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November 17, 2025

"todos os meus momentos passados podem existir algures"





Álvaro de Campos

"Relembro o que fiz e o que podia ter feito na vida. 
Relembro, e uma angústia 
Espalha-se por mim como um frio no corpo, ou um medo. 
O irreparável do meu passado — esse é que é o cadáver. 
Todos os outros cadáveres podem ser ilusão. 
Todos os mortos podem ser vivos noutra parte. 
E todos os meus momentos passados podem existir algures, 
Na ilusão do espaço e do tempo, 
Na falsidade do decorrer.
[...] Se em certa altura 
Tivesse voltado à esquerda em vez de à direita; 
Se em certo momento 
Tivesse dito sim em vez de não — ou não em vez de sim; 
Se em certa conversa 
Tivesse tido as frases que só agora, no meio-sono, elaboro... 
Se tudo isso tivesse sido assim, 
Seria outro hoje — e talvez o universo inteiro 
Seria insensivelmente levado a ser outro também.
Mas não virei para o lado irreparavelmente perdido, 
Nem pensei em virar — e só agora o percebo. 
Mas não disse não, ou não disse sim — e só agora vejo o que não disse. 
As frases que faltaram nesse momento surgem-me agora, 
Claras, inevitáveis, naturais, 
A conversa fechada concludentemente, 
A matéria toda resolvida... 
Mas só agora o que nunca foi, nem será para trás, me dói.
Mas poderei eu levar para outro mundo o que me esqueci de sonhar?”

(Vila dos Poetas · Áudio original)

November 06, 2025

"Ah ! comme la neige a neigé !"

 


Oil. Back of Sherbourne,Toronto, Canada” by John Kasyn 



Soir d’hiver
Emile Nelligan


Ah ! comme la neige a neigé !
Ma vitre est un jardin de givre.
Ah ! comme la neige a neigé !
Qu’est-ce que le spasme de vivre
À la douleur que j’ai, que j’ai !

Tous les étangs gisent gelés,
Mon âme est noire : Où vis-je ? Où vais-je ?
Tous ses espoirs gisent gelés :
Je suis la nouvelle Norvège
D’où les blonds ciels s’en sont allés.

Pleurez, oiseaux de février,
Au sinistre frisson des choses,
Pleurez, oiseaux de février,
Pleurez mes pleurs, pleurez mes roses,
Aux branches du genévrier.

Ah ! comme la neige a neigé !
Ma vitre est un jardin de givre.
Ah ! comme la neige a neigé !
Qu’est-ce que le spasme de vivre
À tout l’ennui que j’ai, que j’ai !…


Œuvres poétiques complètes I : Poésies complètes 1896-1941

October 27, 2025

"September 1913" by Yeats



(tão actual)


September 1913

by William Butler Yeats


What need you, being come to sense,
But fumble in a greasy till
And add the halfpence to the pence
And prayer to shivering prayer, until
You have dried the marrow from the bone;
For men were born to pray and save:
Romantic Ireland’s dead and gone,
It’s with O’Leary in the grave.

Yet they were of a different kind,
The names that stilled your childish play,
They have gone about the world like wind,
But little time had they to pray
For whom the hangman’s rope was spun,
And what, God help us, could they save?
Romantic Ireland’s dead and gone,
It’s with O’Leary in the grave.

Was it for this the wild geese spread
The grey wing upon every tide;
For this that all that blood was shed,
For this Edward Fitzgerald died,
And Robert Emmet and Wolfe Tone,
All that delirium of the brave?
Romantic Ireland’s dead and gone,
It’s with O’Leary in the grave.

Yet could we turn the years again,
And call those exiles as they were
In all their loneliness and pain,
You’d cry, ‘Some woman’s yellow hair
Has maddened every mother’s son’:
They weighed so lightly what they gave.
But let them be, they’re dead and gone,
They’re with O’Leary in the grave.

***

O que precisas, tendo recuperado o juízo, 
Senão vasculhar uma caixa gordurosa 
E juntar os meio-centavos aos centavos 
E orações às orações trêmulas, até 
Teres secado a medula dos ossos; 
Pois os homens nasceram para orar e salvar: 
A Irlanda romântica está morta e enterrada, 
Está com O'Leary na sepultura. 

No entanto, eles eram de um tipo diferente, 
Os nomes que silenciaram as suas brincadeiras infantis, 
Percorreram o mundo como o vento, 
Mas tiveram pouco tempo para rezar 
Por quem a corda do carrasco foi tecida, 
E o que, Deus nos ajude, poderiam eles salvar? 
A Irlanda romântica está morta e desaparecida, 
Está com O'Leary na sepultura. 

