Um grupo de elefantes pára junto das ossadas da anterior matriarca que morreu com um raio e fazem um minuto de silêncio, digamos assim. Temos tanto para aprender e estamos presos em guerras porque há homens gananciosos, narcisistas e sedentos de poder e morte que condicionam o decursos do mundo. Eles e os seus rebanhos de servos que são multidão.
Como ser verdadeiramente livre: Lições de um presidente filósofo
Pepe Mujica, antigo presidente espartano do Uruguai e filósofo de expressão simples, oferece a sabedoria de uma vida rica enquanto luta contra o cancro.
Há uma década, o mundo teve um breve fascínio por José Mujica. Era o presidente popular do Uruguai que tinha evitado o palácio presidencial do seu país para viver numa pequena casa de telhado de lata com a mulher e o cão de três patas.
Em discursos a líderes mundiais, entrevistas a jornalistas estrangeiros e documentários na Netflix, Pepe Mujica, como é universalmente conhecido, partilhou inúmeras histórias de uma vida digna de um filme. Assaltou bancos como guerrilheiro urbano de esquerda; sobreviveu 15 anos como prisioneiro, inclusive fazendo amizade com um sapo enquanto era mantido num buraco no chão; e ajudou a liderar a transformação da sua pequena nação sul-americana numa das democracias mais saudáveis e socialmente liberais do mundo.
Mas o legado do Sr. Mujica será mais do que a sua história colorida e o seu empenhamento na austeridade. Tornou-se uma das figuras mais influentes e importantes da América Latina, em grande parte devido à sua filosofia de expressão simples sobre o caminho para uma sociedade melhor e uma vida mais feliz.
(...)
(Sem ser solicitado.)
Penso que a humanidade, tal como está a evoluir, está condenada.
Porque é que diz isso?
Perdemos muito tempo inutilmente. Podemos viver de forma mais pacífica. Veja-se o caso do Uruguai. O Uruguai tem 3,5 milhões de habitantes. Importa 27 milhões de pares de sapatos. Fazemos lixo e trabalhamos com dor. Para quê?
És livre quando escapas à lei da necessidade - quando gastas o tempo da tua vida naquilo que desejas. Se as tuas necessidades se multiplicam, gastas a tua vida a cobrir essas necessidades.
O ser humano pode criar necessidades infinitas. O mercado domina-nos e rouba-nos a vida.
A humanidade precisa de trabalhar menos, de ter mais tempo livre e de estar mais assente na terra. Porquê tanto lixo? Porque é que temos de mudar de carro? Mudar o frigorífico?
Só há uma vida e ela acaba. Há que lhe dar um sentido. Lutar pela felicidade, não apenas pela riqueza. Acredita que a humanidade pode mudar?
Pode mudar. Mas o mercado é muito forte. Gerou uma cultura subliminar que domina o nosso instinto. É subjetivo. É inconsciente. Tornou-nos compradores vorazes. Vivemos para comprar. Trabalhamos para comprar. E vivemos para pagar. O crédito é uma religião. Por isso, estamos um bocado lixados.
Parece que não tem muita esperança.
Biologicamente, tenho esperança, porque acredito no homem. Mas quando penso nisso, sou pessimista.
No entanto, os seus discursos têm muitas vezes uma mensagem positiva.
Porque a vida é bela. Com todos os seus altos e baixos, eu amo a vida. E estou a perdê-la porque chegou a minha hora de partir. Que sentido podemos dar à vida? O homem, comparado com os outros animais, tem a capacidade de encontrar um objetivo.
Ou não. Se não o encontrar, o mercado fá-lo-á pagar contas para o resto da sua vida.
Se o encontrares, terás algo pelo que viver. Os que investigam, os que tocam música, os que gostam de desporto, qualquer coisa. Algo que preencha a vossa vida.
Porque é que escolheu viver na sua própria casa como Presidente?
Os vestígios culturais do feudalismo permanecem. O tapete vermelho. A corneta. Os presidentes gostam de ser elogiados.
Uma vez fui à Alemanha e puseram-me num Mercedes-Benz. A porta pesava cerca de 3.000 quilos. Puseram 40 motas à frente e outras 40 atrás. Fiquei envergonhado.
Temos uma casa para o Presidente. Tem quatro andares. Para tomar chá é preciso andar três quarteirões. É inútil. Deviam fazer dela uma escola secundária.
Como é que gostaria de ser recordado?
