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March 03, 2024

Deixar a marca da evolução das ideias nos espaços ou apagá-la?

 


A view of the Temple of Diana at Evora - curiosa gravura de produção inglesa datada de 1795, parte integrante da obra "Travels in Portugal, trhough the Provinces of Entre Douro e Minho, Beira, Estremadura and Alem-Tejo", de James Murphy.


É particularmente interessante porque nos mostra a aparência que tinha ainda nesse tempo, tão diferente daquela que hoje ostenta.
Não foi, no entanto, unânime o destino a dar ao Templo Romano de Évora, quando a partir dos anos cinquenta do século XIX se começou a ter noção da sua real importância como polo central da identidade histórica da cidade.
Com efeito, por esses anos, o monumento permanecia ocultado numa espécie de torre medieval, com os espaços entre as colunas emparedados com paredes de alvenaria e coroado por ameias, fruto das transformações arquitectónias operadas durante a Idade Média, convertido em estrutura militar e depois em açougue.
Consultou a Câmara de Évora diversas personalidades nacionais habilitadas na matéria para se eleger a melhor solução, tendo sido díspares as opiniões sustentadas.
Para uns, a demolição do Templo. Para outros, mantê-lo como estava. Para outros ainda, o mais correcto seria o expurgo dos acrescentos medievais, os quais, no seu entender, constituíam uma profanação e abastardamento da traça romana, que urgia recuperar.
Em Julho de 1870, perante os resultados da consulta, a Câmara Municipal determina que se proceda ao restauro da traça original do Templo Romano, entregando a direcção da obra a Giuseppe Cinatti, o autor das Ruínas Fingidas do Passeio Público de Évora.
Para esta decisão, em muito terá contribuído a opinião de Alexandre Herculano, o mais conceituado historiador da sua época, que numa visita a Évora em Maio de 1870 se pronunciara a favor da completa desobstrução das estruturas romanas.
José Luís Espada-Feyo via A Torre do Tombo

February 17, 2024

Um explicador é um 'desentrançador'

 


explicação (s.f.)

"explicação", especialmente do significado de uma frase ou passagem, literalmente "um desdobramento", década de 1520, do francês explication, do latim explicationem (nominativo explicatio), substantivo de ação do radical do particípio passado de explicare "desdobrar; explicar", de ex "para fora" (ver ex-) + plicare "dobrar" (da raiz TORTA *plek- "trançar").

também da década de 1520


Entradas que remetem para a explicação

ex- 

elemento formador de palavras, significando geralmente "fora de, de", mas também "para cima, completamente, privado de, sem" e "anterior"; do latim ex "fora de, de dentro; de que tempo, desde; de acordo com; em relação a", do TORTA *eghs "fora" (fonte também do gaulês ex-, do irlandês antigo ess-, do eslavo eclesiástico antigo izu, do russo iz). Em alguns casos, também do cognato grego ex, ek. PIE *eghs tinha forma comparativa *eks-tero e superlativa *eks-t(e)r-emo-. Muitas vezes reduzido a e- antes de -b-, -d-, -g-, consoante -i-, -l-, -m-, -n-, -v- (como em elude, emerge, evapora, etc.).



*plek- 

Raiz proto-indo-europeia que significa "trançar". É uma forma alargada da raiz *pel- (2) "dobrar".

Forma o todo ou parte das palavras: cúmplice; aplicação; aplicar; complexo; complexar; complicar; complicação; cumplicidade; duplex; duplicar; duplicidade; explicitar; explícito; explorar; implexo; implicar; implicação; implícito; implicar; multiplicar; perplexidade; perplexidade; trançar; plash (v.2 ) "entrelaçar;" plissar.

Grego plekein "trançar, entrançar, enrolar, torcer," plektos "torcido;" Latim plicare "deitar, dobrar, torcer," plectere (particípio passado plexus) "trançar, entrançar, entrelaçar;" O eslavo eclesiástico antigo plesti "trançar, entrançar, torcer", o russo plesti; o gótico flahta "entrançar"; o nórdico antigo fletta, o alto alemão antigo flehtan "entrançar"; o inglês antigo fleax "tecido feito de linho, linho".

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Portanto, «explicação», «explicar» é tirar para fora o que está oculto num entrançado, num emaranhado de fios. A maior parte daqueles a quem chamamos, «explicadores», não o são. E nem todos os professores são bons explicadores. Podem ser bons noutras dimensões da profissão, mas não nessa. 

Agora que já li bastante de Hegel e vou no fim da Fenomenologia, que comecei há tempos mas interrompi quando começaram as aulas, dou-me conta que não tive um bom professor/explicador deste filósofo. Li a Fenomenologia com interrupções para procurar explicadores, em livros e na internet, de certas passagens ou conceitos obscuros e difíceis de entender - para mim. Ler por traduções põe-nos dependentes da interpretação do tradutor, que nem sempre é um bom escritor/explicador, de maneira que é necessário fazer comparações com outras traduções e procurar 'desentrançadores' de Hegel. E não são muitos, mas existem. E os que existem são tão bons a desemaranhar as frases onde se ocultam as ideias dele e a retirar delas os significados, que cada parágrafo de explicação deles corresponde a uma légua na progressão da compreensão das ideias do filósofo.

Uma das maneira de desentrançar ideias complexas de um filósofo ou de uma teoria é filiá-las, situá-las no contexto da sua origem. As ideias dos filósofos não surgem do nada. Surgem de problemáticas do seu tempo ou antigas mas que voltaram a ser pertinentes e, em todos os casos, as ideias deles têm origem em outros filósofos que contribuíram para a problemática de uma maneira ou de outra. Seja para contrariá-los, ultrapassá-los ou adoptá-los em parte, os filósofos referem-se sempre a outros filósofos. Conversam com outros que os precederam. Saber qual é o ímpeto de uma filosofia, com quem o filósofo estava a conversar e porquê, descomplica logo uma grande parte das suas ideias na medida em que dá um referencial orientador e um sentido. Para se ter uma compreensão das filosofias é necessária uma chave de entrada nesse mundo particular da mente dessa pessoa e essa chave é-nos dada pelo ímpeto e pelo sentido da sua filosofia.

Nunca começo um tema nas aulas sem o enraizar e filiar, porque sem isso os alunos não têm "uma alavanca e um ponto de apoio" para entrar e "movimentar aquele mundo". Por exemplo, não começo a Lógica Proposicional sem explicar a lógica da Lógica, passe a expressão. Porque é que Leibniz resolveu desenvolver uma Lógica dessas e o que é uma aritmética do pensamento; o que é que o preocupava para ter feito isso e porque o fez desta maneira e não de outra e porque é que a LP é importante para os raciocínios da ciência, da filosofia e da vida em geral. Se entrar naquilo a escrever 'p's e 'q's e a falar de silogismos hipotéticos ou de modus ponens, eles até podem aprender a resolver fórmulas porque decoram as regras, mas não entendem nada do que estão a fazer, porquê e para quê, com que sentido. O que me lembra o modo como aprendi Hegel: sabia dizer as frases que importavam (as que vinham nos textos) e falar dos conceitos (que o absoluto se desdobra e se objectiva para se conhecer, por exemplo) mas não fazia ideia do que é que aquilo queria dizer sobre a vida, sobre o mundo e sobre o sentidos das coisas. Ora, é isso que importa.

Não é fácil encontrar um bom explicador de ideias complexas, um bom desentrançador.

January 11, 2024

É isto

 


A propósito do artigo anterior acerca de um certo tipo de académicos influenciadores quererem matar a música clássica, rotulando-a como racista, apenas por ser europeia, logo, composta, sobretudo, por indivíduos de pele branca.




December 15, 2023

Boas ideias

 


Que podíamos adoptar, mesmo que se tivesse que adaptar à nossa realidade.


Pela criação de um passe cultural para os jovens


Felisbela Lopes

A ideia de um passe cultural destinado aos jovens surgiu em forma de promessa eleitoral, por parte de Emmanuel Macron, e começou a ser concretizada em França, em 2019, de modo algo caótico. O tempo foi corrigindo imperfeições e hoje reconhece-se grande sucesso a esta iniciativa que abrange 3,7 milhões de franceses. Sem diferenciação de estatuto socioeconómico ou de origem geográfica.

Fixando montantes pecuniários de acordo com a idade, este passe cultural integra um nível coletivo em que se atribui a cada aluno pré-universitário (a partir do 6. ano) 25 euros para consumos previamente definidos pelos professores; e um nível individual em que cada um pode definir as suas opções. Aí, os montantes oscilam entre 20 euros para jovens de 15 anos e 300 euros para aqueles que atingem os 18 anos.

