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May 09, 2024

Os miúdos entre os 8 e os 12 anos deixaram de ler livros - serão os futuros adultos, não leitores?

 



Não perdido num livro

Porque é que o “declínio até aos 9 anos” no prazer de ler das crianças está a tornar-se mais pronunciado, ano após ano.

por Dan Kois


Aqueles de nós que acreditam no poder dos livros preocupam-se constantemente com o facto de a leitura, enquanto atividade, estar a entrar em colapso, eclipsada (dependendo da época) pelo streaming de vídeo, pela Internet, pela televisão ou pelo hula hoop. No entanto, de alguma forma, a leitura persiste; vendem-se hoje mais livros do que se vendiam antes da pandemia. Embora as vendas de livros impressos tenham caído 2,6 por cento em 2023, ainda eram 10 por cento maiores do que em 2019, e alguns géneros - ficção para adultos, memórias - aumentaram as vendas no ano passado.

Porém, neste momento, há um sector que está em queda livre. Entre um certo público, os livros estão a morrer e, de forma alarmante, é exatamente o público cujo abandono da leitura pode, na verdade, pressagiar uma catástrofe para a indústria editorial - e para todo o conceito de leitura de prazer como uma busca comum.

Pergunte a qualquer pessoa que trabalhe com crianças do ensino fundamental sobre o estado da leitura entre os seus filhos e verá que as vendas de livros de “nível médio” - a classificação que abrange as idades de 8 a 12 anos - caíram 10 por cento nos primeiros três trimestres de 2023, depois de cair 16 por cento em 2022. 

É o único setor da indústria que está com desempenho inferior em comparação com 2019. Não houve um fenómeno de nível médio desde que o spinoff Dog Man do Capitão Cuecas de Dav Pilkey entrou em cena em 2016. Os novos títulos de nível médio estão a desaparecer das prateleiras da Barnes and Noble, dizem agentes e editores, devido a uma nova política empresarial centrada em livros que a empresa pode garantir que serão bestsellers.

O mais alarmante é que as crianças do terceiro e quarto ano estão a começar a deixar de ler por diversão. É o chamado “Declínio aos 9 anos” e está a atingir um ponto de crise para os editores e educadores. De acordo com um estudo da editora infantil Scholastic, aos 8 anos, 57% das crianças dizem que lêem livros por diversão na maioria dos dias; aos 9 anos, apenas 35% o fazem. 

Esta tendência começou antes da pandemia, dizem os especialistas, mas a pandemia acelerou as coisas. “Não creio que seja possível exagerar o quão perturbadora foi a pandemia para os leitores do nível média”, disse um analista do sector à Publishers Weekly. E todas as pessoas com quem falei concordaram que o súbito declínio da leitura por diversão está a acontecer numa idade crucial - a idade em que, de acordo com a tradição editorial, são feitos os leitores para toda a vida. “Se conseguirmos mantê-los interessados em livros nessa idade, isso fomentará o interesse pelos livros para o resto da vida”, disse Brenna Connor, analista da Circana, a empresa de estudos de mercado que gere a Bookscan. “Se não o fizermos, eles não vão querer ler livros quando forem adultos.”

O que está a causar o declínio? Podem ser os ecrãs, mas não são só eles. Não é que as crianças estejam subitamente a adquirir os seus próprios telemóveis aos 9 anos; dados de inquéritos recentes da Common Sense Media revelam que a posse de telemóveis se mantém estável, em cerca de 30%, entre as crianças de 8 e 9 anos. (Só quando atingem os 11 ou 12 anos é que a maioria das crianças americanas tem o seu próprio telemóvel). 

De facto, várias pessoas com quem falei mencionaram que a falta de telemóveis por parte dos alunos do ensino secundário criava um problema de marketing numa época em que ninguém em nenhuma editora faz ideia de como transformar um livro num best-seller, a não ser esperar que ele expluda no TikTok. “O BookTok é imperfeito”, disse Karen Jensen, bibliotecária juvenil e bloguista do School Library Journal, “mas na edição para adolescentes está a gerar grandes bestsellers, trazendo de volta coisas da lista de pendências. Não há nada do género neste momento para a faixa etária do ensino médio”.

“Não é que queiramos que estes miúdos tenham telemóveis, não é essa a solução”, disse-me com tristeza um executivo dos livros infantis. “Mas sem telemóveis, estamos a ter dificuldades em comercializá-los.”

Tradicionalmente, a descoberta de livros de nível intermédio acontece através dos pais, dos bibliotecários e - o que é mais importante - dos colegas. Durante o recreio, o seu melhor amigo diz-lhe que tem de ler o Clube das Amas e, pronto, está agarrado. Essa via de descoberta evaporou-se durante a pandemia e não voltou. “O atraso nas recomendações entre pares parece estar a prolongar-se”, afirma Joanne O'Sullivan, autora de livros infantis e repórter da PW. “As crianças estão de volta à escola, então porque não estão a partilhar recomendações entre si? Porque não estão tão entusiasmados com os livros como estavam antes da pandemia?”

Os especialistas com quem falei apontaram uma série de causas para a perda do gosto pela leitura por parte dos alunos do ensino médio. Sim, o tempo de ecrã é um problema: “Sabemos que o tempo de ecrã aumentou para muitas crianças durante a fase inicial da pandemia”, disse Connor, da Circana. “Parte desse aumento do tempo de ecrã ainda se mantém, apesar de a pandemia já ter passado.” Ou, como perguntou O'Sullivan, “Será que esta geração é apenas de bebés iPad?”

Mas outros também apontaram para a forma como a leitura está a ser ensinada às crianças num ambiente educativo que se centra cada vez mais nos testes. “Não culpo os professores por isso”, disse O'Sullivan, mas a transformação do currículo de leitura significa que “não há muito tempo para a descoberta e o prazer de ler”. 

A professora referiu uma mudança que eu também já tinha notado: A leitura na sala de aula deixou de encorajar os alunos a mergulharem num livro inteiro e passou a encorajar os alunos a lerem excertos e a responderem-lhes. “Mesmo na escola primária, lê-se, faz-se um teste e obtêm-se os pontos. Fazemos um registo de leitura e temos de ler tantos minutos por dia. Isso está realmente a tirar muito do prazer da leitura”.

É claro que até mesmo muitos professores e bibliotecários que se opõem à pressão curricular - que sonham em fomentar o gosto pela leitura sem objetivo e sem testes nos seus jovens alunos - estão a achar isso substancialmente mais difícil em 2024. “As bibliotecas estão a ser desfinanciadas”, disse O'Sullivan.
“Os bibliotecários estão a ser dispensados. Em alguns estados, os professores nem sequer podem ter uma biblioteca na sala de aula porque têm de se proteger da proibição de livros.” Como Jensen escreveu num post recente no seu blogue, não ajuda nada a indústria dos livros infantis quando “as salas de chat e as reuniões do conselho de administração das bibliotecas se enchem com um pequeno punhado de pessoas que chamam aos bibliotecários marxistas comunistas”.

Tudo isto se traduz num ambiente em que as crianças têm menos paixão pela leitura e, mesmo que de alguma forma se entusiasmem, é menos provável que descubram o livro que as manterá entusiasmadas.
O que é que os editores estão a tentar fazer em relação a isto? Estão a apostar a dobrar nos tipos de livros que têm sido êxitos para os leitores de nível intermédio nos últimos anos: as novelas gráficas e os romances ilustrados. 

Os romances gráficos, banda desenhada publicada sob a forma de livro comercial, são um ponto brilhante de vendas; no ano passado, representaram um quarto de todas as vendas desse nível etário. E os “romances ilustrados” tornaram-se cada vez mais populares desde o nascimento de Wimpy Kid de Jeff Kinney em 2007. Os livros Captain Underpants e Dog Man de Pilkey situam-se algures nesse modo de romance gráfico/livro ilustrado - blocos de texto simples seguidos de páginas de desenhos - e, cada vez mais, os editores procuram histórias leves e divertidas com imagens que possam ajudar os leitores incertos a dar o salto dos livros ilustrados para os livros para crianças grandes.