Foi por isso que os gansos selvagens estenderam 
As asas cinzentas sobre cada maré; 
Por isso que todo aquele sangue foi derramado, 
Por isso que Edward Fitzgerald morreu, 
E Robert Emmet e Wolfe Tone, 
Todo aquele delírio dos bravos? 
A Irlanda romântica está morta e desaparecida, 
Está com O'Leary na sepultura. 

No entanto, se pudéssemos voltar a esses anos, 
E chamar aqueles exilados como eles eram,
Em toda a sua solidão e dor, 
Gritarias: «O cabelo loiro de alguma mulher 
Enlouqueceu todos os filhos de suas mães»: 
Eles deram tão pouco valor ao que ofereceram. 
Mas deixe-os em paz, estão mortos e desaparecidos, 
Estão com O'Leary na sepultura.

October 06, 2025

Pessoas que têm poesia no olhar

 

September 13, 2025

In Parenthesis





«Ele achou toda aquela violência desproporcional, considerando a nossa fragilidade.»

― David Jones, In Parenthesis

Em 1916, um jovem soldado, agachou-se nas trincheiras, em choque e gelado e começou a escrever o que viria a ser um dos maiores poemas de guerra do século XX. Não era um oficial ou um poeta famoso, apenas um soldado que destilava em pedaços de papel a guerra, todas as guerras, no intervalo dos bombardeamentos. Levou depois 14 anos a acabá-lo e o resultado foi In Parenthesis, um épico de 1937 que funde guerra moderna com mito medieval e poesia, editado por T. S. Elliot, que o conhecia como pintor e gravador.

*********
Logo na primeira página, sem introdução ou explicação, somos mergulhados na situação difícil do soldado John Ball, o alter ego de David Jones. Sem descrição do cenário, sem introdução. Ouvimos os gritos do capitão a colocar os homens inexperientes em ordem no campo de parada. Estão prestes a embarcar para a França.

Coming sergeant.
Pick ’em up, pick ’em up—I’ll stalk within your chamber.
Private Leg. . . sick.
Private Ball. . . absent.
’01 Ball, ’01 Ball, Ball of No. 1.
Where’s Ball, 25201 Ball—you corporal, Ball of your section.”
E depois, Jones muda de tom ao descrever os sons dos homens a moverem-se em formação.
«Com fortes solavancos e empurrões laterais, o ruído de líquido a ser agitado num pequeno recipiente por um movimento regular de corrida, um certo tilintar que termina num arrastar de pés de lado — tudo claro e distinto naquele silêncio peculiar aos campos de parada e refeitórios. O silêncio de alta ordem, cheio de perigo ao ser quebrado, como a chegada de John Ball ao desfile.

«Posiciona-se entre os números 4 e 5 da fila de trás. É tão ineficaz quanto a avestruz na areia. O capitão Gwynn não se vira, não se move nem dá qualquer sinal.

«Anote o nome desse homem, por favor, Sr. Jenkins.

Anote o nome desse homem, sargento Snell.

Anote o nome dele, cabo.

Anote o nome dele, anote o número dele, acuse-o, atraso no desfile, o batalhão está a desfilar para o exterior, avise-o para comparecer ao escritório da companhia.» 
wordpress.com

August 23, 2025

After the war

 

After the war—or should we call it
murder—we stitch the shrouds
you men wear now.
       Little needle, glint and glide.
       Lead this thread to heal and hide.
       Never ask us to explain
       why you left us here in pain

  - Kim Stafford in Mothers Mending
 

Simon Jones


July 20, 2025

Buy a pup

 

Buy a pup and your money will buy
Love unflinching that cannot lie—
Perfect passion and worship fed
By a kick in the ribs or a pat on the head.
Nevertheless it is hardly fair
To risk your heart for a dog to tear.

   - Rudyard Kipling


Imre Goth


July 06, 2025

'Lost' by David Wagoner

 

[what do I do when i'm lost in the forest?]

***

LOST

Stand still. The trees ahead and bushes beside you
Are not lost. Wherever you are is called Here,
And you must treat it as a powerful stranger,
Must ask permission to know it and be known.
The forest breathes. Listen. It answers,
I have made this place around you.
If you leave it, you may come back again, saying Here.
No two trees are the same to Raven.
No two branches are the same to Wren.
If what a tree or a bush does is lost on you,
You are surely lost. Stand still. The forest knows
Where you are. You must let it find you.