Esta semana, a revista L’OBS procurou desenhar uma cartografia desses hábitos culturais e os resultados são, de certa forma, surpreendentes.

Não entregando o dinheiro diretamente aos jovens, antes reembolsando os agentes culturais que lhes fornecem os bens, o Estado consegue facilmente identificar consumos. Este ano, 45% deste investimento foram gastos em livros. É verdade: os jovens gostam de ler. No top das preferências estão romances, banda desenhada e manga. Os autores mais vendidos são, respetivamente, Colleen Hoover, Squeezie e Eiichiró Oda. Neste contexto, o TikTok assume-se como um grande influenciador. O cinema, sobretudo as grandes produções, reúne também um índice elevado de consumo (26%) assim como a música (%)

Não diferenciando jovens com poder económico e com acesso fácil a bens culturais por habitarem grandes centros urbanos onde há uma ampla oferta dessa natureza, poder-se-á reconhecer que este passe não corrige assimetrias. Até certo ponto, sim. No entanto, tem um enorme mérito: coloca os mais novos nos circuitos da cultura.

Perto de uma campanha eleitoral, os políticos portugueses têm aqui uma interessante pista para seguir quando desenharem propostas eleitorais de âmbito cultural. Avanço com uma sugestão suplementar: seria muito útil introduzir neste passe uma valorização de conteúdos jornalísticos pagos.

Precisamos de jovens bem informados e com uma intensa cultura cívica. Ao patrocinar este tipo de consumo, o Estado está a cuidar de si e a cuidar de todos. E a ajudar as empresas jornalísticas que, genericamente, atravessam uma crise financeira grave.

Sem uma democracia robusta, que conte com jovens alinhados com o bem público, dificilmente teremos uma sociedade comprometida com o desenvolvimento.

November 27, 2023

Inspiradora




Acabo de ter uma ideia para uma história de ficção científica, a partir desta fotografia - e do que sei da civilização micénica. Vou assentar a ideia no caderninho das ideias perdidas para não me esquecer. Quem sabe, um dia...


A Porta do Leão, Micenas - Fotografia de 1897 de Underwood & Underwood 
- Arquivo Fotográfico do Museu Benaki.
via  Dr Kalliopi Nikita



November 22, 2023

Everything that's worthwhile comes from the heart (a thing I believe when I hear this)

 

Temos muita sorte em ter como antepassados fundadores os gregos, a cultura grega Antiga porque podíamos ser descendentes de um povo com uma cultura de opressão, mas não. Quem nos formou e fundou espiritualmente foi uma cultura com ideias de democracia, de logos, de arte e de beleza, de humanismo, de intercâmbio cultural e de ideias, de procura de verdade, de lazer, de filosofia... lançou em nós um fogo, uma Fire Saga que nunca mais se extinguiu.


October 22, 2023

Num mundo de validação exacerbada de emoções e sentimentos

 


O mundo Ocidental, nos últimos 200 anos, tinha-se habituado a procurar consensos através de entendimentos racionais, de onde a ética não estava ausente. 

Mesmo que os países entrassem em guerra uns com os outros, as pessoas em geral sabiam os limites éticos das acções e, por isso, tentavam esconder os crimes e negavam-os publicamente: os nazis tentaram esconder o holocausto, Estaline negava as purgas ao seu próprio povo, os europeus tentavam esconder os crimes do colonialismo, etc. 

O movimento de racionalização que talvez tenha suportado a ideologia do colonialismo, foi o mesmo que mais tarde a condenou. Contudo, o mundo ocidental actual, num desejo de se afastar dos processos racionais, que são os que nos aproximam uns dos outros, valorizou até ao limite a subjectividade das emoções e sentimentos. Hoje-em-dia, toda uma área de conhecimento pode ser abafada se uma pessoa se sentir ofendida nos seus sentimentos pessoais e íntimos. 

Estávamos acostumados a educar, a recalcar e a redireccionar de modo socialmente aceitável os sentimentos e emoções de ódio, raiva, violência, vingança, etc. que todos temos de vez em quando como expressões de frustração (mas que controlamos e não usamos para agir), com o objectivo de encontrar consensos que permitissem a vida social, colectiva. Porém, esta educação actual para a validação exacerbada de emoções e sentimentos sem nenhuma revisão racional, leva a que as pessoas sintam que é legítimo e desejável expressar e desenvolver todos os seus sentimentos de fúria e ressentimentos, mesmo em modos que quebram a possibilidade de entendimentos sociais colectivos. Daí que tenham perdido o pudor de exibirem publicamente os seus sentimentos e desejos de morte e vingança. 

É claro que, quanto mais valorizam os seus sentimentos e emoções individuais, menos os processam racionalmente e menos serão capazes de serem independentes de ideologias manipuladoras desses sentimentos e emoções. Para a validação de sentimentos e emoções, os factos são irrelevantes. Os factos e os princípios éticos, porque a pessoa sente o que sente, mesmo que os seus sentimentos sejam contrários a uma ética comum de convivência possível. Só que, dado que a democracia é um sistema político que valoriza a discussão, o exame racional das crenças, o debate das ideias e o consenso sobre plataformas comuns de suporte da vida colectiva, essa validação exacerbada de emoções e sentimentos mina a possibilidade de consensos.

Estes dois vídeos e a fotografia entre eles, são exemplos da sobreposição dos sentimentos individuais à ética comum. A ética comum é que possibilita que comunidades culturalmente díspares do planeta se sentem juntas na mesa das NU, à volta de uma carta de direitos fundamentais a respeitar. A ética comum é o que possibilita que uma maioria de países nesse Conselho, pressionem outro(s) a agir eticamente. 

Quando as emoções subjectivas valem mais que os consensos racionais temos isto:

- no 1º documento, uma russa diz sem pudor que é preciso matar os ucranianos e endoutrinar os seus filhos para não crescerem a odiar os russos que mataram "milhões de ucranianos";

- no 2º documento, uma norueguesa apela publicamente, sem pudor, à matança das crianças judias e representa-as como lixo;

- no 3º, um motorista de uma carruagem de metro, em Londres, incentiva os passageiros a apelar à libertação da Palestina, não pensando que pode haver judeus a viajar na carruagem e que a sua iniciativa pode pô-los em perigo - ou pensou mas como as suas emoções individuais são medalhas que exibe ao peito como condecorações, age sob o seu poder, desprezando o interesse colectivo.


 

Esta fotografia é de uma manifestação pró-palestiniana em Varsóvia. O Visegrad24 identificou a jovem que aparece na fotografia com um cartaz a apelar à morte de crianças judas. É Marie Andersen, uma estudante de medicina norueguesa na Universidade de Medicina de Varsóvia.


April 05, 2023

Os professores estão zangados?

 

A ira é uma reposta à injustiça; é correcto estar zangado quando se experimenta ou se testemunha uma injustiça; a raiva tem a função política e diagnóstica de nos dizer que algo é injusto. Há verdade na ira. 

Esta tradição argumenta convincentemente e frutuosamente que não podemos pensar na raiva sem pensar no poder, e que, como consequência, a raiva é uma questão política crucial.

Perante a injustiça e a opressão, não devemos sentir mágoa, tristeza, ou medo - devemos é sentir raiva. A raiva motiva a acção. É fortalecedora. Isto é claramente verdade. 
É melhor estar zangado do que ter medo, subjugar-se ou ficar desesperado. 

Mas, e se a raiva se sentir poderosa porque tende a reforçar as formas de poder existentes? E se a raiva for mais susceptível de dar "murros para baixo" [a partir do poder] do que de "murro para cima" [a partir dos oprimidos]?

A emoção que move o opressor parece agora também ser a raiva. O que é que fazemos em relação a um sentimento que conduz tanto à violência desumanizante como à resistência a essa violência?

Numerosos estudos psicológicos sugerem que as pessoas em posições de poder são mais propensas a exprimir directamente a raiva e que as pessoas em posições sociais desfavorecidas são mais propensas a serem castigadas pela expressão da raiva. O poder amplifica a raiva, como há muito sabem as estudiosas feministas.

