May 23, 2024

Quando se deturpam os factos para forçar as suas crenças



Negrume na psiquiatria e no direito: um caso de suicídio assistido

Nos Países Baixos foi autorizado o suicídio assistido para um caso de depressão.

Carlos Braz Saraiva

Lê-se que "solicitou a morte assistida por eutanásia em dezembro de 2020" e que esta foi agora autorizada. Uma "eutanásia psiquiátrica". Motivos apontados e citados, em síntese, na comunicação social: "Depressão crónica, ansiedade, trauma, transtorno da personalidade desde a infância, espectro do autismo."
Segundo a paciente, depois de uma psiquiatra lhe ter dito que "não havia nada mais a fazer", formulou o seu pensamento na proposição "se não posso melhorar, não posso viver mais"

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Fui a outras fontes investigar o caso. No Guardian,  diz-se que 

"Uma holandesa de 29 anos, Zoraya ter Beek, a quem foi concedido o pedido de morte assistida por sofrimento mental insuportável, deverá pôr termo à sua vida nas próximas semanas, alimentando o debate sobre a questão em toda a Europa."

Portanto, não é pela depressão em si, mas por estar num sofrimento mental intolerável. O pedido dela está a ser considerado há 3 anos e nesses 3 anos a mulher mantém-se firme no seu pedido. De acordo com a legislação neerlandesa, para poder beneficiar de uma morte assistida, a pessoa deve estar a passar por um “sofrimento insuportável sem perspectivas de melhoria”. A pessoa deve estar plenamente informada e ser competente para tomar essa decisão.

Portanto, o artigo deste senhor, penso que psiquiatra, a dizer que uma holandesa vai suicidar-se "por ter depressão e porque um psiquiatra lhe disse que não há melhoras" é intelectualmente desonesto. 

Esta mulher constitui um caso excepcional (não a norma) na Holanda, que tem esta lei há 20 anos, pois desde a infância que tem estes problemas e ideário suicida, coisas que atravessaram toda a vivência, mesmo em períodos em que pensava ir melhorar, como quando conheceu o seu parceiro. Portanto, citar umas autoridades a dizer que não é possível ter os problemas que ela tem desde a infância, apesar de estarem amplamente documentados por muitos médicos psiquiatras e outros desde sempre, é dogmatismo. Como ele e outros não tem experiências de pessoas assim, elas não podem existir?

E resumir uma situação complexa a um caso de ansiedade e depressão? Não é desonesto? 

Este mulher iniciou tratamentos intensivos, incluindo terapias da fala, medicação e mais de 30 sessões de terapia electroconvulsiva (ECT). 

“Na terapia, aprendi muito sobre mim própria e sobre mecanismos para lidar com a situação, mas isso não resolveu os problemas principais. No início do tratamento, começa-se com esperança. Pensei que ia melhorar. Mas quanto mais o tratamento se prolonga, mais se perde a esperança”. Ao fim de 10 anos, não havia “mais nada” em termos de tratamento. “Eu sabia que não conseguia lidar com a forma como vivia agora.”
Tinha pensado em suicidar-se, mas a morte violenta por suicídio de uma colega de escola e o seu impacto na família da rapariga dissuadiram-na.
“Terminei a ECT (terapia de choques eléctricos) em Agosto de 2020 e, depois de um período em que aceitei que não havia mais tratamento, candidatei-me à morte assistida em Dezembro desse ano. É um processo longo e complicado. Não é que se peça a morte assistida numa segunda-feira e se esteja morto na sexta-feira.

“Estive numa lista de espera para ser avaliada durante muito tempo, porque há muito poucos médicos dispostos a participar na morte assistida de pessoas com sofrimento mental. Depois, temos de ser avaliados por uma equipa, ter uma segunda opinião sobre a nossa elegibilidade e a sua decisão tem de ser revista por outro médico independente.

“Durante os três anos e meio que durou este processo, nunca hesitei na minha decisão. Senti-me culpada - tenho um companheiro, família, amigos e não sou cega ao seu sofrimento. E senti medo. Mas estou absolutamente determinada a ir para a frente com isto.