-- Lost by David Wagoner
     (1999)

June 06, 2025

Il nous faut partager l’ivresse et la raison

 

Il nous faut partager l’ivresse et la raison.

Claire Raphaël, 2015



Félix Vallotton, The Cliff and the White Shore, 1913

May 13, 2025

Having parted with the evening glow




Having parted with the evening glow
I meet with night.
But the angrier red clouds go nowhere
and just hide in darkness.

I don't say goodnight to the stars
for they always hide in daylight
The baby I once was yet remains
in the center of my growth rings.

No one ever, I think, vanishes.
My dead grandfather grows like wings on my shoulders.
He takes me to places outside of time
along with seeds left by dead flowers.

‘Good-bye' is a temporary word.
There are some things that bind us together
far deeper than remembrance and memory.
If you believe that, you needn't look for it.

Shuntaro Tanikawa


(passam 6 meses da sua morte)

Two billion light-years of solitude



Human beings on this small orb
sleep, waken and work, and sometimes
wish for friends on Mars.

I've no notion
what Martians do on their small orb
(neririing or kiruruing or hararaing)
But sometimes they like to have friends on Earth.
No doubt about that.

Universal gravitation is the power of solitudes
pulling each other.

Because the universe is distorted,
we all seek for one another.

Because the universe goes on expanding,
we are all uneasy.

With the chill of two billion light-years of solitude,
I suddenly sneezed.

(Translated by William I. Elliott and Kazao Kawamura) 

Shuntaro Tanikawa

One day somewhere



One day somewhere
someone played the piano.
From beyond time and space the sound caresses my ears,
even now making the air tremble.

A sweet whispering from far beyond─
I cannot interpret it.
I can only yield myself to it like trees in the grove
that rustle in the wind.

When was the first sound born?
In the midst of the vacuous universe
like a code that someone secretly sent,
and enigmatically….

No geniuses ‘created' music.
They merely closed their ears to meaning
and just listened humbly to silence,
which has existed from time immortal.

Shuntaro Tanikawa

April 22, 2025

I hope when it happens




[I hope when it happens]


By Diane Seuss

I hope when it happens I have time to say oh so this is how it is 
happening

unlike Frank hit by a jeep on Fire Island but not like dad who knew 
too

long six goddamn years in a young man’s life so long it made a 
sweet guy sarcastic

I want enough time to say oh so this is how I’ll go and smirk at that 
last rhyme

I rhymed at times because I wanted to make something pretty 
especially for Mikel

who liked pretty things soft and small things who cried into a white 
towel when I hurt

myself when it happens I don’t want to be afraid I want to be 
curious was Mikel curious

I’m afraid by then he was only sad he had no money left was living 
on green oranges

had kissed all his friends goodbye I kissed lips that kissed Frank’s 
lips though not

for me a willing kiss I willingly kissed lips that kissed Howard’s 
deathbed lips

I happily kissed lips that kissed lips that kissed Basquiat’s lips I 
know a man who said

he kissed lips that kissed lips that kissed lips that kissed Whitman’s

lips who will say of me I kissed her who will say of me I kissed 
someone who kissed

her or I kissed someone who kissed someone who kissed someone 
who kissed her.

Once I thought I could find




One Valley
 by W.S. Merwin

Once I thought I could find
where it began
but that never happened
though I went looking for it
time and again
cutting my way past
empty pools and dry waterfalls
where my dog ran straight up the stone
like an unmoored flame

it seemed that the beginning
could not be far then
as I went on through the trees
over the rocks toward the mountain
until I came out in the open
and saw no sign of it

where the roaring torrent
raced at one time
to carve farther down
those high walls in the stone
for the silence that I hear now
day and night on its way to the sea


Publicado em, The Shadow of Sirius, 2008


April 12, 2025

Poet in the New World - poemas de Czesław Miłosz




Embaixador dos sonhos

Poeta no Novo Mundo, de Czesław Miłosz

por Gary Saul Morson

Para o poeta polaco Czesław Miłosz, uma diferença importante entre o século XIX e o século XX deriva da passagem de um certo limiar: coisas demasiado atrozes para serem sequer pensadas que não pareciam possíveis“ antes da Primeira Guerra Mundial, a partir de 1914 revelaram-se cada vez mais possíveis.

Descobriu-se que ‘as civilizações são mortais’", incluindo a civilização ocidental, que está à beira da destruição. Para Miłosz, que ganhou o Prémio Nobel da Literatura em 1980, a poesia foi chamada a testemunhar o atroz, especialmente na Polónia, que na Segunda Guerra Mundial sofreu provavelmente mais destruição do que qualquer outro país.

