos no meu cérebro da testemunha consciente? 

Digamos que sim: Nós fazemos escolhas. Tomamos decisões. Algumas das nossas decisões são prolongadas e ponderadas, enquanto outras são espontâneas e praticamente aleatórias. Podemos compreender as nossas escolhas, podemos racionalizá-las, ou podem permanecer misteriosas e obscuras.

Mitchell propõe aquilo a que chama um "conceito mais naturalizado do eu". Não somos apenas a nossa consciência; somos o organismo, visto como um todo. Fazemos as coisas por razões baseadas nas nossas histórias, e "essas razões são inerentes ao nível de todo o organismo". Na maior parte do tempo, talvez na maior parte do tempo, o nosso eu consciente não está no controlo. No entanto, quando a ocasião o exige, podemos reunir a nossa inteligência, como diz a expressão. Temos tantas expressões como essa - controle-se; recomponha-se; concentre-se nos seus pensamentos - metáforas para as coisas indistintas que vemos quando olhamos para dentro. Não nos perguntamos quem está a reunir o juízo de quem.

Mitchell salienta que a experiência de Libet foi concebida para encorajar a aleatoriedade: foi dito aos sujeitos que "deixassem que o impulso para agir surgisse por si só, em qualquer altura, sem qualquer planeamento prévio ou concentração no momento de agir". Mas algumas decisões podem muito bem ser inconsideradas, espontâneas ou mesmo aleatórias, enquanto outras envolvem uma deliberação cuidadosa:

Em termos gerais, as experiências de Libet têm muito pouca relevância para a questão do livre arbítrio. Não se relacionam de todo com decisões deliberativas.... Em vez disso, confirmam, em primeiro lugar, que a actividade neural no cérebro não é completamente determinista e, em segundo lugar, que os organismos podem escolher aproveitar a aleatoriedade inerente para tomar decisões arbitrárias em tempo útil. É provável que façamos isto a toda a hora, sem nos apercebermos disso.

De facto, um certo grau de aleatoriedade é essencial ao modelo neural de Mitchell para a agência e a tomada de decisões. O autor apresenta um modelo em duas fases: a recolha de opções - acções possíveis para o organismo tomar - seguida de um processo de seleção. 

Para nós, organismos capazes de livre arbítrio consciente, as opções surgem como padrões de actividade no córtex cerebral, sempre sujeitos a flutuações e ruído. Podemos sentir isto como "ideias que nos ocorrem". Depois, o cérebro avalia estas opções, com "votos a favor" e "votos contra", através de "circuitos interligados entre o córtex, os gânglios basais, o tálamo e o mesencéfalo". Desta forma, a seleção utiliza objectivos e crenças construídos a partir da experiência, armazenados na memória e ainda mais ou menos maleáveis.

O organismo unicelular primitivo move-se e come sem pensar. Nós, humanos, também nos movemos e comemos, e pensamos nisso. No caminho de lá para cá, a natureza criou organismos de capacidade crescente. As criaturas multicelulares desenvolveram uma morfologia especializada, incluindo neurónios ligados e células musculares agrupadas, que comunicam entre si através de sinais químicos. Os órgãos da visão e da audição tornaram-se meios valiosos de recolha de informação sobre o ambiente. As redes complexas de neurónios adquiriram a capacidade de armazenar representações simbólicas do mundo e das suas partes, incluindo, eventualmente, representações do eu, distinto de tudo o resto. Tudo isto aconteceu; não há nada de controverso nisso.

Podemos comparar diferentes organismos observando a sua profundidade cognitiva. Os seres humanos são admiravelmente profundos. "Se se pode dizer que um verme nemátodo está a pensar, não está certamente a pensar em muita coisa", diz Mitchell.

Pode integrar alguns sinais de cada vez e pode fazer formas simples de aprendizagem, mas não cria um grande mapa do mundo ou de si próprio e não faz qualquer tipo de cognição a longo prazo. Habita o aqui e agora.

Nós não somos assim, e sabemo-lo bem. Os nossos processos mentais raramente são algorítmicos, alterando os seus estados um passo de cada vez. O pensamento envolve feedback contínuo e auto-correção, e os componentes individuais não podem ser separados. Mitchell escreve:
Os vários subsistemas envolvidos estão em constante diálogo uns com os outros, cada um tentando satisfazer os seus próprios constrangimentos no contexto da informação em mudança dinâmica que recebe de todas as áreas interligadas.
O conceito de loops cognitivos - representações recursivas de outras representações, com feedback - é inspirado no conceito do cientista informático Douglas Hofstadter, a partir do qual surge a capacidade de pensar sobre o pensamento, de raciocinar sobre as razões.

Estas capacidades exigiam mais do que apenas um aumento do tamanho ou do poder de computação. À medida que os cérebros evoluíram, surgiu uma hierarquia de processamento complicada: "À medida que a folha cortical se expande, há uma tendência para as áreas existentes se dividirem em duas, criando novas áreas que podem atuar como novos níveis da hierarquia de processamento". Estes novos níveis são "capazes de abstrair informação e pensar em coisas novas". Olhamos para o mundo e olhamos para dentro de nós próprios com o olho da mente. Não só desenvolvemos objectivos e desejos, como os reconhecemos; desenvolvemos linguagem para eles; falamos sobre eles com os nossos semelhantes. Exercemos o livre arbítrio, e dizemo-lo - porque somos organismos sociais e a cultura também evolui.

No momento actual, é natural perguntar se uma inteligência artificial pode desenvolver algum grau de livre arbítrio ou agência. De facto, a questão do arbítrio nos sistemas de IA pode ser mais crítica do que a questão da consciência. 

Num epílogo, Mitchell faz um balanço dos últimos desenvolvimentos das redes neuronais e dos modelos de linguagem de grande dimensão, referindo que a sua capacidade de gerar texto e de responder a solicitações de conversação cria uma impressão de conhecimento, se não de consciência. Ao mesmo tempo, as limitações dos modelos são bem conhecidas. Foram concebidos para tarefas especializadas, distintas da inteligência artificial geral. Simulam a linguagem humana com uma habilidade espantosa, baseada na procura de padrões estatísticos em enormes volumes de dados de treino, mas o texto que geram raramente está ligado ao significado do mundo real e falham frequentemente em situações novas. A compreensão das relações causais parece ser um ponto fraco. Mas, acima de tudo, são passivos.

A agência é o que nos distingue das máquinas. Para as criaturas biológicas, a razão e o objetivo advêm da ação no mundo e da experiência das consequências. As inteligências artificiais - desencarnadas, estranhas ao sangue, suor e lágrimas - não têm ocasião para isso. Se têm objectivos, esses objectivos são impostos pelos seus criadores. Não planeiam. Não se esforçam. Pelo menos até agora