Ontem apanhei este filme na TV, The Pledge, que em português traduzem por, 'A Promessa'. Não conhecia. O filme é sobre um polícia que no dia da sua reforma promete a uma mãe encontrar o assassino da sua filha de 7 anos. A partir daí e com algumas pistas que a miúda deixou num desenho, vai viver para a zona onde pensa que estará o assassino, faz amizade com uma mulher que tem uma filha de 7 anos, acabam a viver juntos e ele, a certa altura, resolve usar a miúda como isco para apanhar o assassino.
O filme é muito bom e só tem bons actores. Jack Nicholson é o polícia reformado. À primeira vista o filme é um policial de suspense, mas na verdade o filme é sobre o próprio polícia. Desde o início que vemos perfeitamente que ele é um bom polícia, um indivíduo que leva o seu trabalho muito a sério. Aquele tipo de pessoa que não larga um caso e persiste até encontrar o criminoso. É muito respeitado pelos seus pares. Porém, esse seu foco, que é a sua força, ao evoluir para uma obsessão que toma conta de toda a sua realidade, torna-se a sua fraqueza. É exactamente o que acontece no filme. Aquilo que era a sua maior virtude e força, levada até ao exagero, tornou-se a sua perdição.
Nós próprios, ficamos presos ao ecrã com o mesmo tipo de foco que ele vive interiormente, a seguir a sua argúcia na caçada ao assassino -Jack Nicholson é muito bom a mostrar-nos como vive focado nesse fim, desde o início do filme- até que a certa altura percebemos que há algo errado no modo como ele vive a sua caçada e como submete todas as sua relações a meios de atingir aquele fim.
O que constituía a sua grandeza é também o que constitui a sua pequenez. Fez-me lembrar Platão, quando diz que as virtudes, quando não são temperadas pela razão tornam-se meros simulacros e são comandadas pelo descomedimento. A virtude é apenas uma moeda de troca por outros prazeres, neste caso a obsessão que o domina e comanda.
Não aguento este calor - que nem sequer é muito. A praia, nadar e o sol deixam-me numa moleza tão grande que se me interrompem este torpor fico embirrenta como as crianças. Trouxe 4 livros para ler mas ainda não li nada porque assim que pego num começo logo a fechar os olhos.
Ontem à noite consegui ver um filme que tinha aqui para ver há tempos, Black Narcissus. Mesmerizante. Passado na Índia, este filme inglês é baseado no romance de 1939 de Rumer Godden e estreou em 1947, um par de meses antes da independência.
O filme é estranho. Tem um ambiente gótico, carregado de tensão sexual e drama psicológico de suspense. Passa-se tanta coisa neste filme que uma pessoa fica agarrada ao ecrã.
A cinematografia do filme ajuda muito ao ambiente do filme, onde tudo são extremos e contradições. O filme gira em torno das crescentes tensões dentro de um pequeno convento de irmãs anglicanas, (ex-casa de mulheres de prazer), que tentam estabelecer uma escola e um hospital num remoto e antigo palácio de um Raja indiano no topo de uma montanha, na borda de um despenhadeiro sobre um vale fértil nos Himalaias - como se vê nesta imagem de uma cena icónica do filme.
Inacreditavelmente, apesar de se passar nos Himalaias e ser completamente convincente nesse aspecto, foi filmado quase inteiramente nos estúdios Pinewood, em Inglaterra, com apenas um dia de filmagens exteriores, captadas nos jardins subtropicais de Horsham, West Sussex. Como li algures, "uma maravilha do engenho cinematográfico". O cinema britânico no seu melhor porque a visão dos picos dos Himalaias e o constante vento a soprar, fora e dentro do convento constroem uma atmosfera ambivalente entre o etéreo espiritual e o agreste material.
Dado que o convento está num palácio que antes se dedicava ao prazer, está cheio de murais eróticos a evocar o Kama-Sutra e algum mobiliário estofado a brocado de seda azul e ouro. As salas azuladas e decoradas deste modo fazem um contraste gritante com a rigidez das freiras nos seus hábitos brancos, frios, que tapam todo o corpo, exceptuando a cara. Todo o ambiente sensual do convento e o isolamento nos píncaros de montanhas ventosas perto do céu atinge e perturba as freiras.
Os hábitos das freiras são perturbados de várias formas: o Sr. Dean (David Farrar), um inglês branco que vive entre os indianos e serve de guia às freiras, perturba as mulheres com a sua masculinidade. Aparece sempre com uns calções demasiado curtos e uma camisa muitas vezes demasiado aberta. Um cínico inveterado, é o vértice de um triângulo amoroso reprimido com a Irmã Clodagh, a madre-superiora do convento (Deborah Kerr) e a Irmã Ruth (Kathleen Byron).
O filme lida com as motivações das freiras (ficamos a saber que estas duas mulheres entraram para a ordem depois de desilusões amorosas e para tentarem superá-las); com a vida monástica como uma fuga do mundo (difícil é ser santo imerso no mundo); com o contraste entre as duas civilizações: a fria e racional britânica, reprimida e a quente e terrestre indiana, desinibida; com os estereótipos culturais (o modo paternalista-racista como falam dos indianos e o modo de desprezo com que os indianos falam dos hábitos dos ingleses) mas, acima de tudo, lida com fantasmas interiores (as cortinas constantemente a esvoaçar ao vento simbolizam-nos), com desejos sexuais tornados deletérios pelo celibato forçado, sublimados numa vida de zelo, puritanismo e vaidade - a vaidade de se considerar mais perto dos céus que os outros que vivem no mundo.
Como se a realidade pudesse ser enformada -deformada- num ideal inventado. Poder, pode, mas dá sempre mau resultado.
O nome do filme vem do perfume do Rajá indiano que aparece no convento, carregado de sedas e pedras preciosas (a vaidade de Narcisus) e pede para que o ensinem nos conhecimentos ocidentais. As freiras falam do seu perfume carnal como próprio dos indianos, apesar de nos ser dito que foi comprado no depósito do exército inglês. Também este general Rajá tem um papel no filme, mas o filme é tão complexo e passa-se tanta coisa no filme que estaria o dia todo a escrever sobre todos os seus pormenores significantes.
Por exemplo, quando o Rajá pede para ser ensinado a madre-superiora diz-lhe que a ordem não ensina homens, só crianças e mulheres mas que não se ofenda porque não lidam com nenhum homem e o Rajá diz, com surpresa. "mas Jesus, que adoram, é um homem". O filme tem muitos diálogos muito bons.
Kathleen Byron no papel de Irmã Ruth
As interpretações, sobretudo destas três personagens, Sr. Dean, Irmã Clodagh, a madre-superiora e a Irmã Ruth, são mesmo, mesmo boas. A Irmã Ruth, que tem ciúmes da Irmã Clodagh e exterioriza a sua frustração sexual (a outra interioriza), no fim do filme assume o seu desejo e sai da ordem. A maneira como aparece caracterizada e como actua -o olhar e a energia sexual e violenta que emana dela- é terrível, como nos filmes de horror, que no entanto, nos mesmerizam.
Muito bom, o filme. Apesar de ter quase um século, a sua beleza ainda cativa. Tem cenas datadas, claro, mas não sobressaem. Merece ser visto uma outra vez.
O filme está todo no YouTube mas se não têm um ecrã muito bom é uma pena vê-lo por aqui porque a fotografia, a subtileza das cores e dos cenários são das melhores características do filme.
Young Prince: Do you like it, Sister Ruth? It's called Black Narcissus. Comes from the Army-Navy Stores in London. Sister Ruth: Black Narcissus. I don't like scent at all. Young Prince: Oh, Sister, don't you think it's rather common to smell of ourselves?
