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October 09, 2025

Livros - The Last Ottoman Generation...

 


Este é Osman Bayezid, descendente da família real otomana. Foi o 44.º chefe da Casa Imperial de Osman.

Quando o Império Otomano entrou em colapso em 1922 e o sultanato foi abolido, o califa e sultão otomano, Mehmed VI, foi banido por Ataturk e enfrentou sérias dificuldades financeiras. 

O Nizam de Hyderabad, um dos homens mais ricos do mundo, ajudou-o financeiramente. Por fim, o califa deu uma das suas filhas em casamento ao filho do Nizam. 

A família real foi enviada para o exílio e espalhou-se entre os EUA, a Europa e o Médio Oriente.

Enquanto os seus antepassados governaram vastos territórios em três continentes por mais de 600 anos, desde 1299, Osman viu-se a começar uma vida completamente nova na América, sem exércitos para comandar ou províncias para governar.

Morava num apartamento na Avenida Lexington e trabalhava discretamente como bibliotecário na cidade de Nova Iorque. Passava os dias rodeado de livros, em vez de cortesãos. No seu tempo livre, encantava as crianças locais com espectáculos de marionetas.

Ficou conhecido pela sua dedicação em cuidar da sua mãe idosa. 

Nasceu em 1924, herdeiro do império Otomano, que já não existia, viveu como bibliotecário e morreu há poucos anos, em 2017.

Estes são os seus herdeiros. 

Passar de imperador a bibliotecário não é assim tão incomum como parece.

No Japão, os imperadores podiam reformar-se para dedicar-se a compilar antologias de poesia. 

Conhecidos como insei (ou chōkō), frequentemente tornavam-se mais influentes após abdicarem das suas funções oficiais para se concentrarem na composição de poesia e na supervisão de antologias da corte, que eram um aspecto significativo da vida da corte e do seu prestígio cultural. Esta prática permitia-lhes libertar-se das funções cerimoniais e das restrições políticas do imperador em exercício, permitindo um maior foco artístico e intelectual. Tornavam-se patronos e o que hoje chamamos 'influencers' culturais.

Não será o mesmo que perder o poder e a riqueza de um império e ir trabalhar anonimamente para outros país, distante, mas tem algo de comum com a ocupação de outros imperadores que passaram o poder a outro.


The Last Ottoman Generation and the Making of the Modern Middle East  

por Michael Provence 

O Médio Oriente moderno surgiu após o colapso do Império Otomano, quando a Grã-Bretanha e a França dividiram as terras árabes otomanas em vários novos estados coloniais. 
O período que se seguiu foi uma época conturbada, marcada por agitação social. Líderes insurgentes, treinados em tácticas militares otomanas e com tudo a perder com a queda do Império, desafiaram as potências mandatárias em várias revoltas armadas. 
Este é um estudo deste período crucial na história do Médio Oriente, traçando o período através de movimentos políticos populares e da experiência do domínio colonial. Provence enfatiza a continuidade entre o final da era otomana e a era colonial, explicando como surgiram as identidades nacionais e como foram lançadas as sementes para muitos dos conflitos que definiram o Médio Oriente no final do século XX e início do século XXI. 

October 05, 2025

Celebrar Aldus Manutius (1449-1515)

 

Hoje é o dia do professor e quem fala em professores, fala em livros e em ler - ou, pelo menos, falava.

Aldus Manutius foi a figura mais importante da época renascentista, nas áreas de impressão, publicação e tipografia, fundador de uma verdadeira dinastia de grandes impressores-editores e da famosa Aldine Press. 

Manutius produziu as primeiras edições impressas de muitos clássicos gregos e latinos e é particularmente associado à produção do octavos,  (livros de bolso), excelentemente editados e impressos em edições baratas.

Em 1501, Manutius publicou a obra de Virgílio, não num folio grande e pesado, como era costume, mas numa versão muito pequena, capaz de ser transportada para qualquer lado numa manga ou bolsa, inventando assim, o livro de bolso.

 Francesco Griffo, que era o seu cortador de tipos, usou para essa obra um novo tipo de letra inclinada, para poupar espaço - tinha acabado de inventar a letra itálica. Imprimiram cerca de 4000 mil cópias do livro.

Manutius publicou Lascaris, Aristóteles, Bembo, Aristófanes, Petrarca, Catullus, Tucídides, Sófocles, Herodutus,  Xenofonte, Eurípides, Homero, Esopo, Virgílio, Erasmus, Horácio, Píndaro, Platão e outros. 

A Hypnerotomachia Poliphili (1499), de Francesco Colonna, com as suas notáveis xilogravuras de um artista desconhecido, foi o livro mais famoso de Manutius.

É provável que a Aldine Press tenha impresso 1000 edições entre 1495 e 1595.

Manutius contribuiu para o brilhante florescimento cultural e científico renascentista através da impressão e divulgação dos clássicos e do impulsionamento de um público letrado e educado.

August 21, 2025

Livros - Uma entrevista muito interessante com Pedro Paixão

 


Lembro-me de Pedro Paixão como professor de Filosofia. Dava uma cadeira de Filosofia Contemporânea e foi ele que me pôs interessada em Marx e Hegel, por exemplo e foi com ele que aprendi a gostar de Wittgenstein. Pelos vistos, agora interessa-se mais por teologia que por Filosofia. Quando publicou o primeiro livro fui comprar, esperando encontrar o professor de Filosofia, mas o livro era outra coisa muito diferente e perdi o interesse. Agora esta entrevista sobre o seu novo livro, Desvio da Memória - Anotações sobre a Destruição dos Judeus Europeus, despertou-me novamente o interesse.

Pedro Paixão: “O judaísmo não é propriamente uma religião, é uma forma de vida

O escritor fez uma longa viagem a Auschwitz, cumprindo um percurso histórico e cultural com imensas estações. O resultado: Desvio da Memória, difícil de classificar quanto ao género.

António Guerreiro (entrevista)

Pedro Paixão é um escritor que teve um imenso sucesso nos anos de 1990, quando se estreou com o romance A Noiva Judia. Uma categoria narrativa que, sobretudo em França, tem conhecido nos últimos anos um considerável sucesso, a chamada autoficção, serve parcialmente para classificar a produção romanesca de Pedro Paixão que obteve na época uma larga difusão. Era então colocada, de maneira quase unânime, numa categoria a que se dava o nome, hoje obsoleto, de “literatura light”. O que, de resto, não coincidia bem com a cultura sofisticada do seu autor e as suas confessadas preferências literárias.

Lendo hoje com atenção, talvez essa produção seja menos light do que parecia e seja dotada de uma autoconsciência literária que a resgata dessa suposta leveza. Há quem recorde Pedro Paixão como professor de Filosofia na Universidade Católica e depois na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa; outros, recordam-no certamente como um dos fundadores do jornal O Independente, ao lado de Miguel Esteves Cardoso e Paulo Portas, muito embora se tenha desvinculado muito cedo dessa publicação e do seu círculo; outros ainda, recordá-lo-ão como fotógrafo, cuja obra foi mostrada em exposições e livros; poucos, porém, terão dado pela sua produção vasta, em vários géneros, que nunca foi interrompida, mas seguiu caminhos muito mais discretos do que aqueles que marcam o início da sua carreira literária.

Com Desvio da Memória, um imenso volume de cerca de 800 páginas que tem como subtítulo Anotações sobre a Destruição dos Judeus Europeus, o escritor apresenta-se sob a roupagem de um historiador, de um investigador de factos, lugares, figuras e episódios históricos que fazem parte de uma constelação que tem no seu centro a Catástrofe (assim, com letra maiúscula, como surge no livro) que o nome de Auschwitz evoca.

Desvio de Memória é um conjunto enorme de textos que são como uma viagem histórica e, muitas vezes, um exercício de elaboração interpretativa. Fornece-nos um manancial de informação, muitas vezes em registo narrativo ou até romanesco, que tem tanto de historiográfico como de memória. Este livro penetra fundo nos territórios sombrios da história europeia do século XX e contribui com um conceito, o de “desvio da memória”, para aquele campo de estudos que, na língua inglesa, se chama memory studies. O judaísmo, a história e a geografia da cultura judaica, assim como a exegese de alguns episódios do Antigo Testamento, são uma matéria fundamental deste livro que combina erudição e investigação com narrativas daquilo a que se pode chamar viagem crítica e sentimental pelos “tempos sombrios” e seus prolongamentos da história europeia do século XX.

Comecemos exactamente pela primeira frase do seu livro: “Em Agosto de 2010, decidi ir a Auschwitz.” Esta frase leva-nos a pensar que o livro é a narrativa de uma viagem a um lugar muito especial. Mas afinal a dimensão narrativa está quase ausente.
É antes uma viagem no tempo, uma viagem histórica.

No fundo, é uma viagem por uma constelação de lugares de memória que tem Auschwitz no centro. O que motivou a decisão de lá ir?
Não sei responder. Foi uma coisa repentina. Tinha acabado de fazer uma exposição de fotografia que correu muito mal. Desde os meus 18 anos que me interesso pelo acontecimento do qual Auschwitz é o nome. Mas nunca me tinha passado pela cabeça lá ir, nem sabia bem localizá-lo geograficamente.

Todos os textos que integram o livro foram escritos depois da viagem?

Todos. Fui-os escrevendo ao longo de 12 anos. Tive de ler e estudar muito, estudar muito. Não sou historiador, nem este é um livro de História, mas os factos que descrevo são confirmados por fontes que considerei seguras, confiáveis.

A tão problemática e consagrada dicotomia história/memória e a vaga memorial que lhe corresponde entram aqui em força...
Muito especialmente através daquilo a que chamo “desvio da memória”, que é uma maneira de enganar, de deturpar, muito embora utilizando factos verdadeiros.

Trata-se de construções fraudulentas da memória e da história?
Sim. No caso de Auschwitz, a Igreja Católica, ao tentar cristianizar o Holocausto, ao tentar colocar-se do lado das vítimas, procura negar a responsabilidade inegável que teve no anti-semitismo europeu e esconder o apoio que os seus mais altos dignitários tiveram na subida ao poder de Hitler e na consolidação do regime, sobretudo através da Concordata, que foi assinada entre o Vaticano e o Estado alemão seis meses depois da subida ao poder de Hitler, em Julho de 1933. As homilias, tanto de João Paulo II como de Bento XVI em Auschwitz, são nitidamente desvios da memória que me chocaram.

