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May 16, 2025

Um artigo escrito de um ponto de vista... antigo

 



Sim, estou completamente de acordo que o programa, Para além do Cérebro, não devia passar na TV pública, pois tenta passar por conhecimento científico o que não o é e, dirigindo-se a um público pouco informado sobre as ciências e sobre a filosofia das ciências, induz em erro. Porém, não concordo inteiramente com o tom do artigo que reduz o conhecimento científico a algumas ciências experimentais e exactas, fazendo equivaler as ciências sociais e humanas (chama-lhes humanidades) à religião.

Penso mesmo que este tipo de cientismo é uma das causas do recrudescer de alguns veios de exploração do conhecimento que pareciam ter morrido no século XX, paralelamente ao desenvolvimento das ciências experimentais e exactas.

A realidade é muito complexa e o seu conhecimento não se reduz às ciências experimentais como a Física, a Química e a Biologia, ou exactas - a Matemática. A Física, por exemplo, está tão desenvolvida que atingiu o ponto de ter teorias como, 'os múltiplos universos'; 'os buracos brancos' (se há buracos negros porque não haver brancos?); o universo ser um holograma; o universo ser uma simulação de um universo mais avançado, possivelmente digital (a ideia do filme Matrix); o emaranhamento quântico; não há matéria e nós é que criamos o mundo material com as nossas percepções e outras ainda mais estranhas, não reprodutíveis em nenhum laboratório.

A 'Ciência' não é um termo unívoco e pode ser entendido em vários sentidos. No seu sentido mais lato, a Ciência é um conhecimento com um corpo formado, sistematizado e aceite ao longo do tempo e um campo de investigação próprio. A História, a Economia, a Psicologia, etc. não são ciências no sentido experimental (a Psicologia é em parte) em que fala Marçal, mas são ciências naquele sentido lato do termo e não podem equiparar-se a uma religião. A Matemática, por exemplo, não se comporta como as outras ciências experimentais a que Marçal se está a referir e, no entanto, as outras ciências não existem sem ela, porque é ela que dá exactidão e rigor às ciências a que Marçal se refere - uma ideia e uma construção, como ele deve saber, da Filosofia. A Lógica, sem a qual não há ciências no sentido a que se refere, é Filosofia. A Língua, que faz parte das Humanidades, não existe fora de uma estrutura conceptual - uma organização arquitectónica, lógica (matemática) do cérebro.

Portanto, 'A Ciência' no sentido em que Marçal fala não existe. Existem, 'as ciências' e a sua definição é extremamente difícil e complexa. Para mim, seria mais importante perceber porque é que as ciências experimentais, que tanto desenvolvimento, eficácia e utilidade trouxeram ao mundo, estão numa crise de credibilidade. Saber a razão, seria mais útil para lutar contra a pseudo-ciência.

Em parte, penso, deve-se ao cientismo, esta ideia de reduzir todo o conhecimento válido a 3 ou 4 ciências e arrumar todos os outros conhecimentos na categoria de crendices. 

A ciência, no sentido em que fala Marçal, é inter-subjectiva, não tem critério de Verdade e todas as ciências, antes de o serem no sentido em que Marçal fala, tiveram um período de pré-ciência e é nisso que estas pseudo-ciências se apoiam para tentarem validar-se. Muito antes de sabermos acerca de campos magnéticos já havia instrumentos que os usavam para a orientação espacial e, portanto, sabíamos que havia uma força ou forças invisíveis a actuar sobre a matéria. Daí até sabermos exactamente o que são e como funcionam, passou muito tempo. 

Por conseguinte, estando de acordo com Marçal acerca da imprudência da TV pública passar programs de desinformação, não concordo com o modo como o assunto é argumentado aqui neste artigo. E a argumentação, não sendo uma ciência exacta ou experimental, é um conhecimento fundamental na escolha dos caminhos que consideramos válidos para percorrer e explorar, inclusive nas ciências de que fala Marçal.



Não existe uma espiritualidade científica

Estreou-se na RTP1 a série documental Para além do Cérebro, sendo o título do primeiro episódio Ciência e espiritualidade. Por que razão a televisão pública deu este espaço à pseudociência?