O título do filme não tem nada que ver com o trailer do filme que o faz parecer ser um filme de horror. Não é. A não ser que o horror sejamos nós, humanos.
Quem não viu o filme e não quer saber nada sobre ele não leia isto.
O fime é baseado numa novela de Henry James, The Beast in the Jungle - que agora fiquei com curiosidade em ler. The Beast in the Jungle é sobre um homem que está sempre cheio de medo de tudo. Bertrand Bonello, o realizador, agarra nessa novela a expande-a. Portanto, o filme é sobre o medo. É ele a Besta que impede os humanos de arriscarem o amor, de arriscarem emoções fortes e verdadeiras e de serem autênticos.
O filme segue um homem e uma mulher em três tempos diferentes que se vão entrecruzando e que de início não se percebe bem o que ali se passa, mas no fim tudo faz sentido.
No 1º tempo, quando se conhecem, estão em 1904 e aí é ela, uma pianista, casada, quem tem medo de arriscar o amor e até de o falar.
No 2º tempo estão em 2014, ele é um incel que odeia as mulheres porque tem medo da sua rejeição e não é capaz de arriscar o amor.
No 3º tempo, estão em 2044, numa época em que a IA faz os trabalhos humanos e os humanos, para escaparem a uma vida de um trabalho monótono de máquinas não-inteligentes, têm de sujeitar-se a um procedimento invasivo em que uma máquina lhes limpa o ADN, quer dizer, limpa todos os traumas e medos, pois considera-se que uma pessoa que ainda tem traumas, medos, ansiedades e emoções fortes, não é de confiança.
Naturalmente, ao ficarem sem a capacidade do medo e da ansiedade, também ficam sem a capacidade do amor e dos grandes sentimentos criadores. A vida nesse tempo é vivida em cidades frias, cinzentas e de silêncio.
Portanto, os três tempos do filme representam os humanos de todos os tempos e em todos eles os humanos deixam de viver a vida por medo, deslaçam-se dos outros seres humanos por medo de tudo o que pode correr mal e vivem vidas solitárias no coração. Em todos os tempos tentam substituir as relações humanas, demasiado stressantes, por bonecos, simulacros de humanos, como simulacros de companhia. No 1º tempo vemos bonecas a fazer companhia a humanos, no 2º tempo as bonecas são já inteligentes (e podíamos acrescentar, algoritmos de encontros online onde se pode ser um simulacro de um boneco ideal sem medo a relacionar-se com outros simulacros inverdadeiros) e no 3º tempo, as bonecas já são andróides de companhia. Porém, o fim é o mesmo: proporcionar um simulacro de contacto humano, sem complicações, anseios e medos.
No fim, os próprios humanos se tornam, eles mesmo, bonecos de expressão universalmente agradável, mas morta de sentimentos verdadeiros.
O que acontece ao par que o filme segue em cada tempo, não digo porque o filme vale a pena ver, mesmo que no início não se perceba bem o que ali se passa. Tem pormenores que enriquecem este enfoque sobre a Besta que mata os humanos, muito bons. Tem uma estética muito etérea e intemporal, em parte porque os dois actores são muito bons a recriar essa universalidade humana.
Chama-se, Manga d'Terra e é sobre uma cabo-verdiana que vem para Portugal para tentar melhorar a vida dos filhos que tem no seu país de origem. Vai parar à Reboleira, onde o filme foi filmado e entre a vida diária de assédio sexual, presença constante da polícia, etc., descobre uma comunidade de mulheres de origem africana, muito fortes.
Estive a ouvir uma entrevista, na RTP África, como o realizador, Basil da Cunha e Eliana Rosa, a atriz principal e cantora. Interessante. A música do filme, cantada por Eliana Rosa, que foi aplaudida em Locarno, no festival de cinema, pode ouvir-se aqui:
Agora fui dar com este vídeo e vi nesta rapariga a cobertura particular de cabeça da roupa formal das Reverendas Madres das Bene Gesserit do Dune, se bem que nelas a cor seja mais sóbria. Será que a criadora do guarda-roupa, Jacqueline West, se inspirou nestes costumes do Brunei? Já li que parte das roupas delas são inspiradas nas freiras católicas e nos quadros religiosos com as santas de vestes longas e cabeças cobertas. Jacqueline West estudou numa escola católica e a impressão dos trajes das religiosas ficou com ela e dado que as Bene Gesserit são uma irmandade de cariz religioso... o guarda-roupa do filme é espectacular. A cena em que Fedy-Rautha Harkonnen luta com os três adversários no dia do aniversário fez-me lembrar O Sétimo Selo de Ingmar Bergman, quando a morte aparece com a gadanha. A cabeça daqueles guardas de Fedy-Rautha Harkonnen são uma gadanha de morte no fundo branco lustroso da cena. Essas figuras sinistras e meio vampirescas são assustadoras.
Quarta-feira ao fim do dia fui a Lisboa ver o Dune Part Two, no último dia em que esteve em cena, ao fim de mais de mês e meio. Já o tinha visto no portátil, mas não é a mesma coisa que ver num ecrã grande, porque o filme é épico e tem cenas imponentes no deserto e cenas de batalhas de grande escopo que só se aproveitam devidamente num ecrã grande. Também, e muito importante, é preciso ouvir a música extraordinária do Hans Zimmer sair de speakers potentes. Metade do impacto do filme vem da música dele.
Vi uma gravação dele a revelar como tinha chegado àquela música, onde foi buscar inspiração e como encontrou artistas extraordinários, desde cantores (como a Loire Cotler que canta neste primeiro vídeo) até músicos que modificam ou inventam instrumentos e sons a partir de restos de metais.
O filme é muito bom. Se o primeiro Dune introduzia as personagens e o contexto palaciano da obra, este segundo explode em cenas de acção com grande cenários no deserto e grande dramatismo, embora sempre com o fio condutor humano a guiar toda a acção.
Grandes actores. Javier Bardem faz o melhor papel que lhe vi até hoje, ao interpretar o Fremen, mentor de Paul Artreides, mas também o fanático religioso à procura do Messias. Um carisma que sai do ecrã e enche a sala. Mas também todos os outros. A actriz que representa a Zendaya é completamente credível e intensa no papel. O Josh Brolin, a Rebeca Ferguson e todos os outros.
Temas musicais diferentes do filme:
O poder do deserto - aqui Hans Zimmer a tocar o tema principal do filme com os colaboradores. A voz quase selvagem de Loire Cotler
A música das cenas românticas entre Chani e Paul Artreides - uma música lânguida e sensual
As máquinas gigantescas que sugam a especiaria e que têm um beat primitivo
O tema que corresponde ao mau presságio de um futuro sombrio ligado à ascensão do poder de Paul Atreides como Messias. Dune é um livro que adverte contra o perigo de controlo cultural que um messias representa, com os seus fanáticos religiosos.
Uma aluna universitária critica o professor de Literatura por escrever no quadro um título de um clássico com a palavra nigger. Diz que se sente incomodada com a ofensa. O professor, que é negro, explica à aluna, que é branca, que não é possível estudar a Literatura Clássica do Sul americano sem dar com palavras, frases e expressões ofensivas mas que devem ser tomadas no contexto em que foram escritas. Ela não aceita a explicação. O professor diz-lhe, "se eu as aguento, com certeza também as podes aguentar". Ela pergunta porquê 😁 É assim que começa o filme.