Ah, como aquilo que sou: um velho louco.
É só isso? Fez muito.
Eu tenho uma coisa. A magia da palavra.
O livro é a maior invenção do homem. É uma pena que as pessoas leiam tão pouco. Não têm tempo.
Hoje em dia, as pessoas lêem muito no telemóvel.
Há quatro anos, deitei o meu fora. Dava comigo em doido. Todo o dia a dizer disparates.
Temos de aprender a falar com a pessoa que está dentro de nós. Foi ela que me salvou a vida. Como estive sozinho durante muitos anos, isso ficou-me na memória.
Quando estou no campo a trabalhar com o trator, às vezes paro para ver como um passarinho constrói o seu ninho. Ele nasceu com o programa. Já é um arquiteto. Ninguém o ensinou. Conheces o pássaro hornero? São perfeitos pedreiros.
Eu admiro a natureza. Quase tenho uma espécie de panteísmo. É preciso ter olhos para a ver.
As formigas são um dos verdadeiros comunistas que andam por aí. São muito mais velhas do que nós e sobreviver-nos-hão. Todos os seres das colónias são muito fortes.
Voltando aos telemóveis: Está a dizer que eles são demais para nós?
A culpa não é do telemóvel. Nós é que não estamos preparados. Fazemos uma utilização desastrosa do telemóvel.
As crianças andam por aí com uma universidade no bolso. Isso é ótimo. No entanto, avançámos mais em tecnologia do que em valores.
No entanto, é no mundo digital que se vive atualmente grande parte da vida.
Nada substitui isto. (gesticula para nós os dois a falar). Isto é intransmissível. Não estamos a falar apenas com palavras. Comunicamos com gestos, com a nossa pele. A comunicação direta é insubstituível.
Não somos tão robóticos. Aprendemos a pensar, mas antes somos seres emocionais. Acreditamos que decidimos com a cabeça. Muitas vezes a cabeça encontra os argumentos para justificar as decisões tomadas pelo instinto. Não somos tão conscientes quanto parecemos.
E isso é ótimo. Esse mecanismo é o que nos mantém vivos. É como a vaca que segue o que é verde. Se há verde, há comida. Vai ser difícil deixar de ser quem somos.
Já disse no passado que não acredita em Deus. Qual é a sua visão de Deus neste momento da sua vida?
Sessenta por cento da humanidade acredita em alguma coisa, e isso deve ser respeitado. Há perguntas sem resposta. Qual é o sentido da vida? De onde viemos? Para onde é que vamos?
Não aceitamos facilmente o facto de sermos uma formiga no infinito do universo. Precisamos da esperança de Deus porque gostaríamos de viver.
Tem algum tipo de Deus?
Não. Respeito muito as pessoas que acreditam. É como uma consolação perante a ideia da morte.
Porque a contradição da vida é que ela é um programa biológico concebido para lutar para viver. Mas a partir do momento em que o programa começa, estamos condenados a morrer.
Parece que a biologia é uma parte importante da vossa visão do mundo.
Somos interdependentes. Não poderíamos viver sem os procariontes que temos no nosso intestino. Dependemos de uma série de insectos que nem sequer vemos. A vida é uma cadeia e ainda está cheia de mistérios.
Espero que a vida humana seja prolongada, mas estou preocupado. Há muitos loucos com armas atómicas. Muito fanatismo. Devíamos estar a construir moinhos de vento. Mas gastamos em armas.
Que animal complicado é o homem. É ao mesmo tempo inteligente e estúpido.
Aqui, vinte e cinco anos depois, retomo os episódios da minha vida em África e uma figura, erecta, sincera e muito agradável de se ver, ergue-se como porteiro para todos eles: o meu criado somali, Farah Aden. Se algum leitor objectar que poderia ter escolhido uma personagem de maior importância, responder-lhe-ia que isso não seria possível.
Farah veio ao meu encontro em Aden em 1913, antes da Primeira Guerra Mundial. Durante quase dezoito anos, ele geriu a minha casa, os meus estábulos e os safaris. Falei com ele sobre as minhas preocupações e sobre os meus sucessos, e ele sabia de tudo o que eu fazia ou pensava. Farah, quando tive que abandonar a fazenda e deixar a África, despediu-se de mim em Mombasa. Enquanto observava a sua figura escura e imóvel no cais ficar cada vez menor e, finalmente, desaparecer, senti como se estivesse perdendo uma parte de mim mesma, como se estivesse partindo a minha mão direita e nunca mais pudesse cavalgar um cavalo ou disparar uma espingarda, nem escrever de outra forma que não fosse com a minha mão esquerda. Desde então, nunca mais cavalguei ou disparei.
