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March 13, 2024

E assim vão os cargos em Portugal





A notícia não refere nenhuma razão invocada. Apenas que a Provedora de Justiça quer a eutanásia inconstitucional. E assim vão os cargos em Portugal: lugares para satisfazer os gostos pessoais.

Provedora de justiça requer inconstitucionalidade da lei da eutanásia


O requerimento de Maria Lúcia Amaral pede "a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral de normas constantes da Lei n.º 22/2023, de 25 de maio, que regula as condições em que a morte medicamente assistida não é punível e altera o Código Penal". (DN)

March 01, 2024

Uma carta aberta contra a eutanásia baseada em falácias e enganos

 


Em primeiro lugar, a eutanásia não é a mesma coisa que suicídio assistido como começam por afirmar estes signatários e penso que o sabem, mas escolhem pôr a questão nestes termos, para impressionar e causar mais impacto.

Em segundo lugar, a eutanásia não é uma "graduação da proteção da vida humana em função de uma doença". A doença não degrada (como está implícito) a proteção da vida, degrada sim, a própria vida, em certos casos. Não em todos. Milhares de pessoas com a mesma doença não querem a eutanásia. A esmagadora maioria de pessoas não a quer.

O que está em causa é o direito a uma morte digna e uma vida sem sofrimento intolerável, do ponto de vista da pessoa livre e com direito à propriedade do seu corpo e do seu ser e não do ponto de vista das pessoas religiosas -como é alegado na carta, várias vezes- ou de médicos ou enfermeiros cujas convicções religiosas ou éticas devem constrangê-los a si mesmos, mas não os outros, porque os outros não são sua propriedade. 

Estamos numa sociedade laica e não teocrática. As nossas leis não têm de obedecer, ou sequer agradar, às convicções das religiões.

Sim, há um princípio e um dever de prudência em relação à eutanásia porque vivemos em sociedade, com obrigações éticas mútuas mas é por isso mesmo que se legisla as condições necessárias para atender ao pedido de eutanásia. Porém o direito à vida não pode ser uma obrigação de viver, a todo o custo e em qualquer condição por muito indigna e humilhante que seja, para agradar às convicções de estranhos. A vida não poder ser obrigada, como uma tortura.

A lei da eutanásia não obriga ninguém à eutanásia, nem a quem pede, nem ao pessoal de saúde que pode ser chamado a intervir em certos tipos de eutanásia.

Em terceiro lugar, se houve problemas na lei anterior que causaram dúvidas, resolvem-se esses problemas. Não se deitam fora as leis por terem erros de forma ou vissicitudes: resolvem-se esses problemas.

Finalmente, alegar que o bastonário dos médicos e que enfermeiros e outras personalidades são contra a lei, não invalidada em nada a própria lei porque essas pessoas são especialistas em saúde ou em religião e essas especialidades não conferem nenhum direito ou sequer autoridade para falar em nome de todos os seres humanos em assuntos do foro filosófico.

Nesta carta não é apresentada nenhuma razão válida para a revogação da lei.


Revogação da lei da eutanásia pedida em carta aberta



Um grupo de mais de 100 personalidades de diversas áreas pediu, em carta aberta, aos líderes de todos os partidos concorrentes às eleições legislativas que se comprometam a revogar a lei da eutanásia.

“A legalização do suicídio assistido ou da eutanásia ofende profundamente os princípios mais básicos da dignidade Humana e os fundamentos da nossa civilização”, lê-se na carta aberta. “Ao graduar a proteção da vida humana em função de uma doença, nega-se o direito de todos a um Estado que cuida e não mata”, acrescenta a missiva.

De acordo com o texto, citado pela agência Lusa, nos últimos tempos assiste-se “a um degradar dos cuidados de saúde, incapazes de acudir, em especial, aos mais carenciados e desfavorecidos” e “apresenta-se, pois, o suicídio e a Eutanásia como solução para a falta de cuidados de Saúde (continuados, paliativos, primários, etc.)”.

Entre os signatários, figuram juízes e advogados como Afonso Teixeira de Mota e Rui Gomes da Silva, personalidades da área evangélica, arquitetos e engenheiros, economistas, entre os quais António Bagão Félix, e médicos como Isabel Galriça e Neto e João Queiroz e Melo (...) 
responsáveis da federação pela vida e suas associadas, professores universitários como João César das Neves e Teresa Nogueira Pinto, e o antigo líder do CDS/PP José Ribeiro e Castro.
(...)
As mais de 100 personalidades que subscrevem a carta lembram que os processos legislativos “que entre 2016 e 2023 correram na Assembleia da República” tiveram “diversas vicissitudes sendo rejeitados, um deles (em 2018) pelo Parlamento, e dois deles pelo Tribunal Constitucional por inconstitucionalidade, o quarto pelo veto Político do Presidente da República”.

Os signatários consideram que “só a prepotência de uma maioria conjuntural no Parlamento (agora dissolvido) ditou a aprovação desta lei”, e referem que “todas as Ordens Profissionais consultadas, os seis ex-bastonários vivos da Ordem dos Médicos, os Conselhos Superiores do Ministério Público e da Magistratura, o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida” se manifestaram contra os diversos projetos-lei.

A carta alude ainda ao facto da lei ter merecido críticas de um grupo representativo das principais confissões religiosas, profissionais de cuidados paliativos e cuidadores informais.

January 30, 2024

"Nenhum doente me pediu para morrer"

 


Esta frase deste médico, que partilha connosco o facto de ter uma especialidade com grande peso oncológico, mostra bem como o pedido de eutanásia é raro, ao contrário do que os seus adversários querem fazer querer: que uma vez regulamentada a lei, toda a gente desata a pedir um suicídio assistido. O mesmo argumento foi usado para o aborto e veio depois a provar-se o inverso.

A Declaração dos Direitos Humanos consagra que “todo o indivíduo tem direito à vida" - pois consagra, sim, mas também consagra outros direitos em igualdade de importância: o direito à liberdade, à dignidade e à autonomia. Esses direitos ele não cita, como se não fossem igualmente importantes. 

Se uma pessoa não é livre de decidir do seu próprio corpo -o único território e paisagem de que é dono e senhor-, de que dependem todos os outros direitos, que direitos lhes restam? O conceito de vida, como este médico sabe, não é unívoco e a vida diz-se em vários sentidos: o médico, sim, mas também o social, o político, o filosófico, etc. O critério de vida e de dor não são apenas orgânicos e farmacológicos.

Este médico invoca a transparência como conceito fundamental. Sendo assim, devia ele mesmo ser transparente e informar-nos se a sua posição tem um fundamento religioso. Regra geral os religiosos querem que toda a sociedade seja constrangida pela crença num Deus em que eles acreditam. Nenhum médico que seja crente no absoluto da vida é obrigado a praticar a eutanásia, mas porque querem impor essa sua crença aos outros?

Nunca ninguém lhe pediu para morrer... Uma pessoa não fala nisso aos médicos... nunca falei nesse assunto à minha médica pneumo-oncologista, mas quando cheguei ao hospital, vai fazer seis anos daqui a uns poucos meses, sabia que estava extremamente mal e sentia-me a morrer. Nunca lho disse. Para quê? Para pôr mais pressão em cima dela? No entanto, nessa altura, fiz uma muito pequeníssima lista mental, (duas pessoas), que achei que teriam coragem de me ajudar a fazer checkout se chegasse a uma situação de vida insuportável. 


Nenhum doente me pediu para morrer

Miguel Guimarães

A lei da eutanásia (morte medicamente assistida) foi promulgada pelo Presidente da República em Maio de 2023, como obriga a Constituição, dias depois de o Parlamento ter confirmado o diploma que tinha sido vetado pelo mesmo Presidente em finais de Abril. No entanto, a regulamentação da lei da eutanásia continua a aguardar melhores dias, tendo sido adiada para o próximo governo que sair das eleições de 10 de Março de 2024. O ministro da Saúde defendeu que está em causa um processo muito complexo e que “seria um erro regulamentar à pressa”!

A Declaração Universal dos Direitos Humanos consagra que “todo o indivíduo tem direito à vida”. A Constituição da República Portuguesa, no capítulo dedicado aos direitos, liberdades e garantias pessoais, estipula que “a vida humana é inviolável”. E o Código Deontológico da Ordem dos Médicos também é claro: “Ao médico é vedada a ajuda ao suicídio, a eutanásia e a distanásia.”