Na sombra dos nazis e dos soviéticos, a poesia tinha de ser “escatológica”.

“Provavelmente, em nenhuma outra língua, para além do polaco, existem tantos poemas aterradores, documentos do Holocausto”, explicou Miłosz. Respondendo à famosa afirmação de Theodor Adorno de que escrever poesia depois de Auschwitz é bárbaro, Miłosz contrapôs que a verdadeira barbárie seria não tentar.
“Quem invoca o genocídio, a fome ou o sofrimento físico dos nossos semelhantes para atacar poemas ou pinturas pratica a demagogia”.
Porque as atrocidades soviéticas substituíram as nazis depois da guerra, os polacos alcançaram “um conhecimento amargo incomunicável para as pessoas no Ocidente”.

Sob o comunismo, os poetas já não podiam falar livremente. Como Miłosz explica no seu poema “Dois Homens em Roma”,
 “um poeta desta época não desnuda o rosto
Porque os vincos desenhados pelo terror seriam revelados”.
O recente livro Poet in the New World recolhe os poemas que Miłosz escreveu entre 1946 e 1953, introduzidos por um escrito em 1945. As traduções, de Robert Hass e David Frick, ressoam com poder poético.

Ouvimos o poeta expressar, em tons de raiva, ironia e espanto, as suas reacções não só aos horrores da guerra, mas também à cobardia presunçosa daqueles que racionalizaram o seu serviço ao regime estalinista do pós-guerra. 

Após a guerra, Miłosz serviu como diplomata para o novo governo polaco, em rápida estalinização. Depois de seis meses em Nova Iorque, passou quatro anos como adido cultural na embaixada polaca em Washington, D.C.

Uma visita ao seu país revelou o quão opressiva a Polónia comunista se tinha tornado, e Miłosz enfrentou uma escolha. Se desertasse e perdesse o contacto com a língua polaca, como poderia escrever poesia vibrante? Mas se ficasse, só lhe seria permitido compor versos oficialmente aprovados.

Para ter a certeza, explicou, poderia ter vivido uma vida de privilégio "trabalhando em harmonia com as leis da história. Teria traduzido Shakespeare . . . [...] e teria feito estudos marxistas sobre a Inglaterra do século XVI. . . . De vez em quando, publicaria um poema declarando a minha lealdade à Revolução". Mas teria traído a sua vocação. 
“Em vez da mão através da qual o sangue quente flui do coração para os dedos que seguram a minha caneta, ter-me-iam dado uma excelente mão artificial: a dialética [marxista-leninista]”. 
Em vez de regressar à Polónia, Miłosz optou por procurar asilo político em França. Condenado pela esquerda francesa pró-estalinista, mas também rejeitado pela comunidade polaca emigrada em França, por ter sido diplomata comunista, Miłosz viu-se sozinho e interrogou-se se teria feito a escolha certa. 

Voltou-se para a prosa para refletir sobre estas questões, escrevendo dois romances e a coleção de ensaios que lhe granjeou fama mundial, The Captive Mind (1953). 

Ao contrário de outros clássicos da Guerra Fria, como Mil Novecentos e Oitenta e Quatro e O Arquipélago Gulag, o livro de Miłosz não se centra em atrocidades, mas na forma como as pessoas, e especialmente os intelectuais, se convencem a aceitar ideias contrárias à sua consciência e opostas a toda a decência. (Admirador de Dostoiévski, sobre quem viria a escrever críticas enquanto professor em Berkeley, Miłosz acreditava que os poetas podiam “aprender . . . mais” com as obras desse escritor).

Miłosz dirigia-se a um público que se assemelhava aos intelectuais americanos progressistas de hoje. Ao encontrar amigos que, com aparente sinceridade, justificavam as purgas em massa de Estaline, Miłosz interrogava-se sobre os processos mentais que poderiam levar pessoas honradas a tais opiniões. 

Fiz as mesmas perguntas quando alguns dos meus colegas universitários aplaudiram as atrocidades cometidas pelo Hamas em 7 de outubro de 2023 e apoiaram os apelos para que tais acções fossem “globalizadas”. 

Tendo lido The Captive Mind na faculdade, voltei às suas subtis análises psicológicas da cobardia intelectual. Lembrei-me disso pela primeira vez quando, em julho de 2020, centenas de professores de Princeton assinaram uma carta exigindo não apenas doutrinação em educação “antirracista”, mas também um comité de professores para pré-censur publicações “racistas”, um termo deixado sinistramente indefinido. 
“As diretrizes sobre o que conta como comportamento, incidentes, investigação e publicação racistas serão elaboradas por um comité de professores para serem incorporadas no conjunto de regras e procedimentos”.
 Será que os professores que assinaram esta carta queriam mesmo que os seus colegas decidissem o que podiam investigar e publicar?