Em nenhum momento a Igreja Católica Romana reconheceu a sua responsabilidade?
Nunca. Tenta sempre pôr-se do lado das vítimas. Veja-se como explora dois casos de que falo no meu livro: o do padre Maximiliano Kolbe e o de Edith Stein, uma judia convertida ao cristianismo. Ela foi morta em Auschwitz, tal como a sua irmã Rosa, não por ser uma freira católica, mas por ser judia. A classificação como judeu não dependia da religião que se tinha, dependia do sangue que corria nas veias. Quanto ao padre Maximiliano Kolbe, ele foi de facto assassinado em Auschwitz quando Auschwitz era ainda só um campo para prisioneiros polacos e soviéticos. Não havia judeus sequer. Só alguns meses mais tarde é que é inaugurado o campo de morte de Auschwitz-Birkenau. A canonização do padre Maximiliano como santo e mártir, por supostamente se ter oferecido para substituir um prisioneiro (mas a versão da Igreja é enganosa, e perceber isso chocou-me), não é senão um acto para tentar cristianizar o Holocausto.

Como descreve a sua experiência de visitar o campo de Auschwitz transformado num memorial?
Não senti quase nada. Fiquei um pouco chocado ao ver que o campo estava transformado num sítio turístico. As pessoas que lá vão não fazem a mínima ideia do que estão a ver.

Mas esse quase-conceito de desvio da memória pode ter utilizações mais banais, em contextos diferentes?
É algo que eu próprio faço, às vezes. Por exemplo, quando digo que a minha mãe é americana. É um facto que a minha mãe tinha a naturalidade americana por ter nascido nos Estados Unidos. Mas de facto não era americana, era filha de emigrantes portugueses e voltou para Portugal aos 11 anos. Não gostava de falar inglês, preferia o francês, e não falava dos Estados Unidos. Quando eu digo a alguém que a minha mãe é americana, estou a dizer uma verdade, mas estou a enganar porque levo o meu interlocutor a ter uma série de expectativas quanto à minha mãe americana que não correspondem à realidade.

A memória é enganadora. Por isso é que a historiografia sempre teve uma suspeita em relação a ela...
A memória é parcial, tendenciosa, e até muitas vezes falaciosa. E muda com o tempo. Mas o desvio da memória é diferente, há uma intencionalidade de enganar.

É disso de que acusa fortemente, em muitos dos textos deste livro, a Igreja Católica. E o protestantismo?
Os protestantes não se portaram melhor do que os católicos, mas, como os protestantes estão divididos em várias denominações, não há aquela unidade da herança católica. Lutero julgou que, com a sua reforma, os judeus pudessem converter-se ao cristianismo, mas quando viu que isso não aconteceu tornou-se violentamente anti-semita e escreveu um dos textos anti-semitas mais violentos que alguma vez foram escritos, sobre “a mentira dos judeus”.

Curiosamente, numa página do seu livro refere-se ao filósofo austríaco Otto Weininger, um judeu que é um exemplo extremo de jüdische Selbsthass, do ódio do judeu por si próprio, por ser judeu.
Weininger, que escreveu Sexo e Carácter, um livro furiosamente anti-semita e misógino, mas que é ao mesmo tempo genial e terrível, suicidou-se aos 23 anos, em Viena, na casa onde Beethoven tinha morrido. Esse livro, publicado em 1903, teve uma enorme influência, na sua época.

A sua recepção atravessou fronteiras. Em Itália teve um enorme sucesso. Mas regressemos à sua “ida” a Auschwitz. Que preparação prévia a determinou? Tudo começa certamente numa relação com o judaísmo...
Sem dúvida, desde muito novo. Em todos os meus livros de ficção, há sempre alguma história que tem que ver com o judaísmo. Depois do 25 de Abril pertenci a um partido que era o MES [Movimento de Esquerda Socialista]. Quando saí do MES, uma das minhas ideias era ir para Israel e inscrever-me nas IDF, as Forças de Defesa Israelitas.

Mas esse interesse pelo judaísmo é de ordem intelectual e cultural. Não se trata de uma profissão de fé religiosa...
Sim, é isso. Entre os meus autores preferidos estão o Proust e o Kafka, que são judeus. E também Isaac Bashevis Singer, que foi Prémio Nobel. Ele passou por Lisboa quando emigrou da Polónia para os Estados Unidos e conta uma conversa que teve com um taxista lisboeta. A presença dos judeus na cultura europeia é de uma enorme proporção. Freud era judeu, mas era anti-semita, de certa maneira. O seu último livro, Moisés e a Religião Monoteísta, é um livro terrível para os judeus, sobretudo na altura em que é publicado, em 1939.

Entrou no judaísmo por mediação cultural e literária, independentemente do sionismo?
Até ter começado a ler e a estudar mais profundamente os textos de Theodor Herzl, o fundador do sionismo político moderno, nem tinha bem consciência do que era o sionismo. Herzl era um homem perturbado e muito inculto, totalmente assimilado. Teve uma vida trágica, um casamento muito infeliz, os seus dois filhos, que nem eram circuncidados, suicidaram-se. Ser judeu não é ser sionista. Tenho vários amigos em Israel que não são sionistas. Há jornais em Israel que não são sionistas, por exemplo o Haaretz. Na semana passada, esse jornal publicou um artigo que dizia que a fome em Gaza é da responsabilidade do exército israelita. Tem a coragem, e a capacidade, de expor a verdade. Mas não simplifiquemos nem generalizemos quando dizemos que a culpa é de Israel. Israel é o quê? É o Estado de Israel? É o Governo actual de Israel? São os israelitas? Os israelitas têm opiniões muito diversas. Há aquele dito muito conhecido segundo o qual se há sete judeus, há sete opiniões.

Tendo ido muitas vezes a Jerusalém e também a outras cidades israelitas, com que ideia é que ficou?
Percebi que havia muita segregação e muito desconhecimento entre os israelitas judeus e os israelitas árabes, que são quase um milhão. Eu tinha amigos judeus, mas também tinha amigos árabes. E eles não sabiam coisas mínimas uns sobre os outros. E mesmo entre os judeus há uma grande rivalidade, e até um desacordo entre os sefarditas e os asquenazes. Porque, ao longo da história, transformaram-se e tornaram-se muito diferentes. E o Estado de Israel, por ser judaico, não pode, a meu ver, ser um verdadeiro Estado de direito, como um Estado islâmico não o pode ser.

Ainda quanto ao sionismo: progressivamente foi-se dando um desvio em relação àquilo que foi quase o projecto utópico de criação de um Estado voltado para a paz, que preconizava uma sociedade que tinha aspectos de utopia...
Israel não tem uma Constituição porque não consegue escrever sequer o preâmbulo. Para justificar a sua presença, a sua criação, tenho de evocar factos, tenho de fazer também um desvio da memória. De facto, só houve um Estado judaico no tempo de David. Só houve três reis de Israel: Saul, David e Salomão. Israel significa aquele que luta contra Deus. O fio condutor da Bíblia hebraica, o Tanakh, é um conflito entre o divino e o humano, entre Deus e as suas criaturas, que estão sempre a desobedecer-Lhe.

Por isso é que Deus é um tirano. Para disciplinar as suas criaturas tem de as castigar.
Deus é extremamente violento. É o Senhor dos exércitos, também. No Novo Testamento, o conflito é muito diferente, é entre Jesus e os judeus. Jesus, no sentido estrito, não é judeu. Era muito diferente ser judeu da Judeia ou ser judeu da Galileia. Muito diferente. Até o dialecto aramaico que falavam era diferente. E todos os apóstolos de Jesus eram galileus menos um, Judas, o traidor, que era judeu. É uma coisa que se repete constantemente, este conflito entre o judeu e o grupo que o segue, armado. São Paulo, em Jerusalém, receando ser julgado e condenado à morte pelos judeus, diz que é romano, filho de pais romanos, para não ser crucificado... Há várias tradições, mas, na segunda tradição, ele é morto, mas não crucificado, é decapitado por ser romano.

Há alguns textos do seu livro que são exercícios de exegese bíblica.
É verdade. Aí arrisco-me a cometer erros. Para mim, parece-me óbvio, pela leitura dos Evangelhos, que Jesus não só tem desprezo, mas quase odeia relações familiares. Em nenhum caso ele chama mãe a Maria, ou pelo nome, nunca. Trata-a pelo nome ou por mulher, o que é uma forma rude de tratar a mãe. E quando um discípulo lhe pede para ir enterrar o pai, ele diz-lhe para deixar os mortos, para voltar costas ao pai e à mãe e para o seguir. É terrível, Jesus desprezava os laços familiares. Nenhum dos seus discípulos era seu familiar. O que os unia era uma ligação ideológica, muito mais forte que uma ligação familiar.

Voltemos à questão da memória, para referir o conceito de “lugares de memória”, do historiador francês Pierre Nora. Parece-me pertinente evocar este conceito para dizer que o seu livro é um périplo historiográfico por diversos lugares de memória, no centro dos quais está Auschwitz.
Auschwitz é mais do que um lugar, é o nome do acontecimento a que chamo Catástrofe, para evitar nomeá-lo como holocausto, que é um sacrifício de um animal pelo fogo. Não é correcto dizer que o extermínio dos judeus europeus foi um holocausto, um sacrifício dedicado a Deus. Por outro lado, a palavra Holocausto refere-se só aos que foram mortos. É preciso ter em conta que as vítimas do que aconteceu não foram apenas os que morreram, foram também muitos que sobreviveram. Mas é difícil arranjar um nome para o que aconteceu. Os motivos são muito mais mitológicos e teológicos do que simplesmente políticos. Esta é a minha ideia de fundo. Não é um conflito social ou político, na cabeça de Hitler tratava-se de um conflito teológico, mais do que de racismo. O racismo é diferente, não pretende a destruição do escravo. O racista precisa do escravo para se continuar a sentir superior ao outro. Eu não posso ter ódio por um simples instrumento ao meu serviço. Hitler vê no judeu um poder descomunal...

E, portanto, um perigo. Mas o racismo não é isso? Não consiste em ver naquele que é diferente um perigo, uma ameaça? Vejamos, por exemplo, o documentário dos Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936, da autoria de Leni Riefenstahl. O seu olhar muito estetizado sobre os corpos apolíneos dos atletas alemães não é racista?
É verdade que há aí uma exaltação da “raça germânica”. E “raça”, como sabemos, é hoje considerado, tanto nos estudos antropológicos como sociológicos, um conceito não científico e não pertinente. Mas Leni Riefenstahl, muitos anos depois, em 1973, também fotografou os negros de uma tribo do Sul do Sudão, os Nuba.