O professor, a quem todos chamam Monk (porque o seu primeiro nome é Thelonious, mas também porque evoca a sua misantropia), é logo chamado à direcção onde lhe explicam que já há várias queixas de alunos que se sentem ofendidos com ele e mandam-no tirar uma licença para refrescar as ideias.
Ele é um escritor respeitado mas pouco popular porque não escreve livros 'negros' que são os livros que as editoras querem, porque vendem: ambientes violentos de afro-americanos que falam em vernáculo e passam a vida a entrar e a sair da prisão. Monk irrita-se porque nas livrarias os livros dele aparecem sempre na secção dos livros afro-americanos e ele, que nem acredita na raça, escreve obras universais e não étnicas.
Também se irrita por as editoras terem essa expectativa esteoretipada do que deve ser um livro de um escritor negro, porque praticam, sem sequer perceberem, um racismo igual ao racismo de não os publicarem por serem negros, que é o de julgarem que um indivíduo, se nasceu com pele escura, é unidimensional e vive exclusivamente por, e para, essa questão.
Vai a Boston visitar a família. A mãe está com os primeiros sintomas de Alzheimer a progredir muito rapidamente, a irmã, que vive com ela e é médica, morre passados uns dias de ele lá chegar e o outro irmão, que também é médico, está com problemas porque a mulher apanhou-o na cama com um homem, expulsou-o de casa, ficou com os filhos e com mais de metade dos doentes -também é médica- sendo que vivem numa pequena cidade.
Monk resolve escrever um livro, exageradamente estúpido e mau, de acordo com o gosto idiota e estereotipado das editoras. Escreve-o mesmo ridículo para ser uma espécie de bofetada satírica nas editoras. Ninguém percebe a ironia e o livro é logo um sucesso - quanto pior ele fala e mais estúpido é o seu comportamento, mais sucesso tem 😁
Escreve o livro sob pseudónimo e nunca aparece em pessoa nas entrevistas. Inventa que fugiu da cadeia e é perseguido: as editoras e o público adoram. 😁
Porém, as coisas complicam-se comicamente quando ele faz parte de um júri literário sério e os outros membros brancos querem dar o prémio àquele livro estúpido que escreveu sob pseudónimo. Ele começa a tenta livrar-se do livro -aquilo era para ser um gozo- mas já não consegue porque está no top das vendas. 😁
Entretanto acompanhamos o drama da sua família, uma família normal com os problemas e as complexidades normais das famílias que nada têm que ver com a raça mas com o ser-se humano.
Muito bom o filme. Uma sátira ao absurdo a que se chegou na sociedade, em termos de comportamentos e linguagem que em vez de acabar com as desigualdades de direitos, substitui-as por outras desigualdades de direitos e preconceitos.
Ontem estive a analisar com uma turma a questão da ação humana. O que tem a acção humana que a diferencia de acções de outros animais ou de pessoas incapacitadas, mentalmente, por exemplo. Uma das dimensões da acção humana é a consciência - mas o que é isso da consciência?
Quando falamos em acções do ponto de vista ético, faz muita diferença o sentido em que se fala de consciência.
A consciência na acção moral diz-se em dois sentidos: um é o sentido de se saber se a acção está de acordo ou nega as leis e costumes bem como as consequências da quebra desse dever: é um sentido normativo, formal; outro sentido muito diferente é um sentido que corresponde a uma repulsa interna por fazer certas acções (mesmo que não neguem leis ou que se tenha a certeza de não se ser apanhado) e uma obrigação interna de fazer outras (mesmo que neguem leis ou se tenha a certeza de ser apanhado - Navalny, por exemplo). Chamo a este segundo sentido interno, um pouco estético. Há um sentimento tão grande e profundo de transgressão da ordem humana em certas acções que a ideia de as fazer causa repulsa, náusea.
Não me refiro a empatia, um conceito que está na moda mas que a mim me parece superficial - emoções à flor da pele - se não são acompanhadas de consciência, são voláteis e inconsequentes. Tanta gente empática que se emociona com o sofrimento de gatinhos mas que não hesita em actos de grande maldade e crueldade contra pessoas...
Este filme é brutal. Mostra um mundo com empatia e capacidade emocional mas sem consciência, a não ser naquele sentido normativo, formal. E o resultado é brutal.
É um filme inglês sobre o mundo nazi ou sobre o que foi o nazismo ou o que o mundo nazi fez às pessoas: deu-lhes permissão de verem a vida como um jogo de ganhar e perder e de o jogarem com as características mais cruéis da pior versão de si mesmas. Ditadores depravados e brutais têm esse efeito de incentivar o povo a fazer vir ao de cima a sua pior versão possível: Hitler, mas também Putin, como Mao, Estaline e outros do género.
É um filme diferente do que costumam ser os filmes sobre o nazismo que, geralmente, tentam mostrar o horror pela imagem brutal de pessoas perseguidas, emaciadas pela fome, torturadas, etc. Mas este filme não tem uma única imagem de judeus, embora se passe em Auschwitz. O horror do filme está na falta de horror que é a falta de consciência e a brutalidade anti-semita dos campos, que não se vê, nunca, mas é o pano de fundo do filme: ouve-se o tempo todo.
O filme passa-se durante a Segunda Guerra Mundial, na casa do comandante de Auschwitz, Rudolf Höss, que está separada do campo de Auschwitz, por um muro alto. Outros oficiais das SS moram ali atrás do muro, como eles. Höss vive ali com a mulher, Hedwig e os 5 filhos. A casa deles tem um jardim enorme, meio idílico, todo florido, com caramanchões, uma piscina. Hedwig organiza festas para as famílias dos oficiais no jardim da residência. Ela é a perfeita esposa alemã-nazi e floresce nesse papel. Adora a sua vida. Vemo-la juntar-se com as mulheres dos outros oficiais nos dias em que chegam comboios com judeus e os guardas dos campos vão lá levar os pertences mais caros que roubaram aos judeus: um casaco de vison, combinações de seda, jóias, etc. Ela fica sempre com o melhor, por ser a mulher do comandante. Ela é de uma brutalidade gelada. Tem uma empregada doméstica polaca, não judia. Um dia a empregada engana-se e ela diz-lhe, 'Vê lá o que fazes, sabes que posso pedir ao meu marido e ele transforma-te em cinza".
Quase todas as cenas do filme são filmadas como um palco de teatro em que o fundo é o muro que separa a casa do campo de extermínio. Então, por exemplo, estamos a vê-los numa festa no jardim e o fundo é o muro e, por detrás, a torre do campo, com guardas com metralhadoras, as chaminés com colunas grossas de fumo dos judeus a serem incinerados, a par com os sons que são constantes: gritos de guardas, tiros de pistola e de espingarda, crianças a chorar, pessoas aos gritos. Há uma cena em que ela leva o filho bebé para cheirar as dálias acabadas de florir no jardim (o adubo das flores do jardim são as cinzas e pedaços mortos dos judeus) e vemos as colunas de fumo a erguerem-se no céu atrás do muro e sabemos que o cheiro das pessoas queimadas deve ser insuportável, mas aquilo não a perturba. Ela é feliz ali...
Ela vive ali como num paraíso. Quando o marido é nomeado inspector-chefe dos campos e tem de mudar-se, ela diz que não vai com ele, porque tem ali a vida de sonho que sempre quis: tem tudo o que possa desejar, vem-lhe tudo ter à porta, todas a tratam com deferência, é admirada por todos, os filhos estão felizes, etc. Os filhos não estão felizes. Um deles, que brinca muito sozinho no quarto, no 1º andar, de vez em quando vai à janela porque o barulho é insuportável e olha para o campo com um ar muito perturbado.