David Marçal

A ciência é a nossa melhor forma de conhecimento para responder às perguntas sobre o mundo, que são passíveis de elucidar através da observação, da experimentação e do raciocínio lógico. Mas nem todas as questões podem ser esclarecidas dessa forma. Qual é o nosso propósito? Haverá uma vida após a morte? Deus existe? Tais inquietações são do domínio da espiritualidade. Essa dimensão do ser humano, mesmo que em diálogo com o mundo, é interna e pessoal, não podendo ser validada pela ciência. Apesar dessa impossibilidade, na segunda metade do século XX surgiu no Ocidente o movimento dito New Age (Nova Era), que procura uma alegada espiritualidade de base científica. Tal tentativa não passa de pseudociência, como irei discutir neste ensaio que faz parte da série “Como Perder Amigos Rapidamente”.

Estreou-se na última segunda-feira, na RTP1, a série documental Para além do Cérebro, sendo o título do primeiro episódio Ciência e espiritualidade. A ideia central, enunciada logo no início por Leanna Standish, apresentada como neurocientista, é a de que a ciência tem adoptado o que ela chama uma “perspectiva materialista”, esquecendo-se da dimensão imaterial do mundo e do ser humano. Leanna Standish, que na sua página no site de uma faculdade norte-americana de medicina neuropática se apresenta como naturopata oncológica, surge de bata branca, procurando dar a imagem estereotipada de uma cientista.

A crença numa dimensão imaterial do ser humano com a qual se pode interagir, designadamente para curar doenças, não é nova. Chama-se vitalismo e tem assumido, ao longo da história, várias formas. Recentemente o vitalismo pré-científico tem sido embrulhado com palavras da ciência, sendo com alguma frequência abusivamente associado à física quântica, o que dá muito jeito, porque a maior parte das pessoas não sabe bem o que esta é.

Desta estranha mistura entre crença e ciência faz também parte a alegação de que é possível alterar a realidade através da consciência. Dois dos entrevistados são Dean Radin e Roger D. Nelson, arautos de longa data dessa causa. Ambos foram associados à iniciativa Orgasmo Global pela Paz, que tem ocorrido esporadicamente desde 2006.

(...)

A série documental Para além do Cérebro, que faz lembrar outros na mesma linha, como What the Bleep Do We Know!?, de 2004, não passa de um desfile de argumentos de autoridade – uma coisa é verdade porque pessoas muito importantes, algumas de bata branca, dizem que é verdade. Tal é uma marca inequívoca da pseudociência. A ciência não se baseia na palavra de pessoas importantes, mas sim em provas reprodutíveis, que são escrutinadas por outros cientistas.

Para além da ciência, há outros saberes que nos podem ajudar a viver melhor, incluindo as artes, as humanidades, a religião, etc. Mas essas áreas não podem ser confundidas com a ciência. De resto, uma espiritualidade que procura sentido na ciência é uma espiritualidade fraca, que se afasta da sua essência. Uma questão óbvia é: por que razão a televisão pública resolveu dar este espaço à pseudociência, contribuindo para espalhar desinformação, quando dá tão pouco à ciência? A RTP, ao escolher a pseudociência em vez da ciência, fugiu à sua missão de serviço público.

Bioquímico e divulgador de ciência

February 23, 2025

O fosso entre as Humanidades e as Ciências Naturais é muito evidente nas escolas

 


Talvez não se veja tanto nas universidades onde os departamentos estão separados, cada um em sua torre e alguns até têm restaurantes e bares separados. Para além disso, os alunos estão separados por departamentos e, em geral, não têm de interagir uns com os outros no dia-a-dia, mas nas escolas os espaços são comuns e os mesmos alunos têm aulas de disciplinas de ambas as áreas e os professores têm de interagir uns com os outros no sentido da colaboração, para que os alunos possam evoluir na aprendizagem. Como estamos constantemente a falar uns com os outros, partindo de perspectivas diferentes, essa clivagem nota-se muito.

Os professores das Humanidades estão a leste dos conteúdos e metodologias das Ciências Naturais e os professores das Ciências Naturais estão a leste das metodologias e conteúdos das disciplinas de Humanidades que entendem como cultura geral, mais ou menos inútil e sem nenhum carácter de verdade e, muito menos, de utilidade.