Para formar e constituir uma Unidade, em particular uma Unidade criativa, os componentes individuais precisam ser de natureza diferente, devem até ser, de certa forma, contrastantes. Duas unidades homogéneas nunca serão capazes de formar um todo, ou o seu todo, no máximo, permanecerá estéril. Homem e mulher tornam-se um, uma Unidade fisica e espiritualmente criativa, pela sua dissimilaridade. Um gancho e um olhal são uma Unidade, um fecho; mas com dois ganchos você não pode fazer nada. Uma luva de mão direita com a sua contraparte a luva de mão esquerda constitui um todo, um par de luvas; mas duas luvas de mão direita são descartadas. Um número de objetos perfeitamente semelhantes não constitui um todo, um par de cigarros pode muito bem ser três ou nove. Um quarteto é uma Unidade porque é composto por instrumentos diferentes. Uma orquestra é uma Unidade, e pode ser perfeita como tal, mas vinte contrabaixos tocando a mesma melodia são Caos.
Uma comunidade de apenas um sexo seria um mundo cego. Quando em 1940 estive em Berlim, contratada por três jornais escandinavos para escrever sobre a Alemanha nazi, a mulher - e todo o mundo feminino - estava tão enfaticamente subjugada que eu poderia de facto ter estado a andar numa comunidade de um só sexo. Senti um alívio então, ao ver os jovens soldados marchando para o oeste, para a fronteira, pois numa luta os adversários tornam-se um e os dois duelistas formam uma Unidade.
A introdução na minha vida de outra raça, essencialmente diferente da minha, em África, tornou-se para mim uma expansão misteriosa do meu mundo. A minha voz e a minha canção na vida, tiveram lá uma segunda parte, e tornaram-se mais plenas e ricas no dueto.
Shadows on the Grass, by Isak Dinesen (pseudónimo de Karen Blixen)
Agora fui à florista comprar umas flores para alegrar a mesa e o espírito (as escolas, é preciso dizê-lo, estão cheias de Costas, Galambas e Cabritas - é a herança da Lurdes Rodrigues - e mesmo quando não precisam, saem da sua faixa de rodagem para atropelar, espezinhar, de preferência em frente de toda a gente...). A florista, que conheço há muito anos, estava quase sem flores e quando estranhei, disse-me, "É a mudança da estação, quando há a queda." Depois acrescentou, "trabalho neste ramo há 30 anos e nesta altura, fim de Setembro e Outubro, é quando há mais funerais. É quando encomendo mais flores e quando desaparecem todas, a fazer coroas." - Nesta altura? Mais do que em Janeiro na altura das gripes? "Sim, é a mudança da estação com a queda da folha. Vão-se as folhas e as pessoas também. Mais do que agora só no Verão, por causa dos acidentes."
Muito interessante porque conhecemos as pessoas como figuras públicas mas não sabemos dos seus contextos e da sua história e esta é uma maneira de conhecer outras dimensões dessas pessoas.
Ficam aqui os 3 primeiros da lista -os mais recentes- mas quem quiser ouvir os outros, este é o endereço: expresso.pt/podcasts/geracao-70/
Acordei cedo e vi um um filme enquanto tomava o pequeno-almoço. O filme é da Sofia Coppola e chama-se, “Somewhere”. Começa com uma imagem de um Ferrari preto a entrar numa estrada movimentada de Los Angeles e acaba com o mesmo Ferrari a sair em direcção ao deserto, onde a personagem principal do filme, Johnny Marco, a certa altura pára o carro, sai e vai-se embora a pé. No meio destas duas cenas acompanhamos um pedaço da sua vida completamente vazia de actor famoso de Hollywood, onde o Ferrari representa o absurdo de ter um carro que anda velozmente para... lado nenhum.
