January 01, 2024

Filmes - Stalker

 


Stalker é um filme de Tarkovsky, um realizador russo considerado um dos maiores realizadores de sempre. Foi o último filme que fez na URSS. Apesar de começar a sua carreira na era de Nikita Khrushchev, uma era de abertura ao Ocidente na literatura e arte, começou a ter sérios problemas com as autoridades na época de Brezhnev e saiu da URSS, vindo a fazer os seus dois últimos filmes no exílio. Só fez sete filmes. Depois, fez alguns documentários e outros trabalhos pequenos. Dele só tinha visto, Ivan's Childhood (1962) e Andrei Rublev (1966). Hoje de manhã estive a ver este filme, de longe o meu preferido agora. Este filme é para ver mais que uma vez porque é tão rico em imagem, diálogo e significado que à primeira vez não se consegue (ou eu não consigo) processar todos os pormenores. 

Tarkovsky morreu relativamente novo -54 anos- de cancro no pulmão. Igual morte prematura de cancro no pulmão tiveram outras pessoas que entraram no filme, como actores ou como equipa e pensa-se hoje que foi devido às filmagens serem quase todas numa antiga fábrica/estação hidroeléctrica desactivada, perto de uma fábrica de químicos que fazia descargas poluentes, tóxicas e cancerígenas para o ar e para o rio que ali passava, a que estiveram expostos meses a fio, sem nenhuma proteção. Parte do filme é algo premonitório, pois refere um colapso do 4º bunker da fábrica numa paisagem a lembrar Chernobyl, muitos anos antes do desastre do 4º tanque de Chernobyl.

Enfim, Stalker é um filme metafísico, mas também poético, embora possa ser lido como político, um manifesto anti-comunista, por exemplo. Isso tem piada porque a própria ideia do filme tem que ver com leituras da realidade subjectivas, de maneira que a interpretação do filme é uma meta-leitura de uma leitura da existência humana e da sua busca por sentido e pelo maravilhoso.

O nome do filme, Stalker, portanto, não se refere aqui ao sentido actual deste termo, que é o de alguém perseguir implacavelmente outra pessoa e trespassar agressivamente a sua privacidade. Stalker aqui é entendido no sentido anterior do termo, que no livro que serviu de base ao argumento significa indivíduos que caçam artefactos estrangeiros e vendem ilegalmente, mas que aqui no filme deriva dos guias de caça, pessoas que orientam os caçadores na pista da presa: sabem seguir o seu trilho e aproximar-se devagar, paciente e silenciosamente. Portanto, Stalker, neste filme, é entendido como o guia numa perseguição, numa busca, neste caso uma busca pelo sentido da existência e o desejo de transcendência, de uma vida, de outro modo, cinzenta. 

O filme dura quase três horas e é lento, com grandes planos e até pausas em que o realizador nos deixa  a contemplar uma cena belíssima e de silêncio só interrompido por uma chuva no interior de um edifício, para nos dar tempo de meditação sobre o acabado de dizer pelas personagens.

O filme é quase todo com 3 pessoas: o Stalker, o Professor (um físico) e o Escritor - nunca sabemos o nome deles, são arquétipos. Passa-se num país indeterminado da actualidade -industrializado e materialista, ambientalmente degradado. Este materialismo não será meramente soviético mas percebe-se que é uma referência à anti-religiosidade e anti-espiritualidade próprias dos regimes comunistas e os termos de 'Zona', 'moedor de carne' e outros usados são tirados do Gulag.

No filme o Stalker é uma indivíduo que leva pessoas à Zona, às escondidas, porque é ilegal e está guardada pela tropa, um sítio considerado misterioso e que tem a fama de dar a cada um aquilo que mais quer e procura. No filme nunca nos é dito ao certo o que é a Zona embora sejam mencionadas três razões para o aparecimento da Zona: foi deixada por extraterrestres, foi criada pela queda de um meteorito ou foi causada por uma avaria no quarto bunker.