É ótimo que os miúdos que adoram estes livros - ou a banda desenhada do Homem-Aranha, ou a manga, ou ainda as “histórias” infantis sobre tragédias que aconteceram na minha vida - estejam a ler alguma coisa. De certeza! No entanto, não posso deixar de me preocupar com o facto de os tipos de livros que mudaram a minha vida entre os 8 e os 12 anos estarem a ficar para trás. Haverá lugar para o romance juvenil, sério e belo, em 2024? Será possível publicar Bridge to Terabithia na era do Capitão Cuecas?

Atualmente, parece ser um pouco mais difícil vender esse tipo de romance. “Os editores estão à procura de projectos altamente ilustrados, com menor número de palavras, um pouco mais de humor e aventura”, disse Chelsea Eberly, directora da agência de livros infantis Greenhouse Literary. Connor foi mais direta: “Talvez pensemos que um livro sobre um tiroteio numa escola é muito importante”, disse ela, “mas as crianças querem ler um livro divertido. É isso que os miúdos querem hoje em dia - querem divertir-se”.

“Se for um autor estabelecido e tiver uma reputação estabelecida” para livros sérios e sinceros, disse O'Sullivan, não terá problemas. Mas se for um novo autor que escreveu um livro de estreia calmo e orientado para os problemas, “talvez tenha de pensar em adaptar-se, de certa forma”. Um editor pode, por exemplo, sugerir a contratação de um ilustrador.

Um efeito secundário: Os autores consagrados com reputação estabelecida tendem a ser brancos. Os autores mais jovens, mais recentes, que estão a ser dissuadidos pelo mercado de escreverem não-comédias sem ilustração? São cada vez mais pessoas de cor, graças às tentativas de diversificação bem sucedidas da indústria nos últimos cinco a dez anos. O resultado pode ser um sistema de dois níveis de publicação de livros dignos de prémios, uma vez que os escritores mais velhos e mais brancos continuam a publicar romances comoventes e sensíveis, enquanto os autores mais jovens e mais negros são excluídos desse mercado específico. “Quando se dificulta a entrada de novos escritores, está-se a perpetuar os problemas que a edição para crianças tem tentado resolver”, disse Jensen.

Por seu lado, Eberly, a agente literária, não acredita que a oferta de livros sérios e “premiados” vá acabar. “Conhecendo os editores a quem vendo, esses são os tipos de livros que eles querem levar para o mundo”. O perigo, diz ela, não é que os editores deixem de publicar esses livros; é que as crianças não os consigam encontrar devido às proibições de livros e à pressão sobre bibliotecários e professores. Quais são os livros que enfrentam mais desafios por parte das livrarias? Os livros de autores negros e queer.

O que quase toda a gente com quem falei no sector editorial infantil concorda que resolveria o problema num instante é um novo êxito de bilheteira, o tipo de sucesso ao estilo de Harry Potter que faz subir todos os barcos. A indústria não pode depender do Capitão Cuecas para sempre, apesar de, como Connor observou, “o diabo trabalha muito, mas Dav Pilkey 
[um ilustrador de livros infantis] trabalha ainda mais”. Enquanto mais do que uma pessoa com quem falei expressou um medo existencial - e se o próximo êxito de bilheteira nunca chegar? E se estivermos na era pós-blockbuster infantil?", Eberly foi mais otimista. “Não me preocupo com o facto de não virmos a ter outro êxito de bilheteira”, disse. “Espero que a tenda se expanda. Sempre detestei quando só há um êxito de bilheteira, como o Harry Potter ou outro. Quero que haja mais tentpoles com espaço para acolher mais pessoas.”

April 29, 2024

Sabia que 96% dos livros vendem menos de 1.000 exemplares?

 


Ninguém Compra Livros

Elle Griffin

Em 2022, a Penguin Random House queria comprar a Simon & Schuster. De acordo com o processo, as duas editoras representavam 37% e 11% da quota de mercado e, combinadas, teriam condensado as cinco grandes editoras. O governo interveio e abriu um processo antitrust contra a Penguin para determinar se isso criaria um monopólio.

O juiz acabou por decidir que a fusão criaria um monopólio e bloqueou a compra de 2,2 mil milhões de dólares. Mas, durante o julgamento, os directores de todas as grandes editoras e agências literárias prestaram depoimento para falar sobre a indústria editorial e apresentar números, dando-nos uma visão interna da indústria. 

Todas as transcrições do julgamento foram compiladas num livro chamado The Trial (O Julgamento). Demorei um ano a lê-lo, mas finalmente resumi as minhas descobertas e retirei todos os pontos mais importantes.

Acho que posso resumir o que aprendi da seguinte forma: 
As cinco grandes editoras gastam a maior parte do seu dinheiro em adiantamentos de livros para grandes celebridades como Britney Spears e autores de franchise como James Patterson, e este é o grosso do seu negócio. Também vendem muitas Bíblias, best-sellers repetidos como O Senhor dos Anéis e livros infantis como A Lagarta Muito Faminta. Estas duas categorias de mercado (livros de celebridades e bestsellers repetidos) constituem a totalidade da indústria editorial e até financiam o seu projecto de vaidade: a publicação de todos os outros livros em que pensamos quando pensamos na edição de livros (que não rendem dinheiro nenhum e que normalmente vendem menos de 1.000 exemplares).

Sabia que 96% dos livros vendem menos de 1.000 exemplares?

Em suma:

Os bestsellers são raros

Os grandes adiantamentos vão para as celebridades

Os autores de franchising são a outra grande categoria

As editoras querem um público interno

Um grande público significa que as editoras não têm de gastar dinheiro em marketing

As editoras pagam pela colocação na Amazon

Mas mesmo os livros de celebridades não vendem...

Os livros não fazem dinheiro

O que importa é a lista de referências

A Amazon é a maior ameaça para o sector

Um “Netflix dos livros” levaria as editoras à falência

Os autores estão a tornar-se mais independentes

Mais uma editora que vai ao chão


April 23, 2024

Hoje é o dia do livro - Um livro que estou a ler

 


Este aqui. Para quem pensa, 'mais outro livro sobre imperadores romanos?' - bem, sim e não. Sim, é um livro sobre imperadores romanos mas não, não é um livro sobre a vida ou os escândalos de certos imperadores romanos. É mais sobre o que têm em comum que os fez ser imperadores que o que têm de diferente.

É sobre o que era preciso para se ser imperador, é sobre o mundo de Roma do ponto de vista do que se entendia por 'poder', é sobre as suas pessoas, tantos as que se sentavam à mesa do jantar imperial como as que vivam nas fronteiras; é sobre as suas mulheres, os seus médicos e tudo o que contribuiu para que se fizesse a Roma que todos querem ser e que forneceu o 'template' para o que se lhe seguiu e o que ainda somos.

A escritora, uma historiadora, é muito boa a escrever. Tem aquela rara habilidade de dizer muito em poucas palavras. Como nesta frase, que se aplica ao Mundo Romano pós-Augusto, mas que também se podia aplicar a certas épocas do mundo medieval.