Sobre essas fotografias escreveu Susan Sontag um célebre texto onde defendia, com fortes argumentos, que Leni Riefenstahl não se tinha arrependido de ser racista e tinha encontrado em África uma raça superior de negros.
Ela apreciava mesmo a beleza daqueles negros. Hitler também considerou os japoneses como arianos honorários.

E não reside o racismo de Riefenstahl precisamente nessa estetização? Mas voltemos à matéria do seu livro. Foi durante anos professor no departamento de Filosofia, na FCSH da Universidade Nova de Lisboa. Transferiu-se com armas e bagagens da filosofia para a teologia?
É verdade. Interesso-me agora mais por teologia do que por filosofia.

Como é que se deu essa deslocação?
Foi fundamental ler o Tanakh, a Bíblia Hebraica. Aquilo que nós conhecemos como Antigo Testamento é uma tradução de uma tradução. Primeiro, há a tradução, no século III a.C., para grego. E depois há a tradução para o latim, que é a vulgata de São Jerónimo, a versão canónica. Só no século XIX é que a Igreja permitiu a sua tradução para as línguas vernaculares. Quando há uma tradução, há uma alteração do ambiente. Para mim foi indispensável a leitura do Tanakh, que literariamente é, de facto, uma obra incomparável, absolutamente extraordinária. É, ao mesmo tempo, sublime e terrível. E isso é nítido no original hebraico, que não aparece nas traduções para o grego e depois para o latim. Os grandes heróis da Bíblia Hebraica cometem faltas gravíssimas, pecam gravemente contra Deus. Enquanto no Novo Testamento as personagens principais são todas imaculadas, sem qualquer mancha de pecado. Jesus é totalmente humano, salvo no pecado. Mas o que é um humano sem pecado? O pecado tem sempre que ver com o sexo. O sexo. Há ali um tabu muito forte...

E não existe esse tabu no Antigo Testamento?
Não, o sexo tem de ser controlado, tem regras, sobretudo por causa da menstruação da mulher. Mas não é pecado, de modo algum. Temos um texto erótico, lindíssimo, que é a canção de Salomão, o Cântico dos Cânticos, um texto belíssimo sobre amor físico. No Novo Testamento só há algumas pequenas passagens em que há qualquer coisa de erótico, mas são coisas mínimas. Para o cristianismo, este mundo não vale nada, a nossa vida só tem valor como preâmbulo para a vida eterna. Isso não acontece no judaísmo bíblico, que não tem o Paraíso e o Inferno. O judaísmo não é propriamente uma religião, é uma forma de vida. Está muito mais perto do islão. Enquanto no cristianismo a base é teologia, no judaísmo, a teologia é interdita, não se pode tentar compreender ou racionalizar Deus. Essa é a razão pela qual Espinosa, filho de judeus portugueses expulsos de Portugal e refugiados em Amesterdão, foi alvo da mais alta punição, o chérem, a excomunhão hebraica, que é muito mais forte do que a excomunhão católica. Significa ser expulso da comunidade. E Uriel da Costa, judeu sefardita que nasceu no Porto, suicidou-se em Amesterdão depois de também ter sido excomungado.

Uriel da Costa, apesar de português, não é por cá muito recordado. A excepção é o livro de Agustina Bessa-Luís Um Bicho da Terra. É mais fácil encontrá-lo referido na Alemanha e no Norte da Europa.
É a grande diferença entre o Sul da Europa, católico, e o Norte, protestante. A reforma, de facto, mudou completamente a sociedade. Começou com Lutero.

Mas até num país católico, do Sul da Europa, como a Itália, encontramos bem fornecidas secções de teologia e de judaísmo, nas livrarias.
Os italianos não eram anti-semitas. Em Itália, deu-se a assimilação dos judeus.

Isso explica que Primo Levi, em Se isto é um Homem, tenha escrito que foi em Auschwitz que se tornou judeu.
O Primo Levi é um homem e escritor extraordinário. A capa do meu livro reproduz uma fotografia da escada do prédio onde viveu, em Turim, tirada pelo meu amigo Luís Quintais, em cujo vão Levi se precipitou, pensa-se que voluntariamente. Tudo aponta para a tese do suicídio.

Como é que vê os ataques das forças armadas de Israel a Gaza, a retaliação na sequência do 7 de Outubro?
É terrível, horrível. A morte de qualquer criança é uma coisa horrível. Mas é difícil ter uma opinião muito clara e nítida que nos tranquiliza a consciência sem cair na simplificação e na generalização. É bom porque nos tranquiliza a consciência. Com o seu conceito de “zona cinzenta”, Primo Levi ensinou-nos que há uma zona muito larga entre o moral e a imoral, entre a verdade e a mentira, entre o bem e o mal. E se quisermos encontrar os primeiros culpados do que está a acontecer, temos de culpar a França e a Inglaterra. Yitzhak Rabin, que foi assassinado em 1995, tinha ideias muito diferentes das que orientam o Governo de Benjamin Netanyahu, um homem corrupto que está a utilizar uma guerra para se manter no poder.

Público

August 02, 2025

Livros - Filho do Hamas

 


Vou a meio do livro. Não consigo ler muito de cada vez porque estou com uma inflamação grande num dos olhos e vejo tudo nublado.

O livro é muito bom. É o relato do seu percurso intelectual, religioso, moral e político. Nesse sentido particular faz lembrar o Discurso do Método de Descartes. À medida que avança no livro vai revelando as razões da sua transformação interior pelo relato dos acontecimentos da sua vida e como os experenciou.

Ele escreve o livro para o público mas em primeiro lugar para o seu pai, por quem tinha uma grande adoração, desde muito miúdo. Está a contar ao pai -e a justificar-se- o percurso que fez e o trouxe onde está.

Mosab Ypusef explica como nasce o Hamas. Nasce de um erro dos israelitas e depois ele viu o pai ser preso muitas vezes, torturado, afastado da família. Aos 18 anos, revoltado contra os israelitas resolve com um primo comprar armas. Como são muito novos, fala com o primo sobre as armas usando o telemóvel do pai e, é claro, vai preso porque os israelitas ouvem tudo.

O campo de prisioneiros está dividido por facções, a do Hamas, a da Jihad Islâmica, a do Movimento de Libertação da Palestina, etc. e todos têm que escolher uma mesmo que não tenham nenhuma. Ele escolhe o Hamas, por causa do pai e do tio que está lá preso e que ele descreve como um tipo hipócrita, enorme e brutal, capaz das piores crueldades gratuitas. A prisão é o sítio onde ele pela primeira vez vê o que é o Hamas.

As secções são dirigidas pelos próprios e os dirigentes do Hamas são carrascos do seu próprio povo dentro da prisão: tortura, sevícias sexuais, crueldades bárbaras. A ele não lhe tocam por ele ser filho de um dirigente do Hamas. 

É também dentro da prisão que ele contacta pela primeira vez com israelitas, com comunistas, com liberais e outras ideias para além do Alá do Islão e começa a pôr em causa os métodos do Hamas e a própria interpretação de um Islão bárbaro e cruel que quer a guerra pela guerra - ele acha muitas das regras e preceitos do islão do Hamas sem sentido nenhum e atávicos. Começa a distanciar-se. 

O Movimento de Libertação da Palestina, diz ele, luta por um Estado palestiniano; o Hamas luta por um Estado islâmico e a eliminação dos judeus. 

Entretanto os israelitas, que lhe propõem ser espião do Hamas, percurso que ele faz aos pouco e à medida que vê a brutalidade do Hamas, tratam-no com mais humanidade que o seu próprio povo. Aos 20 anos vai estudar na Universidade por incentivo e com o dinheiro dos israelitas e começa a sua 'carreira' de espião. Está numa altura da vida em que quer aprender e tomar contacto com outras ideias, outras religiões e o mundo fora daqueles muros mentais..

Fica-nos a ideia de que os palestinianos vulgares estão fechados na religião e no islamismo e têm uma visão do mundo apertadinha e medieval. É a religião, mais a religião e só a religião.

O pai, ele não o entende, porque conta que ele é uma pessoa inteligente, extremamente gentil em casa e com toda a gente fora de casa, incapaz de matar, mas ao mesmo tempo assina de cruz todas as barbaridades do Hamas com as quais concorda.

Enfim, vou a meio e tenho muita curiosidade em saber do resto do percurso.


June 20, 2025

La vie en rose




Quando Isaac Newton dividiu a luz branca em raios coloridos, em 1666, não encontrou o cor-de-rosa. O laranja e o púrpura estavam lá, juntamente com o vermelho, o amarelo, o verde e o azul, pelo que, para os cientistas, essas eram as verdadeiras cores. 

Pink: The History of a Color
By Michel Pastoureau (Translated from French by Jody Gladding)
Princeton University Press 192pp 


No entanto, o cor-de-rosa era observável na natureza - nas plantas, nas penas dos animais, nos minerais e no céu. 

O cor-de-rosa começou a aparecer em corantes e tintas no século XIV - relativamente tarde em comparação com outras cores - e rapidamente se tornou moda. Um documento único, Prammatica del Vestire, sobreviveu para nos informar sobre o guarda-roupa de todas as mulheres das classes abastadas que viviam em Florença entre 1343 e 1345. 

Um inventário detalhado feito por advogados para implementar as recentes leis sumptuárias e aplicar impostos sobre luxos, mostra que os tintureiros florentinos estavam a fazer uma gama de rosas, bem como os vermelhos habituais. É provável que trabalhassem sobretudo com a madder, o primeiro corante conhecido, misturando-a com quantidades de giz, urina, vinagre, tártaro e alúmen. Para os tecidos mais caros, utilizavam o kermes, extraído dos corpos de insectos recolhidos das folhas dos carvalhos. Eram necessários muitos insectos esmagados para obter a quantidade necessária de sumo. Outra fonte era o pau-brasil vermelho, importado para a Europa da Índia, Sri Lanka e Sumatra. 

A madeira era reduzida a pó (um processo laborioso) e depois mergulhada em água durante muito tempo. A cor-de-rosa era tão popular que, quando os portugueses descobriram no Novo Mundo árvores tropicais cuja madeira possuía as mesmas propriedades do pau-brasil, deram-lhe ao país que colonizaram o nome delas.