Neste filme, Johnny Marco é um actor famoso que está hospedado no Chateau Marmont, um hotel para estrelas de Hollywood descansarem. Está com um braço engessado. A vida dele é completamente vazia e ele faz tudo mecanicamente, sem encontrar prazer em nada. Ele é uma pessoa sem recursos internos. Quando a publicista lhe liga e manda ir aqui ou ali dar uma entrevista ele vai e faz o que ela manda. A vida dele é esperar que a agente lhe diga que filme fazer, que a publicista lhe diga que entrevista dar e o que dizer, que lhe liguem a dizer que precisa de regravar uma cena para a qual fica quietinho, durante horas, enquanto o caracterizam, etc. De resto, fora ter um encontro com algum colega de trabalho aqui ou ali ou aparecer numa festa onde tudo é superficial e cheio de álcool, passa o tempo sozinho, apesar de ter sempre muitas mulheres a tentarem falar com ele, mas que não o vêem a ele, só vêem o actor famoso e o suposto glamour que o rodeia. De maneira que ocupa o tempo a beber, a tomar drogas ou com prostitutas, streepers que contrata para irem ao hotel fazer performances particulares. O sexo é como a vida dele: mecânico, vazio e sem significado e as pessoas com quem mais fala são os empregados do hotel. O mais que ele faz é fumar e olhar para as paredes.
É divorciado e a filha adolescente de 11 ou 12 anos anos vai passar uns tempos com ele. Durante esse período anima-se e cria uma relação positiva com ela, mas que vemos ser temporária, porque ela vive com a mãe. Ela acompanha-o a Milão para receber um prémio e dar entrevistas e observa a vida desligada dele. Compreendemos que a própria Sofia deve ter observado muitos actores em hotéis a viver estas vidas de glamour, vazias e extremamente infelizes, como a de Johnny Marco.
A certa altura Johnny Marco vai pôr a filha num campo de férias e volta àquela vida de profundo vazio. Liga à ex-mulher e chora, desabafa, diz-lhe que não é ninguém e que a vida dele é nada. Pede-lhe que vá ter com ele. Percebemos que lhe falta uma relação humana profunda e significativa com alguém, que vislumbrou essa realidade naquele período em que esteve com a filha e que depois disso o vazio é ainda pior. Não sabemos o que se passou entre eles antes do divórcio, mas ela diz que não pode ir ter com ele. Então, ele sai do hotel, diz ao empregado que não vai voltar, acelera o Ferrari em direcção ao deserto -que é a vida dele- onde abandona o carro na berma, com a chave lá dentro e, percebemos, abandona aquela vida vazia.
Gosto muito dos filmes da Sofia Coppola e sobretudo dos intimistas, como este, que são uma espécie de trabalho de relojoeiro onde todo o interior das personagens fica à vista, provavelmente por ele mesmo ter vivido uma vida de hotéis de famosos quando era nova e acompanhava o pai nas filmagens e ter passado horas infindas a observar os bastidores do universo cinematográfico.
Ter uma vida de sucesso ocupada com muitas tarefas e ter uma vida com sentido são duas coisas diferentes e a primeira sem a segunda leva àquilo que os franceses chamam, l'ennui.
A vulnerabilidade é essencial para o crescimento espiritual e criativo
por Nick Cave
(Extracto editado de Faith, Hope and Carnage - mais de 40 horas de conversa entre Nick Cave e Seán O'Hagan.)
Nick Cave: Tenho certas memórias da noite em que Arthur morreu. No entanto, quando tento recordar o que aconteceu depois dessa noite, é quase como se houvesse uma ruptura em que o tempo e a memória se derramaram. Tudo desaparece.)
Seán O'Hagan: As pessoas tendem a não querer revisitar o momento do trauma em si. Tem a certeza de que quer sequer falar sobre estas coisas?
NC: Não sei, Seán. Estou apenas um pouco perplexo com o pouco que me lembro, com o quanto esqueci.
Lembro-me de estar a ver televisão, o Arthur toca-me e eu respondo, mas não é o Arthur; é um estranho que encontrou o seu telefone, a sua mochila e os sapatos num campo perto do moinho de vento nos arredores de Brighton. O desconhecido diz também que há actividade policial no penhasco perto do moinho de vento. Depois há este pânico repentino e estamos a ligar para o 999. A perguntar ao operador o que está a acontecer nas falésias! A polícia não nos diz nada. Depois a polícia vem a casa. A minha mulher Susie e eu ficamos à porta, vendo o carro da polícia a encostar, os detectives a sair e a caminhar na nossa direcção com os seus rostos compostos. Nós a sabermos o que vêm dizer. Os polícias em pé na cozinha a contar-nos a notícia - o nosso rapaz caiu do penhasco, o seu corpo está no hospital, está morto e a minha cabeça começa a rugir o barulho mais alto do mundo...