Num artigo publicado doze dias mais tarde na Quillette, Joshua T. Katz, na altura professor de clássicos em Princeton, identificou quatro razões pelas quais tantos professores poderão ter assinado. Como alguns dos amigos marxistas de Miłosz, alguns podem ter acreditado em cada palavra. Outros parecem ter assinado a carta sem a ler - uma prática comum atrás da Cortina de Ferro. Outros ainda devem ter “sentido a pressão dos colegas para assinar”. 

No romance de Vasily Grossman, Vida e Destino (1959), o herói sucumbe brevemente a essa pressão, que, ele percebe, pode ser tão potente como o medo. O grupo mais numeroso de Princeton parece ter assinado porque, como escreveu Katz, “concordavam com algumas das exigências e sentiam que era bom actuar como ‘aliados’ e aumentar os números, apesar de não concordarem com tudo”.

Falavam com a mesma voz de racionalização cobarde que Miłosz ouvia frequentemente na Polónia do pós-guerra. Sem pressão comunista, sem polícia secreta, estes professores americanos tinham aproveitado a primeira oportunidade para serem mentes cativas. Para compreender esta pronta auto-entrega, a poesia de Miłosz, bem como a sua prosa, constituem um bom ponto de partida.

Em Varsóvia" (1945), o primeiro poema da presente coletânea, medita sobre a forma como a catástrofe transforma o poeta. Após a revolta de Varsóvia de 1944 contra os nazis, talvez 90% da cidade tenha sido destruída.

Ao ficar “sobre as ruínas/ Da Catedral de S. João”, o poeta, contemplando as “feridas profundas” da nação, lamenta que, apesar de os seus dons poéticos tenderem naturalmente para outras direcções, tenha de comemorar o horror. “A minha pena é mais leve/ Do que a pena de um colibri”, e “quero cantar as festas”, mas, tal como Antígona, o poeta tem de assumir o seu “fardo” moral:

Como posso viver neste país
Onde o pé bate contra
Os ossos não enterrados de parentes?

As mãos dos mortos parecem “agarrar a minha caneta e ordenar-me que escreva/ A história das suas vidas e mortes”. “Terei nascido para me tornar/ Um ritual de luto?”, pergunta ele. Ele suplica: 
“Deixem/ Aos poetas um momento de felicidade,/ Senão o vosso mundo perecerá.”
Alguns poemas testemunham o amor de Miłosz pelo dom satírico de Jonathan Swift para representar a baixeza mascarada de inteligência superior. Nos primeiros versos de Child of Europe, escrito em Nova Iorque em 1946, ouvimos pensadores auto-congratulados a exaltarem o seu comportamento cobarde como uma astúcia superior:
Nós, cujos pulmões se enchem com a doçura do dia,
Que em maio admiramos as árvores a florir,
Somos melhores do que aqueles que pereceram. . . .
Nós, que recordamos batalhas onde o ar ferido rugia em paroxismos de dor,
Nós, salvos pela nossa própria astúcia e conhecimento. . . .
Tendo a escolha entre a nossa própria morte e a de um amigo,
Escolhemos a dele, pensando friamente: que seja feito
rapidamente. . . .

Aceitar como provado que somos melhores do que eles,
Os crédulos, fracos de sangue quente, descuidados
com as suas vidas.
O orador congratula-se com a sua “mente elegante e céptica que desfruta de prazeres/ Bastante desconhecidos das raças primitivas” ou inferiores sociais. Com a mesma elegância, aceita a ideologia dominante (comunista). Louva a sua sabedoria cínica:
Não menciones a força, ou serás acusado
De defender doutrinas caídas em segredo.
Aquele que tem o poder, tem-no pela lógica histórica.
Respeitosamente, curvai-vos perante essa lógica.
Que os vossos lábios, propondo uma hipótese,
Não saibam da mão que falsifica a experiência
. . . .
Aprende a prever um incêndio com uma precisão infalível.
Depois queimar a casa para cumprir a previsão.

A doutrina marxista de que a moralidade e a verdade são inteiramente relativas não representa qualquer obstáculo a um tal intelecto:
Cultiva a tua árvore de falsidade a partir de um pequeno grão de verdade. . . .
Que a tua mentira seja ainda mais lógica do que a própria verdade,
Para que os viajantes cansados possam encontrar repouso na
mentira. . . .
Que as vossas palavras falem não através dos seus significados,
mas através daqueles contra quem são usadas.
Cria a tua arma a partir de palavras ambíguas.
Consigna palavras claras ao limbo lexical.
Não julgueis as palavras antes de os funcionários terem verificado
no seu índice de cartões por quem elas foram ditas.