Desde as eleições de 2016 [nos EUA], a questão do género da raiva tem estado em foco: os homens que expressam raiva são vistos como fortes; as mulheres que expressam raiva são vistas como irracionais. 
O mesmo no que respeita à raça. Um estudo de 2013 sugere que as expressões de raiva são avaliadas relativamente ao "contexto cultural" da pessoa que exprime essa raiva. 
Um estudo de 2022 encontrou um preconceito racial na atribuição da raiva às crianças por parte dos professores. Os negros parecem ser percepcionados pelos brancos, nos Estados Unidos, como se estivessem zangados quando estão simplesmente a falar. As pessoas marginalizadas em espaços dominados por homens brancos heterossexuais, cis, recebem claramente a mensagem de que precisam de regular a sua auto-expressão de formas que atendam às percepções dominantes. 
Existe um fosso entre as fúrias dos que detêm o poder e a fúria dos que não detêm o poder. 

Aristóteles legitimava a fúria dos poderosos, pelo direito que tinham em esperar ser respeitados e obedecidos, os estóicos deslegitimaram a fúria dos homens, pois os homens tinham o poder e, assim, atribuíam-na às mulheres, justamente por não terem poder.

O Rei Lear põe-se numa contradição: quer ser libertado do fardo da autoridade, mantendo ao mesmo tempo a distinção a que está habituado como rei. A contradição não pode durar. Quando Lear encontra os símbolos do seu poder retirados, a sua resposta é um magnífico exemplo de fúria produzida pela perda de privilégios. "Tenho vergonha / Que tenhas poder para abalar assim a minha virilidade, / Que estas lágrimas quentes, que me rompem por força, / te valham a pena", diz ele a Goneril. "Toca-me a nobreza da raiva", diz Lear mais tarde diante das suas duas filhas, chamando-lhes "bruxas antinaturais". A "nobre raiva" é masculina; ser incapaz de agir com tal raiva é tornar-se uma mulher.

A raiva revela a verdade - excepto quando trabalha para a suprimir e negar, para silenciar aqueles que falam a verdade.

Podemos ter boas razões para estar zangados. São as razões e não a raiva, o que importa.

Benedict S. Robinson (excertos)

July 26, 2022

"Deveria ser inútil rebater esta ideia, de tão absurda que ela é"

 


A fraude é um comportamento intencional, é um acto de querer enganar. Acusar uma corrente de pensamento de ser uma espécie de conspiração que dura há 70 anos para minar o avanço da ciência é tão ridículo como outros acusarem os homens brancos de estarem numa conspiração intencional de séculos para destruir o mundo, por poder. 

Acontece que o pós-modernismo nunca fez tal acusação da maneira que David Marçal apresenta. David Marçal não parece querer compreender essa corrente de pensamento mas apenas acantoná-la num extremo para depois poder destruí-la como extremista, de maneira que incorre em vários erros:

1º - o pensamento pós-moderno não é uma corrente académica obscura - é uma corrente que se vinha anunciando desde o início do século XX e que ganha força após a Segunda Guerra e em parte por causa dela. O pós-modernismo que tem raízes na arquitectura mas ganhou impacto na literatura e na filosofia é, em primeiro lugar, um reflexo da desilusão das grandes explicações unitárias universais e, em segundo lugar, uma procura das fontes de saber, conhecer e ser, adormecidas e abafadas pela hegemonia da ciência na primeira parte do século XX. É uma reacção ao obscurantismo do cientismo dessa época e uma tentativa de o corrigir na sua rota. 

2º - o pensamento pós-moderno não se opõe ao conhecimento científico. Não é uma conspiração para acabar com a ciência, mas uma tentativa de a perspectivar tendo em conta outros sentidos do ser e conhecer humanos, outras linguagens, pois a linguagem da ciência não abarca o total da realidade como se quis defender com o cientismo que pretendia substituir os grandes sistemas filosóficos unitários, como o hegeliano e outros antes dele. O pós-modernismo diz que há outras linguagens para além da linguagem científica. 

O Iluminismo pode ter começado como uma emancipação do obscurantismo da religião, mas não se tornou em, usar a ciência e, de um modo mais geral, a razão para melhorar as condições de vida de todos os seres humanos. David Marçal engana-se ou se não se engana é intelectualmente desonesto, porque cita as melhorias da ciência -saúde, educação, vacinas, pobreza, etc.- mas deixa de fora as piorias - colonização, destruição ambiental, o genocídio da Segunda Guerra Mundial- resultado dessa crença arrogante da cultura ocidental de ter alcançado com a sua superioridade racional a verdade no conhecimento e forçar todos os outros a ela. 

Isso foi um facto que teve consequências nefastas no mundo, para além das positivas que ele cita, quer o veja ou não. Daí não se segue que todas as outras abordagens não-científicas sejam úteis ou boas ou válidas. Muitas estão em decadência, mas outras não estavam e foram aniquiladas. Por exemplo, sabemos hoje-em-dia que as práticas e ideias dos índios da Amazónia são melhores e mais correctas que as da ciência para a preservação do equilíbrio ecológico, mas foram preciso séculos e algum pós-modernismo para que os cientistas ouvissem de facto os nativos da Amazónia em vez de lhes explicar condescendentemente como deviam comportar-se na sua própria casa.

É isto a que se referem os pós-modernistas quando falam em o homem branco ter usado estas invenções para perpetuar o seu poder, mas ao contrário do que diz Marçal, eles não defendem que o europeu foi inventar a ciência para dominar os outros, o que dizem é que se aproveitaram dessa superioridade tecnológica para dominar os outros - ora, quando se domina e controla unilateralmente, anula-se o outro, apesar de haver uma diferença entre ter intenção de anular o outro, ou fazê-lo por egoísmo e ganância de poder. Isto aconteceu e é uma realidade histórica inegável.

3º - O pensamento pós-moderno não diz que, não é possível obter conhecimento objectivo. O que diz é que o conhecimento objectivo é inter-subjectivo, quer dizer, é o acordo entre os membros de uma comunidade (como a dos cientistas) em considerar objectivo o conhecimento que obedece a certos protocolos, como os do método científico, por exemplo. Porém, ter conhecimentos que seguem com sucesso esse método, não lhes confere nenhuma garantia de verificabilidade. A prova científica não é uma verificabilidade.

O exemplo que Marçal dá do conhecimento científico prever os cometas não é um bom exemplo: outras culturas do passado também os previam, como previam outros fenómenos, com métodos anteriores, em milénios, aos que resultaram do Iluminismo. Vemos nas civilizações dos Maias, da China, para não falar dos egípcios cujas descobertas e construções ainda hoje não conseguimos compreender. 

Portanto, o pós-modernismo não é contra a ciência ou o desenvolvimento tecnológico: é a favor dele não ser usado para se aniquilarem outras linguagens e abordagens do real e com isso empobrecer-se a experiência humana do real.
Quando usa a expressão, 'narrativa' para falar da teoria científica, não está a dizer que a linguagem da ciência é uma ficção como o romance literário. Isso é o que entende o senso-comum e que o leva a pensar que tudo é opinião equiparável. É o que leva o nosso ministro da educação, por exemplo, a dizer que os alunos têm direito à sua opinião como se a epistemologia fosse uma questão jurídica. 

O facto de todo o conhecimento ser opinião, não significa que toda a opinião seja conhecimento. O relativismo não é uma invenção pós-modernista e tem um fundamento filosófico válido, quer este senhor o saiba ou não saiba.

4º - É à luz destes dois princípios que podemos entender alegações como a de que não existem apenas dois sexos biológicos. Um dos temas do pensamento pós-moderno é o esbatimento de fronteiras definidoras, recusando à biologia qualquer papel na definição de conceitos como homem ou mulher, categorias que, no quadro desse pensamento, são socialmente construídas.

David Marçal gostava que a vida fosse perfeita com todos os seres organizadinhos segundo categorias simples e inconfundíveis, mas isso não existe como ele muito bem sabe, dado que tem formação em biologia: a categorizarão das espécies e sub-espécies de animais e outros seres é difícil e complexa porque a própria definição é um conceito muito complexo, já que os seres não têm sempre ou quase nunca têm fronteiras estanques. Um ser categorizado numa espécie tem características de outra e de outra e por vezes isso obriga a criar um nova categoria, ela mesma com fronteiras difíceis de definir. A realidade é complexa.