Entretanto, o marido só pensa em tornar o campo mais eficiente. Reune-se com engenheiros para pensarem como arrefecer uns fornos enquanto outros trabalham para poderem queimar judeus 24 horas por dia. Nos dias em que chegam comboios, liga aos outros para eles irem lá escolher quem querem. Quando é nomeado inspector, vai à conferência de Wannsee e depois vai a uma festa. Em vez de divertir-se passa o tempo a pensar se seria fácil ou difícil gasear todos os presentes dada a altura do tecto do salão de baile.
A mãe dela vai lá passar uma semana com eles. Admira o jardim dela e a piscina. Pergunta-lhe se os judeus estão do lado de lá do muro e interroga-se se a ex-patroa dela, uma judia, estará lá a trabalhar. A mulher não faz idea do que lá se passa. Na primeira noite, não consegue dormir com o barulho dos tiros, da gritaria e vemo-la ir à janela e ficar perturbadíssima. No dia seguinte a família descobre que ela foi-se embora a meio da noite sem dizer nada a ninguém e percebemos que ela percebeu a extensão do horror que ali se passa e 'viu' a filha na sua realidade: uma pessoa brutal, sem consciência. E fugiu dali.
A atriz que representa Hedwig, a mulher de Höss, é a Sandra Hüller, uma alemã, que é uma excelente atriz (é a actriz de Anatomia de Uma Queda). Também o que representa Höss é alemão. Mas o papel dela é mais difícil e o filme centra-se nela. Tem de ser muito difícil representar um papel destes, sendo alemã... e o que mostra é uma consciência muito apurada e desenvolvida do que foram todas as transgressões humanas dessa época em que a maioria dos alemães eram nazis e conviviam muito bem com o nazismo.
Isso é o que vemos no filme: uma sociedade, que esta família representa, brutal e depravada que se sente feliz e à vontade com a escravidão e a subjugação e exterminação dos outros seres humanos. Estão todos muito bem na vida e o que fazem está de acordo com as novas normas e leis.
Podíamos transferir esta ausência de consciência das transgressões humanas para o tempo da escravatura nos EUA em que as famílias almoçavam e faziam festas de estrondo enquanto no quintal se amarravam negros aos postes para os chicotear, ou matar e se separavam famílias, se violavam as raparigas e as mulheres, etc. Ou para o que se passa com os russos que vão para a Ucrânia matar, torturar civis e têm conversas ao telefone com as famílias a gabar-se do que fizeram; ou o que fizeram os do Hamas no dia 7 de Outubro.
Todos estes casos são casos de sociedades onde os líderes são pessoas brutais, sem consciência dos limites da acção humana e que incentivam o povo, com o seu exemplo de ausência de consciência, a serem a pior versão possível de si mesmos. Trump também faz isso de incentivar os outros a serem a pior versão de si mesmos, embora não seja do calibre de Putin e muito menos de Hitler, que está noutra categoria a parte de todos.
Educar a consciência, mais do educar a empatia, é o que me parece verdadeiramente importante para a acção ética e moral.
Vi este este filme, alemão, que em português se chama, A Sala de Professores. O filme passa-se numa escola normal alemã, à volta de uma professora de Matemática e da sua turma de 7º ano. Acontece que há um roubo e desconfiam de um aluno que se vem a saber que não é culpado. Depois descobre-se a pessoa culpada mas essa descoberta gera uma crise grande, na turma, entre os alunos, entre a turma e a professora -que também é DT-, entre os alunos e a direcção da escola, entre os pais e a professora e entre os pais e a direcção da escola.
E o filme é sobre a fragilidade do equilíbrio de uma turma, a dificuldade de manter os alunos nas condições óptimas de se poder criar situações de aprendizagem e não perder de vista o que importa, em termos pedagógicos, nos momentos de crise. É um trabalho muito complexo porque os alunos estão numa fase difícil da vida, uma fase de crises constantes, próprias do desenvolvimento da adolescência - psicológico, fisiológico e cognitivo.
A professora, e os professores em geral são vistos, na sua relação com as turmas, como maestros diante das suas orquestras: têm de criar uma visão de conjunto em que todos possam participar e contribuir sem que as suas vozes individuais se percam no conjuntos, tal como acontece numa orquestra em que cada instrumento tem voz própria mas tem que trabalhar para a harmonia do conjunto - uma turma não é uma explicação individual para cada um dos 20 e tal alunos (o tamanho daquela turma), mas também não pode ser uma sopa em que todos se perdem e perdem a voz.
No filme, os pais não colaboram com os professores e muitas vezes não trabalham para ajudar os filhos - o que também é verdade. Não vou contar o filme porque ele está em cartaz. É um filme muito bom e que sai fora dos clichês do que costumam ser os filmes passados em escolas.
Coisas em que fui reparando no filme: os alunos no 7º ano sabem quem foi Tales de Mileto e a sua importância na Matemática a propósito de aprenderem os Teoremas de Mileto (também cá isso era do currículo, não sei se ainda é); os alunos aprendem e sabem usar um computador para fazer uma apresentação oral, mas as aulas são com cadernos e livros de papel; os testes são manuscritos; a professora aproveita a matéria para pôr problemas aos alunos e incentivá-los a encontrar respostas por si (acho que isso é universal); manda trabalhos para casa; as aulas são participadas e discutidas, embora sejam sempre os mesmos a intervir - isso é universal. O que me passou pela cabeça foi: ninguém ali defende a infantilização e o atraso de aprendizagem dos alunos para poupar dinheiro em professores.
Enfim, penso que vale muito a pena ver o filme, não só para professores, mas especialmente para professores. Aquela professora fez-me lembrar uma série de colegas, na maneira como encaram a educação, como não comprometem o carácter pedagógico e a exigência das aulas para agradar a ministros idiotas e sem deixar de dar primazia à relação com os alunos.
Ainda esta semana estava à conversa com duas colegas que são mais ou menos da minha idade. Estávamos a concordar em que basta um encarregado de educação mal-formado ou ignorante mas pensando que sabe mais que os professores, para estragar a relação de um professor com uma turma. Os pais nem percebem o estrago geral que fazem. Isso é uma das vertentes do filme, mas que não vou contar.
Uma das colegas contava que há uns anos teve uma turma no 7º ano com um par de gémeos e, num trabalho que mandou fazer, eles copiaram e ela disse-lhes que percebia que eles tinham copiado e pediu para eles reconhecerem. Não só não reconheceram como a mãe, em vez de educar os filhos, foi à escola chamar nomes à professora e dizer que ela não tinha provas e que era uma péssima professora, etc. É claro que os alunos têm sempre, dentro da turma, colegas cuja lealdade é para com eles, por muito que gostem do professor. O que é normal, mas divide a turma e estraga o ambiente, sendo que o professor vê mas não não pode fazer nada porque não vai pôr os alunos uns contra os outros, evidentemente. Resultado: o ambiente de confiança e bom espírito necessários a que as aulas decorram bem que a professora tinha com a turma modificou-se e nunca mais foi o mesmo. Ela levou os alunos até ao 12º ano, como acontece muito com professores que têm disciplinas em que podem fazer isso. Cria-se uma relação afectiva entre a turma e o professor porque são muitos anos e a pessoa acompanha o crescimento e as crises dos miúdos.
Um dos gémeos, no 10º ano, veio pedir desculpa e confessar que o tal trabalho tinha sido todo copiado e que tinha até tido a mão da mãe... Isto é cada vez mais comum: um EE ignorante mas arrogante ou desonesto, estragar uma turma inteira com as suas intrigas e estupidez, sem sequer perceber o que está a fazer. A nós o que nos custa é o prejuízo que isso causa à turma em geral.
