Uma entrevista com Rui Vilar que viveu os acontecimento por dentro do governo. A entrevista é muito interessante a vale a pena lê-la toda. Deixo aqui uns excertos que dão para perceber que Vasco Gonçalves era um idiota proto-autoritário a mando do PCP - sua eminência parda, ministro sem pasta estava lá para o manobrar. Sem o 25 de Novembro teríamos saído da ditadura do Salazar directamente para a ditadura do PCP.
“A máscara de moderado de Vasco Gonçalves caiu logo em Dezembro de 74”Como ministro da Economia, Rui Vilar acompanhou por dentro o lado mais delirante dos primeiros governos de Vasco Gonçalves, assistindo à crescente radicalização do discurso do então primeiro-ministro.
Cristina Ferreira e Nuno Ferreira Santos
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Qual era o ambiente dentro do I Governo Provisório?
A seguir às reuniões dos Conselhos de Ministros, o ministro da Economia [Vieira de Almeida] reunia todos os secretários de Estado e fazia um briefing sobre o que se passara. Pereira de Moura, ministro Sem Pasta, apresentava muitas propostas que implicavam com a Economia. Certa vez, sugeriu um salário mínimo de 6600 escudos, que rebentava com o PIB, e depois de muita discussão ficou em metade, em 3300 escudos. Numa outra vez, disse que o turismo era a prostituição do país e Vasco Vieira de Almeida pediu-me que desse uma entrevista a contrariá-lo. E foi o que fiz, falei com José Vacondeus, do Diário de Lisboa, a desdizer o ministro de Estado Pereira de Moura.
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O que leva o quadro político do I Governo Provisório, moderado, para um contexto cada vez mais extremado?
No I Governo Provisório, a Comissão Coordenadora do MFA cumpriu na íntegra o seu programa: entregou o poder à Junta de Salvação Nacional, constituída por generais e almirantes, criou um Conselho de Estado para fiscalizar a constitucionalidade das leis, e um Governo provisório de civis, onde apenas o ministro da Defesa, o general Firmino Miguel, era militar. E a coordenadora do MFA afastou-se.
Mas no final do I Governo Provisório já havia muitas contradições?
A crise Palma Carlos opera uma mudança radical na atitude da comissão coordenadora, que impõe a presença de muitos militares no II Governo Provisório. O general Spínola começa por indicar Firmino Miguel para ser primeiro-ministro, que ainda tenta formar Governo e ainda me convidou. Mas não consegue.
Porquê?
Por oposição da Comissão Coordenadora do MFA. E é Vasco Gonçalves que é nomeado primeiro-ministro e é quem convida muitos militares da comissão coordenadora para o Governo. Firmino Miguel mantém-se como ministro da Defesa; entram Vítor Alves e Ernesto Melo Antunes, ambos ministros sem Pasta; Costa Martins, do Trabalho; Costa Brás, da Administração Interna; e José Augusto Fernandes, do Equipamento Social e Ambiente. Lembro-me do major Sanches Osório, que era engenheiro e depois se fez advogado, ter a pasta da Comunicação Social.
Já se sentem as divisões políticas dentro do MFA?
As distinções entre sensibilidades ainda não eram perceptíveis. Nem era claro que o próprio Vasco Gonçalves estivesse já alinhado com o PCP, pois quando lhe perguntei qual era a política económica do Governo, respondeu-me: "Sou a favor do capitalismo desenvolvimentista, contra o capitalismo selvagem." Insisti para que explicasse o significado, ele repetiu a fórmula. E ficou por aí.
Entre 16 de Maio de 1974 e Agosto de 1975, o secretário-geral do PCP, Álvaro Cunhal, foi ininterruptamente ministro Sem Pasta...
Nos primeiros governos comportava-se como moderado, mantinha a abordagem de que a situação era complexa e era preciso ouvir todas as partes. Mas quando Vítor Alves disse que era preciso fazer um programa de Governo, e que cada ministro apresentasse o seu plano, só dois o fizeram: Vitorino Magalhães Godinho, ministro da Educação, e Salgado Zenha, ministro da Justiça, que, aliás, propõe o ombudsman, que daria o provedor de Justiça, uma das poucas medidas que tiveram o aplauso quase unânime do Governo.
O que leva ao fim do II Governo Provisório?
Teve uma duração curta. A grande tensão era entre a coordenadora do MFA e Spínola, a propósito do programa do MFA. Para usar a linguagem actual, o “tema fracturante” era a descolonização. (...)
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Quando é que percebe que Vasco Gonçalves se aproximou do PCP e MDP/CDE?
Tive uma experiência logo no começo do III Governo Provisório. Vasco Gonçalves foi ao Porto, a 5 de Outubro de 1974. Ele veio de Lisboa de carro e fui esperá-lo no limite do distrito, dadas as minhas origens do Porto. Acompanhei-o à Câmara Municipal do Porto, onde assisti ao discurso que Vasco Gonçalves fez da varanda, já muito inflamado e radical. E, pela primeira vez, fala da via socializante. Portanto, diria que a partir desse dia, 5 de Outubro, passou a ser claro para mim a mudança operada no primeiro-ministro.
A rápida transformação surpreendeu-o?