Hoje é o dia do livro - book nerds

 




Hoje é o dia do livro - 50 shades

 




Hoje é o dia do livro - one of those days

 



Hoje é o dia do livro - me too

 




Hoje é o dia do livro - editores

 





March 25, 2024

Livros - 'Heresy'




O teu Jesus pessoal

No princípio havia muitos filhos de Deuses diferentes - o cristianismo ocidental triunfou não por destino mas por acidente.

por John Gray

Em 1950, enquanto viajava pelos pântanos do sul do Iraque, o explorador Wilfred Thesiger encontrou seguidores de uma religião esquecida. Acreditavam em Adão, Noé e João Baptista e os seus textos sagrados mencionavam Jesus, pelo que se presumia que eram "uma espécie de cristãos". No entanto, numa das suas escrituras, Jesus era considerado um feiticeiro fraudulento - "o Messias feiticeiro, filho do espírito da mentira que se fez passar por Deus". Noutra, João Baptista denuncia Jesus: "Mentiste aos judeus", diz-lhe ele, "e enganaste os homens e os sacerdotes".

A religião era a do Mandeísmo. Embora proibidos de fazer proselitismo ou de trazer armas, resistiram no actual Iraque durante cerca de 2.000 anos. Atualmente, a sua fé quase desapareceu na sua terra natal, vítima da ideologia neoconservadora que inspirou a invasão liderada pelos americanos em 2003. A maior parte dos 60.000 a 70.000 
mandeístas existentes no Iraque foram mortos, forçados a converter-se ao Islão ou fugiram para o estrangeiro. Restam apenas cerca de 3.000, embora a religião continue a ser praticada na diáspora global.

Relíquias vivas de um credo antigo, os mandeístas testemunham o caldeirão religioso em que o Cristianismo se formou. Como Catherine Nixey observa neste livro de uma vivacidade impressionante, os académicos falam agora não de "cristianismo primitivo" mas de "cristianismos primitivos". 

Em alguns, Pôncio Pilatos - mais tarde visto pelos cristãos como um relativista romano que lavou as mãos de Jesus e o enviou para a morte - foi canonizado como santo; ainda é venerado como tal na Igreja Copta Etíope. Noutros, as mulheres eram ordenadas bispos e Deus era representado como sendo do sexo feminino. Numa variante praticada pelos ofitas, uma seita cristã gnóstica, Jesus encarnava como uma serpente sagrada. Estes e muitos outros cristianismos foram reprimidos quando, em 380 d.C., uma única versão se tornou a religião do Estado romano sob o imperador Teodósio I.

Não houve nada de inevitável no surgimento do cristianismo que conhecemos. Como escreve Nixey:
"A forma de cristianismo que sobreviveu no Ocidente argumentou, durante séculos, que a sua vitória sobre os seus rivais era natural e predestinada. Não era nada disso. Outras formas de cristianismo e outras religiões antigas que se lhe assemelhavam muito, sobreviveram durante séculos noutros lugares. Se a história tivesse tido um rumo ligeiramente diferente, poderiam ter sobrevivido também na Europa. Mas não sobreviveram. Um tipo de cristianismo venceu no Ocidente e depois esmagou os seus rivais até à extinção. Uma única forma de cristianismo beneficiou da serendipidade e chamou-lhe destino. Não era. Tudo poderia ter sido simplesmente diferente".
Houve "muitos Jesuses, muitos Cristos - muitos deles inimaginavelmente estranhos para nós, hoje" - ao lado de outros magos que se assemelhavam a alguns desses Cristos. Por vezes, Jesus tinha um corpo físico; outras vezes, era uma aparição que não deixava pegadas. Houve um Jesus que advertiu os seus discípulos contra as "relações sexuais imundas" e lhes deu instruções para nunca terem filhos. Num dos relatos, um jovem Jesus zangado amaldiçoa um rapazinho, que fica murcho e deformado; mais tarde, Jesus amaldiçoa outro rapaz, que cai morto. Havia Jesuses que agonizavam na cruz e outros que não sofriam qualquer dor. Para além de diversos Jesuses, havia Apolónio, um filósofo grego do século I e milagreiro, por vezes chamado "o Cristo pagão".

Grande parte do caso de Nixey baseia-se nas revelações dos Manuscritos do Mar Morto. A Bíblia contém apenas quatro evangelhos, que nos deram a imagem recebida de Jesus. Mas há muitos outros, com títulos como o "Evangelho de Tomé" e o "Evangelho da Verdade", descobertos entre 1946 e 1956 nas grutas de Qumran, na margem noroeste do Mar Morto. Através destas fontes, torna-se claro que a visão estabelecida de Jesus, e a religião cristã tal como existe, é um acidente histórico derivado de fontes diversas.

Nixey fez o seu nome como uma historiadora declaradamente herética. Em The Darkening Age: The Christian Destruction of the Classical World (2017), o seu primeiro livro e um bestseller internacional, argumentou que os cristãos demoliram deliberadamente a civilização romana. Demonizando as religiões pagãs, desfigurando as suas estátuas e queimando as suas bibliotecas, as autoridades cristãs transformaram um regime pluralista que reconhecia muitos deuses num monólito repressivo que perseguia os dissidentes da única e verdadeira fé.

Esta história rompe com uma narrativa cristã de longa data, mas não foi particularmente herética durante séculos. É famoso o facto de, no final da sua História do Declínio e Queda do Império Romano, Edward Gibbon (1737-94) ter descrito o cristianismo como "o triunfo da barbárie e da religião". Membro do Parlamento entre 1781 e 1784, Gibbon foi um expoente do que mais tarde se chamou a interpretação Whig da História, segundo a qual a humanidade passava de um passado ignorante e supersticioso para um futuro esclarecido. Nesta visão, que no século XIX se tornou uma ortodoxia inglesa, o cristianismo foi um recuo cataclísmico no progresso humano. Curiosamente, numa época em que os cristãos são uma minoria cada vez mais reduzida no Ocidente e são activamente perseguidos em muitos países, esta visão continua a ser propagada pelos racionalistas.

Se The Darkening Age ensaiava o relato de Gibbon, Heresy pode ser lido como uma tentativa de fazer um balanço mais equilibrado. O paganismo pode ter sido mais tolerante do que o cristianismo, mas foi sobretudo a tolerância de uma indiferença insensível. A Roma pré-cristã, escreve Nixey, era "uma Roma mais rude, mais pobre, mais dura e mais brutal" do que a retratada nas elegias literárias à civilização clássica. Muitas das desumanidades da vida romana persistiram muito depois de o império ter sido cristianizado. No entanto, tinha havido uma mudança fundamental de valores, que Nixey ignora. 

Heresy não diz nada sobre a singularidade dos ensinamentos de Jesus e a revolução moral que trouxeram ao mundo clássico.

No seu estudo seminal Jesus the Jew: a Historian's study of the Gospels (1973), Geza Vermes, um dos primeiros académicos a examinar os Manuscritos de Qumran, identificou um Jesus histórico como pertencente a uma tradição de judaísmo carismático e questionou se poderia ser considerado o fundador do cristianismo. No entanto, Vermes reconheceu "a superioridade incomparável" deste Jesus. Sozinho entre os vários profetas do seu tempo, Yeshua - o nome original de Jesus em hebraico - subverteu as hierarquias do seu tempo e "tomou a sua posição entre os párias e os desprezados do seu mundo".

Com a sua conversão na estrada de Damasco, por volta de 40 d.C., Paulo transformou o profeta judeu no autor de uma religião global. A partir de então, o reconhecimento da igual dignidade de todos os seres humanos - por mais inconsistente que fosse a sua aplicação - passou a ser parte integrante daquilo a que se chamava a civilização ocidental. O liberalismo moderno era uma nota de rodapé de uma ideia cristã de salvação universal.

