January 11, 2024

Je Ne Sais Quoi

 


O problema do conhecimento foi deslocado da casa de Deus para os departamentos relevantes da academia. Aqueles de nós que não estão no departamento certo ou na academia esperam e até pagam aos especialistas para saberem em nosso nome e transmitirem a informação de forma a podermos absorvê-la.

Mas o inefável é outro tipo de desconhecido. Não é simplesmente algo não conhecido. É experimentado pessoalmente mas não temos palavras para o dizer. Algo dos sentidos que nunca pode ser traduzido numa linguagem. Podemos vê-lo, ouvi-lo, saboreá-lo, tocá-lo, cheirá-lo, mas não conseguimos dizer exatamente o que é, nem a sua essência. Escapa à definição, embora esteja inevitavelmente presente. Amor e ódio à primeira vista, atração, repulsa, algo desejado, uma forma ou uma textura, um sabor subjacente ao óbvio, um indício ou um fantasma de algo que nunca se consegue identificar. 

O conhecimento, podemos tomá-lo ou deixá-lo para os outros, mas o inefável é uma afronta mais pessoal à nossa individualidade. Recusa-se a ser conhecido completamente. Pelo menos da forma como gostamos de conhecer as coisas, que é nomeando-as. I don’t know why I love you but I do ... What is this thing called love ... That old black magic has me in its spell ... Because he’s just my Bil... 

Sabemos, mas não conseguimos dizer. Está na ponta da nossa língua. Produz um desarranjo emocional e, no entanto, não o conseguimos definir. O inefável abala o mundo, diz Pascal: 
Quem quiser conhecer plenamente a vaidade do género humano, basta considerar as causas e os efeitos do amor. A sua causa é um je ne sais quoi ... E os seus efeitos são terríveis.
No seu fascinante livro, The Je Ne Sais Quoi in Early Modern Europe: Encounters with a Certain Something*, Richard Scholar (um nome que só poderia levar a uma vida em bibliotecas e à produção de volumes académicos) traça a frase desde a sua utilização inicial por Montaigne, antes de se tornar uma palavra em si mesma, para descrever a amizade entre ele e La Boétie: 
Para além de toda a minha compreensão, para além do que posso dizer sobre isto em particular, houve não sei que força inexplicável e fatídica que foi o mediador desta união. 
Já estava plenamente estabelecido quando Pascal a utilizou: 
Este je ne sais quoi, tão ligeiro que não pode ser reconhecido, abala toda a terra, os príncipes, os exércitos, o mundo inteiro. Se o nariz de Cleópatra fosse mais curto, toda a face da terra teria mudado. 
E depois morreu a morte da moda, quando, nos salões da sociedade polida de Luís XIV, o inexplicável se tornou o sem sentido, e o je ne sais quoi se transformou numa marca de qualidade entre a Qualidade: 
O galante, je ne sais quoi, que se difunde por todos aqueles que o possuem - nas suas mentes, nas suas falas e nas suas acções - é a coisa que completa as honnêtes gens, as torna amáveis e faz com que sejam amadas (Madeleine de Scudéry, 1684).
A partir daí, torna-se moribundo, uma afetação verbal que consegue uma existência prolongada, mas fantasmagórica, maneirista, à Noël Cowardwish.

Em 1671, Dominique Bouhours inclui Le Je Ne Sais Quoi como uma das suas conversas sobre temas literários e filosóficos em Les Entretiens d'Ariste et d'Eugène. Ele faz equivaler o je ne sais quoi a todos os conhecimentos ocultos. O desconhecido é para ser admirado e ficar por aí: Estes surtos ordenados de doença, estes tremores de calor e de frio e os intervalos durante uma longa doença não serão mais do que tantos je ne sais quoi? E o mesmo não acontece com o fluxo e refluxo das marés, a virtude do íman e todas as qualidades ocultas dos filósofos?

Mas, no mesmo ano, Rohault publicou o seu Traité de physique. Na sua recensão, a Royal Society elogiou a sua rejeição do je ne sais quoi como explicação satisfatória para o inexplicável: 
A matéria... é, segundo eles [os aristotélicos], uma coisa que não sei o quê, e a forma... outra que não sei o quê; como se dar um mero nome a uma coisa que não se conhece fosse suficiente para a tornar conhecida. 
Para os filósofos naturais, o je ne sais quoi é um refúgio para os ignorantes, um sítio para onde fugir para aqueles que não olham suficientemente para o mundo para encontrar a resposta para o que não é conhecido. Bacon, Galileu e Descartes rejeitaram o je ne sais quoi preternatural em favor de um exame científico da natureza. 

O estudo consciencioso da natureza ou da técnica sexual pode ou não fornecer a resposta às marés ou ao fascínio de determinadas mulheres, mas o pressuposto é que o dado por Deus não serve e que a resposta à questão existe mesmo que não possa ser encontrada ainda, ou por mim. Em todo o caso, o mistério das marés foi resolvido. A minha investigação ainda está em curso.

É claro que há a possibilidade de algumas coisas não terem respostas. Pode ser que, em certos domínios, só as perguntas interessem. 

Ainda nos falta uma resposta para a ligação emocional súbita. Há quem sugira que a inexprimível e misteriosa amizade de Montaigne com La Boétie era inexprimível precisamente porque o seu je ne sais quoi era uma evasão para essa outra evasão: o amor que não ousa dizer o seu nome. 

Porém isso pouco importa, porque, amizade ou amor, o mistério do reconhecimento do outro essencial permanece. Há uma sensação de que podemos chegar a algum lado se entendermos a amizade como um subconjunto da sexualidade, porque hoje em dia temos a noção de que a resposta pode estar na bioquímica. 

Montaigne e La Boétie eram compatíveis em termos feromonais. E assim que alguém descobrir a equação exacta da atração endócrina, o je ne sais quoi de Montaigne e dessas mulheres com um 'certo quê e um não sei que mais', estará disponível em latas de aerossol no Waitrose. É perfeitamente possível que, para além de um pequeno incómodo no fundo das nossas mentes - um cheiro ou um som que não conseguimos localizar - o inefável seja uma coisa do passado e que possamos apagar todos esses velhos je ne sais quoi e substituí-los por substantivos e adjectivos. Nessa altura, o mistério em si será o único mistério e todos nos sentiremos muito melhor.

Jenny Diski in lrb.co.uk (excertos)

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