Na realidade, em termos biológicos, a maioria dos seres humanos cabe em uma de duas categorias -homem ou mulher- mas existem minorias que não têm as características próprias e exclusivas de apenas um deles. São sexualmente ambíguos, sem uma genitália definida segundo os cânones e, dentro desses, há vários sub-tipos e graus que vão de alterações pequenas a grandes e que podem ter consequências de ambiguidade na produção de hormonas, etc. São uma minoria mas existem e têm que ser reconhecidos para poderem ser devidamente acompanhados. Como dizia Nietzsche, enquanto não temos uma palavra para nomear as realidades elas são-nos invisíveis.

Por muito que incomode a David Marçal que as pessoas não nasçam todas 'segundo a norma' para não criar problemas e incómodos à sociedade e à classificação dos biólogos, essa não é a realidade. E se dantes se escondia a realidade das minorias, hoje-em-dia não. 

Outra realidade que existe, quer Marçal queira quer não, é a influência da sociedade na identidade psicossocial das pessoas e a ideia de mulher e de homem com os seus papéis atribuídos e lugares assignados na sociedade é, em parte, uma construção social imposta pela educação. A educação tem sempre algo de coacção, de definição exterior, o que não é mau nem bom, é assim. Se falo português com um bebé estou a defini-lo para a língua portuguesa. Se o educo como rapaz com as tradições de rapaz estou a defini-lo para esse papel. Acontece que há casos em que as pessoas não se identificam com esse papel em que são educadas. É a realidade e reconhecer a sua existência não é ser pós-moderno ou extremista. 

Os problemas advêm, não da realidade de existirem pessoas que não se enquadram na norma da maioria, mas da maneira como têm querido, uns e outros, lidar com elas: uns negando e querendo fingir que não existem, outros querendo que todos se modifiquem para os integrar à sua maneira. Uns e outros não procuram pontos comuns de entendimento que não ofendam nenhum dos grupos. Em vez disso preferem, como David Marçal, acantonarem os outros num extremo e depois acusarem-nos de extremismo e tentarem aniquilar-se mutuamente:  uns negam a biologia, outros negam a sociedade.


A fraude intelectual do pensamento pós-moderno


O pensamento pós-moderno, e o activismo que dele decorre, nunca demonstrou qualquer utilidade para os oprimidos que afirma defender. Pelo contrário.

David Marçal

Tem sido publicada nestas páginas uma polémica que, partindo de um texto de José Pacheco Pereira, suscitou diversas reacções. Um dos lados dessa polémica defende a ideia da “opressão pela linguagem”, procurando fazer passar conceitos e formas de falar que têm a sua raiz no pensamento pós-moderno, que, sendo uma obscura corrente académica, tem hoje importantes implicações no activismo.

O pensamento pós-moderno opõe-se ao pensamento moderno, a forma de pensar surgida com a Revolução Científica dos séculos XVI e XVII, segundo a qual se podem estabelecer novos factos com base em provas, quer dizer, é possível produzir conhecimento novo. Esta perspectiva foi aprofundada com o Iluminismo, tendo-lhe sido adicionada uma dimensão humanista: devemos usar a ciência e, de um modo mais geral, a razão para melhorar as condições de vida de todos os seres humanos.

Os resultados são impressionantes: existem hoje, em número absoluto, menos pessoas no mundo que vivem em pobreza extrema do que no início do século XIX, apesar de a população ser cerca de sete vezes maior do que nessa altura. Vivemos mais, temos em média mais rendimentos, homens e mulheres frequentam a escola durante mais anos e temos acesso a melhores cuidados de saúde, que se traduzem, por exemplo, numa menor mortalidade infantil e no controlo de várias doenças infecciosas através da vacinação. Não obstante existirem inúmeras coisas a melhorar, o mundo está cada vez melhor.

O pensamento pós-moderno, que tem uma visão mais cínica das coisas, assenta em dois princípios. O primeiro é o de que não é possível obter conhecimento objectivo. Este princípio vai contra todos os avanços da ciência. O segundo princípio assume que a sociedade é formada por sistemas de poder e hierarquias que determinam o que pode ser conhecido e como. Dito de uma maneira mais crua: a ciência e a racionalidade são invenções dos homens ocidentais heterossexuais, com o objectivo de perpetuar o seu próprio poder e marginalizar formas não científicas e não racionais de produção de conhecimento. Deveria ser inútil rebater esta ideia, de tão absurda que ela é.

Apesar das suas falhas, a ciência e a racionalidade produziram um entendimento do mundo que é verificável empiricamente e que tem resultados óbvios: conseguimos prever a passagem de cometas, construir telemóveis e fazer vacinas para a covid-19.

É à luz destes dois princípios que podemos entender alegações como a de que não existem apenas dois sexos biológicos. Um dos temas do pensamento pós-moderno é o esbatimento de fronteiras definidoras, recusando à biologia qualquer papel na definição de conceitos como homem ou mulher, categorias que, no quadro desse pensamento, são socialmente construídas.

Outro aspecto do pensamento pós-moderno é a ideia que os grupos oprimidos (as mulheres, os negros, os homossexuais, as pessoas obesas ou qualquer pessoa com uma combinação das anteriores) possuem um conhecimento vivencial próprio, que se sobrepõe à ciência e à racionalidade. Esta ideia pode-se traduzir em assumir a deficiência como uma identidade (recusando tratamentos para a surdez, por exemplo) ou rejeitar a existência de problemas de saúde decorrentes da obesidade (medicalizar a obesidade seria uma agressão à identidade).

Mais: estas afiliações identitárias são usadas para empoderar esses grupos, estabelecendo uma hierarquia baseada no opressão e no privilégio, na qual, por exemplo, uma mulher negra “cis” deve reconhecer o seu privilégio face a uma mulher negra “trans”. Há casos complicados, como comparar uma mulher negra heterossexual com um homem negro homossexual – quem é o privilegiado aqui?

Os teóricos pós-modernos inventarão uma resposta, se é que não têm já uma. A questão é que essa hierarquia, assim como todos os aspectos do pensamento pós-moderno, são apenas efabulações teóricas muito desligadas da realidade. As crenças pós-modernas não são comprováveis, pois os seus arautos não aceitam testes que se lhes possam fazer para verificar se elas são verdadeiras ou falsas. Por exemplo, a afirmação de que todos os brancos são racistas, mesmo que não o saibam, pois tem “ângulos mortos”, é uma afirmação não comprovável: não há nenhuma observação ou experiência que se possa fazer que tenha a capacidade de demonstrar que ela é falsa. Claro que a ciência e a racionalidade são, para os teóricos pós-modernos, apenas formas de manter os homens brancos no poder, eles são insensíveis a quaisquer argumentos científicos ou sequer racionais.

Os grandes avanços nos direitos dos negros, das mulheres e dos homossexuais são anteriores a este tipo de pensamento, tendo raízes no Iluminismo e um forte impulso com os movimentos dos direitos civis nos Estados Unidos. Estes avanços, em grande parte ocorridos nas décadas de 1960 a 1990, assentam na ideia de que todos somos iguais em direitos e dignidade, independentemente de sexo, cor da pele (não há raças humanas) ou orientação sexual. São abordagens universalistas e não sectárias. O sexismo, o racismo ou a homofobia são cada vez mais inaceitáveis nas sociedades modernas. É este caminho que importa prosseguir, porque foi ele que alcançou resultados inegáveis em muitos países. São estes valores universalistas que estão plasmados no artigo 13.º da nossa Constituição.

O pensamento pós-moderno, e o activismo que dele decorre, nunca demonstrou qualquer utilidade para os oprimidos que afirma defender. Pelo contrário, tem o dom de tornar pessoas razoáveis e tolerantes em adversários, que se vêem catalogadas como racistas ou homofóbicas simplesmente por não professarem o credo pós-moderno.


