March 12, 2024

Filmes - acerca da consciência

 

Ontem estive a analisar com uma turma a questão da ação humana. O que tem a acção humana que a diferencia de acções de outros animais ou de pessoas incapacitadas, mentalmente, por exemplo. Uma das dimensões da acção humana é a consciência - mas o que é isso da consciência? 
Quando falamos em acções do ponto de vista ético, faz muita diferença o sentido em que se fala de consciência. 

A consciência na acção moral diz-se em dois sentidos: um é o sentido de se saber se a acção está de acordo ou nega as leis e costumes bem como as consequências da quebra desse dever: é um sentido normativo, formal; outro sentido muito diferente é um sentido que corresponde a uma repulsa interna por fazer certas acções (mesmo que não neguem leis ou que se tenha a certeza de não se ser apanhado) e uma obrigação interna de fazer outras (mesmo que neguem leis ou se tenha a certeza de ser apanhado - Navalny, por exemplo). Chamo a este segundo sentido interno, um pouco estético. Há um sentimento tão grande e profundo de transgressão da ordem humana em certas acções que a ideia de as fazer causa repulsa, náusea. 

Não me refiro a empatia, um conceito que está na moda mas que a mim me parece superficial - emoções à flor da pele - se não são acompanhadas de consciência, são voláteis e inconsequentes. Tanta gente empática que se emociona com o sofrimento de gatinhos mas que não hesita em actos de grande maldade e crueldade contra pessoas...

Este filme é brutal. Mostra um mundo com empatia e capacidade emocional mas sem consciência, a não ser naquele sentido normativo, formal. E o resultado é brutal. 

É um filme inglês sobre o mundo nazi ou sobre o que foi o nazismo ou o que o mundo nazi fez às pessoas: deu-lhes permissão de verem a vida como um jogo de ganhar e perder e de o jogarem com as características mais cruéis da pior versão de si mesmas. Ditadores depravados e brutais têm esse efeito de incentivar o povo a fazer vir ao de cima a sua pior versão possível: Hitler, mas também Putin, como Mao, Estaline e outros do género. 

É um filme diferente do que costumam ser os filmes sobre o nazismo que, geralmente, tentam mostrar o horror pela imagem brutal de pessoas perseguidas, emaciadas pela fome, torturadas, etc. Mas este filme não tem uma única imagem de judeus, embora se passe em Auschwitz. O horror do filme está na falta de horror que é a falta de consciência e a brutalidade anti-semita dos campos, que não se vê, nunca, mas é o pano de fundo do filme: ouve-se o tempo todo.

O filme passa-se durante a Segunda Guerra Mundial, na casa do comandante de Auschwitz, Rudolf Höss, que está separada do campo de Auschwitz, por um muro alto. Outros oficiais das SS moram ali atrás do muro, como eles. Höss vive ali com a mulher, Hedwig e os 5 filhos. A casa deles tem um jardim enorme, meio idílico, todo florido, com caramanchões, uma piscina. Hedwig organiza festas para as famílias dos oficiais no jardim da residência. Ela é a perfeita esposa alemã-nazi e floresce nesse papel. Adora a sua vida. Vemo-la juntar-se com as mulheres dos outros oficiais nos dias em que chegam comboios com judeus e os guardas dos campos vão lá levar os pertences mais caros que roubaram aos judeus: um casaco de vison, combinações de seda, jóias, etc. Ela fica sempre com o melhor, por ser a mulher do comandante. Ela é de uma brutalidade gelada. Tem uma empregada doméstica polaca, não judia. Um dia a empregada engana-se e ela diz-lhe, 'Vê lá o que fazes, sabes que posso pedir ao meu marido e ele transforma-te em cinza".

