January 30, 2024

"Nenhum doente me pediu para morrer"

 


Esta frase deste médico, que partilha connosco o facto de ter uma especialidade com grande peso oncológico, mostra bem como o pedido de eutanásia é raro, ao contrário do que os seus adversários querem fazer querer: que uma vez regulamentada a lei, toda a gente desata a pedir um suicídio assistido. O mesmo argumento foi usado para o aborto e veio depois a provar-se o inverso.

A Declaração dos Direitos Humanos consagra que “todo o indivíduo tem direito à vida" - pois consagra, sim, mas também consagra outros direitos em igualdade de importância: o direito à liberdade, à dignidade e à autonomia. Esses direitos ele não cita, como se não fossem igualmente importantes. 

Se uma pessoa não é livre de decidir do seu próprio corpo -o único território e paisagem de que é dono e senhor-, de que dependem todos os outros direitos, que direitos lhes restam? O conceito de vida, como este médico sabe, não é unívoco e a vida diz-se em vários sentidos: o médico, sim, mas também o social, o político, o filosófico, etc. O critério de vida e de dor não são apenas orgânicos e farmacológicos.

Este médico invoca a transparência como conceito fundamental. Sendo assim, devia ele mesmo ser transparente e informar-nos se a sua posição tem um fundamento religioso. Regra geral os religiosos querem que toda a sociedade seja constrangida pela crença num Deus em que eles acreditam. Nenhum médico que seja crente no absoluto da vida é obrigado a praticar a eutanásia, mas porque querem impor essa sua crença aos outros?

Nunca ninguém lhe pediu para morrer... Uma pessoa não fala nisso aos médicos... nunca falei nesse assunto à minha médica pneumo-oncologista, mas quando cheguei ao hospital, vai fazer seis anos daqui a uns poucos meses, sabia que estava extremamente mal e sentia-me a morrer. Nunca lho disse. Para quê? Para pôr mais pressão em cima dela? No entanto, nessa altura, fiz uma muito pequeníssima lista mental, (duas pessoas), que achei que teriam coragem de me ajudar a fazer checkout se chegasse a uma situação de vida insuportável. 


Nenhum doente me pediu para morrer

Miguel Guimarães

A lei da eutanásia (morte medicamente assistida) foi promulgada pelo Presidente da República em Maio de 2023, como obriga a Constituição, dias depois de o Parlamento ter confirmado o diploma que tinha sido vetado pelo mesmo Presidente em finais de Abril. No entanto, a regulamentação da lei da eutanásia continua a aguardar melhores dias, tendo sido adiada para o próximo governo que sair das eleições de 10 de Março de 2024. O ministro da Saúde defendeu que está em causa um processo muito complexo e que “seria um erro regulamentar à pressa”!

A Declaração Universal dos Direitos Humanos consagra que “todo o indivíduo tem direito à vida”. A Constituição da República Portuguesa, no capítulo dedicado aos direitos, liberdades e garantias pessoais, estipula que “a vida humana é inviolável”. E o Código Deontológico da Ordem dos Médicos também é claro: “Ao médico é vedada a ajuda ao suicídio, a eutanásia e a distanásia.”

Quando me candidatei a bastonário da Ordem dos Médicos, fi-lo na sequência da apresentação de um programa de candidatura onde me comprometi a defender várias causas. A primeira de todas foi a “defesa intransigente dos pilares da Ética Médica e do Código Deontológico”. Ao contrário do que sucedeu com alguns dos partidos políticos que defenderam a eutanásia e não a incluíram nas suas propostas de programas.

Em democracia a transparência é um dos principais valores que devemos defender e preservar. Porquê tanta pressa? Porquê tanta opacidade por parte de quem está convicto da bondade dos seus projetos? Porquê tanta urgência em despenalizar em Portugal uma prática que a grande maioria dos Estados de todo o mundo, também eles laicos, não aplicam? Porquê tanta pressa em importar o que poucos países já fazem e que, mesmo assim, têm encontrado problemas e exemplos de casos que vão para lá das linhas vermelhas supostamente bem definidas?

O pouco debate que existiu apenas serviu para misturar conceitos. Muitas pessoas continuam a confundir eutanásia com distanásia e dizem que são favoráveis ao primeiro conceito, quando na verdade pretendem algo que a leges artis já prevê: não proporcionar tratamentos desnecessários e que prolongam a vida de forma artificial e dolorosa. As boas práticas médicas já permitem controlar a dor e o sofrimento. O que foi votado não pode ser esfumado com palavras: pretendeu-se descriminalizar quem pratica a morte a pedido da vítima, por mais que lhe chamem morte assistida ou morte antecipada. A nada disto podemos chamar de ato médico.

Sou urologista e, por isso, na minha especialidade cruzo-me diariamente com casos complexos, a nível clínico, mas também social. Esta é uma especialidade com grande peso oncológico e nunca abandonei o terreno. Tenho muitos doentes que ainda hoje me contactam no “aniversário” da notícia de que tinham entrado em remissão, e outros doentes que já partiram e continuam a viver na minha memória de dias difíceis com diagnósticos cujo desfecho era previsível.

Não o posso negar: o caminho não é fácil nem linear e traz dor. Mas nunca nenhum doente me pediu para morrer. A dimensão psicológica, cognitiva, e afetiva são tão ou mais importantes que a clínica crua quando estamos a ajudar alguém a preparar-se para morrer. A execução direta de uma morte não se enquadra nos códigos da medicina, não é um ato médico. E a medicina dispõe de cuidados paliativos que podem ajudar os doentes mais complexos, sejam doentes em fase terminal ou outros.

Não nos iludamos. Quando a regulamentação da lei for concluída, nada será igual. A nossa sociedade não será mais a mesma. Evocando Álvaro de Campos, quando escreveu sobre a morte do Alves da tabacaria… foi só o Alves que morreu, mas a “cruz na porta da tabacaria” é um presságio de que “desde ontem a cidade mudou”.

Bastonário da Ordem dos Médicos 2017-2022


2 comments:

  1. "Este médico invoca a transparência como conceito fundamental. Sendo assim, devia ele mesmo ser transparente e informar-nos se a sua posição tem um fundamento religioso."
    Até onde me lembro todas as Ordens profissionais ligadas à saúde foram contra a lei da eutanásia. Se os membros destas Ordens também usarem o argumento da "transparência" (palavra que tem um sentido abrangente) também deverão informar se a sua posição tem um sentido religioso? Talvez me esteja a escapar a relevância da religião para a discussão. Para alguns médicos / profissionais de saúde, a questão pode ser religiosa, para outros pode ser apenas de consciência ou ética. Haverá seguramente médicos agnósticos / ateus contra a eutanásia. Para quem toma uma posição, a religião pode (também) ser importante. Mas qual é a relevância para si? Faz(-lhe) diferença saber se a posição de alguém tem um fundamento religioso, se não for por uma questão de curiosidade?

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    1. É relevante na medida em que ele invoca esse princípio e dá a entender que há opacidade das intenções de quem quer regulamentar a lei, "à pressa", no seu entender. Se exigimos a transparência aos outros, devemos praticá-la, não?

      Parece também relevante saber se é a sua crença religiosa que determina a sua posição médica, pois sabemos que no caso da IVG, os médicos e enfermeiros de crença religiosa têm arranjado maneira, com a criação de obstáculos burocráticos e até humilhantes, de que a lei não seja cumprida, deixando as mulheres sem assistência médica.

      Portanto, a bem da transparência que ele invoca e da aplicabilidade da lei, essas questões parecem-me relevantes porque influenciam, na prática, a possibilidade das pessoas exercerem os seus direitos legais.

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