Entendida como uma aceitação de muitas formas de vida, a liberalidade era uma virtude pagã. Mas os miseráveis da terra não tinham qualquer valor intrínseco no esquema das coisas e certamente não lhes era atribuído o mesmo valor que aos cultos e poderosos. 
Não há qualquer referência à igualdade humana, mesmo como um ideal inatingível, em Platão ou Aristóteles. Os estóicos, como Séneca e Marco Aurélio, tinham como objetivo uma vida de autocontrolo e de deveres públicos, a fim de desempenharem o seu papel num Cosmos governado pela razão, mas pouco se preocupavam com a massa da humanidade. Epicuro, que ensinava uma variedade de hedonismo sem paixão, estava perfeitamente satisfeito a conversar com os seus amigos num jardim isolado, sem se importar com as multidões que sofriam para lá dos seus muros.

Nos tempos pré-cristãos, a civilização significava aprendizagem e filosofia, beleza e artes. Se o lazer necessário para usufruir destes bens exigisse uma casta de escravos, que assim fosse. Mas a escravatura, embora tolerada durante muito tempo na cristandade, era inerentemente problemática em termos de ética cristã, e foram cristãos como William Wilberforce (1759-1833) que estiveram na linha da frente da campanha pela sua abolição. Atualmente, não podemos conceber uma sociedade civilizada, por mais culta ou intelectualmente avançada que seja, que se baseie nessa instituição. A nossa ideia de civilização está indelevelmente marcada pelos valores judaicos e cristãos.

Nixey escreve que, sendo filho de pais que tinham sido, monge e freira antes de se casarem, "o catolicismo tinha-se instalado em mim como pó, caindo em sítios visíveis e invisíveis. Muito depois de ter deixado de acreditar, deparava-me com cantos do catolicismo na minha mente que tinham passado despercebidos e não perturbados durante anos". Uma dessas camadas de poeira pode ser a crença na redenção - a fé de que os seres humanos serão mais humanos e livres-pensadores quando o mito cristão for finalmente renunciado.

A autora de Heresia é, presumivelmente, ateia, tal como este crítico. No entanto, não posso deixar de achar incrível a fé racionalista de que um mundo melhor virá do banimento do teísmo e de todas as suas obras. Nenhum verdadeiro pagão poderia partilhar esta fé consoladora. 

Sob o jogo da dialética socrática, a mente pagã estava mergulhada no fatalismo trágico do drama grego antigo. Não havia um padrão redentor nos acontecimentos humanos. O que estava feito não podia ser desfeito, e nenhum acto de vontade humana podia moldar o futuro. Com a chegada do cristianismo, esta visão austera foi suprimida. A partir de então, com raras excepções, as alternativas à mensagem cristã foram histórias rivais de redenção.

A procura da salvação continua a animar o pensamento secular. À medida que o cristianismo foi recuando, as mentes mais avançadas voltaram-se para superstições seculares - cultos científicos ersatz como o materialismo dialético, a eugenia, o transumanismo e outros semelhantes. Ou então, contra a civilização que o cristianismo ajudou a criar, lançam mão de um ideal hiper-liberal de igualdade, originário do cristianismo, mas desprovido da sua visão da imperfeição humana. O mundo pós-cristão que está a nascer é um mundo de feias certezas impostas por uma vontade de poder. Os racionalistas evangélicos podem vir a lamentar o desaparecimento dos mitos de que troçam.

Heresy: Jesus Christ and the Other Sons of God
Catherine Nixey
Picador, 384pp, £25

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O livro mais recente de John Gray é The New Leviathans: Thoughts After Liberalism (Allen Lane).

January 20, 2024

10 conselhos de escrita de Nancy Kress - uma escritora que faz hoje anos





Nancy Kress é uma escritora de ficção, sobretudo de ficção científica.

Quem quiser ler um dos seus Contos mais premiados, Out of All Them Bright Stars, pode comprar esta colectânea de contos (clicar na imagem) e aproveitar para ficar a conhecer outros autores ou pode lê-lo online, o que se consegue com facilidade.

Para quem se interessa por escrever, aqui ficam 10 conselhos de escrita da autora:

1. Escreve. Depois, escreve outra vez. Depois mais um pouco. E mais. Não esperes pela inspiração; se escreveres com frequência suficiente, a inspiração acabará por chegar.

2. A ficção é acerca de coisas que estão 'lixadas'.

3. Escrever não é uma questão de inspiração, excepto para a ideia inicial. Escrever é uma questão de se sentar e fazer.

4. O erro que vejo com mais frequência é começar a escrever páginas de "contexto" expositivo. É muito melhor pôr logo as personagens em cena a fazer alguma coisa. O mais cedo possível.

5. O conflito é o local onde a personagem e o enredo se cruzam.

6. [A primeira cena deve] Estabelecer a voz e o tom, orientar os leitores no tempo e no espaço, iniciar um conflito ou sugerir um conflito futuro e - acima de tudo - oferecer ao leitor algo interessante: uma personagem intrigante, uma situação tensa, uma questão fascinante ou uma prosa deslumbrante.

7. Cada parágrafo deve cumprir dois objectivos: fazer avançar a história e desenvolver as personagens como seres humanos complexos.

8. Um epílogo, tal como um prólogo, é normalmente mais eficaz quando se encontra afastado no tempo, do local ou das personagens da história principal. Caso contrário, basta que seja o último capítulo.

9. A caraterização não está divorciada do enredo, não é uma camada de tinta que se aplica depois de a estrutura dos acontecimentos já estar construída. Pelo contrário, a caraterização é inseparável do enredo.
É preciso aprender a ser três pessoas ao mesmo tempo: escritor, personagem e leitor.

10. As personagens que mudam são aquelas que se alteram de forma significativa em resultado dos acontecimentos da sua história. Aprendem algo ou tornam-se pessoas melhores ou piores, mas no final da história não são as mesmas personalidades que eram no início. A sua mudança, nas suas várias fases, é chamada o arco emocional da história.

January 11, 2024

Je Ne Sais Quoi

 


O problema do conhecimento foi deslocado da casa de Deus para os departamentos relevantes da academia. Aqueles de nós que não estão no departamento certo ou na academia esperam e até pagam aos especialistas para saberem em nosso nome e transmitirem a informação de forma a podermos absorvê-la.

Mas o inefável é outro tipo de desconhecido. Não é simplesmente algo não conhecido. É experimentado pessoalmente mas não temos palavras para o dizer. Algo dos sentidos que nunca pode ser traduzido numa linguagem. Podemos vê-lo, ouvi-lo, saboreá-lo, tocá-lo, cheirá-lo, mas não conseguimos dizer exatamente o que é, nem a sua essência. Escapa à definição, embora esteja inevitavelmente presente. Amor e ódio à primeira vista, atração, repulsa, algo desejado, uma forma ou uma textura, um sabor subjacente ao óbvio, um indício ou um fantasma de algo que nunca se consegue identificar. 

O conhecimento, podemos tomá-lo ou deixá-lo para os outros, mas o inefável é uma afronta mais pessoal à nossa individualidade. Recusa-se a ser conhecido completamente. Pelo menos da forma como gostamos de conhecer as coisas, que é nomeando-as. I don’t know why I love you but I do ... What is this thing called love ... That old black magic has me in its spell ... Because he’s just my Bil... 