SOH: Não sei o que dizer, Nick. Simplesmente não consigo imaginar . . .
NC: Não me lembro de muito depois disso. Lembro-me sobretudo de estar sentado atrás da casa, longe de toda a gente, a fumar e a sentir o rugido do choque corporal, como se esta força alienígena fosse rebentar com as pontas dos meus dedos. Lembro-me de sentir como se estivesse a detonar fisicamente, como se qualquer movimento brusco me explodisse literalmente, de tal modo o meu corpo estava recheado de desespero. Depois, sentado na cama, com a Susie deitada imóvel no escuro, como uma pedra, com os olhos fechados e dizendo: "Estou aqui, querida, estou aqui", mas realmente não estou, não estou de todo lá, estou num milhão de pedaços, em todo o lado, por todo o lado.
SOH: Ficou zangado com o mundo depois da morte de Arthur?
NC: Não, eu estava desesperado. Acho que a raiva não fazia parte disso. Susie entrou num círculo infernal reservado unicamente às mães que perdem os seus filhos. É todo um outro nível de perda e sofrimento, uma coisa terrível, terrível de acontecer a qualquer pessoa. Há todo o tipo de sentimentos ligados a ele, culpa e vergonha e auto-aversão tão primordiais, mas tão complexos, que são quase impossíveis de desvendar. Não temos linguagem para isso. Ou talvez a própria língua não esteja à altura da tarefa. Talvez as culturas que encorajam as pessoas a vestirem-se de preto e apenas lamentarem, talvez essa seja a resposta mais articulada.
Lembro-me de pegar na mão de Susie e sentir o choque dessa mesma electricidade violenta na sua mão. Era tão físico. Essa aflição física não é muito falada, tanto quanto me é dado ver. Temos tendência a ver a dor como um estado emocional, mas é também um ataque atroz e desestabilizador ao corpo. De tal forma que se pode sentir terminal.
SOH: Nada o prepara para isso.
NC: Mas é importante dizer que estes sentimentos que estou a descrever, este ponto de aniquilação absoluta, não é excepcional. Na realidade, é vulgar. Todos nós, em algum momento das nossas vidas, somos obliterados pela perda. Se ainda não o foram até agora, o vosso tempo chegará - isso é certo. E se tiver tido a sorte de ter sido verdadeiramente amado neste mundo, também causará dor extraordinária ao outro quando o deixar. Essa é a aliança da vida e da morte e a terrível beleza do luto.
Pode não ser necessariamente uma morte, mas haverá algum tipo de devastação. Vemos isso acontecer às pessoas a toda a hora: uma ruptura no casamento, ou uma transgressão que tem um efeito devastador na vida de uma pessoa, ou problemas de saúde, ou uma traição, ou uma vergonha pública, ou uma separação onde alguém perde os seus filhos, ou seja lá o que for. E despedaça-os completamente, num milhão de pedaços e tudo parece definitivo e não se conseguir recuperar dessa dor, mas com o tempo reconstroem-se. O problema é que, ao fazê-lo, muitas vezes descobrem que são uma pessoa diferente, uma pessoa mudada, mais completa, mais realizada, mais claramente desenhada. Penso que é isso que é viver, realmente - morrer de uma certa forma e renascer. Essa complexa reordenação de nós próprios pode acontecer muitas vezes.
SOH: Quando se está mergulhado no luto, não há verdadeiro conforto nas pessoas que nos dizem constantemente que o tempo vai tornar as coisas melhores. Mas lembro-me distintamente de acordar uma manhã, tendo finalmente tido uma noite de sono decente e pensando, 'vai ficar tudo bem'. Havia a sensação de que algo tinha mudado imperceptivelmente. Aconteceu-lhe isso?
NC: No início não havia nada mais do que escuridão, mas com o tempo, Susie e eu começámos a experimentar algo como pequenos fragmentos de luz. Estes pontos de luz eram essencialmente gestos atenciosos das pessoas que encontrámos. Começámos a ver, de uma forma profunda, que as pessoas eram amáveis. As pessoas preocupavam-se. Sei que isso parece simplista, talvez até ingénuo, mas cheguei à conclusão de que o mundo não era mau, de todo - de facto, o que pensamos como mau ou como pecado, é na realidade sofrimento. E que o mundo não é animado pelo mal, como tantas vezes nos dizem, mas pelo amor e que apesar do sofrimento do mundo, ou talvez desafiando-o, as pessoas na sua maioria apenas se preocupam.