O primeiro tratado europeu sobre pintura, o Libro dell'Arte de Cennino Cennini, data do início do século XV e discute a mistura de pigmentos necessária para obter tons carnudos. Para os frescos, recomenda-se uma combinação de ocre vermelho e cal, conhecida como cinabrese (não confundir com o cinábrio, que os romanos utilizavam), com gema de ovo adicionada como aglutinante. Segundo Cennini, as gemas dos ovos postos na cidade, por serem mais pálidas, são adequadas para os rostos dos jovens, enquanto os ovos colhidos no campo dão uma tonalidade mais escura, adequada para os homens mais velhos e mais rosados. Dependendo da finura dos pigmentos, o rosa resultante será suave e brilhante ou baço e áspero. Pastoureau salienta que, muitas vezes, existia um desfasamento entre o que os pintores diziam e o que faziam, uma vez que não queriam partilhar os seus segredos. Um belo painel pintado por Cennini em Siena, Natividade da Virgem (c 1390-1400), mostra uma figura vestida inteiramente de cor-de-rosa.

Veneza foi a capital indiscutível da cor na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Cidade comercial importadora de corantes do Oriente, foi também palco de pintores de renome como Bellini, Giorgione, Ticiano, Tintoretto e Veronese. 

No Renascimento, surgiu um debate sobre os méritos relativos (“nobreza” é a palavra utilizada aqui) do desenho e da pintura. A cor, diziam alguns, cativava o olhar inculto e apelava aos sentidos, enquanto o traço se dirigia ao intelecto. Os partidários da cor defendiam a sua capacidade de transmitir a natureza viva das figuras e, a este respeito, os tons cor-de-rosa em que a carne era representada eram fundamentais. Desde o início do século XVI, os pintores utilizam cada vez mais o cor-de-rosa.

Nos têxteis, a moda do cor-de-rosa atingiu o seu auge entre 1750 e 1780, especialmente em França. Os rosas fortes estavam disponíveis para os compradores da classe média, levando as elites a procurar os tons pastel, mais caros. Charles Joseph de Ligne, marechal do exército do Sacro Império Romano-Germânico, foi apelidado de “o príncipe cor-de-rosa”, um termo que se referia não só ao seu gosto pelo cor-de-rosa no mobiliário e no vestuário, mas também ao seu optimismo e bom humor. Simbolicamente, o cor-de-rosa passou a indicar alegria de viver. 
Madame de Pompadour gostava de combinar os novos rosas com azuis e cinzentos, muitas vezes às riscas, e em Sèvres, um delicado tom de rosa pálido com um toque de laranja foi aperfeiçoado para a porcelana. 

A partir da década de 1770, “o cor-de-rosa parecia invadir tudo”, afirma Pastoureau. Pintores, decoradores, tintureiros, alfaiates e modistas esforçaram-se por produzir tonalidades e combinações variadas. O bestseller de Goethe, O Jovem Werther (1774), lançou a moda dos vestidos brancos enfeitados com fitas cor-de-rosa (e entre os homens, dos casacos azuis com calças amarelas). Werther diz que quer ser enterrado com as fitas cor-de-rosa de Lotte no bolso.

Na era do Romantismo, o cor-de-rosa assumiu associações femininas e, na década de 1820, era uma cor que os homens já não usavam. Muito rapidamente, deixou de estar na moda. No início do século XX, o cor-de-rosa estava em grande parte escondido, servindo principalmente como cor para a roupa interior das mulheres; se aparecesse numa peça de vestuário exterior, seria de um tom baço, sem nada de sedutor. À medida que o século avançava, o cor-de-rosa foi-se tornando ainda mais discreto: passou a ser uma cor para meninos e meninas, e depois só para meninas. A boneca Barbie, lançada em 1959, contribuiu para este processo.


May 16, 2025

Livros - "Amílcar Cabral - O Africano que Abalou o Império"

 


Amílcar Cabral tinha uma visão positiva e inteligente, não apenas do futuro africano e do futuro de Portugal, como integrava a questão do cruzamento de culturas entre Portugal e os países africanos numa visão mais vasta de um mundo não colonialista, um mundo democrata onde todos seriam livres enquanto seres humanos de iguais direitos e oportunidades.

Foi uma pessoa diferente da maioria dos líderes africanos que lutaram pela independência. 

O meu pai conheceu-o bem porque foram colegas na faculdade. Contava que um dia, muito mais tarde, já ele era procurado e tinha um mandato de captura por parte do governo português, o encontrou em Alcântara e, tendo ficado muito surpreendido de o ver ali à luz do dia, lhe disse, 'Que estás aqui a fazer? És doido? Não sabes que és procurado pela polícia?' Ao que ele respondeu a rir, 'eles sabem muito bem que estou aqui e não se atrevem a prender-me'.

Vou comprar este livro. Vi uma entrevista com o autor na RTP África e fiquei interessada. 


April 10, 2025

Livros - Beautiful Experiments




(clique no livro se está interessado nele)

A sabedoria convencional ao longo dos séculos tinha sido que os objectos mais pesados caíam mais depressa do que os mais leves, uma afirmação que tinha sido feita por ninguém menos do que Aristóteles.

Uma vez que era quase impossível avaliar isto a olho nu e que os instrumentos de medição dos anos 1600 não eram suficientemente precisos, seria necessária uma grande criatividade para conceber uma experiência que permitisse medir qualquer diferença na velocidade de queda. O génio que concebeu essa experiência foi o próprio Galileu, sempre curioso.

"Uma coisa é saber que todos os objectos demoram o mesmo tempo a cair com a gravidade (se não forem significativamente perturbados pela resistência do ar). Mas como é que eles caíam exactamente? Aparentemente com base em observações de corpos a cair na água, Aristóteles afirmava que eles caíam a uma velocidade constante que dependia do seu peso. Mas a descida no ar era demasiado rápida para se poder avaliar isso a olho nu. Se ao menos houvesse uma forma de a abrandar...

"No início de 1600, Galileu viu como isso poderia ser feito de forma simples. Uma bola lisa colocada sobre uma mesa ligeiramente inclinada começa a rolar. Se a inclinação for mais acentuada, a bola ganha velocidade mais rapidamente. Aumentando a inclinação até à vertical, o movimento aproxima-se cada vez mais da queda livre perfeita. Assim, Galileu raciocinou que uma bola a rolar por um “plano inclinado” era uma versão mais lenta da queda livre que lhe permitiria efetuar medições.

"A questão era saber como é que a distância percorrida -chamemos-lhe (s)- depende do tempo decorrido (t). Se a bola rolar a uma velocidade constante, as duas são proporcionais: a velocidade é então apenas o rácio entre a distância e o tempo. 

Galileu começou a fazer experiências com planos inclinados em 1602 e, dois anos mais tarde, tinha melhorado o método o suficiente para deduzir a relação matemática entre s e t. Descreve o aparelho nas Duas Novas Ciências de 1638. Numa viga de madeira com cerca de 28 pés de comprimento, foi cortada uma ranhura na extremidade e coberta com velino liso, pela qual rolava uma bola de bronze quando a viga era inclinada num ângulo. Para medir o tempo que a bola demorava a chegar ao fundo, depois de ter sido libertada de vários pontos da viga, Galileu utilizou um relógio de água no qual a água corria a um ritmo constante através de um tubo. Se o tubo pudesse ser aberto e fechado com precisão suficiente, a quantidade de água acumulada era proporcional ao tempo decorrido. Reconhecendo a possibilidade de erro desta técnica. Galileu repetiu cada experiência muitas vezes - “uma centena”, afirmou.

"Deste modo, deduziu que a bola não rolava a uma velocidade constante, como afirmava Aristóteles, mas que aumentava gradualmente de velocidade: acelerava. Assim, a relação entre s e t não era de simples proporcionalidade; em vez disso, s aumentava em proporção ao quadrado do tempo decorrido. 

Como os alunos aprendem a escrever atualmente: s = ½at2, em que 'a' é a aceleração. Assim, o movimento e a mecânica eram melhor descritos não em linguagem qualitativa mas em matemática, que Galileu declarou ser a verdadeira linguagem da natureza.

"Galileu foi o primeiro a identificar a aceleração como uma grandeza na teoria da mecânica. Um corpo acelera se uma força actuar sobre ele - neste caso, a força da gravidade (e também a força de atrito, mais pequena e retardadora, à medida que a bola rola). Galileu deduziu que um corpo sobre o qual não actuam quaisquer forças não muda de velocidade: se já estiver em movimento, continua a fazê-lo à mesma velocidade, mas se estiver em repouso (velocidade zero), permanece assim. 

Isaac Newton exprimiu mais tarde esta ideia como a sua primeira lei do movimento e acrescentou-lhe uma segunda lei que relaciona a aceleração com a força que a produz: a força é igual à massa do corpo multiplicada pela sua aceleração 'a'.

"O plano inclinado de Galileu é um dos primeiros instrumentos concebidos exclusivamente para a ciência experimental quantitativa. Anteriormente, os filósofos naturais tendiam a utilizar os recursos que tinham à mão - paus e varas, salas escuras, prismas e frascos - para investigar o funcionamento da natureza. 

No entanto, o instrumento de Galileu era um verdadeiro instrumento científico, construído com um objetivo específico em mente. Esta experiência marcou o início de um século em que os instrumentos científicos especializados (muitas vezes dispendiosos) se tornaram comuns. A sua utilização distinguia cada vez mais o “perito” (mais tarde designado por virtuoso) do mero amador.

"No entanto, não devemos supor que Galileu estava a fazer ciência no mesmo sentido que os cientistas de hoje. O seu método situava-se entre a prática mais antiga de partir de axiomas e fazer deduções lógicas e a forma moderna de formular e testar hipóteses. Como diz o historiador da ciência Domenico Bertoloni Meli, “Galileu formulou a ciência do movimento como uma construção matemática e só numa fase posterior utilizou a experiência para mostrar que a ciência que tinha formulado correspondia ao comportamento da natureza”. Mesmo que não correspondesse, Galileu defenderia que a ciência continuava a ser válida enquanto exercício matemático.

"Devido à sua importância na história da ciência experimental, a experiência do plano inclinado tem sido objeto de uma análise intensa. Uma das preocupações era saber se Galileu poderia realmente ter obtido resultados fiáveis com os métodos bastante rudimentares de que dispunha para medir o tempo. A bola demora apenas alguns segundos a descer, pelo que há margem para erros significativos na determinação exacta do momento em que começa e acaba. 