November 06, 2021

Ideias - Lego Minerals

 



Desfrute, partilhe e apoie o projecto, Lego Minerals: https://tinyurl.com/minlego

Lego Minerals de Dario Del Frate, é uma colecção de finos espécimes de Lego incluindo turmalinas, quartzo, água-marinha, geode, pirite e berilo vermelho.
Estamos actualmente a reunir apoio para tornar esta ideia uma realidade.
Seria óptimo para nós, coleccionadores, mas também para as crianças e adultos, aproximarem-se do mundo mineral enquanto se divertem.
A votação é absolutamente gratuita, apenas requer o registo na plataforma LegoIdeas com um endereço de email.

por Fine mineral photography



August 31, 2021

O visível e o invisível

 


"Literatura, música, paixões, mas também a experiência do mundo visível são, não menos que a ciência de Lavoisier ou Ampère a exploração de um invisível e, tal como essas, o desvendar de um universo de ideias. Simplesmente, este invisível, estas ideias, não se deixam desligada, como as outras, das aparências sensíveis e erigir como uma segunda positividade. A ideia musical, a ideia literária, a dialéctica do amor e também as articulações da luz, os modos de exposição do som e do tacto falam-nos, têm a sua lógica, a sua coerência, as suas referências cruzadas, as suas concordâncias e, também aqui, as aparências são o disfarce de "forças" e "leis" desconhecidas. Simplesmente, é como se o segredo onde eles estão e do qual a expressão literária os extrai fosse o seu próprio modo de existência; estas verdades não estão apenas escondidas como uma realidade física que não fomos capazes de descobrir, invisível de facto, que um dia seremos capazes de ver face a face ou que outros, melhor colocados, poderiam ver agora mesmo, desde que o ecrã que as mascara fosse removido. Aqui, pelo contrário, não há visão sem um ecrã: as ideias de que falamos não nos seriam mais conhecidas se não tivéssemos corpo e sensibilidade, é então que nos seriam inacessíveis; a petite phrase, a noção de luz, não mais do que uma "ideia de inteligência", não se esgotam pelas suas manifestações, só nos podem ser dadas como ideias numa experiência carnal.

   — Merleau-Ponty, Le Visible et L'invisible, Gallimard, 1964

July 22, 2021

Iniciativas interessantes - Projecto Memória e Perdão

 



Felipe De Brigard, professor de filosofia, psicologia e neuro-ciência na Duke University e líder do «Laboratório de Imaginação e Cognição Modal» ali existente, recebeu uma bolsa de $988.602 para o seu projecto, "Esquecer e Perdoar: Explorar as Ligações entre a Memória e o Perdão".

 A subvenção é da Fundação John Templeton.

O projecto adopta abordagens filosóficas e empíricas a questões conceptuais e psicológicas relacionadas com o perdão, emoções e memória, centrando-se nas vítimas de violência política:

As pessoas que sofreram actos de injustiça são frequentemente instadas a "perdoar e esquecer". De facto, esquecer os detalhes de experiências passadas que suscitam sentimentos dolorosos, por vezes debilitantes, de ressentimento, raiva e ódio, parece ser necessário a fim de substituir esses sentimentos negativos por outros mais positivos. No entanto, recordar os detalhes de erros passados também parece ser necessário para o perdão. Se a memória de uma pessoa de uma ofensa passada fosse de alguma forma apagada da sua mente, não diríamos que ela tinha perdoado o ofensor. O perdão, então, parece exigir uma contradição: é preciso lembrar e esquecer, para perdoar. Como devemos compreender a relação entre perdoar e esquecer de modo a resolver este paradoxo? Apesar de um corpo crescente de investigação sobre o perdão, a relação entre a memória e o perdão permanece pouco clara.

O projecto actual procura explorar esta relação tanto empiricamente como teoricamente. Com base na hipótese de trabalho de que o perdão desencadeia um processo psicológico de reavaliação emocional de memórias de ofensas passadas, o aspecto experimental do projecto visa investigar os efeitos do perdão na recordação subsequente, bem como os efeitos que diferentes técnicas de reavaliação podem ter na tendência das pessoas para perdoar ofensas. A investigação empírica será conduzida em três populações diferentes: uma amostra de vítimas directas de violência política de Montes de Maria, uma região rural no norte da Colômbia, uma amostra urbana de vítimas indirectas de Bogotá, e uma amostra comparativa de indivíduos nos Estados Unidos. A clarificação do papel que a memória desempenha no perdão não só fará avançar a nossa compreensão desta noção, mas também proporcionará uma base empírica sólida sobre a qual construir uma teoria da mudança emocional do perdão.

Pode saber mais sobre o projecto aqui e pode seguir o Dr. De Brigard no Twitter aqui. (enfim, se a sua conta não está suspensa pelo grande líder...)


April 21, 2021

Concordo com esta candidata acerca de não comercializar a Tapada das Necessidades

 


... e exactamente pela razão que ela invoca: não é o espírito desse jardim que tem 200 anos e proporciona um refúgio silvestre, não vou dizer selvagem, no coração da cidade. Mexer nele com intuitos comerciais é estragá-lo. Estar apostado na defesa do ambiente tem que ver-se nas acções e não apenas em palavras inconsequentes. Não mexam na Tapada. Deixem-na ser.

Já não concordo com a proposta dela de tornar gratuitos os transportes em Lisboa, pois é evidente que vai ser o país inteiro a pagar essa factura. Não, obrigada.




Leituras - nem tudo é uma verdade local

 


Coleridge the philosopher

Embora recordado como poeta, sobretudo, a teoria das ideias de Coleridge foi espectacular na sua originalidade e alcance 



Samuel Taylor Coleridge (1772-1834) ergue-se no panteão cultural pela sua poesia. É menos conhecido agora que em vida e nas décadas que se seguiram à sua morte, quando este poeta canónico teve uma reputação igualmente, como filósofo. A sua obra que contém grande parte da sua prosa filosófica, The Statesman's Manual (1816), expõe a sua teoria da imaginação e simbolismo; Biographia Literaria (1817), é uma das grandes e fundadoras obras de crítica literária; The Friend (1818), que inclui os seus "Essays on the Principles of Method" filosóficos; Aids to Reflection (1825), onde expõe a sua filosofia religiosa de transcendência; e On the Constitution of the Church and the State (1829), que apresenta a sua filosofia política.

O efeito destes dois últimos livros foi tão impressionante que John Stuart Mill nomeou Coleridge como um dos dois grandes filósofos britânicos da época - sendo o outro Jeremy Bentham, o oposto polar de Coleridge. O seu pensamento esteve também na origem do movimento Anglicano da Broad Church, uma grande influência no socialismo cristão de F D Maurice e a principal fonte do Transcendentalismo americano. Ralph Waldo Emerson visitou Coleridge em 1832, e John Dewey, o principal filósofo pragmático, chamou a Coleridge's Aids to Reflection 'a minha primeira Bíblia'.

No entanto, as fortunas filosóficas mudam. O eclipse quase total do idealismo britânico pela ascensão da filosofia analítica assistiu a um declínio generalizado do stock filosófico de Coleridge. A sua filosofia definhou enquanto o seu verso se elevava. A poesia de Coleridge ressoou com a cultura psicadélica dos anos 60 e uma mudança cultural geral que enfatizava o valor da imaginação e uma visão mais holística do lugar humano dentro da natureza. Hoje em dia, Coleridge é muito mais frequentemente recordado como poeta do que como filósofo. Mas a sua filosofia foi espectacular na sua originalidade e nas suas sínteses.

Embora Coleridge tenha escrito poesia ao longo da sua vida, as suas energias foram sendo cada vez mais canalizadas para a filosofia. Extraído do neo-platonismo, do idealismo transcendental engenhoso mas difícil de Immanuel Kant e das complexidades mesmo obscuras dos pós-Kantianos como J G Fichte e F W J Schelling, a sua filosofia era sem dúvida do tipo metafísico difícil, muito em desacordo com o empirismo britânico. Lord Byron falou por muitos quando descreveu Coleridge:
Explicando a Metafísica à nação -
Gostaria que ele explicasse a sua Explicação.
Contudo, o empirismo britânico de John Locke, David Hume e David Hartley estava, ele próprio, em desacordo, salientou Coleridge, com uma herança mais profunda do pensamento britânico. 

"Deixem a Inglaterra ser, Sidney, Shakespeare, Spenser, Milton, Bacon, Harrington, Swift, Wordsworth", que representam a tradição idealizadora e proto-romântica que ele identificou como "a velha Inglaterra platónica espiritual". Coleridge apelou a essa tradição 'platónica espiritual' para se opor às filosofias dos empiristas e expoentes de 'senso comum' como Samuel Johnson, Erasmus Darwin, Hume, Joseph Priestley, William Paley e William Pitt, 'com Locke à frente dos Filósofos e [Alexandre] Pope dos Poetas'.

Sem denegrir o sucesso comercial e industrial, Coleridge argumentou que a pressa na melhoria económica levou a um declínio na cultura, tradição e bem-estar espiritual. Identificando a "civilização" com as forças da progressão económica e tecnológica, e o "cultivo" com as raízes mais profundas da ligação espiritual, tradição e permanência, alertou para a produção de uma sociedade "envernizada em vez de polida; perigosamente, excessivamente civilizada e lamentavelmente não cultivada! 
Esta preocupação com o cultivo foi um princípio importante a que Mill chamou a escola "Germano-Coleridgiana", que examinou o que os empiristas, utilitários e mecanicistas materialistas tinham tendência a ignorar: o desenvolvimento histórico e os alcance social e psicologicamente significativos incorporados na religião, tradição e simbolismo cultural.

