August 07, 2024

Este calor, que torpor...

 


Não aguento este calor - que nem sequer é muito. A praia, nadar e o sol deixam-me numa moleza tão grande que se me interrompem este torpor fico embirrenta como as crianças. Trouxe 4 livros para ler mas ainda não li nada porque assim que pego num começo logo a fechar os olhos. 

Ontem à noite consegui ver um filme que tinha aqui para ver há tempos, Black Narcissus. Mesmerizante. Passado na Índia, este filme inglês é baseado no romance de 1939 de Rumer Godden e estreou em 1947, um par de meses antes da independência. 

O filme é estranho. Tem um ambiente gótico, carregado de tensão sexual e drama psicológico de suspense. Passa-se tanta coisa neste filme que uma pessoa fica agarrada ao ecrã.

A cinematografia do filme ajuda muito ao ambiente do filme, onde tudo são extremos e contradições. O filme gira em torno das crescentes tensões dentro de um pequeno convento de irmãs anglicanas, (ex-casa de mulheres de prazer), que tentam estabelecer uma escola e um hospital num remoto e antigo palácio de um Raja indiano no topo de uma montanha, na borda de um despenhadeiro sobre um vale fértil nos Himalaias - como se vê nesta imagem de uma cena icónica do filme.

Inacreditavelmente, apesar de se passar nos Himalaias e ser completamente convincente nesse aspecto, foi filmado quase inteiramente nos estúdios Pinewood, em Inglaterra, com apenas um dia de filmagens exteriores, captadas nos jardins subtropicais de Horsham, West Sussex. Como li algures, "uma maravilha do engenho cinematográfico". O cinema britânico no seu melhor porque a visão dos picos dos Himalaias e o constante vento a soprar, fora e dentro do convento constroem uma atmosfera ambivalente entre o etéreo espiritual e o agreste material. 

Dado que o convento está num palácio que antes se dedicava ao prazer, está cheio de murais eróticos a evocar o Kama-Sutra e algum mobiliário estofado a brocado de seda azul e ouro. As salas azuladas e decoradas deste modo fazem um contraste gritante com a rigidez das freiras nos seus hábitos brancos, frios, que tapam todo o corpo, exceptuando a cara. Todo o ambiente sensual do convento e o isolamento nos píncaros de montanhas ventosas perto do céu atinge e perturba as freiras. 

Os hábitos das freiras são perturbados de várias formas: o Sr. Dean (David Farrar), um inglês branco que vive entre os indianos e serve de guia às freiras, perturba as mulheres com a sua masculinidade. Aparece sempre com uns calções demasiado curtos e uma camisa muitas vezes demasiado aberta. Um cínico inveterado, é o vértice de um triângulo amoroso reprimido com a Irmã Clodagh, a madre-superiora do convento (Deborah Kerr) e a Irmã Ruth (Kathleen Byron). 

O filme lida com as motivações das freiras (ficamos a saber que estas duas mulheres entraram para a ordem depois de desilusões amorosas e para tentarem superá-las); com a vida monástica como uma fuga do mundo (difícil é ser santo imerso no mundo); com o contraste entre as duas civilizações: a fria e racional britânica, reprimida e a quente e terrestre indiana, desinibida; com os estereótipos culturais (o modo paternalista-racista como falam dos indianos e o modo de desprezo com que os indianos falam dos hábitos dos ingleses) mas, acima de tudo, lida com fantasmas interiores (as cortinas constantemente a esvoaçar ao vento simbolizam-nos), com desejos sexuais tornados deletérios pelo celibato forçado, sublimados numa vida de zelo, puritanismo e vaidade - a vaidade de se considerar mais perto dos céus que os outros que vivem no mundo.

Como se a realidade pudesse ser enformada -deformada- num ideal inventado. Poder, pode, mas dá sempre mau resultado.

O nome do filme vem do perfume do Rajá indiano que aparece no convento, carregado de sedas e pedras preciosas (a vaidade de Narcisus) e pede para que o ensinem nos conhecimentos ocidentais. As freiras falam do seu perfume carnal como próprio dos indianos, apesar de nos ser dito que foi comprado no depósito do exército inglês. Também este general Rajá tem um papel no filme, mas o filme é tão complexo e passa-se tanta coisa no filme que estaria o dia todo a escrever sobre todos os seus pormenores significantes.

Por exemplo, quando o Rajá pede para ser ensinado a madre-superiora diz-lhe que a ordem não ensina homens, só crianças e mulheres mas que não se ofenda porque não lidam com nenhum homem e o Rajá diz, com surpresa. "mas Jesus, que adoram, é um homem". O filme tem muitos diálogos muito bons. 

Kathleen Byron no papel de Irmã Ruth

As interpretações, sobretudo destas três personagens, Sr. Dean, Irmã Clodagh, a madre-superiora e a Irmã Ruth, são mesmo, mesmo boas. A Irmã Ruth, que tem ciúmes da Irmã Clodagh e exterioriza a sua frustração sexual (a outra interioriza), no fim do filme assume o seu desejo e sai da ordem. A maneira como aparece caracterizada e como actua -o olhar e a energia sexual e violenta que emana dela- é terrível, como nos filmes de horror, que no entanto, nos mesmerizam.

Muito bom, o filme. Apesar de ter quase um século, a sua beleza ainda cativa. Tem cenas datadas, claro, mas não sobressaem. Merece ser visto uma outra vez.

O filme está todo no YouTube mas se não têm um ecrã muito bom é uma pena vê-lo por aqui porque a fotografia, a subtileza das cores e dos cenários são das melhores características do filme.




Young Prince: Do you like it, Sister Ruth? It's called Black Narcissus. Comes from the Army-Navy Stores in London.
Sister Ruth: Black Narcissus. I don't like scent at all.
Young Prince: Oh, Sister, don't you think it's rather common to smell of ourselves?


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