Tendo isto em conta, o filósofo francês da ciência Alexander Koyre desvalorizou mordazmente toda a história, afirmando em 1953 que “é óbvio que as experiências de Galileu são completamente inúteis: a própria perfeição dos seus resultados é uma prova rigorosa da sua incorreção”. Mas as dúvidas de Koyre foram postas em causa em 1961, quando Thomas Settle, um estudante de história da ciência na Universidade de Cornell, demonstrou, utilizando equipamento caseiro barato, que, com a prática, podia obter dados suficientemente bons para verificar a lei da aceleração de Galileu. O argumento da incredulidade pessoal de Koyre não foi suficiente; hoje em dia é comum os historiadores da ciência fazerem reconstruções históricas de experiências com os recursos disponíveis na altura para ver se os resultados são plausíveis. O trabalho de Settle mostrou também a importância de se conhecer o aparelho antes de o utilizar com confiança.

Além disso, em 1972, o historiador Stillman Drake concluiu, a partir de uma inspeção minuciosa das anotações do “livro de laboratório” de Galileu, que este poderia também ter utilizado um outro método de cronometragem, que consistia em inserir trastes móveis no plano inclinado, de modo a que a bola rolante criasse um estalido audível ao passar por ele. Confiando no bom senso de um ritmo constante que a sua formação musical lhe teria incutido, Galileu poderia então ter movido os trastes até que a passagem da bola produzisse uma série regular de cliques, e deduzido a lei da aceleração a partir das distâncias entre os trastes à medida que a bola rolava durante o mesmo tempo. Drake sugeriu que Galileu não registou este método de cronometragem, talvez por receio de que pudesse soar a tolice - exigindo que ele estabelecesse um ritmo regular, por exemplo, cantando uma canção".

  via, galileo vs aristotle in https://www.delanceyplace.com/


March 28, 2025

Livros - 'Hegel’s World Revolutions', by Richard Bourke

 



Livro: Hegel’s World Revolutions, by Richard Bourke, Princeton University Press, 344 pp, 



(excertos)

Como a sina da humanidade pode mudar rapidamente. Parece que foi anteontem que nos convencemos de ter atingido o glorioso ponto culminante da História, após o colapso da União Soviética e, com ela, do comunismo, e o triunfo da democracia liberal ocidental e do seu aliado inseparável, o capitalismo. Naquela altura, parecia que tudo o que restava fazer era corrigir as falhas da nossa infalível economia política e exportá-la para as partes do planeta que ainda não tinham visto a luz neoliberal.

Naqueles dias felizes, o Relógio do Juízo Final foi acertado a dezassete minutos da meia-noite - os membros do Bulletin board declararam alegremente em 1991 que a nova configuração “reflecte o nosso otimismo de que estamos a entrar numa nova era”. No entanto, este otimismo superficial durou pouco tempo. 

Nos anos noventa, o relógio teve de ser drasticamente reiniciado, na sequência da eclosão da “segunda era nuclear” e da tardia tomada de consciência de que o nosso planeta está a aquecer devido às nossas próprias actividades. Embora as coisas tenham flutuado um pouco no final dos anos noventa, o relógio tem-se aproximado cada vez mais da meia-noite desde 2010. É caso para perguntar até que ponto teremos de nos aproximar do Armagedão para que o Boletim do Juízo Final cumpra o objetivo de um dos seus editores fundadores, Eugene Rabinowitch, de finalmente “assustar os homens para que se tornem racionais”. A probabilidade de sermos assustados até à racionalidade está a diminuir de dia para dia. 

Uma perspetiva sóbria e que sugere que a história humana terminará em agonia e não em êxtase neoliberal. Mas imaginemos por um momento que ainda não passámos o ponto de não retorno e que nos convencemos da necessidade de mudar radicalmente os nossos caminhos para o bem da humanidade e do resto da Mãe Terra. Como é que é a humanidade quando se assusta com a racionalidade? Como é que pensaríamos e nos comportaríamos nessas circunstâncias alteradas? 

Tudo o que o falecido Eugene Rabinowitch tinha a dizer sobre o assunto era que o relógio do Boletim “pretende refletir mudanças básicas no nível de perigo contínuo em que a humanidade vive na era nuclear, e continuará a viver, até que a sociedade ajuste as suas atitudes e instituições básicas”. 

Isto pode ser verdade, mas será que a sociedade humana precisaria de passar por uma revolução antes de estar preparada para aceitar e implementar estes ajustamentos necessários? E que forma teria de assumir essa revolução? Exigiria uma saída limpa e violenta do status quo ou, em alternativa, uma abordagem que construísse uma solução necessariamente radical baseada nos aspectos mais progressistas do(s) nosso(s) regime(s) atual(is)? Será que uma tal transformação global é sequer imaginariamente possível, quanto mais política e economicamente viável? Estas não são perguntas ociosas na situação drástica em que nos encontramos atualmente.

Houve uma altura em que os filósofos davam respostas a questões tão grandes e importantes. Hoje em dia, a grande maioria deles não se interessa profissionalmente pela política, enquanto os que se interessam o fazem de uma forma que pareceria bizarra para os seus antecessores mais capazes e empenhados. 

A maioria dos filósofos académicos contemporâneos tende a concentrar-se num ramo específico da disciplina, como a filosofia da mente ou a filosofia da linguagem, ou num determinado filósofo ou escola de filosofia, como por exemplo Wittgenstein ou o existencialismo. 

A ideia de que a filosofia é um todo integral foi vítima da profissionalização da matéria enquanto disciplina académica, o que significa que os seus praticantes passam as suas carreiras a estudar cada vez mais sobre cada vez menos. 

Este padrão pode ter-se revelado pragmaticamente bem sucedido para o negócio da universidade, mas o seu efeito na filosofia dificilmente pode ser visto como feliz, mesmo entre aqueles de nós que não compram inteiramente a ideia de uma qualquer idade de ouro perdida em que a filosofia gozava do poder de mudar o mundo.

Um dos grandes filósofos que encarou enfaticamente a filosofia como um todo e procurou responder às questões definidoras da sua época foi o alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel. Ao contrário dos seus antecessores, Hegel defendia que a história é a chave para responder ao enigma da nossa existência. Antes de Hegel, os filósofos tendiam a considerar a humanidade como fundamentalmente imutável, mesmo que discordassem sobre o que faz com que os seres humanos funcionem. 

Hegel apresentou a ideia revolucionária de que a natureza humana não só se transformou radical e irreversivelmente ao longo do tempo, mas também que esta mudança ocorre de uma forma particular e, o que é mais surpreendente, faz parte de um objectivo subjacente e profundo. 
A ideia de que a história é “uma história contada por um idiota” era um anátema para Hegel. Em seu entender, existe um padrão discernível e coerente na história humana e esta conduz inevitável e progressivamente, através de um processo dialético, a um destino final e, em última análise, feliz. 
“A história do mundo não é outra coisa senão o progresso da consciência da liberdade’.
Hegel entendia a história como um assunto muito complexo e problemático, em que o caminho para o progresso tem muitas vezes de suportar dar um passo em frente e quatro passos atrás antes de acabar por obter um ganho líquido. 
Uma imagem mais verdadeira da dialética histórica hegeliana, da tese, passando pela antítese, até à síntese, está, portanto, mais de acordo com o espírito de “tentar de novo, falhar de novo, falhar melhor”.

Bourke considera este padrão digno de nota por uma série de razões, mas sobretudo porque oferece um correctivo vital à tendência que se deixa levar pela ilusão de que uma transformação epocal genuína exige um afastamento imediato e completo da que a precedeu. 

Este ponto pode parecer elementar, mas é notável a frequência com que nos deixamos submeter ao mito de começar de novo, o que não raramente tem causado um sofrimento humano incalculável. 
Bourke mostra que uma leitura atenta da Filosofia da História de Hegel revela um sentido histórico muito mais ambivalente e equilibrado, que oferece um antídoto potente não só para o mito do recomeço, mas também para aqueles que, como Nietzsche e Foucault, adoptam uma visão indevidamente desdenhosa (ou, no caso de Pinker, triunfante) das nossas normas e ideais actuais.

Uma das lições mais importantes do trabalho pormenorizado de exegese de Bourke é o reconhecimento da indispensabilidade da continuidade, tanto quanto da mudança, no processo histórico. 

De facto, o primeiro terço do seu livro dá vida a esta visão importante e duradoura, mostrando como o próprio Hegel nunca poderia ter realizado os avanços intelectuais que realizou sem se apoiar nos ombros do seu grande antecessor Kant. 

O argumento pormenorizado e convincente que Bourke apresenta para mostrar como Hegel teve de se debater com a perspetiva epistemológica e ética de Kant antes de poder formular a sua própria visão distinta e revolucionária do mundo é uma das secções mais interessantes desta obra verdadeiramente impressionante.

Voltando à questão do ponto de vista de Bourke sobre o objetivo do campo de estudo que escolheu, ele aborda esta questão na secção final do livro, perguntando se a história intelectual deve aderir ao “revivalismo” (procurando ressuscitar ideias passadas) ou ao “historicismo” (aceitando a anterioridade do passado). 

Quais são as principais conclusões da avaliação de Bourke sobre o estado atual da disciplina? 
Há, grosso modo, dois pontos principais que ele faz questão de salientar. O primeiro é que a tendência dos fundadores da chamada escola de Cambridge da história das ideias para assumirem o papel de moralistas, revivendo ideias ultrapassadas para fins actuais, é problemática, uma vez que trai os seus impulsos historicistas originais e válidos. 

Bourke considera que John Pocock, Quentin Skinner e John Dunn demonstraram mais sabedoria quando se concentraram exclusivamente na reconstrução da identidade histórica de pensadores do passado e dos seus pensamentos e deixaram “o passado histórico para o passado”. 

O seu segundo ponto, e relacionado com este, é que uma das principais razões pelas quais os historiadores intelectuais (e, em certa medida, os teóricos políticos) resistem melhor ao revivalismo é o facto de a sua verdadeira vocação ser a de diagnosticadores e não a de moralistas. A preferência firme de Bourke pela adopção de uma abordagem “diagnóstica” (distinta de uma “prescritiva”) é essa:

Ajuda-nos a compreender o carácter das estruturas políticas como produtos de constelações de forças anteriores. Estimula-nos a separar formações distintas, bem como a identificar continuidades ao longo do tempo. O seu primeiro dever é evitar a confusão entre estas duas dimensões. Vista deste ângulo, a tarefa mais importante da contextualização é realçar a diversidade dos contextos, sobretudo a sua falta de sincronia homogénea. 