Todos os médicos, em todas as fases, dizem: “Tem a certeza? Pode parar em qualquer altura'. O meu companheiro tem estado na sala durante a maior parte das conversas para me apoiar, mas várias vezes foi-lhe pedido que saísse para os médicos terem a certeza de que eu estava a falar livremente.”
Quando o artigo sobre o seu caso - que, segundo Ter Beek, continha muitas imprecisões e deturpações - foi publicado em Abril, a sua caixa de correio eletrónico “explodiu” e ela teve que apagar as contas nas redes sociais.
“As pessoas diziam: ‘Não faças isso, a tua vida é preciosa’. Eu sei disso. Outros diziam que tinham uma cura, como uma dieta especial ou medicamentos. Alguns diziam-me para encontrar Jesus ou Alá, ou diziam-me que ia arder no inferno. Era uma tempestade de merda total. Não conseguia lidar com todo o negativismo”.
Depois de se ter encontrado com a sua equipa médica, Ter Beek espera que a sua morte ocorra nas próximas semanas. “Sinto-me aliviada. Foi uma luta muito longa”.

No dia marcado, a equipa médica vai a casa de Ter Beek. “Começarão por me dar um sedativo e só me darão os medicamentos que param o coração quando eu estiver em coma. Para mim, será como adormecer. O meu companheiro vai lá estar, mas eu disse-lhe que não havia problema se ele precisasse de sair do quarto antes do momento da morte", disse ela.

Lembra-se de o psiquiatra lhe ter dito que já tinham tentado tudo, que “não há mais nada que possamos fazer por si. Isso não vai melhorar”.
Nessa altura, disse ela, decidiu morrer. “Sempre fui muito clara: se não melhorar, não posso continuar a fazer isto.”
Como que para anunciar o seu desespero, Ter Beek tem uma tatuagem de uma “árvore da vida” no braço superior esquerdo, mas “ao contrário”.
“Onde a árvore da vida representa o crescimento e os novos começos”, escreveu ela, “a minha árvore é o oposto. Está a perder as suas folhas, está a morrer. E quando a árvore morreu, o pássaro voou para fora dela. Não vejo isso como a partida da minha alma, mas mais como a minha libertação da vida”.
Na opinião dos críticos, [pessoas como Ter Beek] foram vítimas de uma espécie de contágio suicida. As estatísticas sugerem que estes críticos têm razão. Em 2001, os Países Baixos tornaram-se o primeiro país do mundo a legalizar a eutanásia. Desde então, o número de pessoas que optam cada vez mais por morrer é surpreendente. 
https://www.thefp.com/p/im-28-and-im-scheduled-to-die
Em suma, a ideia do psiquiatra que escreve este artigo, de que este processo foi todo irresponsável e que uma pessoa com depressão se torna irracional e não sabe o que está a fazer, não é verdade.
O artigo dele deturpa todo o caso.

No meu entender, um psiquiatra ou outro profissional de saúde, deve dizer a verdade aos doentes se for essa a escolha dos doentes e não fazer uma gestão de informação no sentido de dar uma falsa esperança à pessoa e, desse modo, impedi-la de decidir por si mesma da sua vida, como se fosse o seu paizinho. Isso é negar a autonomia e a liberdade do outro. É tratar o outro como menor mental. É uma falta de respeito pela dignidade da pessoa.

Quanto à questão das estatísticas mostrarem que antes da lei da eutanásia a Holanda não tinha casos de suicídio assistido registados (que surpresa...) e depois passou a ter e cresceram até representarem cerca de 5% das mortes, esse número, isolado de conhecimento dos contextos e causas não diz nada sobre o fenómeno. Por exemplo, isso pode estar ligado a uma população envelhecida e a viver sozinha, sem família e sem ninguém e sem interesse em continuar vivo nesses termos; pode estar ligado ao número crescente de doenças como cancros; pode querer dizer que há muito mais pessoas num estado de sofrimento mental insuportável do que julgávamos. A saúde mental, por ser invisível, não deixa de ter sintomas e dores tão insuportáveis com as outras doenças não mentais.

Todas as pessoas têm o direito a ser contra a eutanásia, seja por questões de religião, de convicção filosófica ou de incompreensão do sistema de valores dos outros, mas o que não não é correcto nem honesto é deturpar os contornos dos casos para forçar as suas crenças nos outros.

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