A primeira vez que me dei conta de que os professores de áreas das Ciências Naturais não faziam a mínima ideia do que é o currículo da Filosofia, foi uma vez, há dezenas de anos, em que um colega, falando de um filme qualquer disse, virando-se para mim, vocês [da Filosofia] é que devem saber disso quando falam de amor e de amizade". Hã...? What?? 

Há pouco tempo, falando de um assunto qualquer com dois colegas de uma área das Ciências Naturais, disse, a propósito de algo que um deles disse, 'isso é como A Letra Escarlate aplicada aos dias de hoje'. Ficaram a olhar para mim. 'O que é isso da Letra Escarlate?' Fiquei a olhar para eles: ' A Letra Escarlate, aquele clássico da Literatura Americana'. 'Nunca ouvi falar', foi a resposta de um deles. Infelizmente, saiu-me pela boca fora, 'que ignorância', porque ficou ofendido, mas a questão é que, uma pessoa pode nunca ter lido Charles Dickens, mas nunca ter ouvi falar dele é uma grande alienação cultural. E quem diz Dickens diz, A Divina Comédia, o Fausto ou A Letra Escarlate. É como nunca ter ouvido falar em A Teoria da Relatividade de Einstein.

Acredito que, simetricamente aos colegas das Ciências Naturais que nunca ouviram falar do Empirismo, embora de posicionem nele epistemologicamente, a maioria dos professores de Humanidades nunca ouviu falar da segunda Lei da Termodinâmica como diz Gordon Gillespie no artigo do post anterior.

Até aos dias de hoje isso continua e ouvimos frequentemente os colegas das áreas das Ciências Naturais dizer que deve-se dar primazia às disciplinas dessas ciências (nas quais incluem a Matemática que, no entanto, não funciona com os mesmos pressupostos e não é uma Ciência Natural, experimental, mas nem pensam nisso) porque as Humanidades são apenas 'cultura geral'.

Os alunos vêm doutrinados nessas falsas ideias e, aliás, quanto mais motivados estão para o estudo das Ciências Naturais, mais se opõem a ter de estudar Filosofia porque "não serve para nada, dado que querem ser biólogos ou engenheiros ou médicos", etc. e não precisam de Filosofia para isso, nem de outras Ciências Humanas. 

Dá um imenso trabalho desmontar esses preconceitos ignorantes que trazem interiorizados. 

Hoje em dia, como a Lógica Formal, que era ensinada na Matemática, passou a ser ensinada na disciplina de Filosofia, o que está certo, porque a Lógica Formal é um pressuposto do raciocínio formal e não uma área específica da Matemática, os alunos estranham imenso e alguns queixam-se de ter de "aprender Matemática na Filosofia." Embora, a Lógica seja trabalhada na Filosofia de modo diferente do que é na Matemática, porque nós leccionamos a Lógica Proposicional Clássica mas aplicamo-la ao discurso natural porque o interesse é os alunos perceberem que o discurso natural e o raciocínio que lhe subjaz têm uma estrutura lógica que deve ser respeitada e que passem a respeitá-la no seu pensamento e discurso.

Há uma grande ignorância mútua entre os professores das Ciências naturais e das Humanidades, sendo que os primeiros entendem que as suas áreas são verdades provadas e que os segundo são conversa vaga de cultura geral inútil. A disciplina de Filosofia é uma das poucas, senão a única disciplina do currículo escolar que faz, explicitamente, essa ponte.

Uma das pessoas, no nosso país, que muito contribuiu para o alargamento deste fosso foi o ministro da educação, Nuno Crato, ele mesmo defensor de que as Humanidades são apenas uma "coisa romântica", como o ouvi dizer numa conferência na Faculdade de Ciências de Lisboa, um ano antes de ser ME - portanto, uma área sem grande utilidade. Deve-se-lhe a ideia de dar imensas horas do currículo à Matemática e ao Português (apenas por ser a nossa língua), sacrificando outras disciplinas que em seu entender, são menores, como a História, a Geografia e outras. Uma lástima.