Não estudamos Hegel para confundir as suas circunstâncias com as nossas, mas precisamente para avaliar as discrepâncias entre o passado e o presente. O processo pode revelar correlações e afinidades, ou pode igualmente trazer à tona disparidades. Como Hegel argumentou no início da Ciência da Lógica, não há mérito em apegar-se “a formas de uma cultura anterior”.

Será que ele tem razão? Não há necessidade de acreditar no mito de que podemos voltar atrás no tempo para insistir que há aspectos do nosso passado, mesmo o passado muito distante do mundo antigo, que podem valer a pena reviver. Na nossa actual condição existencial, precisamos de toda a ajuda possível para impedir, ou pelo menos impedir, que o outro relógio se aproxime mais da meia-noite.


March 25, 2025

Livros - As montanhas como arte viva

 


Lairig Ghru mountain pass in the Cairngorms National Park in Scotland. (Jan Holm/Loop Images/Universal Images Group/Getty Images)


Há certos lugares onde um corpo descobre instantaneamente que pertence, geralmente em virtude da origem ou da familiaridade, por vezes através de uma correspondência inexplicável entre o mundo interior e a paisagem exterior. O lugar que o meu corpo reconheceu foi um choque para mim. 
Durante 29 anos, fui uma criatura das cidades. Só quando me mudei para as Montanhas Brancas de New Hampshire durante um mês, aquando da pandemia, é que senti que era um cidadão natural dos seus cumes lunares.
Desde então, tenho feito tantas peregrinações quanto possível, para as ver em todas as estações. São melhores no Outono, quando as árvores estão a arder, iluminadas por mil cores. No Verão, os picos tornam-se uma turbulência de azuis nebulosos. Na Primavera, os trilhos ficam escorregadios com lama e os riachos incham, rugindo, e no Inverno, o frio é esfoliante. 
No entanto, parte do atractivo das Whites é o facto de as ferozes temperaturas do Inverno poderem atacar a qualquer momento. Na Cordilheira Presidencial, as temperaturas descem abaixo de zero e os ventos sopram com ferocidade mesmo em pleno verão.

Adoro tudo isto, até a selvajaria do clima. O que é que esta paisagem inóspita tem que me comove tão total e instintivamente?

Durante a Segunda Guerra Mundial, a romancista Nan Shepherd escreveu um livro dedicado a explicar os encantos das suas amadas montanhas, as Cairngorms, na sua Escócia natal. The Living Mountain (A Montanha Viva). 
O livro era tão pouco categorizável que afastou os editores até que uma pequena editora o publicou em 1977. Tornou-se, desde então, um clássico da escrita sobre a natureza por uma boa razão. É um dos mais extasiantes testemunhos que alguma vez encontrei daquilo a que Shepherd chama “o pungir da altura”.

Tal como as minhas Whites, as Cairngorms de Shepard não são especialmente altas - o seu pico mais imponente, Ben Macdui, tem apenas 4.295 pés - mas são, também elas, expostas e traiçoeiras. 
O escritor britânico Robert Macfarlane chega ao ponto de lhes chamar “o Ártico da Grã-Bretanha” na sua encantadora introdução a uma nova edição do livro: “No Inverno, ventos tempestuosos de até 170 milhas por hora rasgam as zonas superiores da cordilheira". (Devo notar, com algum orgulho competitivo, que os ventos no topo do Monte Washington, em New Hampshire, foram uma vez medidos a 231 mph, os mais fortes alguma vez registados fora de um ciclone tropical, mas os Cairngorms fazem uma exibição perfeitamente respeitável).

Embora Shepherd tenha viajado muito e frequentemente, viveu toda a sua vida nas Terras Altas da Escócia. 
Nasceu em 1893, perto de Aberdeen, e morreu na mesma região em 1981. Durante os 88 anos que se seguiram, fez caminhadas incessantes e intrépidas em todas as estações e condições. 
The Living Mountain é em parte um livro de memórias, em parte um elogio, em parte um registo de uma longa e paciente relação com um lugar - uma espécie de casamento.

A escrita científica não é exatamente o que Shepherd procurava, mas ela sublinhava que a sua admiração lhe proporcionava um tipo de conhecimento diferente, mas igualmente indispensável. 
Era uma defensora da epistemologia afectiva. “O amor perseguido com fervor é um dos caminhos para o conhecimento”, insistia. 
Os pássaros que ela vislumbrava em todas as situações imagináveis - a águia que lutava contra um vento forte, o jovem melro que acordava e descobria a caminhar ao longo do seu braço - “não estão nos livros para mim”, mas “em encontros vivos”. Quando se lembrou de navegar por um caminho sinuoso, ajustando-se reflexivamente para evitar pisar uma cobra e maravilhando-se com a agência do seu passo, pensei naquilo a que os filósofos chamam “cognição incorporada”. “Pode dizer-se que o corpo”, escreveu Shepherd, ‘pensa’.
No entanto, por mais avidamente que pense, não chega a conclusões finais. “Nunca se conhece bem a montanha”, advertiu Shepherd, ‘nem a nós próprios em relação a ela’. Em parte, a montanha escapa-nos porque está sempre a mudar, não só com a mudança das estações, mas também de um segundo para o outro. A aparência dos picos numa tempestade de neve “muda com cada ar”. O Verão não é muito mais consistente. Numa manhã quente, Shepherd estava a desfrutar de um tempo claro e solarengo quando, de repente, se viu envolta numa nuvem.
E nós, caminhantes, também estamos sempre a mudar, sempre a tentar ver de novo vistas familiares. Shepherd desenvolveu métodos precisos para prestar às suas montanhas nativas o tributo do espanto apropriado. 
Dormia ao relento para poder acordar e, no intervalo mágico entre o sono e a plena consciência, ficar maravilhada com os penhascos e ravinas que não conseguia reconhecer; contorcia-se em posições estranhas, inclinando-se para vislumbrar as grandes rochas de cabeça para baixo.
Mas, na maior parte das vezes, Shepherd só tinha de esperar que a paisagem se renovasse, como acontecia constantemente. 
Num dia nublado, “a pequena porção de terra” que é visível “está isolada do seu ambiente familiar”. Assim, “a bruma, que esconde, pode também revelar. Distinguem-se depressões e ravinas no que parecia ser uma única colina: uma nova profundidade é dada à vista”. Uma vez, “numa estação monótona, e sentindo-me monótona como o tempo, estou numa ponte sobre um riacho inchado. E, de repente, o mundo torna-se novo”.
Shepherd olhava para as montanhas como muitos olham para a arte, e The Living Mountain é um livro de prosa pictórica: “O verde é a cor mais caraterística do céu e da água”, mas contra um certo tipo de céu, ‘uma colina coberta de neve pode parecer arroxeada’. 
As colinas parecem inicialmente castanhas, mas “assim que as vemos revestidas de ar, as colinas tornam-se azuis. Todos os tons de azul, do branco leitoso opalescente ao índigo, estão lá”. E a todas estas cores juntam-se as diversas plantas e animais da região (um dos muitos prazeres de A Montanha Viva é o seu léxico rico e excêntrico): a garça-branca, o asfódelo-do-pântano, o saxifrage.
Como é que pode haver tanta azáfama num ambiente tão hostil?
 “Com os terríveis ventos fortes do planalto, é de admirar que a vida possa existir”, escreveu Shepherd, ‘no entanto, o botânico com quem às vezes ando diz-me que mais de vinte espécies de plantas crescem ali’.
 Muitas delas são antigas, e Shepherd fica atónita quando descobre que “a flora alpina das montanhas escocesas é de origem árctica - que estas pequenas plantas dispersas sobreviveram ao período glaciar e são a única vida vegetal no nosso país que é mais antiga do que a Idade do Gelo”. 
A sua permanência é incompreensível, tanto porque uma tal enormidade de tempo está muito para além do nosso insignificante alcance humano, como porque as plantas de Cairngorms aparecem numa tão louca diversidade de formas. Estão envoltas em nevoeiro, são frescas em dias claros, azuis ao amanhecer. São incapazes de estagnação.
Numa passagem, Shepherd recorda que gostava de ver a água a congelar no Inverno. O melhor de tudo, escreveu, é “o ponto de flutuação entre o movimento da água e a imobilidade da geada”. As Cairngorms são exatamente esse ponto, entre a fixidez e o fluxo. 
As montanhas são, se não permanentes, suficientemente próximas e, no entanto, perturbam-nos e inquietam-nos, demonstrando que “a nossa visão habitual das coisas não é necessariamente correcta: é apenas uma de um número infinito e vislumbrar uma visão desconhecida, mesmo que por um momento, desfaz-nos”.
Mesmo que perdurem, alteram-se. Uma intimidade com um lugar, tal como uma intimidade com uma pessoa, é a tarefa de uma vida. Porque, como escreve Shepherd, “Conhecer o outro é interminável”.

Becca Rothfeld

(percebo perfeitamente este apelo pela experiência vívida e estética das grandes montanhas solitárias agrestes e fiquei cheia de vontade de ler o livro)

March 08, 2025

Jovens que lêem

 


Mais livros - uma biografia de Xi

 


O Imperador Vermelho, Xi Jinping e a Nova China
de Michael Sheridan

Sei muito pouco sobre a China. Sei algo sobre a China imperial, sobretudo sobre certas épocas e imperadores, e já li sobre a revolução cultural dos anos sessenta do século passado, mas sei pouco sobre a China actual e as suas pessoas.
Um aspecto que facilita compreender a China é o facto de Mao ter copiado, em termos de acção política, o comunismo soviético de Estaline. Disso sei bastante. Comecei a ler autores russos e acerca da Rússia soviética pelos 13 anos e já li muito, muito. Isso facilita compreender certos aspectos da China pós-Mao.
Porém, não sabia nada de Xi.
Ainda vou no princípio -comecei a ler o livro ontem à noite- e já percebi que a China adoptou o regime comunista mas não varreu para a história passada o sistema de classes, quase castas e de zonas exclusivas a classes sociais. Apenas mudaram o tipo de pessoas e de orientação da classe privilegiada.
À cabeça da sociedade estão 'Os Princípes herdeiros', o que se refere a todos os que são descendentes de figuras importantes do tempo da revolução e que, ao tempo, ocuparam os palácios dos seus antecessores caídos em desgraça.
São um grupo de famílias cheias de privilégios, que passam aos descendentes, como uma autêntica corte. São treinados para governar. Xi é o primeiro dos Príncipes. Nasceu muito próximo da chegada de Mao ao poder.
Depois destes há uma casta de pessoas/famílias que através da lealdade ao partido têm acesso a frequentar boas escolas e zonas exclusivas e tornar-se altas figuras permanentes dentro do partido. 
De resto, os indivíduos da classe superior podem comportar-se como imperadores e, por exemplo, arrasar uma vila atirando as pessoas e negócios para o olho da rua, para construir uma estátua gigante de si ou da sua família.
Portanto, é um sistema que aderiu ao sistema soviético na governação política (a comissão política, o politburo, etc.), na questão do partido único, da sociedade militarizada, apertado controlo social com punição severa dos desviantes mas, ao mesmo tempo, mantém as superstições da religião antiga e o sistema de classes da corte imperial da China Antiga com a desigualdade social e política que tal implica.
Como todas as sociedades ditatoriais, sejam de cariz político ou teocrático, é uma extremamente machista -nunca nenhuma mulher fez parte do politburo e a governação é um assunto de homens- conservadora e retrógada.