Quase todas as cenas do filme são filmadas como um palco de teatro em que o fundo é o muro que separa a casa do campo de extermínio. Então, por exemplo, estamos a vê-los numa festa no jardim e o fundo é o muro e, por detrás, a torre do campo, com guardas com metralhadoras, as chaminés com colunas grossas de fumo dos judeus a serem incinerados, a par com os sons que são constantes: gritos de guardas, tiros de pistola e de espingarda, crianças a chorar, pessoas aos gritos. Há uma cena em que ela leva o filho bebé para cheirar as dálias acabadas de florir no jardim (o adubo das flores do jardim são as cinzas e pedaços mortos dos judeus) e vemos as colunas de fumo a erguerem-se no céu atrás do muro e sabemos que o cheiro das pessoas queimadas deve ser insuportável, mas aquilo não a perturba. Ela é feliz ali...

Ela vive ali como num paraíso. Quando o marido é nomeado inspector-chefe dos campos e tem de mudar-se, ela diz que não vai com ele, porque tem ali a vida de sonho que sempre quis: tem tudo o que possa desejar, vem-lhe tudo ter à porta, todas a tratam com deferência, é admirada por todos, os filhos estão felizes, etc. Os filhos não estão felizes. Um deles, que brinca muito sozinho no quarto, no 1º andar, de vez em quando vai à janela porque o barulho é insuportável e olha para o campo com um ar muito perturbado.

Entretanto, o marido só pensa em tornar o campo mais eficiente. Reune-se com engenheiros para pensarem como arrefecer uns fornos enquanto outros trabalham para poderem queimar judeus 24 horas por dia. Nos dias em que chegam comboios, liga aos outros para eles irem lá escolher quem querem. Quando é nomeado inspector, vai à conferência de Wannsee e depois vai a uma festa. Em vez de divertir-se passa o tempo a pensar se seria fácil ou difícil gasear todos os presentes dada a altura do tecto do salão de baile.

A mãe dela vai lá passar uma semana com eles. Admira o jardim dela e a piscina. Pergunta-lhe se os judeus estão do lado de lá do muro e interroga-se se a ex-patroa dela, uma judia, estará lá a trabalhar. A mulher não faz idea do que lá se passa. Na primeira noite, não consegue dormir com o barulho dos tiros, da gritaria e vemo-la ir à janela e ficar perturbadíssima. No dia seguinte a família descobre que ela foi-se embora a meio da noite sem dizer nada a ninguém e percebemos que ela percebeu a extensão do horror que ali se passa e 'viu' a filha na sua realidade: uma pessoa brutal, sem consciência. E fugiu dali.

A atriz que representa Hedwig, a mulher de Höss, é a Sandra Hüller, uma alemã, que é uma excelente atriz (é a actriz de Anatomia de Uma Queda). Também o que representa Höss é alemão. Mas o papel dela é mais difícil e o filme centra-se nela. Tem de ser muito difícil representar um papel destes, sendo alemã... e o que mostra é uma consciência muito apurada e desenvolvida do que foram todas as transgressões humanas dessa época em que a maioria dos alemães eram nazis e conviviam muito bem com o nazismo. 

Isso é o que vemos no filme: uma sociedade, que esta família representa, brutal e depravada que se sente feliz e à vontade com a escravidão e a subjugação e exterminação dos outros seres humanos. Estão todos muito bem na vida e o que fazem está de acordo com as novas normas e leis.

Podíamos transferir esta ausência de consciência das transgressões humanas para o tempo da escravatura nos EUA em que as famílias almoçavam e faziam festas de estrondo enquanto no quintal se amarravam negros aos postes para os chicotear, ou matar e se separavam famílias, se violavam as raparigas e as mulheres, etc. Ou para o que se passa com os russos que vão para a Ucrânia matar, torturar civis e têm conversas ao telefone com as famílias a gabar-se do que fizeram; ou o que fizeram os do Hamas no dia 7 de Outubro. 

Todos estes casos são casos de sociedades onde os líderes são pessoas brutais, sem consciência dos limites da acção humana e que incentivam o povo, com o seu exemplo de ausência de consciência, a serem a pior versão possível de si mesmos. Trump também faz isso de incentivar os outros a serem a pior versão de si mesmos, embora não seja do calibre de Putin e muito menos de Hitler, que está noutra categoria a parte de todos.

Educar a consciência, mais do educar a empatia, é o que me parece verdadeiramente importante para a acção ética e moral.


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