January 02, 2023

Ladrilhozinhos de vitrais

 


É o que me faz lembrar a época filosófica em que vivemos. À semelhança da época helenística que a partir das grandes escolas filosóficas da Antiguidade se partiu em miríades de vidrinhos, de correntes filosóficas e suas subsidiárias, também a época actual é uma miríade de ladrilhozinhos multiplicados a partir das grandes escolas da idade moderna. É muito difícil alguém ter, nos dias de hoje, uma visão completa de tudo o que se pensa na filosofia, mesmo entre os investigadores universitários, tal é a catadupa de centenas artigos, textos, ensaios, teses e livros que se publicam constantemente. Isso em parte deve-se à obrigação que os professores universitários têm em publicar artigos (muito do que se publica acaba por ser, necessariamente, sem interesse) e aos milhares de pessoas que se dedicam à filosofia devido à democratização dos estudos universitários. 

É uma época interessante dado que há muita perspectiva nova a entrar no rio das ideias. Por outro lado, é preciso alguma inteligência para uma pessoa se orientar nesta enorme rede. Não sei até que ponto será possível um pensador desenvolver nos dias que correm uma grande filosofia - pensar requer tempo e dedicação para evoluir em profundidade e as exigências de burocracia e publicações que fazem aos investigadores juntamente com a sobrecarga de trabalho são um obstáculo à possibilidade de pensamento profundo e original de grande escopo. Muito do que se escreve (ou pelo menos do que leio do que se escreve, que é uma ínfima parte) são remakes de ideias do passado, sem nada daquele espírito típico dos filósofos que se reconhece imediatamente pela intuição penetrante e original com que perspectivam a 'realidade'.

Para uma pessoa como eu, que não sou investigadora e que ensino numa escola secundária, a vantagem dos dias de hoje é termos acesso a tudo o que se escreve e pensa. Há trinta anos isto não seria possível. Para ter acesso à investigação universitária era preciso ir às universidades consultar as teses de mestrado ou de doutoramento, procurar actas de colóquios, ler as revistas todas da especialidade, gastar rios de dinheiro em livros ou conhecer alguém de dentro que nos orientasse. E mesmo assim o que se acedia é um grão de areia quando comparado à situação actual. É certo que havia muito menos a que aceder e conhecíamos muito bem os grande especialistas neste ou naquele autor ou tema. Pois hoje temos acesso às mais recentes abordagens filosóficas à distância de um clique, se as sabemos procurar ou até mesmo sem procurar: o algoritmo envia-nos todos os trabalhos reputados dos temas que sabe que nos interessam.

Há bocado, à tarde, estava a preparar um pequeno plano para abordar na primeira aula do período a questão da possibilidade e valor do conhecimento. Pus-me a ver maneiras de estruturar a questão do cepticismo e o dogmatismo - não gosto da maneira como o tema é tratado no Manual adoptado. Fui dar com uma dúzia de tipos de cepticismo, alguns dos quais não sabia, como por exemplo, o neo-pirronismo, que tem origem no pensador brasileiro, Oswaldo Porchat e que hoje-em-dia domina o pensamento filosófico da América Latina. Muito interessante.

É claro que não me vou pôr a trabalhar todos estes tipos de cepticismo com os alunos, porque a Filosofia no ensino secundário não é um curso de especialização. Nem há a intenção que os alunos se posicionem a favor ou contra esta ou aquela perspectiva (isso são os totós que fizeram estas orientações do programa e que influenciam os exames). A maioria são trabalhadas para parecerem equipolentes (talvez algumas o sejam...) porque não estamos a ensinar verdades ou metodologias de verdade e essa diaphonía, embora apreça negativa para a mentalidade actual que quer respostas rápidas e enlatadas para tudo, é um caminho que leva à prudência no pensar e à consideração das perspectivas diferentes das nossas. De maneira que a Filosofia no ensino secundário é uma introdução -e se possível uma descoberta transformadora- às possibilidade do pensar crítico e racional e às virtudes da sua aplicação na vida de cada um e de todos, no pressuposto de que essa adolescência é uma idade em que o terreno ainda é permeável às sementes do pensar. 

Porém, podemos entrar um bocadinho nelas, porque é melhor que se perceba a complexidade da realidade, mesmo que não se consiga abarcá-la totalmente, do que se pense que tudo é trás-pás como se vê.


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