Quando me candidatei a bastonário da Ordem dos Médicos, fi-lo na sequência da apresentação de um programa de candidatura onde me comprometi a defender várias causas. A primeira de todas foi a “defesa intransigente dos pilares da Ética Médica e do Código Deontológico”. Ao contrário do que sucedeu com alguns dos partidos políticos que defenderam a eutanásia e não a incluíram nas suas propostas de programas.

Em democracia a transparência é um dos principais valores que devemos defender e preservar. Porquê tanta pressa? Porquê tanta opacidade por parte de quem está convicto da bondade dos seus projetos? Porquê tanta urgência em despenalizar em Portugal uma prática que a grande maioria dos Estados de todo o mundo, também eles laicos, não aplicam? Porquê tanta pressa em importar o que poucos países já fazem e que, mesmo assim, têm encontrado problemas e exemplos de casos que vão para lá das linhas vermelhas supostamente bem definidas?

O pouco debate que existiu apenas serviu para misturar conceitos. Muitas pessoas continuam a confundir eutanásia com distanásia e dizem que são favoráveis ao primeiro conceito, quando na verdade pretendem algo que a leges artis já prevê: não proporcionar tratamentos desnecessários e que prolongam a vida de forma artificial e dolorosa. As boas práticas médicas já permitem controlar a dor e o sofrimento. O que foi votado não pode ser esfumado com palavras: pretendeu-se descriminalizar quem pratica a morte a pedido da vítima, por mais que lhe chamem morte assistida ou morte antecipada. A nada disto podemos chamar de ato médico.

Sou urologista e, por isso, na minha especialidade cruzo-me diariamente com casos complexos, a nível clínico, mas também social. Esta é uma especialidade com grande peso oncológico e nunca abandonei o terreno. Tenho muitos doentes que ainda hoje me contactam no “aniversário” da notícia de que tinham entrado em remissão, e outros doentes que já partiram e continuam a viver na minha memória de dias difíceis com diagnósticos cujo desfecho era previsível.

Não o posso negar: o caminho não é fácil nem linear e traz dor. Mas nunca nenhum doente me pediu para morrer. A dimensão psicológica, cognitiva, e afetiva são tão ou mais importantes que a clínica crua quando estamos a ajudar alguém a preparar-se para morrer. A execução direta de uma morte não se enquadra nos códigos da medicina, não é um ato médico. E a medicina dispõe de cuidados paliativos que podem ajudar os doentes mais complexos, sejam doentes em fase terminal ou outros.

Não nos iludamos. Quando a regulamentação da lei for concluída, nada será igual. A nossa sociedade não será mais a mesma. Evocando Álvaro de Campos, quando escreveu sobre a morte do Alves da tabacaria… foi só o Alves que morreu, mas a “cruz na porta da tabacaria” é um presságio de que “desde ontem a cidade mudou”.

Bastonário da Ordem dos Médicos 2017-2022


December 22, 2022

Títulos enganadores como de costume no jornalismo que temos




Não são, 'organizações da sociedade civil' que pedem travão à lei, mas instituições de católicos. Se houvesse um referendo à Eutanásia tinham uma surpresa porque em tempos pediram um referendo ao aborto e foi-lhes concedido. Duas vezes. Em ambas as vezes a resposta foi sim à IVG, sendo que a pergunta era radical -'está de acordo com a IVG a pedido da mulher'- o que favorecia o 'não'. Porém, foi o 'sim' que ganhou. Em ambos os casos o número de votantes foi baixo. À segunda vez, os que eram contra o aborto, vendo que o 'sim' tinha ganho, se quisessem reverter o resultado, tinham ido votar. Mas não foram, o que significa que estavam confortáveis com a decisão do 'sim'. Ora, a eutanásia mobiliza muito menos dogmáticos e radicais que o aborto, de maneira que a probabilidade era que dissessem sim à eutanásia em caso de referendo.


Organizações da sociedade civil pedem a Marcelo para travar lei da eutanásia

A Universidade Católica Portuguesa e a União das Misericórdias Portuguesas estão entre as instituições da sociedade civil que pedem ao Presidente da República para declarar inconstitucional a lei da Eutanásia.

Subscrevem este comunicado a Universidade Católica Portuguesa, a Cáritas Portuguesa, a União das Misericórdias Portuguesas, a Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade, o Instituto das Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus, o Instituto São João de Deus, a Federação Portuguesa das Associações das Famílias de Pessoas com Experiência em Doença Mental, a associação Ponto de Apoio À Vida e a Casa São Francisco de Assis.

December 01, 2021

Os deputados são incompetentes ou ardilosos?

 


Ficamos na dúvida. Reformaram o texto sem consciência de que um texto legal não é um texto para ser lido metafórica mas literalmente, onde cada palavra conta e pesa? Ou estão muito conscientes disso, mas mudam o texto na esperança que passe despercebido? No primeiro caso é uma grande incompetência, no segundo caso é um ardil de intenção duvidosa. Se estamos no primeiro caso, ficamos assustados com a incompetência dos deputados legisladores. E se estamos no segundo caso, a minha questão é: quantas vezes a AR envia um texto incontroverso para aprovação e depois faz emendas controversas que passam despercebidas a presidentes não-juristas?

Eu sou a favor da eutanásia, mas não sou a favor, nem da incompetência, nem do ardil legislativo.


Marcelo justifica veto da lei da eutanásia: "A lei era uma e passou a ser outra"



Marcelo Rebelo de Sousa explicou, esta terça-feira, que vetou, pela segunda vez, a lei da eutanásia devido à redação do texto final, que acabou por alterar a lei anteriormente apresentada. Em causa está o facto de a lei abranger doenças que não são fatais.

“Na primeira lei, mandei para o Tribunal Constitucional porque tinha dúvidas em pontos que não respeitava a Constituição. A Assembleia da República corrigiu e por isso não enviei para o Constitucional. Só que ao corrigir os pontos, mexeu noutros e mudou a lei”, disse o Presidente da República, em declarações aos jornalistas à margem de uma visita a uma exposição no Museu dos Coches, em Lisboa.

O Parlamento quis alargar para poder permitir casos que não são doenças fatais, simplesmente ficou uma mistura, que às vezes acontece quando é feito em cima da hora”, sublinhou, explicando que “há um problema de redação” do texto final.

Segundo Marcelo, na “questão de vida ou de morte” estão presentes “três regras contraditórias”. Num artigo tem “doença incurável e fatal”, noutro “doença grave ou incurável” e ainda “doença grave e incurável”.


March 24, 2021

Suicídio assistido - uma entrevista a François Galichet, da associação, 'Ultime Liberté'




Suicídio assistido

François Galichet : "Escolher a sua morte é o último acto de liberdade no seu sentido mais essencial"

François Galichet, propos recueillis par Nicolas Gastineau publié le  



O que é a associação Ultime Liberté?

François Galichet: É uma associação que faz campanha pela liberdade de escolher a hora, o lugar e o modo da morte. Na prática, queremos que a lei francesa autorize o suicídio assistido e a eutanásia voluntária. A maioria de nós está desapontada com a Associação pelo Direito de Morrer com Dignidade [ADMD]. Na ADMD, recebemos pedidos de pessoas em grande sofrimento, que queriam poder acabar com as suas vidas sem esperar que a lei mudasse. E não podíamos fazer nada a esse respeito, porque a ADMD não queria correr riscos legais. O Ultime Liberté foi fundado para não aceitar esta impotência. Durante cinquenta anos lutámos sem sermos ouvidos: era portanto tempo de passar a métodos mais ofensivos.

O que é que isso significa?

No início, o Ultime Liberté contentou-se em dirigir as pessoas para a Suíça ou Bélgica, onde a prática é legal. Mas nem todos têm os meios para ir para o estrangeiro, especialmente no fim da vida. Foi quando surgiu na Internet a possibilidade de obter de forma fiável o Pentobarbital, o barbitúrico utilizado na Suíça e na Bélgica, que permite que as pessoas saiam, sem sofrimento e, em poucos minutos. Assim, começámos a dizer às pessoas que o queriam como obtê-lo.

E foi aí que começaram os problemas legais?