Outra colega, que lecciona Biologia e Geologia, dizia que começou este ano com uma turma do 7º ano, mas que já não vai poder acompanhá-los até ao 12º ano porque se reforma antes disso, de maneira que, por um lado está contente porque quer sair disto em que transformaram a profissão, mas por outro, sente muita pena de largar os miúdos a meio do percurso.
Muitos colegas fazem lembrar a professora de matemática do filme - todos os ignorantes que por aí falam mal dos professores, a começar pelo ministro e seus capangas, gente sem tino, e a acabar na nossa pseudo-elite de pedagogos da moda, são uns ignorantes que não percebem nada do que se passa dentro de uma sala de aula, da relação entre os alunos e professores, de como tudo é um equilíbrio necessário mas difícil de manter, que se desfaz facilmente com o maior prejuízo para os miúdos.
O título do filme tem um sentido duplo. Por um lado trata-se de saber o que se passou para que um homem, que vive com a sua mulher e filho, isolados numa montanha dos Alpes na fronteira entre a França e a Alemanha, tenha morrido de uma queda de uma janela do segundo andar da casa mas, por outro, trata-se de dissecar a queda da relação conjugal deles.
Após a descoberta do corpo, pelo filho, é aberto um inquérito e a mulher é suspeita porque a queda dele é suspeita e ela era a única pessoa em casa. No decorrer do inquérito a sua vida conjugal é totalmente exposta.
A certa altura damos por nós menos interessados em saber se a morte dele foi acidente, suicídio ou homicídio e mais interessados na complexidade da relação entre eles.
Ninguém sabe o que se passa dentro de uma relação conjugal, mas as relações decaem, mesmo as melhores, por um acumular de falta de comunicação, falta de respeito e consideração e muito ressentimento engolido. Falta de comunicação. O filme faz mais perguntas que dá respostas.
O casal conheceu-se em Londres -ele é francês, ela alemã- quando ela estava na faculdade e ele escrevia e era aí professor. Tiveram uma ligação imediata e tinham uma relação de grande cumplicidade e intimidade intelectual e emocional, para além de física. Tiveram um filho. Um dia o filho é atropelado à porta da escola e fica cego e o pai culpa-se, porque devia ter ido buscá-lo e não foi.
O filho ser cego é uma metáfora, penso, da situação de ninguém saber o que se passa dentro de um casamento, mesmo que viva na mesma casa e partilhe a vida dessas pessoas.
A partir dessa altura a relação deles começa a decadência. A mulher ressente-se da culpa obsessiva dele porque pensa que isso marca negativamente o filho - como se fosse menos pessoa por ter ficado cego; ele isola-se na culpa e isola-a, afasta-a; resolve ficar a trabalhar o mínimo de horas como professor e deixar de escrever para se dedicar inteiramente ao filho; o dinheiro deles vai-se nos tratamentos do filho; ela, que também é lésbica, gere o caos em que se tornou o casamento com um affair com uma rapariga; como quer ser honesta, conta ao marido e diz-lhe que foi só uma coisa sexual; claro que ele sabe que isso de ser só sexual não existe e leva a traição muito a mal - fica muito ressentido; ele propõe irem viver na sua casa de infância, nos Alpes franceses, para poupar dinheiro e porque quer o afastamento dela de tentações; ela aceita; dado que ele desistiu de escrever para se dedicar ao filho, ela pede para usar uma ideia dele num livro; o livro tem um enorme sucesso e ela torna-se uma escritora de grande sucesso; ele ressente-se com isso; ela não é uma mulher de se acomodar às inseguranças do marido, não pede desculpa de ser quem é.
Enfim, como se inquina uma relação de amor (eles ainda sentem amor um pelo outro) com muita areia que se deixa entrar na engrenagem e nunca se limpa. Eles são ambos íntimos mas, ao mesmo tempo, estranhos. Estão sempre desconfortáveis na sua comunicação, dado que ele não fala o alemão e ela fala pouco o francês. Encontram-se em inglês, Isso dá-nos a impressão da infinita distância que há entre as pessoas, mesmo duas pessoas que estão numa relação íntima de amor e de como tem que estar sempre a traduzir-se para o outro.
As cenas no tribunal reforçam essa ideia de que o que se sabe de fora, no que respeita a um casamento, mesmo quando toda a vida é exposta, é uma pequena fresta da realidade que não diz nada de verdade das pessoas e das situações. Como tirar uma frase de um livro que não se leu e pensar que se percebeu a verdade da obra a partir daquela pequena fatia.
A interpretação dela é excelente. Muito contida, sem emocionalismos, com uma grande ansiedade que vai crescendo mas sem nunca descair para uma simplificação do que era complexo. Mantém a lealdade ao marido e tenta preservar a sua memória para o filho. O filho é um rapaz memorável e de uma grande inteligência: sendo cego, vê muito mais do que parece. Muito bom no filme, capaz de uma grande tensão emocional e de passar do registo de criança assustada pela morte do pai a pré-adulto a decidir a sua posição (curiosidade: o actor é filho de uma portuguesa emigrada de Famalicão). O marido nunca se vê, a não ser numa cena em retrospectiva em que assistimos a uma discussão entre eles que acaba em grande violência verbal (como acontece entre casais que acumulam tensões sem as resolver) e não só. Belíssimos diálogos. Um filme que nos deixa a pensar.
O filme é muito grande com duas horas e meia, mas essa demora parece necessária para entrarmos gradualmente em todos os interstícios psicológicos da relação deles.
Não vou contar o que se passa e a conclusão a que chegam, mas posso dizer que o filme não é uma americanada e isso, só por si, já diz muito.
Este filme -Saltburn, que se refere ao nome de uma propriedade- pode-se classificar como comédia negra ou gótica ou burlesca ou sátira... não sei bem, mas é sobre não haver pessoas boazinhas. É verdade que há, nos extremos, alguns que são miseravelmente maus e que há alguns outros extraordinariamente motivados pelas coisas certas, digamos assim, mas no meio desses há uma miríade de gente que, em diversos graus, não são pessoas boazinhas. Todos são capazes de actos de crueldade, de hipocrisia, de cobardia, de maldade, etc.
Este filme é sobre um jovem rapaz e aquilo de que é capaz para ter o que quer, mas ao mesmo tempo nenhuma das suas 'vítimas' é propriamente uma vítima porque, lá está: There are not nice people - esta foi uma frase que ouvi a realizadora dizer a propósito do filme.
O filme está carregado de simbolismos e cheio de pormenores significantes que a música acompanha de modo admirável - é incómoda nas cenas incómodas (que são muitas), gloriosa para sublinhar o desadequado, religiosa nas cenas mais eróticas...
O filme lembra-me, em parte, o Ripley de Patricia Highsmith; o Brideshead Revisited; o Gatsby, o Brutti, sporchi e cattivi... porém, não é nenhum deles. É muito mais mordaz e cru. Como se diz no filme, Oliver, a personagem principal, é uma traça sombria atraída pela luz das borboletas ao ponto de comê-las para ser 'elas'. 'Elas' nunca percebem a sua realidade sombria porque estão demasiado entretidas a serem borboletas caprichosas e algo cruéis, embora não o percebam.