O livro é bom. Infelizmente está impresso naquele papel que deita cheiro a pó de livro como se se fosse desfazer em pó. Faz-me espirrar.

Livros - The City in History




As muralhas das cidades medievais criaram um “sentimento fatal de insularidade:


The City in History: Its Origins, Its Transformations, and Its Prospects
by Lewis Mumfor



Os elementos determinantes do plano medieval [de uma cidade] são válidos tanto para uma cidade antiga de fundação romana, como Colónia, como para uma cidade nova, como Salisbury. 

A muralha, as portas e o núcleo cívico determinam as principais linhas de circulação. Quanto à muralha, com o seu fosso exterior, canal ou rio, fazia da cidade uma ilha. A muralha era tão valorizada como símbolo como as torres das igrejas: não era uma mera utilidade militar. 

A mente medieval confortava-se com um universo de definições nítidas, muros sólidos e vistas limitadas: até o céu e o inferno tinham as suas fronteiras circulares. Os muros do costume delimitavam as classes económicas e mantinham-nas no seu lugar. A definição e a classificação eram a própria essência do pensamento medieval: assim, o nominalismo filosófico, que desafiava a realidade objetiva das classes e apresentava um mundo de átomos não relacionados e de acontecimentos desconexos, era tão destrutivo para o estilo de vida medieval como as balas de canhão o eram para as muralhas da cidade.

A importância psicológica da muralha não deve ser esquecida. Quando a ponte levadiça era fechada e as portas da cidade eram trancadas ao pôr do sol, a cidade ficava isolada do mundo exterior. Esta clausura contribui para criar um sentimento de unidade e de segurança. 

É significativo - e um pouco perturbador - que numa das raras comunidades modernas em que as pessoas viveram em condições análogas, nomeadamente na comunidade de investigação atómica de Oak Ridge, os habitantes protegidos da cidade passaram a valorizar a vida “segura” no seu interior, livre de qualquer tipo de invasão estrangeira ou mesmo de aproximação não autorizada - embora isso significasse que as suas próprias idas e vindas estavam sob constante vigilância e controlo militar.



North Gate Salisbury 2

Mas, mais uma vez, na comunidade medieval, a muralha construiu um sentimento fatal de insularidade: tanto mais que o mau estado dos transportes rodoviários aumentava as dificuldades de comunicação entre as cidades. 

Como já aconteceu muitas vezes na história urbana, a unidade defensiva e a segurança inverteram a sua polaridade e passaram a ansiedade, medo, hostilidade e agressão, especialmente quando parecia que uma cidade vizinha poderia prosperar à custa da sua rival. Recordemos os ataques descarados de Florença a Pisa e Siena! Este isolacionismo era, de facto, tão autodestrutivo que sancionava as forças de exploração e agressão, tanto na Igreja como no Estado, que procuravam, pelo menos, criar uma unidade mais inclusiva, transformando a muralha demasiado sólida num limite fronteiriço mais etéreo, delineando uma província muito mais vasta.

Não se pode deixar a muralha sem notar a função especial da porta da cidade: muito mais do que uma simples abertura, era um “ponto de encontro de dois mundos”, o urbano e o rural, o interior e o exterior. 

A porta principal era a primeira saudação para o comerciante, o peregrino ou o viajante comum; era simultaneamente uma alfândega, um posto de controlo de passaportes e de imigração e um arco triunfal, com as suas torres e torreões a rivalizarem, como em Lubeck, com as da catedral ou da câmara municipal. Onde quer que o rio do tráfego abrande, tende a depositar a sua carga: assim, era geralmente junto às portas que se construíam os armazéns, se reuniam as estalagens e as tabernas, e nas ruas adjacentes os artesãos e os comerciantes instalavam as suas lojas.

Deste modo, o portão produzia, sem regulamentos especiais de zonas, os bairros económicos da cidade; e como havia mais de um portão, a própria natureza do tráfego de diferentes regiões tenderia a descentralizar e diferenciar as áreas comerciais. Como resultado desta disposição orgânica das funções, a zona interior da cidade não era sobrecarregada por qualquer tráfego, exceto aquele que as suas próprias necessidades geravam. 

O significado original de “porto” deriva deste portal; e os comerciantes que se instalaram neste porto eram outrora chamados “carregadores”, até passarem o nome aos seus ajudantes.

“Por fim, não se deve esquecer uma função antiga da muralha, que voltou na Idade Média: servia de passeio aberto para recreio, sobretudo no verão. Mesmo quando os muros não tinham mais de seis metros de altura, davam um ponto de vista sobre a paisagem circundante e permitiam desfrutar das brisas de verão que não penetravam na cidade.”


January 16, 2025

Livros - A Origem da Ciência

 

O livro é interessante para quem não está por dentro da filosofia medieval com o seu excesso de racionalismo teológico e com a tímida evolução das ideias à medida que se foram alargando os horizontes, a partir do século XII, com o contacto com os povos do Oriente próximo, devido às cruzadas e com a expulsão dos mouros e descobrindo as obras de Aristóteles. Agora, quem espera que o livro seja, como dizem na contracapa, um resgate de uma época injustamente declarada de Idade das Trevas, pois desengane-se. A expressão Idade das Trevas não se refere a não haver pessoas inteligentes e pensantes, que as houve em fartura, mas à decadência da literatura, das artes, da filosofia e das ciências em geral, desde o fim do Império Romano, até ao século XII, por conta da ascenção de uma sociedade teocrática, que subjugou a cultura e o pensamento livre e que só muito a custo, conseguiu libertar-se desse jugo, tal como vemos hoje acontecer nas sociedades teocráticas muçulmanas.




December 31, 2024

Perguntas de fim de ano impossíveis de responder

 


Ainda agora me enviaram uma pergunta para porem a resposta num post de uma rede social: "qual o melhor livro que leste em 2024?" Não sei responder a isso! Como é que é possível lembrar-me de todos os livros que li? Só se tivesse anotado tudo o que li. Por exemplo, neste Natal deram-me estes livros: 

Comecei a ler O Homem que Gostava de Cães, que é sobre Trotsky e o seu assassino, Rámon Mercader, bem como os horrores da ditadura totalitária comunista-soviética. Também já li o primeiro conto das Histórias de Ted Chiang, Tower of Babylon, por sinal muito bom.

Hoje, dado que vou ficar por aqui porque não me apetece ir para lado nenhum para festas e muito menos oganizá-las, quero ler mais uma porção de, O Homem que Gostava de Cães e ainda A Origem da Ciência

Ontem reli estes dois livros, embora um deles não totalmente mas uns capítulos  que me interessavam -o de Karl Jaspers que é editado pela Hanna Arendt- porque ando a organizar ideias sobre um assunto e precisava de lembrar-me ao certo do racionalismo iluminista de Kant e das suas ideias acerca da história e do seu progresso.

A questão é que, se bem que haja dias em que leio pouco -dois ou três artigos literários, filosóficos ou científicos- na maioria dos dias leio muito.

Esperar que um leitor se lembre de todos os livros que leu num ano e qual o melhor deles é o mesmo que esperar que um cozinheiro se lembre de todas as comidas que comeu e qual a melhor ou esperar que um cinéfilo se lembre de todos os filmes que viu e qual o melhor, etc.

Enfim, se tivesse mesmo que responder escolhia um livro de um filósofo. Por exemplo, dois que li recentemente: este de Kant ou o Tratado da Natureza Humana de Hume que reli há um mês e tal por causa de uma formação - mas não sou capaz de dizer qual deles é o melhor. Ambos são o melhor. Todos os livros dos filósofos são, todos eles, o melhor e nisto não há contradição. Cada filosofia de cada filósofo é uma resposta a outra filosofia de outro filósofo e nesse diálogo contínuo em espiral, todos têm insights, respostas e soluções para os problemas humanos que não se anulam mutuamente, antes são todas, em parte, válidas e supra-temporais. 

December 28, 2024

Livros - 'Arménia - Povo e Identidade'

 


O monte Ararat da Arménia -actualmente fazendo parte da Turquia, a 30 e poucos quilómetros da Arménia- é o local da refundação dos seres humanos, na mitologia cristã. É nesse monte -representado na página de apresentação do livro- que a Arca de Noé parou e foi a partir dai que repovoou a Terra.

A Arménia é menos um país e mais um povo. Um povo milenar, irredentista, que não abdica da sua história e da sua identidade, apesar de andar sempre em diáspora.

A Arménia está na confluência da Europa e da Ásia e sempre foi um caminho apetecido dos impérios de maneira que está constantemente a ser invadida e ocupada e os tempos de independência são intervalos.

E se por vezes o ocupante os deixava viver mais ou menos em paz, como aconteceu com o império Persa que proibiu a escravatura e respeitava as práticas, costumes e cultura local, outras vezes foram escravizados e massacrados como aconteceu com as invasões maometanas do século VII que escravizaram o povo e causaram uma diáspora maior que as anteriores. 

Já no século XX foram vítimas de um genocídio por parte dos otomanos da actual Turquia. Nessa altura tinham uma comunidade muito grande e próspera na Turquia otomana.

Os arménios são um povo em constante diáspora - um deles, como se sabe, veio parar a Portugal; no entanto, apesar de andarem sempre dispersos, são um povo com uma identidade muito forte que nunca abdica da sua identidade e da sua reconquista da sua Pátria, de uma maneira ou de outra.