Sabemos, mas não conseguimos dizer. Está na ponta da nossa língua. Produz um desarranjo emocional e, no entanto, não o conseguimos definir. O inefável abala o mundo, diz Pascal: 
Quem quiser conhecer plenamente a vaidade do género humano, basta considerar as causas e os efeitos do amor. A sua causa é um je ne sais quoi ... E os seus efeitos são terríveis.
No seu fascinante livro, The Je Ne Sais Quoi in Early Modern Europe: Encounters with a Certain Something*, Richard Scholar (um nome que só poderia levar a uma vida em bibliotecas e à produção de volumes académicos) traça a frase desde a sua utilização inicial por Montaigne, antes de se tornar uma palavra em si mesma, para descrever a amizade entre ele e La Boétie: 
Para além de toda a minha compreensão, para além do que posso dizer sobre isto em particular, houve não sei que força inexplicável e fatídica que foi o mediador desta união. 
Já estava plenamente estabelecido quando Pascal a utilizou: 
Este je ne sais quoi, tão ligeiro que não pode ser reconhecido, abala toda a terra, os príncipes, os exércitos, o mundo inteiro. Se o nariz de Cleópatra fosse mais curto, toda a face da terra teria mudado. 
E depois morreu a morte da moda, quando, nos salões da sociedade polida de Luís XIV, o inexplicável se tornou o sem sentido, e o je ne sais quoi se transformou numa marca de qualidade entre a Qualidade: 
O galante, je ne sais quoi, que se difunde por todos aqueles que o possuem - nas suas mentes, nas suas falas e nas suas acções - é a coisa que completa as honnêtes gens, as torna amáveis e faz com que sejam amadas (Madeleine de Scudéry, 1684).
A partir daí, torna-se moribundo, uma afetação verbal que consegue uma existência prolongada, mas fantasmagórica, maneirista, à Noël Cowardwish.

Em 1671, Dominique Bouhours inclui Le Je Ne Sais Quoi como uma das suas conversas sobre temas literários e filosóficos em Les Entretiens d'Ariste et d'Eugène. Ele faz equivaler o je ne sais quoi a todos os conhecimentos ocultos. O desconhecido é para ser admirado e ficar por aí: Estes surtos ordenados de doença, estes tremores de calor e de frio e os intervalos durante uma longa doença não serão mais do que tantos je ne sais quoi? E o mesmo não acontece com o fluxo e refluxo das marés, a virtude do íman e todas as qualidades ocultas dos filósofos?

Mas, no mesmo ano, Rohault publicou o seu Traité de physique. Na sua recensão, a Royal Society elogiou a sua rejeição do je ne sais quoi como explicação satisfatória para o inexplicável: 
A matéria... é, segundo eles [os aristotélicos], uma coisa que não sei o quê, e a forma... outra que não sei o quê; como se dar um mero nome a uma coisa que não se conhece fosse suficiente para a tornar conhecida. 
Para os filósofos naturais, o je ne sais quoi é um refúgio para os ignorantes, um sítio para onde fugir para aqueles que não olham suficientemente para o mundo para encontrar a resposta para o que não é conhecido. Bacon, Galileu e Descartes rejeitaram o je ne sais quoi preternatural em favor de um exame científico da natureza. 

O estudo consciencioso da natureza ou da técnica sexual pode ou não fornecer a resposta às marés ou ao fascínio de determinadas mulheres, mas o pressuposto é que o dado por Deus não serve e que a resposta à questão existe mesmo que não possa ser encontrada ainda, ou por mim. Em todo o caso, o mistério das marés foi resolvido. A minha investigação ainda está em curso.

É claro que há a possibilidade de algumas coisas não terem respostas. Pode ser que, em certos domínios, só as perguntas interessem. 

Ainda nos falta uma resposta para a ligação emocional súbita. Há quem sugira que a inexprimível e misteriosa amizade de Montaigne com La Boétie era inexprimível precisamente porque o seu je ne sais quoi era uma evasão para essa outra evasão: o amor que não ousa dizer o seu nome. 

Porém isso pouco importa, porque, amizade ou amor, o mistério do reconhecimento do outro essencial permanece. Há uma sensação de que podemos chegar a algum lado se entendermos a amizade como um subconjunto da sexualidade, porque hoje em dia temos a noção de que a resposta pode estar na bioquímica. 

Montaigne e La Boétie eram compatíveis em termos feromonais. E assim que alguém descobrir a equação exacta da atração endócrina, o je ne sais quoi de Montaigne e dessas mulheres com um 'certo quê e um não sei que mais', estará disponível em latas de aerossol no Waitrose. É perfeitamente possível que, para além de um pequeno incómodo no fundo das nossas mentes - um cheiro ou um som que não conseguimos localizar - o inefável seja uma coisa do passado e que possamos apagar todos esses velhos je ne sais quoi e substituí-los por substantivos e adjectivos. Nessa altura, o mistério em si será o único mistério e todos nos sentiremos muito melhor.

Jenny Diski in lrb.co.uk (excertos)

January 08, 2024

'La Vida es Sueño'

 


Clotaldo 

(enternecido se ha ido

el rey de haberle escuchado.) (Aparte)


Como habíamos hablado

de aquella águila, dormido,

tu sueño imperios han sido;

mas en sueños fuera bien

entonces honrar a quien

te crió en tantos empeños,

Segismundo que aun em sueños

non se pierde el hacer bien.


La Vida es Sueño, Pedro Calderón de la Barca, José M. Ruano de La Haza, Madrid, Castalia, 2003 (excerto)

(La Vida es Sueño é uma peça de Pedro Calderón de la Barca, estreada em 1635 e pertencente ao movimento literário barroco. O tema central é a liberdade do ser humano para moldar a sua vida, sem se deixar levar por um suposto destino. O tema da liberdade versus determinismo era um dos temas Centris do humanismo barroco)



Traduzir uma cultura estranha

 


[...] we can’t know the exact words Moctezuma spoke to Cortés. It’s all an exercise of the imagination.


Edição inglesa, (tr. Natasha Wimmer).

Peguei no romance de Álvaro Enrigue sobre o encontro de espanhóis e astecas porque estava curioso com o título. Em espanhol, o livro chama-se Tu sueño imperios han sido - uma frase emprestada de um poema de beleza barroca que significa "os teus sonhos foram impérios". A sua tradução inglesa intitula-se You Dreamed of Empires, que se transforma, para o meu ouvido, em algo diferente.

Por isso, entrei em Dreamed of Empires já a pensar na tradução e na comunicação, bem como nos limites de ambas: ora, o romance debruça-se sobre esta questão.

O encontro entre Hernán Cortés e o imperador Motecuhzoma Xocoyotzin, ou Moctezuma, foi semelhante ao encontro de duas espécies alienígenas. 

Os espanhóis, como vencedores deste choque de civilizações, escreveriam mais tarde narrativas coroando-se a si próprios como os contendores superiores. Enrigue apresenta-nos duas sociedades que nos parecem muito distantes da nossa sensibilidade moderna, uma das quais - o império asteca - tem sido frequentemente reproduzida de forma pouco cuidada, com a sua complexidade desvanecida.

Esta complexidade interpõe-se entre nós e o passado. Por exemplo, usei a palavra "Azteca" num parágrafo acima para facilitar o reconhecimento, mas como o romance de Enrigue deixa claro, não existiu tal coisa como um "Império Azteca" - um termo que foi cunhado séculos depois da chegada dos espanhóis. Em vez disso, Cortés deparou-se com um conjunto de cidades-estado, três delas unidas numa poderosa confederação, a Tríplice Aliança. A joia da coroa destas três cidades, Tenochtitlan, era governada pelos Tenochca e era o reino de Moctezuma.

No México, o passado nunca está realmente terminado e os rancores são transportados ao longo dos séculos. Foi assim que o nome Malinche, que designava a intérprete e amante/escrava de Cortés, se tornou sinónimo de ódio a si próprio.

Cortés tinha dois intérpretes: a odiada Malinche - uma mulher de Olutla, hoje Veracruz, que tinha sido vendida como escrava e falava nahuatl e maia - e Gerónimo de Aguilar, um frade espanhol naufragado que também foi escravizado e aprendeu a falar maia. 

A dupla interpretava do espanhol para o maia e do maia para o nahuatl, convencendo assim um grande grupo de vassalos indígenas que estavam cansados de pagar tributo a Moctezuma e aos seus aliados.

A genialidade de Enrigue reside na sua capacidade de aproximar os leitores do emaranhado de sacerdotes, mercenários, guerreiros e princesas, acrescentando-lhes uma pitada de humor mordaz.