Há um ano e meio, soubemos que cento e trinta pessoas que tinham Pentobarbital na sua posse tinham sido revistadas, entre elas trinta membros da nossa associação. A partir daí, abstivemo-nos de qualquer ajuda activa na encomenda do produto - ao mesmo tempo que continuamos a informar aqueles que desejavam saber da sua existência. E há duas semanas, onze de nós foram indiciados. Estávamos à beira da legalidade, mas foi uma escolha deliberada. Perante o sofrimento que continua a manifestar-se com tal intensidade, creio que o nosso dever moral vale mais do que a lei. E estrategicamente, a ilegalidade também tem uma virtude pedagógica: chamar a atenção para a nossa luta. Portanto, não me importo com a ilegalidade, porque a nossa luta é legítima e a ilegítima de hoje é muitas vezes a legítima de amanhã. Tomemos o exemplo da interrupção voluntária da gravidez, que tem sido praticada ilegalmente durante anos. Neste caso, a prática de um acto ilegal torna-se paradoxalmente um trabalho legal para melhorar a lei de amanhã.

Porque é hoje proibida a morte assistida em França?

A proibição de morrer livremente é semelhante ao paganismo, a sacralização da vida biológica. É uma atitude que faz da vida um valor sagrado, que deve ser extinguido por si só e que não pode ser tocado. De acordo com esta visão, a nossa vida está para além de nós e transcende-nos: viver é um dever, quaisquer que sejam as dificuldades, provações e sofrimentos que isso implica. Compreendo, claro, que a vida é sagrada: a proibição de assassinato é um marco fundamental. A questão é, se a morte que se dá a si próprio é também um homicídio. A palavra "suicídio" provém de uma linhagem de termos como "homicídio" ou "infanticídio", que a colocam nesta filiação. Esta é a posição de Kant: o suicídio é o assassinato de si próprio e é, portanto, proibido. Defendo que não podemos pensar no assassinato de outros e, na decisão de deixar a sua própria vida da mesma forma, porque o assassinato implica uma exterioridade: quando mato alguém, destruo uma vida que está em frente da minha, que nada tem a ver com suicídio.

O suicídio assistido é certamente proibido, mas temos sempre a possibilidade de morrer por nossa conta, não é verdade?

Sim, os adversários do suicídio assistido respondem frequentemente que se pode sempre cometer suicídio por conta própria; fazer como Deleuze, atirar-se pela janela. Mas estas mortes são tão horríveis que não provam qualquer liberdade - são escolhidas pela pessoa que não pode fazer o contrário. Substituem o sofrimento do fim da vida pelo sofrimento de um suicídio brutal: substituindo o terrível pelo terrível. Enquanto que com o Pentobarbital, é um final suave. Posso testemunhar isto pessoalmente, pois acompanhei três pessoas quando beberam a poção letal. Até ao fim, a pessoa continuou a falar um pouco, até a brincar: "Estou um pouco cansado - mas não assim tão cansado. "Estou a ficar com sono. "Foi extremamente comovente.


No seu livro O que é uma vida realizada? (Odile Jacob, 2020), também explica que a possibilidade de morrer lentamente... ajuda a viver melhor.

Sim, é verdade. Muitos dos que eu ajudei a obter o produto não o utilizam. Mas o facto de o ter em casa é suficiente: já é a concretização da sua liberdade. A possibilidade de morrer deliberadamente é uma libertação, que melhora a vida ao dar a certeza de que se se tornar demasiado dolorosa, é possível sair dela. A velhice é o perigo de se tornar um fardo demasiado pesado para os outros, um fardo a ser cuidado de manhã e de noite. Uma pessoa que tomou Pentobarbital disse-me que "a incapacidade de tomar conta de si próprio nos reifica: já não somos 'sujeitos' mas 'objectos', manipulados por outros. "Saber que pode aliviar os seus entes queridos, antecipando esta degradação abre uma forma mais serena de estar com os outros. Sabe que não lhes imporá este fardo e atingirá um altruísmo que já não é prejudicado por motivos ulteriores. Neste sentido, a possibilidade de morte deliberada estabelece entre os humanos uma espécie de igualdade à distância, ou, como disse Nietzsche, uma "amizade estelar".

As pessoas idosas e dependentes não correm o risco de serem pressionadas por aqueles que as rodeiam a exigir Pentobarbital contra a sua própria vontade?

Nem o Ultime Liberté nem eu pessoalmente queremos que todos tenham uma pequena dose de Pentobarbital em casa: seria totalmente absurdo e perigoso. Se ajudámos as pessoas a obtê-lo, foi precisamente porque a actual falta de lei deixou as pessoas entregues a si próprias. Se, como esperamos, houvesse legislação, ela regularia a distribuição de Pentobarbital para assegurar que a pessoa que o solicita não seja sujeita a pressão, controlo psicológico ou mesmo manipulação. A este respeito, os Verdes fizeram uma proposta interessante no projecto de lei que está actualmente a ser preparado sobre este assunto na Alemanha. Em primeiro lugar, o produto só deve ser dado após várias entrevistas reflexivas com a pessoa (o que também fazemos no Ultime Liberté). Em segundo lugar, que a pessoa escreva porque quer acabar com a sua vida; um pequeno ensaio filosófico, por assim dizer. Escrevê-lo é já uma forma de reflectir sobre si própria, de objectivar as suas razões para esclarecer a sua vontade. E todo este processo poderia evitar o risco de pressão, uma vez que, durante várias reuniões, a pessoa poderia testar a constância da sua própria vontade, e os seus acompanhantes poderiam garantir que a pessoa está lúcida e que a sua escolha é sincera. Finalmente, se a pessoa não tiver utilizado o Pentobarbital dentro de um ou dois meses, deve devolvê-lo - mesmo que isso signifique fazer um novo pedido.


Insiste também num ponto: o reconhecimento da morte assistida não deve ser pensado apenas em termos de uma solução para o sofrimento.

De facto. A posição da ADMD sobre o suicídio assistido centra-se em casos de doença grave e sofrimento extremo. Por outras palavras, deixar a própria vida só é entendido por motivos negativos. No entanto, mesmo aqueles que escolhem a morte para escapar ao sofrimento terrível não o fazem apenas para escapar; pelo menos era este o caso das pessoas que eu acompanhava. Creio que é desejável conceber a intenção de deixar a vida também por uma razão positiva. Quando Montaigne escreve que "o objectivo da nossa carreira é a morte", que "é o objecto necessário do nosso objectivo", o que é que ele está a dizer? Parece-me que se as palavras "objectivo" e "apontar" têm um significado, a morte não é para Montaigne um fim no sentido de uma destruição inevitável e infeliz. Um objectivo é também uma aspiração: é algo desejável. E o facto de desejar a morte não significa que se deva cometer suicídio imediatamente, mas que a morte é um horizonte desejável.


Como se pode desejar o que não se sabe?

É obviamente um objecto de desejo impossível, uma vez que a morte é uma alteridade absoluta. Mas, precisamente, há na escolha da morte este desejo de se juntar a este outro absoluto, que não tem nome, que não está encarnado numa fé ou num deus. Este grande Outro atrai-nos, e aqui devemos compreender o Outro no sentido de Charles Baudelaire: o outro, o absolutamente novo ("Oh morte, velho capitão, está na hora, vamos pesar âncora"). Vladimir Jankélévitch também escreveu em Death (1966): "o impensável e inconcebível mas ao mesmo tempo o absoluto desejável". O facto de entrarmos em contacto com a morte através da posse da poção letal, sem que esta seja uma morte terrível ou assustadora, equivale de certa forma a uma morte domesticada, trazida de volta à sua pura alteridade, sem as circunstâncias horríveis que a possam preceder. Isto aproxima-nos do seu núcleo essencial.

Utiliza a analogia entre a vida e a obra de arte, para afirmar que a morte voluntária é como a pincelada final, aquela que completa a obra?

Durante muito tempo tentei colocar-me na mente de um Rimbaud ou de um Van Gogh que deu os últimos retoques a um poema ou a um quadro. O que sentiria um pintor quando diz que o seu trabalho está feito, que não voltará a tocá-lo? Para mim, isto é um enigma e uma meditação infinita, mas penso que o próprio trabalho fornece as razões para a sua conclusão. Este feito nem sempre nos fala, mas parece ao artista como uma obviedade. Isto não significa que o seu trabalho seja superior, mas que é perfeito, no sentido de Spinoza: perfeição na sua própria espécie. Considerar a vida como uma obra é precisamente considerar a morte como o último gesto positivo, aquele que completa perfeitamente a vida daquele que viveu. É o último gesto estético e digno, aquele que cumpre a frase de Nietzsche: "Morrer orgulhosamente quando já não se pode viver orgulhosamente". "Se escolhemos as palavras "liberdade última" para nomear a nossa associação, é para dizer que a morte não é um último recurso ou um último recurso: pelo contrário, é o último acto de liberdade no seu sentido mais essencial.