Nada importa a não ser o poder e a si mesmo. O passado, juntamente com tudo o que lhe deu um significado mais elevado, pereceu.

Não ame nenhum país: os países logo desaparecem.
Não ame nenhuma cidade: as cidades logo se tornam escombros.

Deita fora as recordações...
Não ameis as pessoas: as pessoas logo perecem.
Ou são injustiçadas e pedem a tua ajuda.
Não olhes para as piscinas do passado.

Agora o riso, que expõe a falsidade, é criminoso. O poema conclui:

O riso nascido do amor à verdade
É agora o riso dos inimigos do povo.
Foi-se o tempo da sátira. . .
Severos como convém aos servidores de uma causa,
Só nos permitiremos o humor bajulador.
De boca fechada, guiados apenas por razões,
Cautelosamente, vamos entrar na era do
fogo solto.

 “Foi-se a era da sátira”, diz o orador, mas este mesmo poema, digno de Swift, demonstra que a sátira está, se perigosa, ainda muito viva. Em “To Jonathan Swift” (1947), Miłosz afirma o seu parentesco com o ironista irlandês:

Visitei os Brobdingnagians,
contornei as Ilhas Laputa.
Também conheci a tribo Yahoo,
Vivendo no seu medo servil,
Uma raça maldita de informadores
Que adoram os seus excrementos.

Claro que não foram os Yahoos de Swift, mas os compatriotas instruídos de Miłosz que se tornaram informadores. Ao contrário deles,

não embrulhei a cegueira fingida
como uma fita à volta dos meus olhos
Por isso, uma raiva profunda ilumina agora
os meus numerosos pequenos deveres.
Toda a minha poesia“, explicou Miłosz em The Captive Mind, ”tinha sido uma rejeição, um escárnio de mim próprio e dos outros, porque os homens se deleitam com o que não é digno de deleite, amam o que não é digno de amor, sofrem com o que não é digno de sofrimento". Seria difícil, ou mesmo impossível, encontrar um livro mais misantrópico do que As Viagens de Gulliver, mas Miłosz ainda detecta esperança nas palavras de Swift:
Eis o que os vossos lábios disseram:
A causa do homem não é uma esperança passada.
Quem pensa que a história é a consumação
Morre uma morte incompreensiva. . . .

Enquanto houver terra e céu,
Prepara novos paraísos para novas cidades.
Para além disto, não há perdão.
Vou perseverar, meu Reitor.

É compreensível que Miłosz considerasse os americanos despreocupados, que não tinham uma experiência comparável à dos europeus, quase como uma outra espécie. Em “Summer Movies in Central Park” (1948), este poeta da terra da destruição observa amantes felizes na relva enquanto recorda
um campo onde o brilho
da cidade em chamas colore o absinto
seco. . . .

O vestido no cadáver de uma mulher. . . .
Esta memória contém um aviso para aqueles
Que passam as suas noites em sofás macios:
Um fogo errante muitas vezes queima através
das manchas rosadas nos lençóis. . . .

Eles não ouvem isto.

“A Reminder” (1947), o poema de Miłosz sobre a guerra civil grega em curso, que se prolongaria por mais dois anos, convoca os leitores a lembrarem-se de que a carnificina não tinha terminado em todo o lado. Especialmente na América, isso era difícil de acreditar. Estrofe após estrofe termina: “Grécia, Grécia,/ Quem é que aqui se lembra disso?” Afinal, pensam os americanos,
Um oceano separa-nos de
Os males da Europa,
E a Liberdade dá um sinal
Aos viajantes nos barcos.
Tal como em “Uma criança da Europa”, a sátira de Miłosz dá voz àqueles que rejeitam o sofrimento insuportável. Como pode parecer real,
Que algures muito longe
A guerra ainda arde?
Isto só acontece
Entre as pessoas das montanhas
Que consideram uma capa de pele de ovelha
Um grande tesouro e consideram
Tão miseráveis vidas baratas.
. . .
E por isso estão prontos a perecer
Ao comando de algum agente.
Grécia, Grécia,
Quem se lembra disso?
O poeta conclui com a sua própria voz, lembrando que foi na Grécia que começou a nossa civilização comum. Assim, não é apenas o presente, mas toda a nossa história que coloca questões:
Oh, diz-me como é que os assuntos humanos
devem ser medidos.
Serão eles medidos pela riqueza
dos portos, o preço das alianças?
Ou pela tocha da esperança,
Extinguida diariamente,
Que os povos não se dividam
Em melhores e piores?
Daí o silêncio.