O luto pode ser visto como uma espécie de estado exaltado onde a pessoa que está de luto é o mais próximo que alguma vez estará da essência fundamental das coisas. O luto, ou afunda-a ou muda-a. O pior que pode acontecer é ser incapaz de mudar e tornar-se uma coisa pequena e dura que se contraiu em torno de uma ausência. Ossifica-se e torna-se impossível de penetrar - outras pessoas seguem o outro caminho e tornam-se mais abertas e expansivas.
A morte de Arthur mudou tudo para mim. Absolutamente tudo. Fez de mim uma pessoa religiosa. Não estou a falar de ser um cristão tradicional. Não estou sequer a falar de uma crença em Deus. Fez-me uma pessoa religiosa no sentido de que senti, a um nível profundo, uma inclusão na situação humana, uma compreensão da nossa vulnerabilidade e da sensação de que, como indivíduos, estamos, cada um de nós, em perigo. Cada vida é precária e alguns de nós compreendem isso e outros não. Foi depois da morte do meu filho que me tornei uma pessoa.
SOH: Nos seus dias mais jovens e selvagens, quando se desenhava em imagens bíblicas como fonte para as suas canções, isso era também um reflexo de um interesse mais profundo pelo divino?
NC: Mesmo nos tempos mais caóticos, quando eu lutava contra o vício, sempre tive uma espécie de inveja espiritual, um desejo de crença face à impossibilidade de crença que abordava um vazio fundamental dentro de mim. Podia acordar no meu quarto de hotel rodeado pelos detritos de uma noite pesada na estrada - garrafas vazias, parafernália de droga, talvez uma estranha na minha cama, todo esse tipo de merda, mas também uma cópia aberta da Bíblia de Gideon com passagens sublinhadas.
Depois da morte de Artur, o mundo parecia vibrar com uma energia espiritual peculiar. Fiquei genuinamente surpreendido com o quanto me tornei susceptível a uma espécie de pensamento mágico. Quão prontamente dispensei essa parte totalmente racional da minha mente e quão reconfortante foi fazê-lo. Sei que isso pode muito bem ser uma estratégia de sobrevivência e, como tal, uma parte da mecânica comum da dor, mas é algo que persiste até aos dias de hoje. Talvez seja uma espécie de ilusão, não sei, mas se for, é uma ilusão necessária e benevolente.
SOH: Se assim for, esse tipo de pensamento mágico é uma estratégia de sobrevivência que muitas pessoas utilizam. Alguns cépticos poderiam dizer que é a própria base da crença religiosa.
NC: Sim. Alguns vêem-na como a mentira no coração da religião, mas eu tendo a pensar que é a necessária utilidade da religião. E a mentira - se a existência de Deus é, de facto, uma falsidade - é, de alguma forma, irrelevante. Por vezes parece-me como se a existência de Deus fosse um detalhe técnico, tão incrivelmente ricos são os benefícios de uma vida devocional.
SOH: Devo dizer que estou ligeiramente admirado com a devoção de outras pessoas. Quando entro numa igreja vazia, sinto-me sempre de algum modo significativo - e vulnerável - ao ficar ali por um momento ou assim. Conhece o poema de Larkin, "Church Going", que toca precisamente nessa coisa?
NC: Sim! "Uma casa séria na terra séria que é". E sim, há algo sobre estar aberto e vulnerável que é, pelo contrário, muito poderoso, talvez até transformador. Para mim, a vulnerabilidade é essencial para o crescimento espiritual e criativo, enquanto que ser invulnerável significa ser fechado, rígido, pequeno. A minha experiência de criar música e escrever canções é encontrar uma enorme força através da vulnerabilidade. Está a ser aberto a tudo o que acontece, incluindo o fracasso e a vergonha. Há certamente uma vulnerabilidade a isso, e uma liberdade incrível.
SOH: Os dois estão ligados, talvez - vulnerabilidade e liberdade.
NC: Penso que ser verdadeiramente vulnerável é existir ao lado do colapso ou da obliteração. Nesse lugar, podemos sentir-nos extraordinariamente vivos e receptivos a todo o tipo de coisas. É o lugar onde as grandes transformações podem acontecer. Quanto mais tempo lá passamos, menos nos preocupamos com a forma como seremos percebidos ou julgados pelos outros e é aí que, em última análise, se encontra a liberdade.