À volta do projecto de lei da Eutanásia

 


Num artigo no DN de hoje, Ribeiro e Castro refere um artigo do Sol, de sábado passado, acerca da eutanásia que tinha como chamariz, PS e PSD querem forçar eutanásia. A notícia conta -diz Ribeiro e Castro- que nas inquirições parlamentares, "o PSD e o PS estão a condicionar a escolha dos próximos juízes conselheiros do Tribunal Constitucional a uma posição favorável à despenalização da morte medicamente assistida".

Não sei se isto é verdade. Não me admirava, conhecendo o MO dos nosso políticos e, se é verdade, acho mal. No entanto, também li esse artigo. E li este editorial, porque o artigo só fala na questão dos fundamentos do acordão e este editorial completa-o com a questão dos instrumentos. Esse jornal, nesse dia, estava cheio de artigos acerca desta questão.

Este editorial refere parte do acordão, bem como o artigo referido por Ribeiro e Castro. Ficamos a saber que no acordão do TC se diz que a pessoa tem o direito à vida e a não ser morto pelo Estado, mas também que isso não implica que seja obrigada a viver em toda e qualquer circunstância, nomeadamente quando se fala de sofrimento intolerável. Portanto, a pessoa pode pedir ajuda para acabar com o sofrimento intolerável, já que a lei não a obriga a viver nessa condição, sendo que o problema maior é que isso colide com o dever do Estado não matar e, na lei, diz-se que a vida é um valor absoluto. Um outro problema subsidiário, mas que pode sabotar este projecto de lei está na dificuldade em tipificar o 'sofrimento intolerável.'

Não li o acordão, só as frases citadas no jornal, nem sei o suficiente das leis em questão, mas no que respeita ao fundamento da eutanásia, que é filosófico (tem que ver com a liberdade, a auto-determinação e com os deveres para connosco próprios e para com os outros) todos o podemos pensar e discutir. Diz-nos respeito a nós todos e todos podemos um dia estar nessa situação de querer ajuda para morrer e ser-nos vedada a ajuda. Se não fosse assim, nem a questão da possibilidade de referendo faria sentido.

Parece-me que faltam considerações naquele acordão. Onde está o dever do Estado não torturar? O valor da vida é absoluto, mesmo que o estar vivo, por obrigação do Estado, seja uma tortura para a pessoa? Portanto, admite-se como lícito que o Estado obrigue a manter as pessoas presas a uma situação de tortura física e/ou mental? 
Quando o Estado manda soldados para guerras, portanto, para perigo iminente de morte, não está a violar aquele dever de proteger a vida como valor absoluto? O valor da vida deixa aí de ser absoluto ou isso não conta só por não ser o Estado a disparar o tiro?  

Diz-se num dos artigos contra a Eutanásia, que esta é um 'remédio' de pobres porque os ricos, quando estão em depressão, vão a um psiquiatra e curam-se. Estão são afirmações ignorantes em vários sentidos. Na Roma antiga as pessoas que praticavam a eutanásia eram os ricos. Depois, as doenças mentais não se curam como se cura uma constipação ou uma perna partida. Muitas vezes não têm cura. Têm algum controlo que passa por ter as pessoas completamente drogadas e muitas vezes, incapazes de funcionar como deve ser. A quantidade de alunos que vemos nessa condição... O que me parece pior é o autor não admitir a possibilidade da pessoa ter princípios e valores de autonomia incompatíveis com o estar vivo em certas maneiras e condições que considera desintegradoras da sua identidade e requerer a liberdade de os exercer. 

Os opositores da eutanásia surpreendem-me pela contradição com que se negam, sendo a maioria religiosos. Defendem que o ser humano tem uma dimensão espiritual, filosófica, religiosa e não é apenas matéria, para depois considerarem, simultaneamente, que a pessoa que se põe no plano dos princípios filosóficos e pede que a deixem decidir livremente da sua vida, deve estar doente e em depressão o que se cura com drogas, ou seja, que a pessoa é apenas matéria e que os seus valores e decisões de princípio não passam de químicos no cérebro a pô-la mal disposta, o que significa que negam à pessoa a sua dimensão filosófica e espiritual. Sendo assim, se todas as nossas disposições são químicos em equilíbrio ou desequilíbrio, como sustentam a crença religiosa? Um delírio químico que faz imaginar seres alados e demónios?

Conheço muita gente que, para conseguirem estar vivos enquanto se matam aos poucos, todos os dias um bocadinho, entendem e vivem a vida como uma doença. Tudo o que é plenamente vida é uma doença que é preciso curar. Se estão tristes, é depressão; se estão esfuziantes de alegria é transtorno bipolar ou histrionismo; se amam, é transtorno de obsessão ou de adição; se pensam que a vida não tem sentido é transtorno de baixa auto-estima, se se revoltam é transtorno de descontrolo de raiva... enfim, estar vivo é uma doença e cura-se com drogas até estarem todos normalizados.

Dizer que é preciso apostar nos cuidados paliativos, o que é verdade, não tem a ver com esta questão, pois a pessoa pode não querer estar amarrada a uma cama, toda drogada, embora sem dores. O sofrimento espiritual e mental existe e nem tudo é doença. Quando se diz que temos o direito à vida, esse direito não é um abstracto universal. Refere-se a indivíduos particulares. Temos direito à nossa vida e não a uma vida em abstracto. É nossa, pertence-nos. E é um direito, não uma obrigação a qualquer preço, imposto de fora, mas a ser pago pelo próprio.





January 29, 2021

A eutanásia é um assunto complexo e não simplista

 


Leio este artigo que se posiciona contra a legalização da eutanásia e vejo que começa com a invocação de divindades e acaba com a opinião de padres. É um posicionamento construído sobre a opinião da religião acerca do assunto e, aliás, o pedido de referendo também se fundamenta nessa esperança de que, sendo Portugal um país de tradição cristã, católica, o povo dirá, não, nesse referendo. A questão é que somos um país laico e as leis, se bem que devam reflectir o sentir do povo, não devem ser instrumentos desta ou aquela ou qualquer religião imporem as suas crenças.

Grande parte do artigo é um apelo à emoção deixando no ar a ideia de que ajudar alguém a morrer, segundo a sua própria vontade, é um assassinato. 

Cita casos de eventual falta de ética na aplicação da lei, como se fosse possível, com ou sem lei, ter sociedades de seres humanos perfeitos, de ética irrepreensível - uma ideia assustadora de Estados totalitários. 

Fala muito na derrapagem (se se autoriza a eutanásia em breve estamos a assassinar toda a gente com qualquer pretexto), mas a derrapagem não é um argumento, é uma falácia: partir do princípio que uma vez permitida uma situação, ela vai desencadear uma sequência de causas e feitos inexoráveis que levam à extinção de pessoas velhas, deficientes, etc., é um falso raciocínio e nem sequer tem base em casos existentes, pois dois ou três ou até vinte exemplos de falta de ética, são excepções que não provam o demérito da lei mas das próprias pessoas que cometem esses actos. 
Seria o mesmo que argumentar contra poder-se matar alguém em legítima defesa pela razão de isso ir derrapar para uma situação em que todos matam os outros e alegam legítima defesa. Calculo que isso já tenha acontecido, mas isso não prova o demérito da lei. 

Podíamos falar num alargamento da aplicabilidade do argumento da eutanásia com base no seu fundamento, mas não de derrapagem que isso é uma falácia de argumentação.

Não se pode fazer uma lei dizendo: só fazemos essa lei no dia em que todas as pessoas forem eticamente perfeitas. Mais uma vez: uma ideia assustadora de Estados totalitários que entendem que lhes cabe a eles decidir da vida e da morte dos outros.

A JRC custa-lhe aceitar a ideia de que uma pessoa possa preferir morrer a estar vivo em certas condições, porque o seu espírito cristão foi educado e acredita nessa ideia de que a vida é a coisa mais preciosa, o maior Bem. Mas na realidade não é: as religiões santificam os mártires que dão a vida por outras causas, mostrando que aceitam que há outros valores que se podem sobrepôr-se ao da vida. 