A poesia, declarou Miłosz, é uma “busca apaixonada do Real”, e a realidade, por mais terrível que seja, permite algo mais do que o desespero. 

Três coisas dão a Miłosz uma esperança frágil. Como vemos em A Reminder, uma delas é a própria memória, que serve de ponto de partida para a reflexão do poeta sobre uma recordação sagrada, My Mother's Grave (1949). 

Entre a memória e o esquecimento, começa por dizer: “Vivemos de forma instável”. Enquanto a memória “nos perturba,/ Porque diz que não há como conquistar o passado”, a alternativa, o esquecimento, “é um insulto/ À noção que temos da nossa própria bondade”. Como é difícil carregar o fardo do passado! E como é triste que só a memória possa preservar tudo o que é belo!
Por que
é, mãe, que nem uma manhã, nem uma flor
Nem a maçã escura no seu áspero ramo
Dura mais do que um piscar de olhos?
. . .
Não há tinta, dourada ou transparente,
Com que tingir a rosa fresca:
Não há maneira de as conservar para todo o sempre.
. . .
Tenho estado a dar a minha vida a esta questão.
Com a maturidade, reconhecemos a força destrutiva dos “grandes princípios” que operam à custa de uma família sentada à mesa, “inconsciente do destino”.
E essa pequena vida - argila quebradiça
Que a luva de ferro esmaga -
É o material para um épico sangrento.
. . .
Esta época, incendiada por corpos humanos,
Deixem-na antes devorar os nossos sonhos. . . .
Esta família frágil e esfarrapada, bela na sua humanidade comum, recorda uma passagem-chave no final de The Captive Mind, em que se discute a decisão do poeta de desertar. “O que me levou a fazer isto é difícil de definir”, escreve, mas teve algo a ver com uma altura em que estava à espera numa estação de comboios na Ucrânia soviética. No meio da densa multidão, enquanto um altifalante gritava slogans de propaganda, Miłosz distinguiu uma família de camponeses:

A mulher dava de comer ao filho mais novo; o marido . . . deitava chá de uma chaleira numa chávena para o rapaz mais velho. Sussurravam um para o outro em polaco. Fiquei a olhar para eles até me sentir comovido ao ponto de chorar. . . Era um grupo humano, uma ilha numa multidão a que faltava algo próprio da vida humana humilde e vulgar. O gesto de uma mão que serve o chá, a entrega cuidadosa e delicada da chávena à criança ... o seu isolamento, a privacidade no meio da multidão - foi isso que me comoveu.

Enquanto grandes forças, “princípios” e “lógica histórica” esmagavam as pessoas, “preciosas sementes de humanidade foram preservadas” onde os historiadores não condescendem em olhar. 

O amigo marxista de Miłosz olhava com desdém para “a superstição das mulheres polacas que colhem ervas para fazer amuletos” e “o costume de pôr um prato vazio para um viajante na véspera de Natal”, mas estas tradições “denotam um bem inerente que pode ser desenvolvido”. 

Para os marxistas, “chamar ao homem um mistério é insultá-lo”, porque eles "propuseram-se esculpir um novo homem, tal como um escultor esculpe a sua estátua num bloco de pedra, retirando o que não é desejado. Acho que estão errados". No poema sobre a campa da mãe, Miłosz detecta na família da estação de comboios uma misteriosa normalidade que os engenheiros sociais rejeitam, mas que contém o potencial do épico. Recordando a sua mãe, o poeta pede-lhe ajuda para criar o que o tempo e a força não esmagam: “Ajuda-me a criar um amor eternamente vivo/ Da minha constante disputa com o mundo.
Para Tadeusz Różewicz, Poeta" (1948) começa:

Todos os instrumentos concordam em alegria
Quando um poeta entra no jardim da terra.
Quatrocentos rios azuis trabalharam
No seu nascimento. . . .

A asa corsária do mosquito, o focinho da borboleta
Foram formados com ele em mente. . . .

Assim, todos os instrumentos, fechados
Em caixas e jarros de verdura,
Esperam que ele os toque e cante.
Louvado seja o canto da terra que traz
um poeta!

