O título do filme não tem nada que ver com o trailer do filme que o faz parecer ser um filme de horror. Não é. A não ser que o horror sejamos nós, humanos.
Quem não viu o filme e não quer saber nada sobre ele não leia isto.
O fime é baseado numa novela de Henry James, The Beast in the Jungle - que agora fiquei com curiosidade em ler. The Beast in the Jungle é sobre um homem que está sempre cheio de medo de tudo. Bertrand Bonello, o realizador, agarra nessa novela a expande-a. Portanto, o filme é sobre o medo. É ele a Besta que impede os humanos de arriscarem o amor, de arriscarem emoções fortes e verdadeiras e de serem autênticos.
O filme segue um homem e uma mulher em três tempos diferentes que se vão entrecruzando e que de início não se percebe bem o que ali se passa, mas no fim tudo faz sentido.
No 1º tempo, quando se conhecem, estão em 1904 e aí é ela, uma pianista, casada, quem tem medo de arriscar o amor e até de o falar.
No 2º tempo estão em 2014, ele é um incel que odeia as mulheres porque tem medo da sua rejeição e não é capaz de arriscar o amor.
No 3º tempo, estão em 2044, numa época em que a IA faz os trabalhos humanos e os humanos, para escaparem a uma vida de um trabalho monótono de máquinas não-inteligentes, têm de sujeitar-se a um procedimento invasivo em que uma máquina lhes limpa o ADN, quer dizer, limpa todos os traumas e medos, pois considera-se que uma pessoa que ainda tem traumas, medos, ansiedades e emoções fortes, não é de confiança.
Naturalmente, ao ficarem sem a capacidade do medo e da ansiedade, também ficam sem a capacidade do amor e dos grandes sentimentos criadores. A vida nesse tempo é vivida em cidades frias, cinzentas e de silêncio.
Portanto, os três tempos do filme representam os humanos de todos os tempos e em todos eles os humanos deixam de viver a vida por medo, deslaçam-se dos outros seres humanos por medo de tudo o que pode correr mal e vivem vidas solitárias no coração. Em todos os tempos tentam substituir as relações humanas, demasiado stressantes, por bonecos, simulacros de humanos, como simulacros de companhia. No 1º tempo vemos bonecas a fazer companhia a humanos, no 2º tempo as bonecas são já inteligentes (e podíamos acrescentar, algoritmos de encontros online onde se pode ser um simulacro de um boneco ideal sem medo a relacionar-se com outros simulacros inverdadeiros) e no 3º tempo, as bonecas já são andróides de companhia. Porém, o fim é o mesmo: proporcionar um simulacro de contacto humano, sem complicações, anseios e medos.
No fim, os próprios humanos se tornam, eles mesmo, bonecos de expressão universalmente agradável, mas morta de sentimentos verdadeiros.
O que acontece ao par que o filme segue em cada tempo, não digo porque o filme vale a pena ver, mesmo que no início não se perceba bem o que ali se passa. Tem pormenores que enriquecem este enfoque sobre a Besta que mata os humanos, muito bons. Tem uma estética muito etérea e intemporal, em parte porque os dois actores são muito bons a recriar essa universalidade humana.
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