Celebramos os heróis que se sacrificam pela pátria, pela família, pelo mundo ou por outra causa. Percebemos que é um sacrifício e que houve outros valores que a pessoa considerou superiores à vida. Caso contrário não enviaríamos ninguém para guerras, pois estamos a enviar as pessoas para situações de matá-las. E nem sequer é para evitar dores e sofrimento horríveis, é para fins muito duvidosos. 

Portanto, reduzir a questão a dizer que a eutanásia é matar pessoas e que se começa com um e se acaba a matar milhares e que não há nenhum valor acima da vida, é querer por a preto e branco o que tem muitos tons de cinza. É o oposto simétrico aos que argumentam a favor dizendo simplesmente que a eutanásia é apenas a escolha de cada um, como se o assunto não fosse muito mais complexo que isso.

A eutanásia é um assunto complexo e se se pensa, compreende-se a posição de ambos os lados, mas não se deve escolher o seu lado com base em falsos raciocínios. 

O problema da eutanásia é matar. É mesmo o único problema da eutanásia: matar, pôr termo à vida de outrem. Se não fosse isso, que é muito, não haveria problema.

O desejo da boa morte é inerente à nossa própria humanidade: já que tem de vir, desejamos à morte que venha tarde; e, quando venha, que seja sem dor e sofrimento. Entre os católicos, Nossa Senhora da Boa Morte é dos mais antigos cultos da tradição. Além da religião e da cultura, a ciência também avançou por aí. A expressão mais avançada da ideia da boa morte na medicina corresponde aos cuidados paliativos. São a assinatura do Estado moderno e avançado, de sistemas sociais humanizados, dum sistema nacional de saúde digno desta palavra: saúde.

A boa morte não é a eutanásia. Eutanásia não é morrer. Morrer é outra coisa. Eutanásia é matar e ser morto. É muito diferente. Para esta, foi sempre assim: matar e ser morto. Está em todos os códigos desde o princípio: para autorizar, ou para proibir. O que está certo, o Bem, é proibir.

Independentemente dos motivos, há uma fronteira moral capital que define a cultura e a civilização: ou podemos matar, ou não podemos matar. A nossa civilização e a nossa cultura são as de não poder matar.

Sempre que rasgámos essa fronteira para nos atribuirmos o poder de matar por motivos tidos por justificáveis, a fronteira não cessa de alargar-se à mercê do nosso poder. Pior: à mercê da vontade do poder. Esta é uma das razões para a “rampa deslizante” que se constata nos poucos países que legalizaram a eutanásia: rola sempre para pior. O caso mais comentado é a Holanda.

A lei holandesa da eutanásia é semelhante às propostas que estão na Assembleia da República: possível em doente com doença incurável e que sofra dores insuportáveis; e, além disso, tenha pedido voluntariamente para morrer, confirmando essa vontade no momento do procedimento. A lei holandesa não oferece dúvidas: entre outros, não é permitida a eutanásia em casos de demência. Todavia, o aumento significativo, todos os anos, dos números de eutanásia na Holanda, inclui – todos o sabem – um número crescente, na última década, de aplicação da eutanásia a idosos sofrendo de demência, nomeadamente com Alzheimer.

Em 2018 e 2019, ocorreu um caso, em Mariahoeve, perto de Haia, que fez correr muita tinta. Há muitas fontes públicas sobre o caso, tamanha a atenção que gerou na Holanda e no estrangeiro. Já o contei noutro artigo (Eutanásia – está na hora dos eurodeputados). Uma idosa, antes de adoecer, escrevera que preferia ser eutanasiada a ser internada num lar. A declaração não tinha a forma exigida pela lei: era um mero escrito. E as manifestações de vontade da idosa foram variando. Mesmo nesse escrito, a idosa registara que “quereria decidir quando chegasse o momento, enquanto estivesse consciente e quando achasse que era a altura certa”. O escrito não tinha valor legal; e incluía esta reserva, conforme à lei. Mas o escrito existia… Depois de começar a sofrer de demência, a velhota foi internada num lar pela família. Face ao agravamento, a médica decidiu, a pedido da família, pela eutanásia. A idosa não foi ouvida, nem podia ser consultada. Tudo foi executado, ludibriando a senhora, então, com 74 anos. Numa manhã, a médica apresentou-se, com simpatia, para tomar o pequeno-almoço com a doente; e, dissimuladamente, administrou um fármaco no café para a sedar, sem consentimento. Com a idosa já aturdida, aplicou uma injecção para a adormecer. A doente manifestou dor com a agulha e reagiu com desagrado. Mas a injecção estava dada… Seguidamente, a médica tentou nova injecção, desta vez a letal. Mas a idosa despertou, reagiu e agitou-se para se levantar. A médica pediu ajuda à família (marido e filha) para segurar a doente, a fim de a injectar. Assim aconteceu. E consumou o acto.

O caso foi apreciado nos organismos médicos e transitou para a justiça, onde esteve cerca de um ano. A médica acabaria absolvida de todas as acusações. A sala do Tribunal em Haia rompeu em aplausos quando ouviu este veredicto, em Setembro de 2019.

Este caso, que me agonia, é a maior demonstração de um mal maior, que se manifesta também na eutanásia: a Holanda vem-se tornando a cloaca moral da Europa. Que um caso destes, em clara violação da lei, termine com absolvição total dos executores, com o Ministério Público a contradizer o próprio caso que introduzira e com o público a romper às palmas na sala de audiência, mostra como, na Holanda, já se caiu muito abaixo do grau zero da ética e dos deveres fundamentais de Humanidade.

Aquela velhota, na hora da morte, não teve médica que a salvasse, não teve família que a guardasse, não teve justiça que a protegesse, não teve comunidade que a cuidasse. Todos a quiseram morta: a família, a médica, os juízes e procuradores e o público. Embora agarrada com força, para não poder levantar-se, a senhora morreu sozinha, totalmente só. Dos pormenores publicados, só não nos contaram se, antes de expirar, a senhora gemeu: “Ik krijg geen lucht” (“I can’t breathe”, “Não consigo respirar”). É a parte que não sabemos.

Este pesadelo, que se julgava terminado ali, teve mais uma sequela recente. Em 21 de Abril deste ano, em plena crise Covid-19, o Supremo Tribunal holandês, enfrentando a lei publicada, legalizou em definitivo a eutanásia por demência, estatuindo que, em pessoas com demência avançada, um médico pode cumprir um pedido de eutanásia previamente escrito.

Eis a rampa deslizante que conduz à cloaca moral. A Holanda atravessa na cultura pública dominante vasta decadência ética. Na eutanásia, a lei de 2002 gerou desmoralização crescente, que conduziu ao contínuo relaxamento dos critérios, até ter submergido o Supremo.

Tenho chamado a atenção para este fenómeno: a grave derrapagem da Holanda (e também da Bélgica) para fora da matriz constitucional dos países da União Europeia e da tradição europeia dos direitos fundamentais. Quer Holanda, quer Bélgica são passíveis dos procedimentos de vigilância (e possível sanção) previstos no artigo 7.º do Tratado UE por “risco manifesto de violação grave dos valores referidos no artigo 2.º”. Mas, infelizmente, os personalistas, o centro e a direita, não temos um só eurodeputado que nos represente e que tenha a coragem, a competência e a tenacidade para iniciar e promover esse procedimento. Todos assistem, impávidos e em silêncio, à escandalosa derrapagem contra os valores europeus.

Aquela decisão do Supremo Tribunal foi tomada em plena crise Covid-19. Talvez a tornasse mais despercebida. Ou menos relevante – a Covid banalizou a morte precoce dos velhos. A Holanda tem sido dos piores Estados europeus na pandemia. Em 21 de Abril, data da decisão do Supremo, era o 8º pior da UE em número de infectados per capita e o 5º pior em número de mortos, também per capita. Nessa data, com apenas sete semanas de crise, havia 3.916 mortos Covid nos Países Baixos, cinco vezes mais do que em Portugal. Os números de ontem, 15 de Junho, mostravam a Holanda já com 6.065 mortos Covid, quatro vezes mais do que Portugal.

Quando saíram os relatórios referentes a 2018, as estatísticas holandesas da eutanásia tiveram uma surpresa: pela primeira vez, tinha havido uma baixa de 7% – o total relatado baixara de 6.685 eutanásias, em 2017, para 6.126, menos 559 casos. Não houve explicações para este fenómeno inédito. Falando com uma amiga holandesa que acompanha o tema, contou-me que a explicação mais plausível apontava para uma forte crise de gripes no Inverno de 2018 que teria provocado a morte de pessoas que, a não ser assim, teriam sido eutanasiadas. É possível.