O reconhecimento desta diferença por parte de Mill prefigura o que se tornaria a divisão analítico-continental entre filosofia anglófona, centrada na análise discreta significava de clarificar problemas e as abordagens mais histórica e teoricamente ambiciosas, sintetizadoras, que começaram com os filósofos que seguiam Kant, tais como Schelling e G W F Hegel. 
Esta abordagem 'Germano-Coleridgiana' contrastou fortemente com o utilitarismo britânico, que reduziu a ética ao princípio de utilidade de Bentham. Nas guerras culturais da sua época, Coleridge defendeu as preocupações culturais e espirituais e opôs-se à elevação ética do prazer sensual, bem como à redução disse e de tudo o resto para fundar a matéria.

Coleridge pôs-se do lado dos apoiantes do espiritual e transcendente contra aqueles que mantinham a realidade do material e imanente apenas. Desta forma, participou na "Polémica do Panteísmo", que se desenrolou principalmente na filosofia alemã no final do século XVIII e início do século XIX. 
Coleridge defendeu a transcendência de Deus em vez de defender, com Baruch Spinoza, que Deus é uma potência totalmente imanente identificada com o mundo natural. Muito típico de Coleridge, contudo, ele não rejeitou os argumentos espinozistas, mas adoptou partes deles para se enquadrarem no que ele via como um todo mais amplo. 'Spinoza é ... a verdadeira filosofia', escreveu ele, 'mas enquanto Esqueleto da Verdade'. Precisava de ser hidratado para deixar 'os ossos secos viverem'.

Esta atitude inclusiva é um dos pontos fortes da abordagem de Coleridge, que cresceu a partir dos seus célebres poderes de síntese. Vendo os debates polarizados como revelando um todo interdependente, tentou abraçar as opiniões dos seus opositores filosóficos, em vez de simplesmente rejeitá-las. Ele via o pensamento dicotómico ou binário (B versus C) como meramente discutível, enquanto que uma tricotomia mais ampla (B versus C dentro de uma unidade mais ampla de A) apresentava um todo unificado como o ideal superior que a oposição polar feroz mas dependente representa imperfeitamente. A visão de uma união superior de opostos leva ao raciocínio, enquanto que o pensamento binário leva apenas à argumentação.

Para além dos méritos "cultivadores" da síntese de Coleridgean, é também valioso aprofundar o conteúdo da sua filosofia. Nos últimos 15 anos, os filósofos têm vindo a notar o que Anna Marmodoro chama "a metafísica dos poderes" e, desde as teorias da relatividade de Albert Einstein e a posterior teoria quântica, a maioria dos filósofos e físicos concordam que as forças e campos de força são mais fundamentais do que a matéria, que já não se considera ser o ne plus ultra atomístico que se pensava ser. Nomeadamente, Newton recusou-se a reduzir a força da gravitação a algo que é em si mesmo material, deixando-a como um daqueles mistérios obscuros que devemos simplesmente observar e aceitar sem compreender totalmente.

Sem negar a matéria física, Coleridge lutou contra o que via como materialismo abjecto, que reduziu todas as qualidades à quantidade e fez cair as forças físicas na matéria. Neste ponto, a história está agora do lado de Coleridge contra os materialistas e os filósofos simpatizantes da intenção do materialismo identificam-se agora geralmente não com o "materialismo" mas com o "fisicalismo", ou com a visão de que os componentes fundamentais do Universo serão o que a Física, disser que são. O pensamento actual na física quântica interpreta estes elementos como forças fundamentais, coisa próprio Coleridge defendeu.

Uma compreensão do pensamento de Coleridge, então, fornece uma visão do início da divisão analítico-continental e uma ponte entre as visões materialista e dinâmica (baseada em poderes) nas ciências. Ilumina também a poesia de Coleridge como a expressão de uma visão unificada do mundo, não como mera acumulação de matéria em felizes coincidências, mas como a evolução do poder das ideias num mundo de sínteses dinamicamente forjadas que ressoam até aos poderes de onde surgiram estas forças criativas.

Em Xanadu escreveu Kubla Khan / Um decreto majestoso de cúpula de prazer ...' Assim começa o poema de Coleridge sobre o poder das palavras e da imaginação na criação física e poética. Fazendo eco de como o poderoso potentado cria com um vigor imperioso, o poeta inspirado, dizem-nos, poderia "construir aquela cúpula no ar" numa fusão explosivamente construtiva de opostos - "[t]hat sunny dome! aquelas cavernas de gelo! É uma criação com uma magia mais espantosa do que até mesmo o poder mundano do Khan poderia reunir:
And all should cry, Beware! Beware!
His flashing eyes, his floating hair!
Weave a circle round him thrice,
And close your eyes with holy dread,
For he on honey-dew hath fed,
And drank the milk of Paradise.
Embora inédito até 1816, Kubla Khan foi escrito entre 1797 e 1799, por volta do annus mirabilis de Coleridge de 1797-98, quando também escreveu o seu poema sobrenatural The Rime of the Ancient Mariner, o daemónico Christabel e alguns dos maiores do que ele chamou os seus "Poemas Meditativos em Verso em Branco". Um desses poemas, o sublime 'Gelo à Meia-Noite', descreve as belezas da natureza  ‘lakes and shores / And mountain crags’ – as incarnations of the divine word, being ‘The lovely shapes and sounds intelligible / Of that eternal language, which thy God / Utters’. Esse poema termina na nota dolorosamente bela e misteriosa do the secret ministry of frost’ that will, if the night gets colder, hang up the thaw-drops from the eaves ‘in silent icicles, / Quietly shining to the quiet Moon.’

Os temas interligados de Coleridge são: o poder da palavra criativa, tanto na construção mundana como poética, ecoando a palavra divina; a natureza como o alfabeto vivo de Deus, apenas mal compreendido no conhecimento humano; ideias como essências metafísicas e poderes que preexistem no mundo físico; e a noção de que o ideal é o reflexo terrestre, à medida que os picos de gelo brilham para a Lua, reflectindo ela própria a luz, à noite, de um sol invisível. Todos estes são temas que Coleridge desenvolveu nos seus escritos filosóficos até à sua morte em 1834.

Quando jovem, Coleridge extraiu muito da teoria associacionista da mente de David Hartley. Tal como Hartley, o jovem Coleridge queria traçar os caminhos dos nervos radiculares e estímulos a uma espiritualidade sempre crescente e sublime. Isto entrelaçou-se com um respeito mais duradouro pela filosofia de Spinoza, que via a mente e a matéria como os únicos atributos que podemos perceber do ser infinito a que ele chamava deus sive natura (Deus ou natureza). Aos 22 anos de idade, declarou Coleridge:
Sou um completo Necessitário - e compreendo o assunto tão bem como o próprio Hartley - mas vou mais longe ... e acredito na corporeidade do pensamento - nomeadamente, que é movimento.
Os associacionistas viam a mente como construída a partir de sensações imediatas, cujos vestígios depois se recordam e modificam mutuamente na construção de mapas de experiência - uma espécie de atomismo mental. 
Embora cedo desistisse da psicologia materialista, manteve-se o associacionismo como uma teoria de como a mente animal e humana se organizam. Coleridge aceitou o que via como a sua "meia verdade" ao explicar grande parte da actividade mental aos níveis de sensação, desejo e o despertar precoce da compreensão. A teoria essencialmente determinista, contudo, deixou pouco ou nenhum espaço para a liberdade humana. Como poderia esta teoria de uma mente automática, irracional e centrada no desejo funcionar tão bem na explicação das funções elementares do pensamento e da percepção, mas ainda assim contradizer totalmente as experiências, na verdade a própria possibilidade, de liberdade, responsabilidade, e a busca de propósitos mais elevados? A sua resposta permitir-lhe-ia ir além da noção de 'corporeidade do pensamento', mantendo-se com a teoria do mesmo como 'movimento', ao desenvolver uma visão da mente como surgindo da interacção de energias opostas e funcionando num sistema de dinâmicas, ou forças elementares.

