A falta de professores em Portugal não é novidade. É uma ferida aberta há anos, diagnosticada em relatórios, debatida em seminários, usada como bandeira em campanhas. Sabemos o que está a acontecer: o envelhecimento da classe docente, a falta de atratividade da profissão, a burocracia sufocante, os salários pouco competitivos e o constante empurrar de responsabilidades.
O que talvez nem todos saibam — ou que poucos têm coragem de dizer — é como esta crise vai sendo discretamente resolvida. Não com medidas estruturais. Não com investimento. Mas com a abertura de uma porta giratória, onde os alunos saem do ensino público e entram em massa no Ensino Privado, sobretudo nas escolas profissionais privadas.
Essas escolas — que nascem como cogumelos — apresentam-se como resposta educativa, mas funcionam, na prática, como estruturas empresariais focadas na rentabilidade. E é aqui que o sistema se revela perverso: por cada turma que sai da escola pública, o Estado respira. Menos docentes para contratar, menos horários para organizar, menos protestos para ouvir. A pressão desaparece… mas não a responsabilidade.
O ensino público perde alunos — e com eles, perde também professores, recursos e autonomia. Já estas entidades ganham um produto valioso: o número de inscritos. É ele que alimenta as candidaturas a fundos nacionais e europeus, que permite manter a máquina a funcionar. O critério não é a qualidade da educação. É o preenchimento dos requisitos administrativos.
Neste ambiente, a figura do professor é distorcida. As contratações são feitas ao sabor da conveniência, sem olhar a qualificações específicas, experiência ou adequação pedagógica. Quem aceita entra num regime laboral precário, com horários pesados e salários pouco transparentes. Os assistentes operacionais são reduzidos ao mínimo. O objetivo é simples: cortar custos e maximizar o retorno financeiro. E, ironicamente, esse retorno é garantido com verbas públicas — pagas por todos nós.
Lamentavelmente, a Escola, que devia ser um espaço de desenvolvimento humano, científico e ético, é aqui transformada numa linha de montagem de diplomas. Perde-se a vertente pedagógica, abdica-se da exigência, esvazia-se o sentido da missão educativa — tudo em nome da rentabilidade. Os lucros destas entidades são por vezes milionários. Mas à custa de quê? De salários baixos, de condições de trabalho degradantes e de uma enorme perda de qualidade.
E mais grave ainda: em certos contextos, estas instituições tornam-se instrumentos de legalização para cidadãos estrangeiros. Não há aqui verdadeira integração nem projeto educativo. Há apenas a formalização de uma inscrição, o registo de uma presença, e mais um número para fechar a candidatura a financiamento.
É um sistema que vive da aparência e da ausência de escrutínio. Enquanto os papéis estiverem certos, ninguém faz perguntas. E quando alguém ousa fazê-las, a resposta é quase sempre a mesma: “Está tudo legal.”
Mas a legalidade não pode ser desculpa para o vazio pedagógico, nem para a desresponsabilização do Estado. O que está em causa é mais do que o futuro da escola pública. É a dignidade da profissão docente, é o direito à educação com qualidade, é a ética do próprio sistema.
Importa também deixar claro que a passagem de alunos para o setor privado — em especial para escolas profissionais financiadas — não pode servir como fuga estratégica do Governo para camuflar a crónica falta de professores. Trata-se de uma transferência encapotada de responsabilidades: o Estado sacode a pressão, mas continua a pagar. A diferença é que agora paga a grupos económicos que operam como empresas, onde o lucro se sobrepõe à pedagogia. É um expediente orçamental disfarçado de liberdade de escolha — e, nesse processo, a Escola deixa de ser um lugar de formação e passa a ser um ativo de rentabilidade.
Porque uma escola que abdica do rigor não está apenas a falhar com os seus alunos — está a falhar com a sociedade. Está a ensinar que basta parecer, que basta cumprir no papel, que basta aparecer na fotografia certa. E quando se normaliza o facilitismo, o resultado nunca é neutro: forma-se a próxima geração sem exigência, sem consciência, sem referências. Não se está a formar — está-se a libertar para o mundo gente despreparada, ingénua ou, nalguns casos, perigosamente astuta.
E o mais inquietante é que o próprio Estado tem interesse nisto. Ao empurrar os alunos para estas escolas, sacode para fora a responsabilidade de resolver a falta de professores. Mas fá-lo canalizando dinheiro público para entidades que operam com lógicas privadas e sem o mínimo escrutínio pedagógico. Substitui-se o dever de garantir educação por contratos de fachada. Troca-se a missão pedagógica por gestão orçamental. O Governo preparava-se para abrir colégios em zonas carenciadas de Professores (parece que já se esqueceram dos GPS).
É impossível não notar o contraste de, por exemplo, quando os sindicatos da educação abriram telejornais quando surgiu a hipótese de os professores deixarem de ter acesso aos routers fornecidos pelo Ministério. Falamos de um custo simbólico, facilmente absorvível por qualquer docente, e ainda assim assistiu-se a uma onda de indignação mediática: comunicados, manchetes, declarações veementes. Mas quando o que está em causa é a dignidade da escola, a substituição do rigor por negócio, a descarada manipulação de um modelo educativo às custas dos professores e dos alunos — aí, o silêncio é ensurdecedor. Onde estão os megafones agora? O que se passa é grave. É estrutural. E exige mais do que ruído pontual: exige coragem, visão e verdade.
Resta saber se os sindicatos estão a ver o verdadeiro problema. Ou se também eles já entraram, esperemos que sem querer, nesta porta giratória. E se os próprios Professores também estão a ter perceção deste enredo.
Carlos Silva Maia
By arlindovsky