A ser assim, a Covid-19 pode aliviar de consequências estatísticas a decisão do Supremo holandês: quando vierem os números referentes a 2020, é provável que a alta letalidade da Covid-19, fustigando os mais idosos, tenha aberto espaço a que não se note a expansão das eutanásias por demência. E talvez até sobejem mais umas quebras.

O alvo privilegiado da eutanásia são os velhos, não há como o negar. Em certa medida, é a ordem natural das coisas: os velhos são os que mais morrem; do que mais morremos é de velhos. E estes procedimentos vestidos de “modernos” são a aceleração disso. É como as filas no metropolitano, transportes públicos em hora de ponta: quem se atrasa é empurrado – “Chega p’ra lá!”, “Toca a andar!”, “Vai-te embora!” A idosa de Mariahoeve foi isso mesmo que ouviu, por outras palavras. E foi posta a andar, mais cedo do que acabaria por ir.

Confirmando alvejar os velhos, a Holanda, cloaca moral da Europa, abriu também, em Fevereiro passado, quando a Covid-19 ainda morava na China, o debate sobre a introdução da pílula do suicídio para maiores de 70 anos, como relatou o Observador. Esta pílula é ideia antiga de um juiz do Supremo Tribunal, Huib Drion, que, em 1992, no contexto dos debates que conduziriam à legalização da eutanásia, escreveu um livro a defender o que ganharia o nome de “pílula Drion”. Segundo afirmou, a ideia veio-lhe da conversa ocasional com um idoso que lhe disse horrorizar-se com a visão de terminar os seus dias num lar, narrou o ABC espanhol. Os partidários da medida, no partido Democracia 66, sustentam que “os idosos que já viveram o suficiente devem poder morrer quando decidirem”. Na cloaca moral holandesa, são velhos os de 70 anos e é melhor empurrá-los para o suicídio do que fazer por assegurar-lhes agradáveis condições de vida. Acreditando que “já viveram o suficiente”, poderão até entregar-lhes a pastilha logo à entrada do lar. Ou antes disso. Grandes poupanças, certamente. O juiz Drion morreu em 2004, com 86 anos. Morreu tranquilo na sua casa em Leiden, enquanto dormia. Teve uma boa morte. Não foi eutanasiado. E ninguém o empurrou com a sua pílula. Os seus colegas no Supremo Tribunal continuam a fazer o trabalhinho, como mostra a decisão finalíssima do caso da velhota de Mariahoeve.

Ninguém lhe fazendo frente no Parlamento Europeu ou na Comissão Europeia, a cloaca moral holandesa vai contaminando. Sabemos o caminho político de Portugal e, segundo notícias, de Espanha também. Há pressa. Há dias, uma notícia discreta deu conta de a Assembleia da República iniciar o trabalho na especialidade dos projectos para legalizar a eutanásia, depois de aprovados na generalidade em Fevereiro, antes da pandemia. Agora, com a crise Covid-19 ainda a arrastar-se, o tema foi desconfinado e foi encomendada a preparação do chamado “texto de substituição” – o texto que se ajuste aos cinco projectos e mereça endosso comum.

Democraticamente, o que falta é o referendo. Antes da pandemia, as últimas informações que tive indicavam que 80 mil já tinham assinado a petição que reclama o referendo. Antes de deslizarmos na esteira da cloaca moral da Europa, ouçamos o povo, titular último da observância da moral colectiva. O Parlamento não pode despachar matéria tão sensível e tão comum por detrás da nuvem Covid e em corredores labirínticos. É questão que pertence a todos.

Neste 10 de Junho, houve a breve, mas incisiva, reflexão do Cardeal Tolentino de Mendonça sobre “a situação dos idosos em Portugal e nesta Europa da qual somos parte”. Esperemos que tenha sido escutada e acolhida pela opinião pública, pela Assembleia da República, pelo Governo e pelo Presidente da República. Tanto nos processos, como na substância.

Oxalá ainda possamos evitar escorregar pela rampa da cloaca moral da Europa. Não baralhemos, nem confundamos a ética: tirar a vida é a maior violência.


October 25, 2020

Quando as controvérsias incluem sofismas

 


Dia 23 – democracia ou não?

O argumento mais descabido para rejeitar o referendo é o de que “os direitos humanos não se referendam”. A frase tem sido insistentemente repetida, mas não podemos aceitar que Goebbels estivesse certo quando disse: “Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”. A ideia de que direitos humanos não podem (ou não devem) ser referendados é falsa.


Li este artigo de José Ribeiro e Castro e devo dizer que não gostei e me pareceu até fora do tom que lhe é costume. Percebe-se que certas questões suscitem debates emotivos, o que até é interessante na vida democrática de um país, mas não há necessidade de os discutir em certos patamares. Refiro-me à comparação que faz entre os que dizem que “os direitos humanos não se referendam” e Goebbels, o fanático anti-semita ministro da propaganda de Hitler que anunciou a guerra total ao mundo e matou a mulher e os sete filhos antes de se suicidar. Parece-me uma inconsequência de linguagem e levar o argumento longe demais. Se uma pessoa que defende que os direitos humanos não se referendam é um perigoso nazi, como vamos classificar os outros todos que matam, esfolam, torturam e por aí fora?

Já quanto à própria frase segundo a qual “os direitos humanos não se referendam” e às criticas que JRC lhe dirige, que é a de efectivamente podermos, se quisermos, mudar, alterar e o mais que quisermos fazer à Carta dos Direitos Humanos, o que me apraz dizer é o seguinte:

- quando se diz que “os direitos humanos não se referendam”, não se está a defender a impotência do ser humano em alterar frases numa carta de princípios. É evidente que se quiséssemos mudar a Carta, mudávamos. A questão está mal entendida: de facto, entendemos que seria um grave precedente retirar direitos à Carta dos Direitos Humanos. Não é que não se possa fazer, mas não se deve. Imagine-se retirar o direito à liberdade de expressão ou outro dos direitos fundamentais. 

A Carta dos Direitos Humanos foi um grande passo em frente na comunidade humana. Por causa dela, pese embora, infelizmente, ainda continue a haver abusos e violações de direitos humanos, estes já são entendidos como um mal e quem os faz fá-los às escondidas, onde até há um século, se faziam em plena luz do dia sem problemas. Ainda hoje se fazem em certos países totalitários. Portanto, referendar direitos humanos seria dar um grande passo atrás. 

Embora a frase seja incorrecta e em vez de dizer 'não referendar direitos humanos', devia dizer-se, 'não se referenda a subtracção de direitos humanos', porque é isso que está em causa. E os exemplos que JRC adianta de referendos à Constituições nunca são no sentido de retirar direitos humanos, a não ser nos Estados autoritários e de tendência ou claramente ditatoriais (quando o são são logo alvo de críticas ou sanções, como o caso da Hungria e Polónia), mas no sentido, seja de acrescentar novos direitos ou de precisar a linguagem com que são enunciados.

Não passaria pela cabeça de ninguém ir à Constituição portuguesa e retirar o direito ao voto, ao trabalho, ou outro qualquer, embora na prática se o quiséssemos fazer, claro que o faríamos. Depois de ter citado Goebbels, JRC compreende perfeitamente que nesta vida, tudo é possível mas, não desejável. Retirar direitos humanos, é possível, mas não desejável.


October 22, 2020

Eutanásia razões para um referendo

 


Foi criada na Lei uma Rede Nacional de Cuidados Paliativos que inclui tudo o que possa dar apoio ao doente e eliminar o sofrimento, controlando qualquer dor insuportável, até à sedação progressiva ainda que por virtude do duplo efeito dela possa resultar a sua morte. A Lei prevê ainda uma sedação permanente para os casos de prognóstico vital breve. Este ponto parece inspirado na lei francesa de 2016 aprovada por uma maioria socialista no mandato do Presidente Hollande que introduziu a sedação profunda e continua que "provoca uma alteração da consciência mantida até à morte quando o doente está atingido por afeção grave, incurável, com prognóstico de vida comprometido a curto prazo tendo um sofrimento refratário aos tratamentos". Pode ser mantida no domicílio do doente.

Se estes direitos forem reconhecidos cai pela base o principal argumento a favor da eutanásia. 