Em “Treatise on Morals”, ele disseca
O sentido de que não sou eu, mas outra pessoa
Realizar estas minhas acções.
De modo que partir o pescoço de alguém é uma ninharia.
Como insistia Dostoiévski, tudo o que absolve e promete certezas é certamente apelativo, mas é melhor ficar sem uma resposta pronta. Em vez disso, temos de cultivar a capacidade de olhar com desconfiança até para a nossa própria forma de ver.
Como vêem, não tenho uma receita,
Não pertenço a nenhuma seita,
E a salvação está apenas em vós.
Talvez seja simplesmente saúde
Da mente, um coração equilibrado
Pois às vezes um simples remédio ajuda. . . .


March 25, 2025

On a Still Morning

 


 On a Still Morning:

“I hear the silence now,

Alive within its heart

Are the sounds that can not be heard

That the ear may not dispart?

 

As white light gathers all –

The rose and the amethyst,

The ice-green and the copper-green,

The peacock blue and the mist –

 

So if I bend my ear

To silence, I grown aware

The stir of sounds I have almost heard

That are not quite there.”  


Nan Shepherd 


March 20, 2025

Beba poesia sem moderação

 

March 04, 2025

A realidade emocional ultrapassa o domínio da linguagem - daí a poesia



Tomando emprestado um termo diretamente de Bhartrihari, Mukulabhatta argumenta que quando a linguagem poética é usada corretamente, torna-nos conscientes de realidades para as quais não existem samvijnanapadas 
[palavras rótulo]. Tomemos como exemplo o famoso mas anónimo verso que ele usa:

Garças brancas circulam num céu que brilha com lindas nuvens escuras.

As gotas de chuva estão no vento e os pavões gritam de alegria.

Que tudo isto seja. Eu sou Rama, cujo coração é duro. Posso suportar tudo. 

Mas como é que Sita vai sobreviver a isso? Alas, minha rainha, sê corajosa.

Neste verso, o Rei Rama, cuja esposa Sita foi raptada, assiste ao início da estação das monções, que é suposto ser uma época alegre e refrescante. A intensidade da estação quente termina e, de repente, a paisagem adquire tons vivos de verde e floresce. Os animais começam a acasalar. As pessoas, que já não podem fazer tanto trabalho ao ar livre, podem juntar-se preguiçosamente e ver as chuvas refrescantes e pacíficas a atravessar o céu, alimentando as colheitas e dando início a outra estação de vida e florescimento natural. 
Para Rama, no entanto, separado da mulher que ama e incapaz de a encontrar, as chuvas familiares significam algo muito diferente: todas as estradas se tornarão intransitáveis, nenhum rio poderá ser atravessado e a procura de Sita terá de ser temporariamente cancelada durante, pelo menos, alguns meses, enquanto ele e Sita - onde quer que ela esteja - não podem fazer mais do que esperar, desamparados, impacientes e com medo de nunca mais se voltarem a ver.
Não há rótulos que possam indicar exatamente em que ponto do espectro confuso de emoções ele se insere. Poder-se-ia dizer que é uma combinação potente de tristeza, perda, orgulho, coragem e divindade, mas todos estes termos seriam demasiado gerais.
E, no entanto, apercebemo-nos do que ele está a sentir - em parte, sem dúvida, devido à nossa vasta experiência, até mesmo perícia, com as emoções humanas. 
Desta forma, “Rama” comunica, através do contexto e dos matizes de significado, uma realidade que escapa a qualquer mapa linguístico ou conceptual - uma realidade para a qual não existe samvijnanapada - mas que o poeta conseguiu, no entanto, transmitir. 
Para Mukulabhatta, é precisamente esta a magia, o milagre, da poesia: o facto de nos poder proporcionar, através da linguagem, experiências que escapam às nossas redes linguísticas. E ao apontar para um peixe que escorrega através desta rede e que, no entanto, de alguma forma, ainda é nosso para contemplar, recorda-nos subtilmente que a nossa rede nunca pode apanhar todos os peixes. E há, penso eu, um alívio distinto e até uma alegria neste facto, que explica em parte a alegria que sentimos na poesia.

bostonreview.net/articles/theres-a-word-for-that/


February 25, 2025

"still asking the same questions"



I’m sure I’m
not the only person
my age
who is still asking
the same questions
about existence
that I asked
in adolescence,
but sometimes
when I look at the faces
of people my age
all I see are loaves
of bread, smiling,
as if baking
had been a great pleasure.

in Pink Dust by Ron Padgett

February 12, 2025

Doem-me os olhos

 


Doem-me os olhos
de ver.
Ver longe
ver dentro
ver para lá do pensamento.

Se tudo é determinado
e não há liberdade de ser 
que quimera nos planeou o sofrer?

bja