Stalker é um filme de Tarkovsky, um realizador russo considerado um dos maiores realizadores de sempre. Foi o último filme que fez na URSS. Apesar de começar a sua carreira na era de Nikita Khrushchev, uma era de abertura ao Ocidente na literatura e arte, começou a ter sérios problemas com as autoridades na época de Brezhnev e saiu da URSS, vindo a fazer os seus dois últimos filmes no exílio. Só fez sete filmes. Depois, fez alguns documentários e outros trabalhos pequenos. Dele só tinha visto, Ivan's Childhood (1962) e Andrei Rublev (1966). Hoje de manhã estive a ver este filme, de longe o meu preferido agora. Este filme é para ver mais que uma vez porque é tão rico em imagem, diálogo e significado que à primeira vez não se consegue (ou eu não consigo) processar todos os pormenores.
Tarkovsky morreu relativamente novo -54 anos- de cancro no pulmão. Igual morte prematura de cancro no pulmão tiveram outras pessoas que entraram no filme, como actores ou como equipa e pensa-se hoje que foi devido às filmagens serem quase todas numa antiga fábrica/estação hidroeléctrica desactivada, perto de uma fábrica de químicos que fazia descargas poluentes, tóxicas e cancerígenas para o ar e para o rio que ali passava, a que estiveram expostos meses a fio, sem nenhuma proteção. Parte do filme é algo premonitório, pois refere um colapso do 4º bunker da fábrica numa paisagem a lembrar Chernobyl, muitos anos antes do desastre do 4º tanque de Chernobyl.
Enfim, Stalker é um filme metafísico, mas também poético, embora possa ser lido como político, um manifesto anti-comunista, por exemplo. Isso tem piada porque a própria ideia do filme tem que ver com leituras da realidade subjectivas, de maneira que a interpretação do filme é uma meta-leitura de uma leitura da existência humana e da sua busca por sentido e pelo maravilhoso.
O nome do filme, Stalker, portanto, não se refere aqui ao sentido actual deste termo, que é o de alguém perseguir implacavelmente outra pessoa e trespassar agressivamente a sua privacidade. Stalker aqui é entendido no sentido anterior do termo, que no livro que serviu de base ao argumento significa indivíduos que caçam artefactos estrangeiros e vendem ilegalmente, mas que aqui no filme deriva dos guias de caça, pessoas que orientam os caçadores na pista da presa: sabem seguir o seu trilho e aproximar-se devagar, paciente e silenciosamente. Portanto, Stalker, neste filme, é entendido como o guia numa perseguição, numa busca, neste caso uma busca pelo sentido da existência e o desejo de transcendência, de uma vida, de outro modo, cinzenta.
O filme dura quase três horas e é lento, com grandes planos e até pausas em que o realizador nos deixa a contemplar uma cena belíssima e de silêncio só interrompido por uma chuva no interior de um edifício, para nos dar tempo de meditação sobre o acabado de dizer pelas personagens.
O filme é quase todo com 3 pessoas: o Stalker, o Professor (um físico) e o Escritor - nunca sabemos o nome deles, são arquétipos. Passa-se num país indeterminado da actualidade -industrializado e materialista, ambientalmente degradado. Este materialismo não será meramente soviético mas percebe-se que é uma referência à anti-religiosidade e anti-espiritualidade próprias dos regimes comunistas e os termos de 'Zona', 'moedor de carne' e outros usados são tirados do Gulag.
No filme o Stalker é uma indivíduo que leva pessoas à Zona, às escondidas, porque é ilegal e está guardada pela tropa, um sítio considerado misterioso e que tem a fama de dar a cada um aquilo que mais quer e procura. No filme nunca nos é dito ao certo o que é a Zona embora sejam mencionadas três razões para o aparecimento da Zona: foi deixada por extraterrestres, foi criada pela queda de um meteorito ou foi causada por uma avaria no quarto bunker.
(vou fazer um almoço - já venho escrever o resto)
O princípio do filme diz-nos logo muito sobre o filme. Enquanto espera pelo Stalker, o escritor diz a uma mulher que o mundo se tornou aborrecido e cinzento. Já não há o maravilhoso, o sobrenatural, o divino. Já não há poesia. Não há mistério, o triângulo das Bermudas não existe. Só existe o triângulo A,B,C com os seus ângulos matemáticos. Tudo é medido e pesado. A realidade limitou-se e limitou-os ao concreto material imediato. Quando chega o Professor e lhe pergunta sobre o que escreve, ele diz que escreve sobre os leitores porque não há mais nada para escrever e que quer ir à Zona porque perdeu a inspiração e espera ter lá uma experiência refundadora da criatividade. O professor há-de confessar que o que mais quer é ganhar o prémio Nobel e que espera ganhá-lo com o que encontrar na Zona. Vai para lá com uma mochila cheia de instrumentos de medir e pesar que não larga de maneira nenhuma. Leva a sua prisão consigo.
O Stalker diz-lhes, no início da viagem, que têm de fazer tudo o que mandar, que o caminho até à entrada do campo onde se situa a Zona é perigoso, que vão ser perseguidos por guardas (os guardas não se atrevem a passar a fronteira para esse campo), que mesmo lá dentro o caminho não é directo, que tem armadilhas e que é difícil chegar à Zona - que é uma sala dentro de um edifício abandonado no meio do campo.
Todo o filme até eles passarem a fronteira do recinto é em tons de sépia e o ambiente é industrial decadente e abandonado: linhas de caminho de ferro abandonadas, carris, ferros, poças de líquidos, edifícios ruídos, cimento, correntes, etc. Assim que passam a fronteira do recinto, abre-se um plano de um campo verdejante com um rio ao fundo. Assim que chegam lá o Stalker deita-se no chão a cheirar e sentir a terra e as ervas, com um sentimento de reverência espiritual e religiosa. É o que busca: restaurar a fé no mundo levando até à Zona pessoas com coragem e desejo de mudar o mundo, de voltar a colori-lo. Ele nunca entrou na Zona propriamente dita. O último Stalker que lá entrou suicidou-se. Os Stalkers, fica-me a saber, têm filhos que nascem deformados - ele tem uma filha paralítica.
Enfim, depois de muitos perigos chegam à entrada da Zona mas nenhum deles entra, cada um com a sua razão e voltam para trás para a realidade sépia indiferenciada, embora voltem diferentes.
Perto do fim do filme o Stalker está desesperado porque os outros dois não entraram na Zona e não vão restaurar a fé e a poesia do mundo, sem reparar que a sua mulher abandonou tudo (percebemos desde o início) por amor e uma fé inabalável nele: ele -ou o amor a ele- é a Zona dela.
A última cena é com a sua filha a ler um poema, a deitar a cabeça na mesa e com o olhar fazer andar os três copos que lá estavam. À medida que os copos se mexem, ouvimos um comboio a aproximar-se e tudo na mesa começa a tremer, o que achei genial, pois é-nos dito quase no início do filme que "as crianças nascem suaves e flexíveis e crescem a tornar-se adultos fortes, mas duros e inflexíveis". Ao ver esta cena dela pôr os copos a mexer percebemos que as crianças, como a filha dele, têm a Zona dentro de si e para elas tudo é possível e maravilhoso, de maneira que não precisam de longas caminhadas como os adultos que já estão longe desse início, para procurar o maravilhoso, mas à medida que ouvimos o comboio e vemos tudo a tremer e os copos a mexer, somos levados a interpretar a telequinesia da criança como uma ilusão, cuja razão material é a vibração provocada pelo comboio e com isso o realizador obriga-nos a olharmo-nos como adultos que perderam a fé e já não ultrapassam a fronteira do material causal. É como se nos dissesse: e agora? Foi a criança que fez mexer os copos ou foi o comboio? Como interpretam a cena? Já pensaram se estão duros e inflexíveis, presos à realidade material, mensurável e quantificável como se ela abarcasse todas as possibilidades?