Não cai, não.  Se bem entendo, o que chamam sedação profunda é equivalente a um estado vegetativo. Ora a pessoa pode não querer ficar nesse estado, independentemente de não ter dores. E ao contrário do que diz Roseta, isto não é, para toda a gente, um fim digno, de modo de que aquilo de que acusa os outros, de quererem generalizar a sua opinião a todos, é o que fez aqui.

O problema é que estes direitos são muito pouco concretizados na prática. Se o fossem estaria assegurado um fim de vida digno, sobretudo se houvesse apoio psicológico ao longo do processo.

A pessoa mantém a sua dignidade em qualquer circunstância, pois é inerente à sua condição de pessoa A morte digna é um conceito sem sentido usado pelos que não se preocupam em garantir a dignidade da vida até ao último instante. O que não fizeram e é urgente fazer é garantir o acompanhamento e as condições que evitem situações que conduzam as pessoas por causa da dor a pedir a eutanásia. Quem tem responsabilidade na situação atual não tem autoridade para votar a favor da eutanásia sem uma consulta à população. Se o Estado o fizer é claramente imoral.

Do facto de a pessoa, por ser pessoa, ser um ser (um fim em si mesmo) com dignidade, não se pode concluir que a sua vida seja sempre digna porque uma coisa é a pessoa em si e outra o seu modo de vida. Um proxeneta que viva de explorar e submeter mulheres a violência é um ser digno enquanto pessoa, mas com uma vida não-digna, embora de um modo diferente daquele em que estão os doentes terminais, mas é um exemplo que mostra que a pessoa e o seu modo de vida são coisas diferentes.

 Roseta assume que a pessoa só pede a morte se estiver com dores físicas mas isso não é verdade. Ainda há pouco tempo li o caso de um rapaz que ficou tetraplégico e pediu aos pais para aceitarem e ajudarem-no a morrer. Para não falar no caso conhecidíssimo do espanhol.

Outro dos fundamentos do projeto de lei que deve ser submetido a referendo é o princípio da autonomia da vontade individual. Ora, se esta autonomia não tiver limites o indivíduo julga-se um pequeno "deus" soberano que goza de liberdade sem fim, mas reivindica serviços aos outros e ao Estado.

O problema de Roseta é Deus: se o ser humano tem autonomia da vontade (e já agora, o argumento da dignidade da pessoa, [enquanto fim em si mesmo] como sabemos, vem justamente da autonomia da vontade fundada na liberdade, de modo que, se ataca a autonomia da vontade, ataca ao mesmo tempo, o argumento da dignidade que dela depende - como é que seres heterónomos têm uma dignidade inerente fundamental? Gostava de saber... se são heterónomos no que respeita à vontade, então a dignidade não é deles mas do princípio exterior que os organiza e determina), no pensamento de Roseta, substitui-se a Deus, que é o único que pode dar e tirar vida. É claro que, como Deus não está aqui nos hospitais, Roseta delega o poder de Deus em homens; ou seja, como os seres humanos não podem ser indivíduos autónomos, têm que deixar as decisões da sua vida a outros indivíduos também humanos que não têm nenhum grau de dignidade humana superior à sua... sejam médicos, padres, psicólogos... quer dizer, todos decidem da sua vida menos a própria pessoa? É um escravo dos outros, então, pois só os escravos é que sendo inocentes, têm outros a determinar a sua vida e a sua morte.
E qual é o problema da eutanásia implicar os serviços de outros que estão dispostos a prestá-los?

Entre todas as pessoas existem laços indestrutíveis de natureza ontológica e ética que decorrem da unidade de origem e comunidade de destino da espécie humana, os quais devem ser lembrados sobretudo quando surgem movimentos demagógicos e populistas que querem novas ou velhas discriminações.

O facto de vivermos em sociedade e termos deveres para com os outros não nos subtrai a vontade individual livre. Não somos um pó que se dissolve nas águas sociais, somos uma sociedade de vontades autónomas e, se somos um fim em si mesmo e não um meio, não podemos ser um meio de os religiosos se sentirem bem com a sua fé. O ser humano não pode ser um instrumento da fé ou desconforto alheio. 
Portanto, segundo Roseta, o rapaz que ficou tetraplégico deveria ter que aturar um psicólogo para o resto da vida, muito paternalisticamente, a explicar-lhe que devia ficar vivo para não ofender os religiosos na sua fé, apesar de ele mesmo não querer estar vivo naquelas circunstâncias?

O dever do Estado de Direito de proteger sempre a vida humana sobrepõe-se às vontades individuais, pois é um Estado de legitimidade e de justiça que tem de respeitar os direitos naturais da pessoa, incluindo os que ela própria não pode alienar.

Só que aqui não se trata de proteger a vida mas de suprimir a autonomia da vontade, que é um princípio filosófico fundamental nos direitos humanos. E, pior, fazê-lo à força. Em última análise, poderíamos ter que pôr uma pessoa num colete de forças como nos asilos de lunáticos do outro século ou sedá-la para a manter viva, à força. 
No meio disto tudo, Roseta critica o autoritarismo da lei mas para defender uma espécie de terrorismo de Estado tendo como fim obrigar a pessoa a manter-se na vida mesmo contra a sua vontade autónoma consciente e livre. 

O fundamento de todo o argumento de Roseta é o de que as pessoas, inocentes, conscientes e autónomas sejam privadas da sua liberdade para não se pensarem uns deuses e para que os religiosos fiquem de consciência tranquila com os mandamentos do seu Deus.

Eu não sou necessariamente contra o referendo, mas não com esta argumentação.

Pedro Roseta

October 13, 2020

Referendo à Eutanásia - Concordâncias e discordâncias

 



Eutanásia: as falácias dos anti-referendo

José Ribeiro e Castro

O mal fundamental existe; e só pode ser curado de duas formas: ou nas eleições de 2023, ou num referendo. Fugir a ambos é clara fraude democrática. Parece haver uma demofobia crescente a medrar na AR.
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O texto do deputado José Manuel Pureza no “Duelo” do Expresso de sábado passado é uma boa síntese das falácias habitualmente usadas pelos que querem bloquear a reclamação popular do referendo sobre a eutanásia. Vale a pena revê-las, uma a uma.


Concordância - há um 'demofobia crescente a medrar no Parlamento português.' Disso não há dúvidas e muito têm feito os deputados para diminuir a participação da população nas decisões que lhes dizem respeito.

Discordâncias - a eutanásia não é contra a vida, é a favor de uma noção de vida que inclui a auto-determinação da pessoa (que não pode deixar de fora, desde logo, o seu corpo), não em certas circunstâncias, mas na totalidade da sua vida. 
Dizer que ser a favor da eutanásia é ser contra a vida, é como dizer que ser contra a eutanásia é ser contra a auto-determinação da pessoa, logo ser a favor da pessoa não ter liberdade de decidir da sua vida e tê-la tutelada por outros. Ora, não me parece que os opositores à eutanásia sejam contra a liberdade e a auto-determinação da pessoa, da mesma maneira que os que são a favor não são contra a vida. Por conseguinte, pôr as coisas nesses termos é embotar a discussão.

Os direitos humanos não se referendam. Resta saber qual é o direito a que a Eutanásia responde ou ofende: aí é que está a polémica.

Quando da mal sucedida Constituição Europeia, os referendos em vários Estados-membros incluíam a adopção vinculativa da Carta Europeia dos Direitos Fundamentais. Em vários países, já se efectuaram e continuam a efectuar-se referendos sobre alteração do regime de direitos individuais ou a adopção de novos. 

Nem a Carta dos Direitos Humanos, nem os direitos que dela constam estavam a referendo, o que estava era a sua adopção vinculativa, sendo que isso é um pré-requisito para a pertença à UE: daí os problemas que tem havido com a Hungria e daí a Turquia não ter entrada na UE: é que a UE não considera os direitos humanos uma opção que os países possam escolher não respeitar. 
 
Parece até normal e saudável que matérias de direitos, liberdades e garantias sejam um objecto típico de referendos – e não o contrário. Normalmente, os cidadãos sabem melhor o que querem para si do que os Estados.