Os espanhóis que se deparam com a corte de Moctezuma ficam horrorizados com o fedor dos sacerdotes cobertos de sangue de sacrifícios humanos, enquanto os assíduos cortesãos de Moctezuma se queixam de que os homens cheiram a excrementos e a cães. Os sacerdotes têm nomes intermináveis, como Aquele que solta a chuva de palavras e governa as canções para que não sejamos como as flores e as abelhas que duram apenas alguns dias. O imperador passa os dias pedrado com cogumelos, cobiçando os cavalos dos estrangeiros como um adolescente petulante e crescido demais. Cortés não se apercebe de que os cortesãos lhe chamam "El Malinche", como se ele fosse uma extensão da sua intérprete e não o contrário. Afinal, são as palavras dela que eles entendem, não as dele. A tradutora Natasha Wimmer capta com mestria todo este capricho.

Ao mesmo tempo, esta comédia é uma comédia negra. Cortés e os seus homens são mercenários rudes que violam, saqueiam e assassinam sem qualquer escrúpulo. Vêm de um mundo caótico e perigoso, sobrevivendo através de uma mistura de desespero e crueldade. A majestosa e ordeira cidade de Tenochtitlan pode parecer mais amável à primeira vista, mas este é também um império que esmaga a sua oposição. 

Moctezuma é um governante caprichoso que executa cortesãos por violações mínimas do protocolo e que pode perder um reino inteiro por falta de um cavalo. Não há heróis, e mulheres como La Malinche, assim como a irmã do imperador, estão entre os poucos que podem vislumbrar as loucuras desses homens com o poder de preservar ou destruir civilizações.

Certamente algumas pessoas se queixarão da representação ficcional de Enrigue. O seu conhecimento desta época é meticuloso, mas toma liberdades, permite anacronismos, insere narrativas metaficcionais e parece divertir-se imenso a fazê-lo. 

Por outro lado, é ficção, e não podemos saber as palavras exactas que Moctezuma disse a Cortés. É tudo um exercício de imaginação.

No final, alguns significados perdem-se sempre na tradução, mas se não aconteceu assim, devia ter acontecido.

Moreno-Garcia

Edição original




November 28, 2023

Livros que fazem crescer as crianças



Estamos às portas do Natal o que é uma boa ocasião para oferecer um livro às crianças. Um livro que as faça crescer.

As crianças precisam de livros para crescer, mas não de quaisquer livros! Quando os livros não infantilizam os jovens leitores, quando respeitam a sua relação com o mundo, quando não os fecham numa forma de pensar "pré-fabricada", mas lhes dão as chaves para abrirem as portas da sua imaginação, então a leitura torna-se uma experiência única que contribui para o desenvolvimento do pensamento e da sensibilidade.

Joëlle Turin, especialista em literatura infantil, nesta 2ª edição de Ces livres qui font grandir les enfants, acrescentou um capítulo suplementar, Quelle(s) imagination(s)!

Se quer um guia com recomendações sobre que livros comprar para enriquecer as crianças, é este. Tem sugestão de mais de 90 autores e 120 álbuns, para várias idades, divididos por temas.para deleite das crianças e dos adultos que as acompanham, pais, educadores, mediadores... enfim, de todas as pessoas que as ajudam a crescer contando-lhes histórias. 

Seis grandes temas atravessam o livro: o jogo, o medo, as grandes questões filosóficas, as relações com os outros, os sentimentos e a imaginação. Os álbuns são analisados e descritos de forma muito cuidada, e Joëlle Turin estabelece sempre a ligação entre o texto e as ilustrações. O livro está repleto de ilustrações a cores.

Na infância, todas as questões, mesmo as filosóficas, são legítimas. O sentido da vida, para além do imaginário e dos devaneios, leva-nos a questionarmo-nos e a dizer: "Não posso viver sem mim próprio.

No capítulo, "Os outros e eu", mostra até que ponto os livros infantis actuais transmitem valores educativos contemporâneos baseados no amor, na confiança e no respeito. Em vez de moralizar, as respostas dos autores-ilustradores às tolices retratadas nos seus livros são criativas e imaginativas, do ponto de vista da criança.

As grandes alegrias e as pequenas tristezas do quinto capítulo destacam os sentimentos de solidão, raiva, ciúme, amor e amizade partilhados por todas as crianças.

Para  Joëlle Turin o "triângulo mágico": o livro, a criança e o adulto são unidos em torno de uma história que tornará a criança mais rica e mais forte por ter confrontado a sua vida com a dos seus heróis.

November 27, 2023

Livros interessantes - Os humanos fazem máquinas e as máquinas refazem os humanos




As alavancas que movem o mundo

O fabrico de máquinas tem sido uma parte central da história humana.

Por Sam Kean



O mecanismo interno de um relógio de bolso eduardiano. FOTO: PETER DAZELEY/GETTY IMAGES

O filósofo da ciência Daniel Dennett, autor de "Darwin's Dangerous Idea", lamentou uma vez que os seus pares não levassem a engenharia suficientemente a sério. "Há excelentes filósofos da física, filósofos da biologia, filósofos da matemática e até das ciências sociais mas "nunca ouvi ninguém neste domínio ser descrito como um filósofo da engenharia". Felizmente, cada vez mais filósofos "reconhecem que a engenharia alberga alguns dos pensamentos mais profundos, mais belos e mais importantes alguma vez feitos".

Este sentimento passou-me pela cabeça enquanto lia o encantador Nuts & Bolts: Seven Small Inventions That Changed the World (in a Big Way) de Roma Agrawal, uma tentativa de desmistificar as tecnologias do quotidiano e revelar o lado humano da engenharia. Agrawal é engenheira estrutural em Londres.

"Nuts & Bolts" faz um riff sobre a lista clássica de máquinas simples que talvez se lembre da escola primária. Seis dispositivos - a alavanca, a roldana, o plano inclinado, a cunha, o parafuso e a roda - que revolucionaram a vida humana ao permitirem que as pessoas superassem forças que de outra forma seriam intransponíveis e obtivessem rendimentos de trabalho muito superiores para um determinado contributo. 

Embora reconheça a importância dos seis canónicos, a Sra. Agrawal salienta que foram identificados pela primeira vez como tal no Renascimento e que se sentem "desactualizados e insuficientes" hoje em dia. Por isso, concebeu a sua própria lista actualizada, dividindo "Nuts & Bolts" em sete capítulos, cada um centrado numa das máquinas simples que movem o mundo de hoje - a lente, o íman, o prego, a bomba, a mola e a corda, para além da clássica roda.

Podemos discordar de algumas destas escolhas. (Porquê ímanes e não semicondutores ou fios, uma vez que a eletricidade é a tecnologia mais importante dos últimos séculos e que muitos ímanes são, de qualquer modo, electroímanes?) A autora também mal olha para conceitos como peças intercambiáveis ou fresagem de precisão, sem os quais a maior parte da tecnologia moderna não funcionaria. Mas, de um modo geral, é uma lista bem pensada.

A Sra. Agrawal é especialmente hábil a desvendar a aparência superficial dessas máquinas e a revelar a sua essência abstrata, explicando, por exemplo, como os arcos de tiro  são, de facto, molas - dispositivos que se dobram para armazenar e libertar energia - apesar da sua forma decididamente não helicoidal. 


Algumas dessas histórias são deliciosos apartes. A autora refere que os pregos eram tão valiosos e difíceis de fabricar na América colonial que as pessoas que queriam mudar de casa ou reconstruir noutro local queimavam frequentemente as suas casas para poderem recuperar os pregos das cinzas. Ou considere-se o agente funerário de uma pequena cidade do Kansas, na década de 1880, que estava prestes a ir à falência porque a mulher do seu rival trabalhava na central telefónica da cidade e estava sempre a desviar as chamadas das famílias enlutadas dele para o marido dela. Por despeito, o cangalheiro frustrado decidiu torná-la obsoleta e inventou a central telefónica automática, bem como os números de telefone e os telefones com marcação.