O filme tem muito que ver e perceber porque todos os pormenores têm significado - e são quase três horas. Este é um realizador que não deixa nada ao acaso. Visualmente o filme é muito poético e filosófico.
O que faz com que certas pessoas que nascem com um talento extraordinário para a pintura escolham ser falsários? Talvez não escolham.
Estive a ver um filme (The Last Vermeer) sobre o processo de Han van Meegeren -considerado o maior e melhor falsário de sempre- na Holanda, no pós-guerra. Quando se descobre entre a arte roubada por Goering, um Vermeer desconhecido, os holandeses vão à procura da pessoa que lho vendeu e vão dar com Han van Meegeren, um pintor holandês de terceira categoria e negociante de arte. Acusado de colaborar com os nazis e arriscando-se à pena de morte, Han van Meegeren pinta um Vermeer num espaço de meses, na prisão, para provar que o Vermeer que vendeu a Goering é uma fraude e que nunca vendeu tesouros artísticos aos nazis, mas apenas falsificações. O que consegue fazer e lhe devolve a liberdade, mas como consequência desse revelação temos que até hoje não sabemos quais as pinturas 'descobertas' e vendidas por ele no século XX (ele morreu seis semanas após a libertação) são verdadeiras e quais são falsas. Muitos quadros 'descobertos' e vendidos por ele estão em grandes museus do mundo. Han van Meegeren falsificava variados estilos mas era especialista em Vermeer, um pintor que pintou pouquíssimas telas que valem, pela sua raridade, uma enorme fortuna.
Estava a ver o filme e a pensar o que faz com que uma pessoa nascida com um talento extraordinário para a pintura escolha ser falsária em vez de deixar o seu legado para a posteridade? Em parte, como lhe diz uma personagem no filme, faltou-lhe a força de vontade, a alma, para enfrentar os críticos e vencer as adversidades próprias dos artistas que têm que abrir caminho por si mesmos.
Porém, isso só não basta para explicar essa renúncia de si mesmo: falta-lhes voz própria.
"Conhece-te a ti mesmo" era uma máxima do Oráculo de Delfos, da Grécia Antiga, citada por Platão em vários dos seus diálogos, pela voz de Sócrates. Quem não se conhece a si mesmo, quem não mergulhou nas profundezas da sua alma e viu os recantos, as armadilhas, os abismos e todas as cores e texturas que encerra, não tem inspiração para criar porque não tem voz própria. É um copiador de imagens, de superfícies. Pode ter uma técnica muito sofisticada ou rigorosa, como uma mecânica do gesto, mas falta-lhe a visão que a técnica revela. A visão vem de dentro, pois mesmo o que nos inspira vindo de fora, só o faz porque ecoa e é reconhecido dentro e é de dentro que vem esse sopro criador.
Em cada uma das mil vozes de Pessoa, reconhecemos Pessoa.
Educar é, em grande parte, educar a voz para a individualidade, ensinando o processo da reflexão, da introspecção, da arqueologia interior, sem os quais as pessoas crescem imitadores desinspirados, altifalantes de vozes alheias, cidadãos tecnicamente amestrados, renúncias de si próprios.
Este é o 2º filme dirigido por Bradley Cooper. Não gostei do 1º -A Star Is Born- que achei uma americanada mas fiquei surpreendida com este filme e com o facto de ser apenas o seu 2º filme como realizador, tendo em conta que a sua formação é de actor e não de realizador. O filme é muito bom. O título engana porque não é uma biografia de Bernstein enquanto Maestro, nem sequer uma análise de como se tormou o Maestro Bernstein. É uma análise da sua persona vista através da anatomia da sua relação com Felicia Montealegre, uma atriz de teatro de origem chilena com quem esteve casado até à morte prematura dela, de cancro. Ela e ele tiveram uma conexão imediata desde o momento em que se conheceram e ela foi um factor da estabilidade da vida dele -um indivíduo exuberante mas depressivo- de compreensão e apoio para que ele se pudesse encontrar consigo mesmo, mas a sua relação era muito complicada porque ele também era homossexual e tinha, paralelamente, amantes jovens, coisa que nunca lhe escondeu. O filme é muito bom a dissecar esta relação à lupa, digamos assim e a mostrar o quão complexas e profundas podem ser as pessoas e as suas relações.
No filme temos direito a 3 ou 4 excertos de concertos, em ensaio ou em performance que recriam performances de Bernstein que existem gravados e podem ver-se no YouTube (ele foi o maestro mais gravado de sempre - era o Sinatra da música clássica) dos quais o mais impressionante é o trecho da Ressurreição da 2ª sinfonia de Mahler, gravada numa catedral de Londres e que Bradley Cooperconduz in loco, diante de uma orquestra real a tocar o excerto. São mais de 6 minutos de uma única cena em que Bradley Cooper é, verdadeiramente, Berstein, com aquele modo exuberante, emocionado e apaixonado que ele tinha de conduzir.
Bradley Cooper e Carey Mulligan, a atriz que representa Felicia Montealegre, fazem ambos uma representação extraordinária: ele porque olhamos para ele e vemos mesmo Bernstein e ela porque olhamos para ela e vemos o seu interior e o dele. Ela consegue exteriorizar o interior profundo de ambos.
Um filme de encontro de culturas. Passado em Durham, no Norte de Inglaterra, uma localidade em declínio há 30 anos, pobre e envelhecida devido ao fecho das minas que empregavam a população local. É neste comunidade que instalam um grupo de famílias sírias fugidas à guerra. De início vistas com desconfiança e preconceito, acabam por ser aceites pelos locais por via da colaboração entre o dono do último pub local (The Old Oak) e de uma rapariga síria. O filme não lida com os problemas do multiculturalismo, que são complexos, não lida com o radicalismo, nem serve, penso, nenhuma política, apenas nos lembra que os estranhos, quando nos aproximamos deles, deixam de ser um grupo estereotipado e passam a ser seres humanos individuais, logo, compreensíveis nas suas particularidades.
Está a passar um filme na TV chamado «Vice», que não conhecia. «Vice» refere-se ao vice-presidente de Bush, Dick Cheney, o mais poderoso vice-presidente dos EUA, de sempre. O filme retrata Dick Cheney, como um patife-ladrão, cheio de negócios escuros com os tipos do petróleo, um ditador encapotado do género daqueles fazendeiros ricos de terras e gado dos filmes de cowboys que têm um gang de malfeitores a trabalhar para eles e a aterrorizar toda a gente, sendo que o seu gang de malfeitores era o aparelho do Estado, o pessoal da Casa Branca. George Bush aparece como um idiota chapado sem moral que não vê um boi à frente do nariz enquanto dá todos os poderes ao Vice que desfalca o país e cria a sua unidade de torturadores e bandidos. O homem tem 82 anos e vive na boa. Nunca ninguém o chateou, a ele e a Bush, pela invasão obscena do Iraque ou por Guantanamo. Como é que as pessoas comuns hão-de ter confiança nos políticos?
Golda é um filme sobre a guerra do Yom Kippur, em 1973, em que Sírios e Egípcios invadem Israel no dia do feriado religioso, em grande parte para se vingarem da derrota humilhante da coligação árabe na guerra dos seis dias, uns anos antes, que envolveu oito países árabes contra Israel.
O filme mostra o exercício do poder por Golda Meir durante esses 20 dias em que assume o comando da guerra e gere aquele Estado militarizado. O filme é sobre ela enquanto líder e é através da gestão do gabinete de guerra que temos acesso ao seu estilo de liderança. Vemo-la gerir e manobrar com mestria, Moshe Dayan e os outros militares, cheio de hubris devido à recente vitória esmagadora da guerra dos seis anos, todos galos a defender, cada um o seu poleiro, e Kissinger, de cujo apoio depende, naqueles tempos em que não se via uma mulher assumir os destinos da guerra.