O problema aqui, como Ribeiro e Castro bem sabe, está na questão que iria a referendo que tornaria o referendo redundante, na medida em que sabemos como pôr as questões para obter certas respostas e seria isso o que os partidos quereriam, o que anula o próprio acto. 
Se a questão fosse, 'concorda que se matem pessoas, etc'. - penso seria a proposta de texto das pessoas que são contra a eutanásia, focar-se no matar pessoas - a resposta seria não, obviamente; mas se o texto da questão fosse, 'concorda que se respeite a decisão da pessoa livre em por termo à sua vida em certas condições, etc.', a resposta seria sim e, este seria o texto dos que são a favor: vincariam a liberdade e a decisão da pessoa.
Quer dizer que o modo como se põe a pergunta vicia a resposta assim como o modo como se põe os termos do problema - ser contra a vida ou ser contra a liberdade, têm viciado a discussão.

Nunca pensei neste problema do referendo que me parece muito complicado, pois de um lado corre-se o risco de se querer referendar diretos básicos, do outro lado, corre-se o risco do povo não ter uma palavra a dizer sobre os assuntos que se legislam e que afectam a sua vida.

Sou a favor da eutanásia porque concede direitos sem retirar direitos a ninguém: a lei não obriga a eutanasiar alguém ou a que alguém se sinta obrigado a pedir a eutanásia. 

June 22, 2020

O bastonário da ordem dos médicos não sabe viver em democracia



Se a decisão do Parlamento for inversa e a eutanásia não for tornada legal, ele cumpre mas se for legalizada ele manda os médicos todos desrespeitar a lei? Ele é o ditador de serviço que põe e dispõe das consciências alheias como se fossem suas? Então todos os médicos têm de concordar com ele? 

Se a lei for aprovada é implementada, quer ele goste ou não. Ele pode recusar-se, pessoalmente a aplicar a eutanásia, mas não pode proibir os médicos que sejam a favor de a aplicar, cumprindo a lei. O mais que pode fazer é aconselhá-los, porque ele não está acima da lei, nem os médicos são filhos menores do indivíduo para ele lhes dar ordens de consciência.

Neste país o autoritarismo já entrou na normalidade.


"A função dos médicos é salvar vidas". Ordem avisa que não vai colaborar para que a eutanásia seja uma realidade

A Ordem dos Médicos avisou o Parlamento que vai recusar participar em qualquer fase do processo da instituição de eutanásia ou ajuda ao suicídio, ainda que a lei venha a ser aprovada em Portugal.

February 20, 2020

A AR esteve bem



Agora é preciso legislar com cuidado para evitar as armadilhas de legislações de outros países mas, foi bom terem aprovado esta lei que respeita a integridade identitária das pessoas.

Ainda a propósito da eutanásia



Tenho um vizinho que mora aqui no prédio também há imenso tempo e que conheço de o encontrar por aí e de ir às vezes a casa dele quando fazia almoçaradas de cozido à portuguesa. Ele tem 82 anos e é uma pessoa com boa condição física, quer dizer, tem um coração forte e está lúcido, porque era muito activo e fazia grandes caminhadas diárias. Há 4 anos ficou sem falar. Tem aquela doença que tinha o Stephen Hawking e começou a paralisar. Agora, tem o braço esquerdo paralisado e já arrasta uma perna. Uma das filhas vai tratando dele como pode depois do trabalho mas aquilo não é fácil porque ele era uma pessoa muito independente e agora nem tomar banho sozinho é capaz. Contratou uma mulher que vai lá a casa fazer-lhe as coisas mas o dia dele é passado praticamente em silêncio e a ver-se degradar de dia para dia, incapaz de falar e cheio de medo de ter mais 10 anos de vida neste inferno sempre a piorar. Tem muitas dores. Já tentou matar-se duas vezes mas resultou mal. Qualquer dia fica completamente paralisado e preso a uma cama com fraldas e escaras e a cheirar a urina todo o dia... É uma vida indigna e sem sentido.

February 15, 2020

Na discussão da Eutanásia o disparate vai de vento em popa



Agora anda por aí nas redes sociais um argumentário que consiste em publicar uma imagem de uma ordem do Hitler a decretar a eutanásia para depois concluir que, se o Hitler era a favor da eutanásia é porque a eutanásia é uma prática própria de nazis... a sério?? Quer dizer que, se o Hitler era a favor de salada de batatas a acompanhar as salsichas, já não podemos gostar de salada de batatas porque é uma coisa de nazis?? E Deus nos livre de gostar de salsichas!!! E não podemos vestir-nos de castanho porque ele era dos camisas castanhas e não podemos gostar de passear nas montanhas porque ele também aconselhava e por aí fora?? Onde já chegou o disparate...

February 09, 2020

Espero que isto não seja verdade...



Refiro-me à pergunta. Isto não é uma pergunta sobre a eutanásia, que é ajudar uma pessoa em sofrimento não tolerável. É uma pergunta sobre matar pessoas. Uma pergunta tão enviesada nem vale a pena fazer. Isto é não levar o assunto a sério. Porque é que a Igreja não trata da salvação da alma, que é para isso que existe e está sempre a querer impôr a todos os seus padrões de comportamento, que deixam muito a desejar...?

Referendo sobre a eutanásia ganha velocidade com o apoio da Igreja
“Concorda que matar outra pessoa a seu pedido ou ajudá-la a suicidar-se deve continuar a ser punível pela lei penal em quaisquer circunstâncias?”.

Acerca da Eutanásia




A vulnerabilidade das pessoas, por doença ou velhice, favorece estados depressivos e de abandono que podem propiciar a fantasia da morte. Tendo em conta o horrível que é a solidão, e tendo em conta o horrível de muitas famílias, pouco solidárias ou disfuncionais, confusas ou oportunistas, imagino bem que pelo cansaço ou pela fúria, por vingança ou ganância, muitos elegíveis para a eutanásia se verão encurralados, como se pedir a morte fosse a única coisa decente a fazer.

Horroriza-me que, aberta a oportunidade institucional de morrer, usemos a morte como resposta obrigatória para aqueles que viveriam apaziguados num contexto de cuidado e carinho.

Não sou, naturalmente, contra a opção lúcida de alguém que, assistido por uma bateria de médicos especialistas, encontre apenas na morte uma solução. Não posso ser contra a liberdade das pessoas de mente saudável.




A discussão sobre a eutanásia não é fácil e está muito minada por petições de princípio. 
Há argumentos de derrapagem, que são falácias de argumentação. Dizem mais ou menos o seguinte: se aprovarmos a eutanásia em breve estamos a matar criancinhas. Fazem crer que há um encadeamento de acções determinista desde que se aprova a eutanásia que leva, necessariamente, à morte indiscriminada de qualquer um. Como se a lei não pudesse, e devesse, incluir restrições.

Outra argumento muito usado é o do numero de eutanasiados na Bélgica e Holanda que tem crescido um pouco. Esquecem-se de dizer que a população idosa está a aumentar, que entre os idosos cada vez há mais casos de cancros e outras doenças terminais e que por isso, é normal que haja mais casos desses e, havê-los, não significa que se tenha entrado no laxismo da eutanásia.

Depois, assume-se que quem pede a eutanásia tem de estar em depressão, mas isso não é verdade. E nem sempre os médicos percebem a situação das pessoas. Já tive uma médica que entendia que eu, com as insónias e outros sintomas, tinha de estar em depressão e eu dizia-lhe que não, nem tinha nenhuma tendência para isso mas ela era completamente surda. Estava na 'sua' verdade e queria à força obrigar-me a ela. Os médicos sabem até certo ponto mas depois somos nós que decidimos da nossa vida.

A mim parece-me uma enorme crueldade obrigar pessoas ao sofrimento intolerável só para que os outros não tenham problemas de consciência com a sua morte. Parece-me também que os argumentos religiosos são uma violência para quem não é religioso, quer dizer, obrigar uma pessoa a viver pelos padrões das outras que acreditam em seres voadores, deuses castigadores e outras coisas que fazem parte do seu imaginário mas não têm que impôr aos outros como ideais de vida e de morte. Finalmente parece-me uma grande perversidade roubar a pessoa da liberdade de decidir sobre si mesma e a sua existência física. Quem não concorda que não participe. 

De resto, é certo que devia-se melhorar os cuidados paliativos e que a lei deve ter cautelas, impedimentos condicionais e restrições. Tudo isso é discutível e aperfeiçoável. O resto não. Vejamos: uma pessoa tenta suicidar-se e corre mal. Fica viva. Deve o Estado prendê-la porque tentou acabar com a própria vida? Acho que ninguém defende tal coisa...  Podemos não concordar, mas é uma opção que assenta na liberdade da pessoa adulta e consciente. A eutanásia não é diferente, sendo que é um caso em que a pessoa não está em condições de o fazer sozinha e pede ajuda.