Outras histórias em Nuts & Bolts percorrem grandes quantidades de história em poucas linhas. Ficamos a saber que as primeiras carroças com rodas não só revolucionaram a agricultura, como permitiram aos seus possíveis inventores, o povo Yamnaya do Cáucaso do Norte, deixar para trás a sua vida provinciana por volta do quarto milénio a.C. e avançar para territórios vizinhos. Quando se depararam com hostilidade durante essa expansão, as carroças permitiram-lhes travar a guerra de novas formas, facilitando o transporte de mantimentos e tropas e, porventura, atropelando os inimigos. À medida que os Yamnaya se espalhavam cada vez mais, levavam consigo a sua língua - que hoje chamamos de proto-indo-europeu, a base das línguas faladas em quase metade do mundo, incluindo o inglês, o hindi, o persa e o espanhol. Tudo isto a partir de umas rodas montadas debaixo de uma caixa.

No final do livro, Agrawal aborda tecnologias mais complicadas que se baseiam em combinações de máquinas simples, como os corações artificiais. Desta forma, os seus sete dispositivos tornam-se algo como os elementos da tabela periódica - átomos que se juntam para formar novas criações com propriedades inesperadas.

Em muitos aspectos, estas novas criações incluem-nos a nós. Os seres humanos fazem máquinas, mas as máquinas também refazem a sociedade humana. Os relógios fiáveis, movidos a molas, permitiram a medição precisa do tempo, obrigando-nos a cumprir horários diários regrados, mas também ajudaram os marinheiros a calcular as suas posições no mar com uma precisão muito maior, o que deu origem aos primeiros mapas fiáveis. Bons mapas ajudaram a evitar naufrágios desastrosos, estimulando assim o comércio a nível mundial, o que beneficiou muitas pessoas, mas também conduziu ao tráfico transatlântico de escravos e à propagação de doenças. Como salienta Agrawal, nem todos os resultados da tecnologia são positivos.

É inegável que "a engenharia conta uma história intrinsecamente humana". Apesar de todo o nosso poder cerebral, no fundo somos fazedores e criadores - Homo faber. Mesmo os utilizadores de ferramentas mais desajeitados podem encontrar prazer em ver o mundo como a Sra. Agrawal: 

Podemos abrir o aparentemente inescrutável e procurar compreender os seus elementos constituintes. E depois, antes de voltarmos a montar esses elementos, podemos colocar-nos a questão: como é que o poderíamos fazer melhor?

November 07, 2023

do livro, "Travels in the Americas" de Camus




Acerca de Nova Iorque:

Uma visão tremenda apesar, ou por causa, do nevoeiro. Ordem, poder, força económica, estão todos aqui. O coração treme perante tanta desumanidade notável.... À primeira vista, uma cidade hedionda, desumana.
Uma das maneiras de compreender um país é saber como se morre nele. Aqui, tudo é planeado. "Você morre e nós fazemos o resto", dizem os panfletos promocionais. Os cemitérios são propriedade privada: "Apresse-se e garanta o seu lugar." Está tudo comprado e vendido, o transporte, a cerimónia, etc.
Chuvas de Nova Iorque. Incessantes, varrendo tudo. Os arranha-céus erguem-se acima... esta cidade dos mortos.... Uma terrível sensação de abandono. Mesmo que eu tivesse toda a gente do mundo a abraçar-me, não estaria protegido de nada.

Acerca da Europa em comparação com EUA e Canadá:

tendo acabado de passar pela Segunda Guerra Mundial, ganhou vários séculos de auto-consciência humana, enquanto a América do Norte, em particular, permaneceu uma inocente alienante.


August 31, 2023

"Imenso oceano os separa"

 


Como dizia Olavo Bilac... ando a tentar comprar o livro Poesia Reunida de Deborah Brennand, uma poetiza brasileira de Pernambuco e não consigo. Há dois ou três sites brasileiros que vendem internacionalmente mas não incluem as taxas alfandegárias e o governo Costa mandou que se cobrassem taxas alfandegárias por livros como se fossem diamantes. Faz parte dos incentivos à leitura e à educação que vão de vento em popa.
Em Portugal parece que as livrarias e editoras nem sequer ouviram falar desta poetiza. É pena. 
Agora pedi a uma amiga brasileira que tem sempre alguém da sua enorme família a vir visitá-la que me tentasse arranjar o livro. Este ou outro qualquer dela que encontrem.
Isto é sendo nós, 'países irmãos' e o diabo a nove. Imagine-se se fossemos países sem parentesco. Se calhar era mais fácil porque dos EUA não tenho problemas em mandar vir livros.

Imenso oceano os separa
mas embora tal suceda
entre seus dois corações
não cabe um papelinho de seda
.

Olavo Bilac



Roberto Ploeg, Retrato de Deborah Brennand, 2008

August 27, 2023

"Imagining the End: Mourning and Ethical Life"




Ao assistir a uma conferência sobre o Antropoceno o filósofo Jonathan Lear observou algo surpreendente: "No final da palestra, houve um período de discussão. A certa altura, uma jovem académica levantou-se e disse simplesmente: Deixem-me dizer-vos uma coisa: a nossa falta não vai ser sentida. Depois sentou-se. A plateia riu-se".

Esse momento persegue-o desde então. Lear (um psicanalista praticante e autor de um estudo sobre Freud) explica que "há um medo de que a democracia chegue ao fim por causa da perda do nosso sentido comum do seu objetivo ou fim".

Quando uma "jovem académica" - isto é, alguém a quem foi confiado o nosso futuro intelectual - expressa uma indiferença tão niilista sobre o destino dos seres com os quais as Humanidades se preocupam, o que é que isso diz sobre as perspectivas da democracia liberal?

  -  Paul Franz in the-need-for-mourning



August 09, 2023

Livros interessantes




TOURADA NASSOVIANA 

Durante os intensos sete anos em que governou o Brasil holandês, João Murício contou com momentos de descontração e lazer. Seja através de passeios no jardim de seu suntuoso Palácio Friburgo ou de seu segundo palácio conhecido como Reduto da Boa Vista, o princípe alemão promoveu eventos buscando, ao mesmo tempo, garantir uma posição de destaque entre a elite recifense e o deleite que seus esforços exigiam.
Um desses eventos foi descrito por Johan Nieuhof. O autor neerlandês descreveu uma tourada promovida por Nassau. O príncipe ensejava verificar as habilidades dos tapuias, principais aliados dos flamengos no Brasil na luta contra os luso-brasilicos.
“Os tapuias são muito fortes. Certa vez o Príncipe Maurício, estando de bom humor, quis experimentar a força e a agilidade dos indígenas, em luta contra um touro bravio. Mandou então que trouxessem o animal para um recinto cercado, onde dois tapuias, para isso escolhidos, deveriam enfrentá-lo. Houve grande afluência de curiosos para assistir o espetáculo. 
Em dado momento surgiram os dois tapuias inteiramente nus, sem outras armas que seu arco e flecha. Logo que o touro os percebeu arremeteu-se contra eles que, extremamente ágeis, esquivaram-se das marradas e crivaram de flechas os flancos do animal. Urrando horrivelmente e espumando de raiva, o touro lançou-se de novo com todo furor, contra os indígenas. Mais uma vez os tapuias se esquivaram, escondendo-se atrás de uma árvore existente no meio da arena, de onde continuaram a atirar seus dardos contra a fera, até que, quando esta já se esvaía em sangue, um dos bugres saltou-lhe sobre o dorso e, tomando-a pelos chifres, atirou-a por terra. Ajudado por seu companheiro, matou o animal. A seguir prepararam a carne, assando-a enterrada segundo costume selvagem, e com ela banquetearam-se em companhia dos demais tapuias presentes.” (P. 318-9)

NIEUHOF, Joan. Memorável Viagem Marítima e Terrestre ao Brasil. VASCONSELOS, Moacir N. (Tradutor da edição em língua inglesa). Livraria Martins. São Paulo – SP, 1942, 343 f.
"Um touro ataca um cachorro em uma paisagem italiana." (1832) Hendrik Voogd



July 30, 2023

Vinte hábitos de uma leitora

 


1. Viver com livros. Não só fisicamente, livros por todo o lado, mas internamente, com as personagens, as ideias, o estilo, as frases, as situações, as paisagens, os ambientes de muitos e muitos livros que vêm à cabeça nesta e naquela situação e noutra qualquer.