Antes de aprofundar a 'filosofia polar' de Coleridge, precisamos de uma imagem mais clara do que ele quis dizer com 'ideias'. Para ele, a oposição polar deriva da energia das ideias concebidas subjectivamente, como 'ideias universais' ou objectivamente, como 'leis cósmicas'. As suas ideias universais relacionam-se com as verdades morais, a história e as 'ciências humanas', enquanto as leis cósmicas se referem às leis da natureza e às ciências físicas. A noção de 'ideias' de Coleridge é semelhante às ideias platónicas, tais como Bondade, Verdade, Beleza, Justiça e assim por diante. A partir de 1818, ele deu uma série de listas de tais ideias, incluindo:
as Ideias de Ser, Forma, Vida, Razão, Lei da Consciência, Liberdade, Imortalidade, Deus!
... ideias, (NB - não imagens) como teoremas de um ponto, uma linha, um círculo, em Matemática; e de Justiça, Santidade, Livre-arbítrio, &c em Moral.
e:
eternidade ... Vontade, Ser, Inteligência, e Vida Comunicativa, Amor e Acção ... sem mudança, sem sucessão.
A capacidade de intuir e contemplar ideias transcendentes, argumentou, é o que prova que "nascemos com a faculdade da Razão, semelhante a Deus", acrescentando que "é o trabalho da vida desenvolvê-la e aplicá-la", uma vez que estas ideias:
constituem... a humanidade. Pois tentar conceber um homem sem as ideias de Deus, eternidade, liberdade, vontade, verdade absoluta, do bom, do verdadeiro, do belo, do infinito. Um animal dotado de uma memória de aparências e de factos pode permanecer. Mas o homem terá desaparecido e vós tendes antes uma criatura, "mais subtil do que qualquer animal do campo, mas igualmente amaldiçoada acima de qualquer animal do campo ...".
Coleridge ficou fascinado com a noção de verdade universal como um reino de "verdades eternas" que se originam e perduram em algum tipo de razão cósmica. Esta 'razão' via como subjacente ao tecido do Universo e correspondia tanto ao Logos universal de Heráclito como ao Logos divino de São João. 

Embora Heraclito seja conhecido pela sua visão de um mundo em fluxo constante de tal modo que "não podemos entrar duas vezes no mesmo rio", ele é também o filósofo que concebeu um Logos universal, a ordem abrangente que permite a existência de uma realidade coerente e racional a partir do que de outra forma seria um caos. O LOGOS de São João é a Palavra que estava com Deus no início, que era e é Deus. É o coração espiritual da realidade que entrou na sua própria criação ao tornar-se carne, tornando-se a luz do mundo, se ao menos as trevas pudessem compreendê-la.

Para Coleridge, estas noções de Logos tornaram-se unidas como a mente viva na qual residem as ideias como verdades e poderes. De algumas formas semelhantes aos grandes sistemas de Schelling e Hegel, estas ideias tornam-se gradualmente realizadas pelos pensamentos e acções humanas, através da inspiração, imaginação e contemplação. 
Coleridge definiu a imaginação no seu sentido fundamental como "o Poder vivo e Agente primordial de toda a Percepção humana, e como uma repetição na mente finita do acto eterno da criação no infinito Eu Sou". Nesta visão, a criatividade artística humana, a descoberta científica e o discernimento filosófico partilham de uma forma atenuada do poder original e divino da criação, em virtude da capacidade de atender na imaginação a ideias, ou símbolos de ideias, da realidade última. Tudo o que existe deve o seu ser às ideias. A natureza, embora carregada de ideias, está a dormir; a vida animal, o sonambulismo; com a maior parte da vida humana num estado ligeiramente superior de sonho. Só quando estamos conscientes de nós próprios das ideias é que estamos plenamente acordados. 
Coleridge descreveu o balanço das ideias em 1827, "todos vivem no seu poder - a Ideia trabalhando nelas", mas apenas "alguns poucos... vivem na sua Luz".

Concebendo estes poderes últimos e eternos como "ideias" subjectivamente (fundamentais para a mente) e como "leis" objectivamente (fundamentais para o mundo), Coleridge colocou no centro da sua filosofia uma teoria de poderes para além da mente humana, mas acessível à mesma na contemplação, imaginação e em intuições. Estas "ideias vivas e produtoras de vida" estavam "essencialmente unidas com as causas germinais na Natureza". 
Numa consequência intrigante da sua teoria de ideias, não rejeitou a matéria física como mera aparência ou conceito abstracto sem uma realidade correspondente para além da experiência subjectiva. Pelo contrário, como Coleridge viu, a matéria é uma síntese que surge da oposição das forças fundamentais da existência. São as forças elementares que são primordiais e a matéria que surge delas é a eflorescência em que tomamos parte, apenas com pouca consciência de que estamos "ligados a correntes mestras abaixo da superfície".

Mais amplo e profundo que qualquer idealismo que eliminaria a matéria como uma ilusão ou uma abstracção, Coleridge reteve-a dentro do seu sistema, tal como tinha feito com o associacionismo na teoria da mente. Assim, como ele escreveu em 1817, viu-o como essencial:
considerar a matéria como um Produto - coagulum spiritûs [a coagulação do espírito] de energias opostas, por inter-penetração - ... enquanto não considero a matéria real apenas como cópula [ou síntese] destas energias, consequentemente não havendo matéria sem Espírito, ensino, por outro lado, a existência real de um Mundo espiritual sem o material.
Do que Coleridge descreveu como "a Lei Universal da Polaridade" segue-se a actualização de toda a existência subsequente sob a forma de poderes metafísicos e forças da natureza. A cosmologia de Coleridge, tal como a metafísica de Schelling, fazia parte de um movimento pós-Kantiano de filosofia orgânica da natureza que se via a si própria em oposição ao atomismo e ao associacionismo e que era em grande parte uma metafísica de poderes que encontrava profunda consonância com a visão em desenvolvimento da mente e dos sentidos de Coleridge. Do princípio da oposição polar, brota não só a história, mas toda a matéria e todos os fenómenos. Em 1818, Coleridge definiu esta lei da seguinte forma:
Cada Poder na Natureza e no Espírito deve evoluir um oposto, como único meio e condição da sua manifestação: e toda a oposição é uma tendência para a re-união.
Numa linhagem de Kant a Fichte e depois Schelling e em breve a ser promovida por Hegel, o princípio da oposição polar foi transformado numa lógica tripartida, que Fichte descreveu como a progressão através de tese, antítese e síntese, tornando-se ela própria uma nova tese, continuando assim a evolução. 

Coleridge desenvolveu isto numa lógica 'pentádica' (ou quíntupla), com a adição da prothesis, como a ideia originária de que a tese e a antítese se manifestam como pólos opostos e o 'ponto de indiferença', o ponto médio entre a tese e a antítese. Para Coleridge, a síntese é a resolução de forças opostas nos fenómenos materiais da experiência. Todos os fenómenos na natureza e na história humana são aparências simbólicas que reúnem um choque mais profundo de forças elementares.

Para Coleridge, a oposição da razão ao sentido foi uma polaridade fundamental na mente que demonstra a dinâmica polar do cosmos. 
Seguindo Kant, interpretou a razão como essencialmente livre, guiada pela verdade e por valores mais elevados, em vez de impulsos e associações. Este tensão entre razão e sentido estica a mente tanto para cima, em verdades abstractas e no reino da liberdade, compaixão e humanidade, como para baixo, em sensualidade, interesse próprio e no reino da natureza. 

A mente inferior é necessária à superiores, que dela depende para a nutrição, segurança física e princípios básicos da sociedade. No entanto, a dinâmica é marcada por uma hierarquia: os sentidos podem evoluir para a razão, mas as verdades da razão não são transformadas de forma semelhante pelos sentidos e pelos impulsos básicos. 
A posição intermédia, gerada pela díade oposta de sentidos "abaixo" e razão "acima", é o entendimento, que é em parte um reflexo na mente humana do anseio da razão universal (ou Logos) após a ciência, arte e progresso social e em parte o esquema racionalmente auto-interessado que se estabelece para satisfazer os nossos desejos naturais. Com esta dinâmica, Coleridge sentiu que acabara por ordenar essas meias verdades do associacionismo, mostrando que elas só se podem manter na mente inferior.