SOH: Talvez as coisas mais significativas sejam as mais difíceis de explicar.
NC: Penso que o aspecto racional de nós próprios é uma coisa bela e necessária, claro, mas muitas vezes a sua natureza inflexível pode tornar estes pequenos gestos de esperança meramente fantasiosos. Há uma espécie de cepticismo gentil que torna a crença mais forte em vez de mais fraca. De facto, pode ser a forja em que uma crença mais robusta pode ser martelada.
SOH: Porém, é intrinsecamente humano duvidar, não acha?
NC: A certeza rígida e auto-realista de algumas pessoas religiosas - e de alguns ateus, já agora - é algo que considero desagradável. A sua arrogância. A hipocrisia. Deixa-me frio. Quanto mais evidentes as crenças de alguém são inabaláveis, mais pequenas parecem tornar-se, porque deixaram de questionar e o não questionar pode por vezes ser acompanhado por uma atitude de superioridade moral. O dogmatismo beligerante do momento cultural actual é um caso paradigmático.
SOH: Portanto, só para ter a certeza de que percebi bem: gostava de ultrapassar a sua dúvida e acreditar completamente em Deus, mas o seu eu racional está impede-o.
NC: Coisas acontecem na tua vida, coisas terríveis, grandes acontecimentos obliterantes, onde a necessidade de consolo espiritual pode ser imensa, o teu sentido do que é racional é menos coerente e pode de repente encontrar-se num terreno muito instável. Penso que ultimamente tenho ficado cada vez mais impaciente com o meu próprio cepticismo; sinto-me obtuso e contra-producente, algo que simplesmente se interpõe no caminho de uma vida melhor. Sinto que seria bom para mim ir além disso. No fundo, talvez a fé seja apenas uma decisão como qualquer outra. E talvez Deus seja a própria busca. Penso que a única forma de me entregar totalmente à ideia de Deus é ter espaço para questionar. Para mim, o grande dom de Deus é que Ele nos dá o espaço para duvidar. Para mim, pelo menos, a dúvida torna-se a energia da crença.
SOH: Sim, mas isso parte da premissa de que Deus existe e nos permite duvidar, o que um ateu argumentaria que é essencialmente uma falha lógica. O que diria a isso?
NC: Bem, Seán, desde quando é que a crença em Deus tem alguma coisa a ver com lógica? Para mim, é a falta de razoabilidade da noção, o seu aspecto contra-factual, que torna a experiência da crença convincente. Acho que, inclinado para estas intimidades do divino, que para mim existe, por mais subtil, suave e momentânea que seja, expande a minha relação com o mundo - especialmente de forma criativa. Porque haveria de negar a mim próprio algo que é claramente benéfico, só porque não faz sentido lógico? Isso, por si só, seria ilógico. Parece haver uma corrente de pensamento crescente que tende para uma espécie de cinismo e desconfiança de nós próprios, um ódio de quem somos, ou, mais precisamente, uma rejeição da maravilha inata da nossa presença. Vejo isto como uma espécie de aflição que, em parte, tem a ver com a natureza cada vez mais secular da nossa sociedade. Há uma tentativa de encontrar sentido em lugares onde, em última análise, é insustentável - na política, na identidade e assim por diante.
SOH: Mas, espere aí, está a dizer que o ateísmo - ou secularismo - é uma aflição? E que o equipara ao cinismo? Os não-crentes podem ter uma sensação de maravilha no mundo - com a natureza, o universo, com as maravilhas da ciência, da filosofia e mesmo do quotidiano...
NC: Não estou a dizer que o secularismo é uma aflição em si mesmo. Apenas não creio que tenha feito um bom trabalho ao abordar as questões em que a religião responde bem.
SOH: Que tipo de perguntas, em particular, diria que a religião é mais apta a responder?
NC: A religião lida com a necessidade de perdão, por exemplo e com a misericórdia; já o secularismo não tem a linguagem para abordar estas questões. O resultado disso é uma espécie de insensibilidade para com a humanidade em geral ou, pelo menos, assim me parece. Penso que a insensibilidade vem de um sentimento de solidão, pessoas que se sentem à deriva ou separadas do mundo. De certa forma, procuram a religião - e o significado - noutro lugar. E cada vez mais a encontram no tribalismo e na política de divisão.
SOH: O declínio da religião organizada pode ser uma razão para isso, mas existem outras, é claro, sociais e políticas.