(vou fazer um almoço - já venho escrever o resto)

O princípio do filme diz-nos logo muito sobre o filme. Enquanto espera pelo Stalker, o escritor diz a uma mulher que o mundo se tornou aborrecido e cinzento. Já não há o maravilhoso, o sobrenatural, o divino. Já não há poesia. Não há mistério, o triângulo das Bermudas não existe. Só existe o triângulo A,B,C com os seus ângulos matemáticos. Tudo é medido e pesado. A realidade limitou-se e limitou-os ao concreto material imediato. Quando chega o Professor e lhe pergunta sobre o que escreve, ele diz que escreve sobre os leitores porque não há mais nada para escrever e que quer ir à Zona porque perdeu a inspiração e espera ter lá uma experiência refundadora da criatividade. O professor há-de confessar que o que mais quer é ganhar o prémio Nobel e que espera ganhá-lo com o que encontrar na Zona. Vai para lá com uma mochila cheia de instrumentos de medir e pesar que não larga de maneira nenhuma. Leva a sua prisão consigo.

Stalker diz-lhes, no início da viagem, que têm de fazer tudo o que mandar, que o caminho até à entrada do campo onde se situa a Zona é perigoso, que vão ser perseguidos por guardas (os guardas não se atrevem a passar a fronteira para esse campo), que mesmo lá dentro o caminho não é directo, que tem armadilhas e que é difícil chegar à Zona - que é uma sala dentro de um edifício abandonado no meio do campo.

Todo o filme até eles passarem a fronteira do recinto é em tons de sépia e o ambiente é industrial decadente e abandonado: linhas de caminho de ferro abandonadas, carris, ferros, poças de líquidos, edifícios ruídos, cimento, correntes, etc. Assim que passam a fronteira do recinto, abre-se um plano de um campo verdejante com um rio ao fundo. Assim que chegam lá o Stalker deita-se no chão a cheirar e sentir a terra e as ervas, com um sentimento de reverência espiritual e religiosa. É o que busca: restaurar a fé no mundo levando até à Zona pessoas com coragem e desejo de mudar o mundo, de voltar a colori-lo. Ele nunca entrou na Zona propriamente dita. O último Stalker que lá entrou suicidou-se. Os Stalkers, fica-me a saber, têm filhos que nascem deformados - ele tem uma filha paralítica.

Enfim, depois de muitos perigos chegam à entrada da Zona mas nenhum deles entra, cada um com a sua razão e voltam para trás para a realidade sépia indiferenciada, embora voltem diferentes.

Perto do fim do filme o Stalker está desesperado porque os outros dois não entraram na Zona e não vão restaurar a fé e a poesia do mundo, sem reparar que a sua mulher abandonou tudo (percebemos desde o início) por amor e uma fé inabalável nele: ele -ou o amor a ele- é a Zona dela.

A última cena é com a sua filha a ler um poema, a deitar a cabeça na mesa e com o olhar fazer andar os três copos que lá estavam. À medida que os copos se mexem, ouvimos um comboio a aproximar-se e tudo na mesa começa a tremer, o que achei genial, pois é-nos dito quase no início do filme que "as crianças nascem suaves e flexíveis e crescem a tornar-se adultos fortes, mas duros e inflexíveis". Ao ver esta cena dela pôr os copos a mexer percebemos que as crianças, como a filha dele, têm a Zona dentro de si e para elas tudo é possível e maravilhoso, de maneira que não precisam de longas caminhadas como os adultos que já estão longe desse início, para procurar o maravilhoso, mas à medida que ouvimos o comboio e vemos tudo a tremer e os copos a mexer, somos levados a interpretar a telequinesia da criança como uma ilusão, cuja razão material é a vibração provocada pelo comboio e com isso o realizador obriga-nos a olharmo-nos como adultos que perderam a fé e já não ultrapassam a fronteira do material causal. É como se nos dissesse: e agora? Foi a criança que fez mexer os copos ou foi o comboio? Como interpretam a cena? Já pensaram se estão duros e inflexíveis, presos à realidade material, mensurável e quantificável como se ela abarcasse todas as possibilidades?

O filme tem muito que ver e perceber porque todos os pormenores têm significado - e são quase três horas. Este é um realizador que não deixa nada ao acaso. Visualmente o filme é muito poético e filosófico.


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