Sem uma base de apoio nos níveis superiores da mente, os princípios passam agora dos caminhos do prazer e da mecânica da contiguidade para a liberdade, a criatividade e a busca de ideias. Esta mudança acontece no ponto no centro do modelo de mente de Coleridge, onde as nossas vidas são equilibradas entre a sensação que se estende até à natureza e a razão que se estende até às ideias. Tudo o que acontece na história humana e natural ocorre entre estes pólos, com as partes familiares da nossa vida a agruparem-se em torno do entendimento comum, no meio, onde encontramos conforto em conceitos suportados por sensações "de baixo" e agitados por ideias "acima".

A teoria das ideias de Coleridge conduziu a uma filosofia onde a noção de matéria em si foi retida, mas reformulada de uma maneira que se opunha à visão mecânica que via o Universo como nada mais do que uma rede de mera matéria. Nos relatos materialistas mais radicais, mesmo a energia e as forças são supostamente redutíveis à matéria. Contra isto, Coleridge desenvolveu uma filosofia de ideias como poderes que viam a matéria surgir de forças opostas, forças que surgem de poderes, poderes e leis como o lado objectivo das ideias e ideias como residindo eternamente na razão cósmica, ou Logos, a mente de Deus.

A filosofia de ideias de Coleridge contrariou a visão do Universo como "um imenso amontoado de pequenas coisas".

A sua filosofia ganhou uma abrangência para além da psicologia e da filosofia da mente à medida que as suas indagações avançavam sobre a cosmologia e a metafísica da matéria. Ao longo da sua vida, Coleridge procurou uma visão unificada da realidade que fosse ao mesmo tempo corporal e espiritual. Como ele escreveu numa carta em Outubro de 1797:
frequentemente todas as coisas parecem pouco - todo o conhecimento, que pode ser adquirido, brincadeira de criança - o próprio universo -  um imenso monte de pequenas coisas? - Só posso contemplar partes e as partes são todas pequenas - ! - A minha mente sente-se como se tivesse sofrido para contemplar e saber algo grande - algo único e indivisível - e é apenas na fé disto que rochas ou cascatas, montanhas ou cavernas me dão a sensação de sublimidade ou majestade! - Mas nesta fé, todas as coisas falsificam o infinito!
Ao longo das três décadas e meia seguintes, Coleridge desenvolveu a sua filosofia das ideias que contrariava a visão do Universo como "um imenso monte de pequenas coisas" e substituiu-o por um cosmos de ideias, poderes e forças que dão origem ao mundo material. 
Desta forma, acabou por fornecer a sua alternativa ao materialismo mecanicista, exposto em diferentes graus por Galileu, Descartes, Locke e Newton, que ele via como removendo demasiadas "propriedades positivas" do mundo, que então, abstraído em mera "figura e mobilidade", se torna "uma máquina sem vida rodopiando pelo pó da sua própria Moagem".

Em vez de rejeitar o associacionismo na mente e o materialismo no cosmos, Coleridge rejeitou antes os seus extremos abjectos. O poeta-filósofo foi aplaudido por corrigir o que via como "meias verdades" perigosas, mantendo-as dentro de um âmbito mais amplo e equilibrado. Coleridge nem sequer rejeitou totalmente o utilitarismo, porque mesmo aqui procurou o que ele tinha de verdade e percebeu que este merecia um lugar limitado dentro do todo. A sua abordagem, nas suas palavras, abraçou a inclusão, não a exclusão:
Excluir a Utilidade? Não. O meu Sistema de Filosofia Moral não exclui nem repousa nela.
Coleridge corrigiu o que ele via como meias verdades perigosas - de ambos os lados das questões que encontrou - retendo o que nelas havia de valioso dentro de uma visão mais ampla e equilibrada:
O meu sistema ... é a única tentativa que conheço de reduzir todos os conhecimentos a uma harmonia. Ele ... mostra ... como aquilo que era verdade no particular em cada coisa... se tornou um erro, porque era apenas metade da verdade.
Convenceu muitos dos seus contemporâneos britânicos, empíricos e utilitaristas, dos perigos de compreender tudo apenas mecanicamente, incluindo a mente e a própria humanidade. Com estes métodos, Coleridge alcançou não só uma filosofia espantosamente ampla e holística de grande riqueza e alcance intelectual, mas também forjou uma síntese brilhante dentro das guerras culturais do seu tempo, que podemos observar ainda hoje.

(tradução minha)

January 31, 2021

Para pensar: Tornar o Mundo Indisponível ?

 


Hartmut Rosa: "Um mundo completamente sob controlo torna-se mudo, morto e aborrecido"

Hartmut Rosa é o convidado de Les Matins e padrinho da Noite das Ideias 2021. O sociólogo alemão, um dos mais importantes sociólogos do nosso tempo, é também filósofo, professor na Universidade de Jena e autor de Tornar o Mundo Indisponível publicado em 2020 por La Découverte.

Hartmut Rosa é acima de tudo o pai do conceito de "ressonância". Então como é que este conceito ressoa com a situação sem precedentes que estamos a atravessar? 

Teorias da conspiração para conquistar o mundo.
Infelizmente sempre tivemos teorias da conspiração em todo o mundo, mesmo antes do coronavírus. Penso que estes movimentos se tornaram mais fortes porque existe uma desconfiança generalizada a nível mundial em relação a este vírus.

As pessoas sentem que já não se pode confiar no mundo, já não se pode respirar livremente e não se sabe se a pessoa ao seu lado não o está a infectar com este vírus.

Penso que a relação com o mundo da modernidade como um todo entrou numa crise. Esta crise tem uma dimensão que é também política, uma vez que as pessoas sentem que já não deixam vestígios no mundo e na história. Chamo a isto um sintoma de alienação política e o oposto é a ressonância, a relação com o mundo em que se pode ouvir a própria voz.

Controlar o vírus
As pessoas sentem que as coisas que estão a enfrentar estão completamente fora do seu controlo. Nos meus livros falo de "fora de controlo". Compreendo que a exigência da modernidade, ou melhor, a sua ambição, é tornar a vida disponível. A vacina é então uma tentativa de controlar este vírus.

O indivíduo percebe que é completamente impotente e não tem qualquer influência sobre a política. Não se pode ter impacto na forma como a vacinação é preparada, nem na investigação científica, nem na forma como a vacina irá actuar no organismo. ...As teorias da conspiração são uma tentativa de assumir o controlo, pelo menos intelectualmente, tentando identificar os culpados e apontando os dedos aos responsáveis.

Um mundo indisponível
A tese que defendo é que na sociedade moderna tentamos ter o mundo ao nosso alcance, disponível, controlá-lo com a ciência e os meios técnicos à nossa disposição e também queremos regular este mundo politicamente.

Mas há uma dupla indisponibilidade: a primeira é que um mundo sob controlo deixa de falar connosco: é um mundo silencioso e aborrecido. ...] É impossível tornar o mundo disponível e vivo ao mesmo tempo.

Por outro lado, quando queremos controlar tudo, a indisponibilidade regressa como um monstro. Vemos isto na nossa relação com a natureza: tentámos controlar completamente a natureza e agora ela está a tornar-se hostil para nós com, por exemplo, o aquecimento global.

A minha tese é a seguinte: temos uma má relação com a indisponibilidade do mundo. ... Penso que o coronavírus é um símbolo disso. É um monstro de indisponibilidade: não o controlamos cientificamente, não o controlamos medicamente, não o podemos regular politicamente e não o podemos ver, não o podemos cheirar.

Repensar a modernidade após uma crise
A refundação do mundo após uma crise é algo que acontece regularmente ao longo da história e esta refundação ocorre muito frequentemente após uma crise. ...] Capitalizamos a experiência negativa que acabamos de ter durante a crise e tentamos encontrar soluções.

Auschwitz não é um regresso a uma forma arcaica pré-moderna, um resquício da barbárie. É mais uma barbaridade produzida por uma lógica de modernidade, uma lógica de disponibilidade total. ...] Esta catástrofe é uma consequência da modernidade. Por outro lado, sobre o vírus há uma discussão sobre se o vírus foi produzido pela nossa crescente invasão da natureza, pela forma como estamos a empurrar para trás os espaços naturais.

O vírus representa uma variação da modernidade, quando há um problema entre a natureza e a modernidade há este tipo de fricção que aparece. O coronavírus é um indicador de uma má relação com o mundo, que era também o Shoah.

Actualmente, a derrota do vírus requer mais modernidade. Em princípio, isto deveria convidar-nos a pensar noutras caixas que não "mais" ou "menos", mas numa lógica do outro, da diferença. Talvez precisemos de outra modernidade, numa sociedade transmoderna. Precisamos de uma organização social cujo único objectivo não seja a aceleração ou o desempenho.