Vou a meio do livro. Até tratou da História, agora vai tratar da cultura. Muito bm o livrinho.

November 21, 2024

Leituras de insónias - Livros - "O Melhor de Todos os Mundos Possíveis - A Vida de Leibniz em Sete Dias Cruciais"

 



Crítica de 'O Melhor de Todos os Mundos Possíveis': Leibniz vive de novo

O filósofo polimático via a intenção divina na estrutura minuciosa da realidade. Voltaire pintou-o como um otimista convencido.

Por Jeffrey Collins

Na manhã de 1 de novembro de 1755, um terramoto de magnitude 8,5 foi sentido em todo o Atlântico - da Escócia ao Brasil - mas foi Portugal que sofreu o pior. Durante seis minutos catastróficos, Lisboa tremeu. A água no porto recuou sinistramente e, uma hora depois, um tsunami de 6 metros desceu. Seguiu-se um enorme inferno. Era dia de Todos os Santos, pelo que muitas igrejas estavam cheias quando desabaram. Talvez 50.000 pessoas tenham morrido.

O grande filósofo Gottfried Wilhelm Leibniz - nascido em Leipzig em 1646 - morreu quase 40 anos antes do terramoto de Lisboa, mas o acontecimento viria a moldar o seu legado. Voltaire respondeu mordazmente ao terramoto com o romance satírico Cândido, ou o Optimista (1759). Utilizou a personagem absurda do Dr. Pangloss para ridicularizar o optimismo metafísico e as teologias da benevolência divina. O terramoto de Lisboa foi uma das tragédias que pareceu refutar o mantra panglossiano, “tudo é melhor no melhor dos mundos possíveis”. Por trás de Pangloss estava o verdadeiro inimigo de Voltaire: Leibniz.

Actualmente, Leibniz é pouco lido e menos compreendido. Foi um polímata prodigioso - escreveu monografias, ensaios, cartas e um vasto arquivo inédito - mas não escreveu uma obra-prima única. Diderot disse que se as ideias de Leibniz “tivessem sido expressas com o talento de Platão, o filósofo de Leipzig não cederia nada ao filósofo de Atenas”.

Michael Kempe, um notável historiador intelectual, escreve com admiração semelhante em O Melhor de Todos os Mundos Possíveis: Uma Vida de Leibniz em Sete Dias Fundamentais. Traduzido do alemão por Marshall Yarbrough, o livro oferece uma apresentação de primeira classe do complexo sistema de ideias de Leibniz e dá vida a uma figura de augusto afastamento.

Embora Leibniz viesse a aprender a nova filosofia científica de figuras como Descartes e Hobbes, a sua formação inicial foi escolástica e dominada pelo estudo dos antigos. A partir daí, rejeitou a oposição entre filosofia “antiga” e “moderna” e procurou conciliar as duas. Depois da universidade, juntou-se à corte do Eleitor de Mainz. Aí produziu trabalhos de lógica, matemática e física. Quatro anos em Paris expõem-no à filosofia cartesiana e à matemática de Pascal. Conhece Malebranche e Spinoza. Movimentou-se entre as estrelas mais brilhantes do firmamento do início do Iluminismo.

Em 1673, o Eleitor morreu e Leibniz passou a trabalhar para o Eleitor de Hanôver, onde passaria a maior parte do resto da sua vida. O filósofo era agora também conselheiro de Estado e historiador da corte. A sua carga de trabalho era simplesmente impressionante. Correspondeu-se com mais de 1000 associados e escreveu sobre religião (Teodiceia, 1710), epistemologia (Novos Ensaios sobre o Entendimento Humano, escrito em 1704) e ontologia (Monadologia, escrito em 1714). Os seus últimos anos de vida foram marcados por uma feroz controvérsia sobre se teria sido ele ou Newton a inventar o cálculo. Leibniz morreu, aos 70 anos, em 1716.

Kempe não oferece uma biografia exaustiva, mas explora uma série de dias seminais na vida intelectual do filósofo. A 29 de outubro de 1675, a partir do seu apartamento em Paris, Leibniz inventa o símbolo da integral, central na matemática infinitesimal moderna. A 13 de agosto de 1696, a partir do Palácio de Herrenhausen, em Hanôver, debate a sua compreensão de Deus com a inteligente e perspicaz Electrisa Sofia. E assim por diante. O conceito é um pouco estranho e produz uma narrativa intermitente, mas capta a qualidade caleidoscópica do pensamento de Leibniz.

Leibniz foi um construtor de sistemas, que saqueou diferentes tradições filosóficas e acrescentou as suas próprias inovações. Aceitou aspectos do universo “mecanizado” da nova ciência e dominou a matemática que era entendida como a sua linguagem. Mas, ao contrário de Hobbes e Spinoza, rejeitou o materialismo puro e o determinismo.

Leibniz desejava preservar algo das “substâncias” discretas (ou “essências” unificadas e coerentes) que constituíam as coisas individuais no mundo, em vez de permitir que elas se dissolvessem num turbilhão de átomos. No entanto, as verdadeiras substâncias não eram materiais, mas sim mentais, capazes de perceção e apetite. Leibniz chamou-lhes mónadas, os átomos da realidade, ideais mas de alguma forma ligados a máquinas orgânicas que podiam ser incomensuravelmente pequenas. Qualquer corpo complexo era um composto de mónadas mais pequenas, cada uma delas possuidora de uma substância perceptiva.

O empirista Bertrand Russell descreveria mais tarde a monadologia como um “conto de fadas fantástico, talvez coerente, mas totalmente arbitrário”. O sistema emergiu do idealismo de Leibniz, a sua crença de que a realidade não se encontrava na matéria percepcionada mas na mente dos percepcionadores. 

Talvez paradoxalmente, o proteico Leibniz era também um futurista e tecnólogo. Propôs um canal que antecipou o Suez e imaginou submarinos e robots que navegam pelas ruas. Era suscetível, diz o Sr. Kempe, à “euforia do progresso”. Planeava e projectava incessantemente, escrevendo “sentado de pernas cruzadas na cama” ou na sua cozinha a consumir chávenas intermináveis de chá açucarado.

O Sr. Kempe apresenta habilmente o desenvolvimento de Leibniz dos métodos e símbolos do cálculo infinitesimal, a base do nosso mundo moderno projetado e quantificado. (A capacidade de “efetuar operações com valores infinitamente pequenos” - e de transmitir em fórmulas o que antes exigia diagramas geométricos - foi uma descoberta deslumbrante que estimulou o otimismo e a fé de Leibniz na razão humana.

Leibniz aspirava a exprimir o conhecimento humano através de símbolos e a aplicar a “análise combinatória” a todas as ciências. “Não discutamos mais”, escreve o Sr. Kempe sobre Leibniz, ”calculemos antes: Calculemus!” O filósofo acabou por associar a sua análise combinatória a uma aritmética binária que utiliza 0 e 1. Em seguida, conceptualizou a “utilização deste método para programar uma máquina”. Foi assim, escreve Kempe, que a nossa “cultura digital moderna” foi prefigurada.

Mas a matemática, para Leibniz, não reduziu o mundo à matéria em movimento ou a mente humana a um mero cérebro material. A “linguagem da matemática”, diz Kempe, revelava as “leis divinas da criação”. A própria aritmética binária tinha uma dimensão espiritual, com o número “1” a representar a “unidade absoluta” de Deus e o “0” o “vazio” de onde surgiu a criação. Temos tendência a pensar no cosmos matematizado como desencantado, esvaziado de divindade e espírito. Mas para Leibniz a matemática fornece uma chave para a alma humana e para a mente de Deus.

Era esta antropologia e teologia otimista que Voltaire não podia aceitar. Por detrás da confiança de Leibniz na racionalidade humana e na capacidade de progresso estava a crença de que Deus tinha criado o “melhor de todos os mundos possíveis”. Voltaire caricaturou esta visão como uma recusa cega de reconhecer a dor e a morte. Kempe recupera toda a subtileza da afirmação de Leibniz.

Na Teodiceia (uma combinação dos termos gregos “Deus” e “justiça”), Leibniz confrontou-se com o problema do mal. Defendia que a criação de Deus não era arbitrária, mas racional. Deus não podia violar a “compatibilidade interna” das inúmeras leis e componentes da criação. Uma vez que o mundo é a criação de um ser perfeito, só pode atingir o “melhor estado possível” sem a perfeição divina.

Uma chave para a visão de Leibniz é a simetria da criação. O melhor só surge contra o pior, o belo contra o feio, o harmonioso contra o dissonante. Na sua forma vulgar, estas doutrinas produzem uma indiferença repulsiva pelo sofrimento. Leibniz, argumenta Kempe, pretendia algo menos “tacanho” e mais “pragmático”. Pretendia reforçar o optimismo humano, mas também a nossa determinação em lutar pelo melhoramento humano. O melhor de todos os mundos exigia um esforço de realização e não uma aceitação bovina das coisas como elas são. Leibniz desafiou “a humanidade a participar no trabalho de luta pela perfeição”, escreve Kempe.

Dessa forma, Leibniz, citando Milton, atreveu-se a “justificar os caminhos de Deus para os homens”. Voltaire respondeu com uma má leitura sarcástica que explorava o facto empírico inegável de que o mal não era equilibrado pelo bem na vida de cada indivíduo discreto. Mas Leibniz não fez tal afirmação. O melhor mundo era optimizado como um todo, contendo tanto bem como mal como era necessário para a totalidade da criação.

Outros, da tradição cristã pouco considerada pelo céptico Voltaire, condenaram a teodiceia de Leibniz por não ter qualquer noção de providência ou redenção. Ele pouco falou da queda humana ou da necessidade de um mundo “feito novo”. O Deus de Leibniz era estranhamente limitado pelas leis da sua própria criação. Mas não era panglossiano.

O retrato apreciativo de Kempe não é uma hagiografia. Leibniz emerge como um génio deformado, propenso a especulações filosóficas inescrutáveis, mas capaz de visões quase proféticas do futuro. No final, Leibniz foi “incapaz de encaixar tudo o que tinha na cabeça sob o tecto abrangente de uma metafísica consistente”, escreve Kempe. Mas a sua esperança era reconciliar a razão, a divindade, o espírito e a liberdade com um universo de leis físicas frias. Essa é, sem dúvida, uma esperança que vale a pena recuperar.

Collins, professor no Centro Hamilton para a Educação Clássica e Cívica da Universidade da Florida in 
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