2. Escolher livros. Se são livros técnicos compro uma versão em papel -faço muitas anotações- e outra para o kindler para poder ir lendo se estou longe de casa. Em livros técnicos prefiro a última versão revista e anotada pelo autor. 

3. Clássicos, romances, auto-biografias e isso, prefiro a 1ª edição, se possível. Pelo menos uma edição cuidada com uma encadernação bonita, de preferência coerente com o conteúdo. Se tiver de desenhos e gravuras, melhor.

4. Não me importo de comprar uma edição em segunda mão que venha com anotações ou dedicatórias. Gosto de saber quem apreciou o livro e o que pensou. O próprio livro é uma personagem que tem uma história. Compro muitos livros de "abates" de bibliotecas públicas, sobretudo americanas. A maioria são livros históricos ou técnicos. Alguns são belíssimas edições e vêm com os carimbos a estragar imensas páginas. Cada vez que compro livros a uma biblioteca que tem livros em 'abate' sinto-me como se estivesse a salvar árvores da Amazónia. Compro-os por 2 ou 3 dólares, mais outros 2 de portes. Agora é mais difícil encontrar pechinchas por causa das tarifas alfandegárias, mas ainda se encontram. 

5. Se é para levar para a praia, quero a versão de bolso, maleável, senão prefiro um livro de capa dura. Se é uma obra muito grande prefiro a versão dividida em volumes transportáveis.

6. Às vezes compro um livro para ler um capítulo mas se é muito caro vou à livraria e leio-o ali mesmo. Já aconteceu querer ler um livro mas não querer dar dinheiro ao autor, enquanto vivo, e então, leio o livro todo em três ou quatro idas à livraria. Fiz isso com a tradução de Álvaro Cunhal do 'Rei Lear'. 

7. Detesto as edições que têm um texto em letra atómica num rectângulo compacto, sem parágrafos nem nada, para poupar meia dúzia de páginas, como fazia a Europa-América aos livros de bolso. Quem é que consegue ler aquilo? E para quê? Para estragar o prazer do livro? Agora já nem conseguia porque fico com a vista cansada.

8. Sempre dei livros como presente aos sobrinhos e a partir de certa idade, dou livros clássicos, sejam de aventura, romances históricos ou outros. Esses são os que ficam connosco, porque livros da actualidade, hão-de eles acabar por conhecer, de uma maneira ou de outra, mas os clássicos, se não os lêem em novos, não é depois em adultos que os vão ler. (foi por isso que andei aqui a ler, 'Guerra e Paz' para um amigo que gostava de ter lido muitos livros clássicos que não leu e agora não tem tempo para ler).

9. Ensina-se os filhos a gostar de ler, lendo. Tendo livros em casa e lendo. Lendo para eles em miúdos. Mais tarde, podem passar tempos sem ler, mas não perdem o gosto de ler, de aprender e de saber.

10. Como já li milhares de livros e tenho muita coisa para ler, reservo-me o direito de não ler um livro se não gosto do estilo ou do conteúdo. Hoje-em-dia é difícil encontrar um livro (falo de livros de ficção) em que mergulhe e esqueça tudo à volta. Aquela espécie de magia que os livros tinham quando era mais nova, tinha lido pouco e tudo era uma surpresa e uma novidade. Agora, ao fim de meia dúzia de páginas já antecipei o que aí vem, frases e tudo. Seguem todos os mesmos padrões com a mesma linguagem. (na maioria dos filme é igual)

11. Nunca comprei um livro que não tivesse intenção de ler, embora tenha imensos livros cá em casa que ainda não li, mas tenho intenção de ler. Não me incomoda ter muitos livros por ler. Lembram-me que há imensa coisa que não sei mas que está aqui perto e posso saber. Os japoneses têm um termo para este sentimento - agora não recordo. Se não são livros de filosofia, há um dia em que pego num e leio de uma ponta à outra. De maneira que há alturas em que leio um livro por dia e dou baixa às pilhas de livros por ler. Gosto de ter livros que quero ler mas ainda não li. 

12. Trato os dicionários como livros e não como listas telefónicas. Gosto de ler dicionários. A internet não tem bons dicionários de língua portuguesa. Faltam lá imensas palavras que leio e que uso e mesmo quando as tem, tem um único significado -o actual- e eliminaram todos os sentidos que a palavra tinha e ainda tem. Como se as palavras não tivesse uma história e fossem cristalizações absolutas. Sirvo-me muito de um dicionário da Porto Editora de uma edição dos anos 80 do outro século e se leio livros mais antigos vou aos dicionários antigos de Cândido de Figueiredo ou de Fonseca e Roquete que são do outro século anterior ao anterior. Não confio muito nos dicionários da internet.

13. Se passo por uma livraria com bom aspecto e, sobretudo, por uma alfarrabista, é difícil não entrar. Compro sempre qualquer coisa e às vezes, se não quero gastar mais dinheiro nesse dia, escondo um livro que quero atrás de outros para depois ir lá buscá-lo. Quando calha ir jantar ou ir a um espectáculo ali para os lados do Chiado com a minha irmã L., ela proíbe-me de entrar nos alfarrabistas porque depois esqueço-me de sair de lá.

14. Odeio as livrarias que vendem livros com capas de plástico coladas ou preços que não se conseguem tirar sem rasgar o livro. Acho que esses livreiros deviam ser encostados a uma parede e fuzilados.

15. Adoro encontrar um livro inesperado ou que procurava há muito tempo, numa livraria de livros usados.

16. Quando vou de férias o mais difícil é escolher os dois livros que vou levar porque me parece sempre que pode apetecer-me ler outro que fica em casa. Onde outras pessoas, às vezes, levam roupa a mais na mala porque não sabem o que lhes vai apetecer vestir, eu levo livros a mais.

17. Leio a fazer anotações. Sublinho frases e anoto o que vou pensando porque se o livro é bom é uma fonte imediata de inspiração e tiro dele imensas ideias.

18. Sou muito influenciada pela atmosfera dos livros. Quando reli o 'Guerra e Paz' fiquei curiosa com os trajes militares e de festa que Tolstói descreve em pormenor de maneira que depois comprei um livro sobre moda e vestuário civil e militar da Europa dessa época napoleónica e andei a investigar o tema. Depois (re)interessei-me pelo mobiliário estilo Império (já me tinha interessado quando estive em Bruxelas e fartei-me de andar lá nos antiquários a ver mobiliário), pelas danças, a música, etc.

19. Confio no gosto dos escritores e leitores que respeito e se me falam de um livro com entusiasmo, gosto e/ou admiração, vou lê-lo.

20. Nunca comprarei ou lerei um livro editado para não ofender sensibilidades.  Se os livros não ofendem, irritam ou incomodam ninguém, não valem a pena ser lidos. As pessoas que se ofendem com tudo e acham tudo uma falta de respeito e um atentado à sua autoridade são umas idiotas. Como dizia Northrop Frye, A principal função da educação é tornar a pessoa inadaptada à sociedade comum.