Quem representa o papel de Golda Meir é Helen Mirren que encarna perfeitamente o espírito, os modos, a tenacidade e a capacidade de decisão que caracterizavam Golda Meir.
Claro que nesta época de idiotas houve logo quem criticasse não ser uma judia a representar o papel de uma judia, mas o filho de Golda Meir, ele mesmo, louvou o trabalho dela.
Golda Meir era ucraniana de nascimento, num tempo em que a Ucrânia estava dominada pela Rússia e emigrou para os EUA e depois para a Palestina, em 1917. Era uma sionista convicta e apaixonada. Morreu passados poucos anos desta guerra, de cancro. Fumava barbaramente - vejo-a a fumar e vejo-me a mim, há 20 anos, a acender uns cigarros nos outros.
Vale muito a pena ver, sobretudo para quem se interessa por personagens da História que marcaram épocas. Golda Meir e antes dela, Indira Gandhi, abrem caminho para que Margaret Teacher e outras mulheres pudessem vir a ser primeiras-ministras nos anos 80.
Fui dar com este filme de 1956, com a Maureen O'Hara, passado em Lisboa (chama-se Lisbon) e a música de abertura que acompanha os créditos iniciais sobre uma imagem da Torre de Belém, é o fado, Lisboa Antiga, mas em versão música romântica de Hollywood. Vou ver se o filme vale a pena.
A Torre de Belém ainda está na areia da praia. Diz-se no filme que o fado Lisboa Antiga, que Anita Guerreiro aparece a cantar, "é uma espécie de home, sweet home para os brasileiros". AHAH E bebem Mateus rosé, claro. O Palácio da Pena foi construído pelos mouros :))
Está a passar um filme de cowboys num daqueles canais abertos. É um western psicológico de 1947, realizado por Raul Walsh. Chama-se, Pursued. O filme não é nada de especial -o típico homem atormentado por um passado sombrio sempre metido em sarilhos- mas, para além de bons actores, Robert Mitchum e Teresa Wright, tem uma fotografia e uma cinematografia deslumbrantes. O filme tem pouco mais de hora e meia e imensas cenas parecem uma pintura. Nos últimos 15 minutos, uma cena de perseguição de cavalos ao lusco-fusco, filmada de uma maneira que os homens e os cavalos aparecem como autênticas figuras rupestres ou picassianas, em movimento, os contornos iluminados de prata contra enormes montanhas sombrias e céus de nuvens como almofadas de formas estranhas, é de uma grande beleza. Nos filmes antigos a preto e branco sabiam filmar uma cena nocturna, de maneira que se visse a cena, na noite, cheia de vida, com todas aquelas figuras de sombras que fazem da noite um cenário denso, tenso e palpitante, coisa que hoje em dia não sabem e põem o ecrã a negro e não se percebe nada do que se passa nem tem interesse. O filme está todo no YouTube. Não é o mesmo que ver num ecrã grande, claro.
Na semana passada vi dois filmes, um que nunca tinha visto, chamado, The Ticket e outro que tinha visto há vinte anos quando estreou mas que não tinha voltado a ver, The Pianist.
The Ticket é um filme pessimista. O filme apresenta-nos um homem cego, que por ser cego, é extraordinariamente atento ao que o rodeia, vê as qualidades das pessoas e aproveita o melhor de tudo o que tem. Tem uma mulher fantástica e um filho que o adora. Tem um grande amigo que também é cego. Um dia, contra todas as expectativas, começa a ver - o nome do filme vem deste acontecimento que é o equivalente a ganhar a grande lotaria. A questão é que, assim que começa a ver, passa a ser cego. Primeiro vê-se ao espelho e descobre que é um homem bonito e de repente começa a ver tudo pelas aparência, pela superfície e perde a habilidade que tinha de ser atento, de ver as qualidades das pessoas e entender o seu valor. Começa a progredir no emprego, mas com um tal entusiasmo pelo sucesso que se degrada moralmente e engana clientes. Um manipulador sem escrúpulos. Não tarda muito deixa a mulher por uma fulana qualquer do emprego que lhe traz mais glamour e aparente sucesso. Sai de casa, zanga-se com o amigo porque este diz-lhe a verdade sobre aquilo em que se transformou e ele pensa que o amigo tem é inveja dele. Acha-se extraordinário. Quando se farta daquela vida fútil, a cegueira começa a voltar e ele começa de novo a ver para além das futilidades, do glamour que tanto queria e do poder. Quer voltar para a mulher mas já não há maneira de reconstruir o que tinha com ela e o filme acaba com ele a ir-se embora, já meio cego, mas vendo de novo muito bem, triste e sozinho. O que faz um bilhete da lotaria, por assim dizer, às pessoas. O poder e o dinheiro cegam e corrompem. Um filme, muito pessimista.
O segundo filme, The Pianist, é um filme extraordinário de Roman Polanski (um sobrevivente do gueto de Varsóvia) baseado nas memórias do pianista e compositor polaco, Szpilman, que sobreviveu no gueto de Varsóvia depois da sua família toda ter sido deportada para os campos e de, já na plataforma de embarque, um amigo tê-lo reconhecido e tê-lo puxado para fora da multidão e mandado esconder. No filme, vamos acompanhando a degradação da vida em miséria: as pessoas do gueto ficarem sem comida, as crueldades bárbaras dos nazis, as execuções, as deportações.
Szpilman fez vários trabalhos e foi ajudado por amigos, porque ele era um músico conhecido entre os polacos. Quando o gueto já não tinha praticamente ninguém, viveu a esconder-se de ruína em ruína e a comer o que encontrava. A certa altura encontra uma casa que tem um bom esconderijo. A casa tem um piano que ele não pode tocar, naturalmente. A paixão dele pela música é tão grande que ele toca peças inteiras na sua cabeça e é esse "Verão Invencível" que lhe dá força para viver.
Mesmo no fim do filme, um dia em que procura uma maneira de abrir uma lata de comida que encontra, de repente vê um comandante nazi a olhar para ele. Foi descoberto, depois de tantos cuidados e sofrimento e vê-se na cara dele que tem a certeza que vai ser executado. O alemão pergunta-lhe o que faz ali e ele diz que se esconde. Pergunta-lhe pela profissão e ele diz que é pianista. Então o comandante nazi diz-lhe para tocar e ele toca um Nocturno de Chopin, um polaco. Toca como quem se despede da vida e recorda todas as emoções. E acaba de tocar e fica à espera que venha o tiro. Só que não. O alemão não o mata e começa a trazer-lhe comida regularmente para ele sobreviver.
Esta situação aconteceu mesmo e até se sabe quem era o alemão e que veio a morrer num campo de prisioneiros soviético porque Szpilman nunca soube o nome dele para o ajudar no fim da guerra. Só muitos anos depois se veio a saber quem era. É uma cena muito forte e extraordinariamente optimista. No meio daquele Inverno de morte que foi essa guerra e da vida impossível no gueto de Varsóvia, um judeu e um alemão têm uma cena de humanidade comum através da música. Reconhecem-se como humanos, como se a cegueira de um e o ódio/medo do outro tivessem desaparecido e tivessem reparado um no outro como seres humanos, por cima de toda a miséria moral da guerra, por detrás de todos os véus que cobrem os seres que as pessoas são. Uma visão muito comovente e extraordinariamente optimista da vida.