NC: O que quer que se pense sobre o declínio da religião organizada - e aceito que a religião tem muito por que responder - levou consigo uma consideração pela sacralidade das coisas, pelo valor da humanidade em si e por si mesma. Este respeito radica numa humildade para com o próprio lugar dentro do mundo - uma compreensão da nossa natureza defeituosa. Estamos a perder essa compreensão, tanto quanto posso ver, e ela está muitas vezes a ser substituída por auto-retidão e hostilidade. Parece haver uma corrente de pensamento crescente que tende para uma espécie de cinismo e desconfiança de nós próprios, um ódio de quem somos ou, mais precisamente, uma rejeição da maravilha inata da nossa presença.
Bem, eu amo este mundo - com todas as suas alegrias e a sua vasta bondade, a sua civilidade e a sua total falta dela, o seu brilho e o seu absurdo. Amo tudo isto e amo todas as pessoas que nele habitam. Não sinto mais do que profunda gratidão por fazer parte de toda esta confusão cósmica. Não tenho tempo para negatividade, cinismo ou culpas. A esse respeito, Seán, sinto-me como se estivesse completa e desesperadamente fora do tempo.
Não sei exactamente como dizer isto e por favor não o entenda mal, mas desde que Arthur morreu, tenho sido capaz de ultrapassar toda a força da dor e experimentar uma espécie de alegria que é inteiramente nova para mim. Foi como se o luto tivesse aumentado o meu coração de alguma forma. Já vivi períodos de felicidade mais do que alguma vez senti antes, embora tenha sido a coisa mais devastadora que alguma vez me aconteceu. Este é o presente de Arthur para mim, um dos muitos. Foi a sua munificência que me fez uma pessoa diferente. Digo tudo isto com enorme cautela e um milhão de advertências, mas também o digo porque há quem pense que não há como regressar de um tal evento catastrófico. Que nunca mais se vão rir. Mas há e vão fazê-lo.
Não se percebe as pessoas queixarem-se de haver famílias que ficam livres destas dívidas que são garrotes sufocantes para a vida. É como não querer que tenhamos vacinas para a gripe ou que não haja creches porque no seu tempo também não tiveram.
Average Weekly Wages 1973: $873 2022: $813
Median Home 1973: $30,200 2022: $433,100
Monthly Rent 1973: $108 2022: $2,002
Tuition and Fees at University of California 1973: $150 2022: $13,104
Boomer: But why can't the slackers pay for college & pay off their loans like we did?
Percorrer por estes dias o fio da história do desastre de Chernobyl na série que passa diariamente na RTP 3, ou revisitar a tragédia na reconstituição apresentada pela HBO em 2019, é convocar a inquietude da fragilidade dos dias que vivemos.
Mas vale a pena fazê-lo, mesmo arriscando a que o sono nos abandone, porque o pesadelo dos outros não pode deixar de nos sobressaltar e até pode vir a ser o nosso.
Está lá tudo.
A hipocrisia dos regimes despóticos, a vacuidade da política - e como precisamos hoje de homens de fibra -, a ganância de uns poucos que levam à condenação de tantos, a persistência da mentira sobre a verdade. De como de tantas vezes contamos a mentira até acreditarmos nela. Está também o lado bom dos bons, mesmo que eles já tenham pactuado com o mal, a seriedade e a coragem desses poucos que salvam tantos.
Seis meses depois da invasão da Rússia à Ucrânia, aumentam as sombras sobre a aparente luz que separava o bem do mal. O que sabemos, na verdade, é que permanecem por esclarecer as razões que levam às atrocidades que vimos e vemos serem cometidas, à pulverização de cidades inteiras, à morte de crianças, idosos, pais, mães e avós, à separação de famílias, e ao prolongamento de um conflito que, hoje, não só está a alterar drasticamente a geopolítica mundial, como se faz sentir nas ações mais básicas do dia a dia.
As ameaças à Humanidade com a eventualidade de uma guerra nuclear, sempre presentes no gatilho das palavras, ou a incerteza face ao que se passa em centrais nucleares como a de Zaporíjia, obrigam a que os detentores de cargos políticos sejam pessoas de bem, empenhadas em encontrar soluções mais eficazes do que aquelas que se jogam na praça pública. Porque essas não parecem surtir efeito. Mas também, e sobretudo, que nós, todos nós, não nos deixemos adormecer pelas raízes que alimentam o mal.