February 01, 2024

Filmes - Anatomia de uma queda

 


O título do filme tem um sentido duplo. Por um lado trata-se de saber o que se passou para que um homem, que vive com a sua mulher e filho, isolados numa montanha dos Alpes na fronteira entre a França e a Alemanha, tenha morrido de uma queda de uma janela do segundo andar da casa mas, por outro, trata-se de dissecar a queda da relação conjugal deles.

Após a descoberta do corpo, pelo filho, é aberto um inquérito e a mulher é suspeita porque a queda dele é suspeita e ela era a única pessoa em casa. No decorrer do inquérito a sua vida conjugal é totalmente exposta.

A certa altura damos por nós menos interessados em saber se a morte dele foi acidente, suicídio ou homicídio e mais interessados na complexidade da relação entre eles.

Ninguém sabe o que se passa dentro de uma relação conjugal, mas as relações decaem, mesmo as melhores, por um acumular de falta de comunicação, falta de respeito e consideração e muito ressentimento engolido. Falta de comunicação. O filme faz mais perguntas que dá respostas.

O casal conheceu-se em Londres -ele é francês, ela alemã- quando ela estava na faculdade e ele escrevia e era aí professor. Tiveram uma ligação imediata e tinham uma relação de grande cumplicidade e intimidade intelectual e emocional, para além de física. Tiveram um filho. Um dia o filho é atropelado à porta da escola e fica cego e o pai culpa-se, porque devia ter ido buscá-lo e não foi. 

O filho ser cego é uma metáfora, penso, da situação de ninguém saber o que se passa dentro de um casamento, mesmo que viva na mesma casa e partilhe a vida dessas pessoas.

A partir dessa altura a relação deles começa a decadência. A mulher ressente-se da culpa obsessiva dele porque pensa que isso marca negativamente o filho - como se fosse menos pessoa por ter ficado cego; ele isola-se na culpa e isola-a, afasta-a; resolve ficar a trabalhar o mínimo de horas como professor e deixar de escrever para se dedicar inteiramente ao filho; o dinheiro deles vai-se nos tratamentos do filho; ela, que também é lésbica, gere o caos em que se tornou o casamento com um affair com uma rapariga; como quer ser honesta, conta ao marido e diz-lhe que foi só uma coisa sexual; claro que ele sabe que isso de ser só sexual não existe e leva a traição muito a mal - fica muito ressentido; ele propõe irem viver na sua casa de infância, nos Alpes franceses, para poupar dinheiro e porque quer o afastamento dela de tentações; ela aceita; dado que ele desistiu de escrever para se dedicar ao filho, ela pede para usar uma ideia dele num livro; o livro tem um enorme sucesso e ela torna-se uma escritora de grande sucesso; ele ressente-se com isso; ela não é uma mulher de se acomodar às inseguranças do marido, não pede desculpa de ser quem é.

Enfim, como se inquina uma relação de amor (eles ainda sentem amor um pelo outro) com muita areia que se deixa entrar na engrenagem e nunca se limpa. Eles são ambos íntimos mas, ao mesmo tempo, estranhos. Estão sempre desconfortáveis na sua comunicação, dado que ele não fala o alemão e ela fala pouco o francês. Encontram-se em inglês, Isso dá-nos a impressão da infinita distância que há entre as pessoas, mesmo duas pessoas que estão numa relação íntima de amor e de como tem que estar sempre a traduzir-se para o outro.

As cenas no tribunal reforçam essa ideia de que o que se sabe de fora, no que respeita a um casamento, mesmo quando toda a vida é exposta, é uma pequena fresta da realidade que não diz nada de verdade das pessoas e das situações. Como tirar uma frase de um livro que não se leu e pensar que se percebeu a verdade da obra a partir daquela pequena fatia.

A interpretação dela é excelente. Muito contida, sem emocionalismos, com uma grande ansiedade que vai crescendo mas sem nunca descair para uma simplificação do que era complexo. Mantém a lealdade ao marido e tenta preservar a sua memória para o filho. O filho é um rapaz memorável e de uma grande inteligência: sendo cego, vê muito mais do que parece. Muito bom no filme, capaz de uma grande tensão emocional e de passar do registo de criança assustada pela morte do pai a pré-adulto a decidir a sua posição (curiosidade: o actor é filho de uma portuguesa emigrada de Famalicão). O marido nunca se vê, a não ser numa cena em retrospectiva em que assistimos a uma discussão entre eles que acaba em grande violência verbal (como acontece entre casais que acumulam tensões sem as resolver) e não só. Belíssimos diálogos. Um filme que nos deixa a pensar.

O filme é muito grande com duas horas e meia, mas essa demora parece necessária para entrarmos gradualmente em todos os interstícios psicológicos da relação deles.

Não vou contar o que se passa e a conclusão a que chegam, mas posso dizer que o filme não é uma americanada e isso, só por si, já diz muito.


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