Talvez não se veja tanto nas universidades onde os departamentos estão separados, cada um em sua torre e alguns até têm restaurantes e bares separados. Para além disso, os alunos estão separados por departamentos e, em geral, não têm de interagir uns com os outros no dia-a-dia, mas nas escolas os espaços são comuns e os mesmos alunos têm aulas de disciplinas de ambas as áreas e os professores têm de interagir uns com os outros no sentido da colaboração, para que os alunos possam evoluir na aprendizagem. Como estamos constantemente a falar uns com os outros, partindo de perspectivas diferentes, essa clivagem nota-se muito.
Os professores das Humanidades estão a leste dos conteúdos e metodologias das Ciências Naturais e os professores das Ciências Naturais estão a leste das metodologias e conteúdos das disciplinas de Humanidades que entendem como cultura geral, mais ou menos inútil e sem nenhum carácter de verdade e, muito menos, de utilidade.
A primeira vez que me dei conta de que os professores de áreas das Ciências Naturais não faziam a mínima ideia do que é o currículo da Filosofia, foi uma vez, há dezenas de anos, em que um colega, falando de um filme qualquer disse, virando-se para mim, vocês [da Filosofia] é que devem saber disso quando falam de amor e de amizade". Hã...? What??
Há pouco tempo, falando de um assunto qualquer com dois colegas de uma área das Ciências Naturais, disse, a propósito de algo que um deles disse, 'isso é como A Letra Escarlate aplicada aos dias de hoje'. Ficaram a olhar para mim. 'O que é isso da Letra Escarlate?' Fiquei a olhar para eles: ' A Letra Escarlate, aquele clássico da Literatura Americana'. 'Nunca ouvi falar', foi a resposta de um deles. Infelizmente, saiu-me pela boca fora, 'que ignorância', porque ficou ofendido, mas a questão é que, uma pessoa pode nunca ter lido Charles Dickens, mas nunca ter ouvi falar dele é uma grande alienação cultural. E quem diz Dickens diz, A Divina Comédia, o Fausto ou A Letra Escarlate. É como nunca ter ouvido falar em A Teoria da Relatividade de Einstein.
Acredito que, simetricamente aos colegas das Ciências Naturais que nunca ouviram falar do Empirismo, embora de posicionem nele epistemologicamente, a maioria dos professores de Humanidades nunca ouviu falar da segunda Lei da Termodinâmica como diz Gordon Gillespie no artigo do post anterior.
Até aos dias de hoje isso continua e ouvimos frequentemente os colegas das áreas das Ciências Naturais dizer que deve-se dar primazia às disciplinas dessas ciências (nas quais incluem a Matemática que, no entanto, não funciona com os mesmos pressupostos e não é uma Ciência Natural, experimental, mas nem pensam nisso) porque as Humanidades são apenas 'cultura geral'.
Os alunos vêm doutrinados nessas falsas ideias e, aliás, quanto mais motivados estão para o estudo das Ciências Naturais, mais se opõem a ter de estudar Filosofia porque "não serve para nada, dado que querem ser biólogos ou engenheiros ou médicos", etc. e não precisam de Filosofia para isso, nem de outras Ciências Humanas.
Dá um imenso trabalho desmontar esses preconceitos ignorantes que trazem interiorizados.
Hoje em dia, como a Lógica Formal, que era ensinada na Matemática, passou a ser ensinada na disciplina de Filosofia, o que está certo, porque a Lógica Formal é um pressuposto do raciocínio formal e não uma área específica da Matemática, os alunos estranham imenso e alguns queixam-se de ter de "aprender Matemática na Filosofia." Embora, a Lógica seja trabalhada na Filosofia de modo diferente do que é na Matemática, porque nós leccionamos a Lógica Proposicional Clássica mas aplicamo-la ao discurso natural porque o interesse é os alunos perceberem que o discurso natural e o raciocínio que lhe subjaz têm uma estrutura lógica que deve ser respeitada e que passem a respeitá-la no seu pensamento e discurso.
Há uma grande ignorância mútua entre os professores das Ciências naturais e das Humanidades, sendo que os primeiros entendem que as suas áreas são verdades provadas e que os segundo são conversa vaga de cultura geral inútil. A disciplina de Filosofia é uma das poucas, senão a única disciplina do currículo escolar que faz, explicitamente, essa ponte.
Uma das pessoas, no nosso país, que muito contribuiu para o alargamento deste fosso foi o ministro da educação, Nuno Crato, ele mesmo defensor de que as Humanidades são apenas uma "coisa romântica", como o ouvi dizer numa conferência na Faculdade de Ciências de Lisboa, um ano antes de ser ME - portanto, uma área sem grande utilidade. Deve-se-lhe a ideia de dar imensas horas do currículo à Matemática e ao Português (apenas por ser a nossa língua), sacrificando outras disciplinas que em seu entender, são menores, como a História, a Geografia e outras. Uma lástima.