Aliás, essa percepção acentuou-se quando depois do almoço, no quartel-general — em que, coincidência das coincidências, o único civil era eu —, apareceu como protagonista o major Corvacho, da ala comunista, apesar do comandante da região militar ser o comandante Passos Esmeriz. Enquanto eu fiquei à conversa com os militares, na situação típica dos quartéis de beberem uns uísques depois do almoço, Vasco Gonçalves foi dormir uma sesta.
E depois?
Regressámos a Lisboa. Na viagem, feita num avião militar, já a caminho do aeroporto, Vasco Gonçalves começa a defender que é preciso mandar prender os correspondentes da imprensa estrangeira que estão a difundir notícias falsas sobre a situação do país. E eu passei a viagem a dizer: “Senhor primeiro-ministro, não faça isso porque isso vai levar ao nosso isolamento.” Felizmente, consegui fazer vingar algum bom senso e não mandou prender ninguém.
Como é que interpretou a mudança de padrão na actuação do primeiro-ministro?
Só conto isto: a meio da viagem, mandou dizer aos pilotos que já não queria aterrar na Portela, que fôssemos aterrar noutro sítio. E ainda que lhe explicassem que havia uma programação de voo para o Aeroporto da Portela, insistiu. E acabámos por ir aterrar à Granja do Marquês, em Sintra, onde não havia carros à nossa espera, pois os motoristas estavam estacionados na Portela.
Reportou a algum ministro que a intenção de Vasco Gonçalves era prender os jornalistas internacionais?
Falei com Mário Soares e Salgado Zenha, mas estavam preocupados com outras coisas e não deram importância. O dia seguinte [6/10/74] foi o dia “do salário para a nação” proposto por Costa Martins. E lembro-me de ir a Alcochete, onde ficavam as secas do bacalhau, fazer um discurso, porque um dos problemas que se começavam a sentir e que me preocupavam, por causa do Natal, era a escassez de bacalhau porque os pescadores deixaram de pescar.
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Os ministros trabalhavam em cima do joelho?
No II Governo, tive de fazer à pressa a Lei da Caça, pois os caçadores já estavam no terreno e recebi a ajuda de Gonçalo Ribeiro Teles, subsecretário de Estado do Ambiente. Como o Presidente da República estava de férias no Buçaco, um dos chefes de gabinete foi lá levar-lhe o documento para ele assinar. Isto foi antes do dia 26 de Setembro, quando há a tentativa do Spínola de apelar a uma manifestação da “maioria silenciosa” [iniciativa de apoio ao Presidente da República] e o Governo cai a 30 de Setembro. E o general Spínola é afastado.
Quando é que se inicia a discussão sobre o novo modelo económico?
Começou no II Governo Provisório, mas ainda conduzida por Vítor Alves, numa altura em que a situação já era de grandes dificuldades. Mas só no III Governo Provisório, a 18 de Outubro, é que o Governo decide elaborar um plano económico de emergência, cuja coordenação é entregue a Melo Antunes.
Como é que Vasco Gonçalves aceita delegar em Melo Antunes a definição do plano económico do seu Governo?
A contragosto, em linha com as posições que ia tomando. Mas nem o PCP se pronunciou, porque havia a sensação de que era preciso atacar os problemas económicos. E Melo Antunes foi um óptimo coordenador, escreveu muitos textos no documento. Toda a introdução é da sua pena e, referindo-se ao ambiente reivindicativo, Melo Antunes escreveu uma frase que nunca esqueci: “A ultra-impaciência é contra-revolucionária.
A 13 de Dezembro de 1974 os ministros mais moderados percebem que o processo se vai radicalizar?
Foi outro momento de viragem, que veio confirmar o que já tinha percebido a 5 de Outubro. Na madrugada de 13 de Dezembro, por volta da 1h, somos chamados ao gabinete de Vasco Gonçalves, eu [Economia], Salgado Zenha [Justiça] e Silva Lopes [Finanças]. O primeiro-ministro comunica-nos que iam ser presos os “sabotadores da economia”. E quem eram? O presidente Jorge Brito e administradores do BIP e os irmãos Silva [Agostinho e José], da Torralta.
O que responderam?
Há a célebre frase de Zenha: “Se o senhor primeiro-ministro respeitar os prazos da prisão preventiva, não valia a pena ter-nos acordado...” Silva Lopes diz que “há muito piores do que esses”. E fala num “senhor Morais”. E acaba por ser preso um outro “senhor Morais”, da Sociedade Financeira Portuguesa. De madrugada, já o MDP/CDE [Movimento Democrático Português/Comissão Democrática Eleitoral] distribuía na rua panfletos com três datas: “25 de Abril – 28 de Setembro – 13 de Dezembro. A Revolução Avança”.
Recorda o que se passou no Conselho de Ministros seguinte?
O primeiro-ministro foi interpelado sobre a razão pela qual o MDP, antes das prisões, já ter posto a circular o panfleto. E Vasco Gonçalves acaba a reconhecer que houve uma fuga do seu gabinete. Nesse Conselho de Ministros, há uma frase de Álvaro Cunhal de que não me esqueço. Quando se discutem as prisões, ele olhou para o Zenha, para o Mário Soares e para mim e disse: “Se estas prisões desagradam a alguns, agradam a muitos.” E os “muitos” era ele e os seus. Foi aí que, para mim, a máscara de moderado de Vasco Gonçalves caiu completamente.
O “Plano Melo Antunes” teria evitado as divisões que culminaram nas prisões de empresários e banqueiros, nas nacionalizações, no PREC?
O plano ficou pronto no final de 1974. E o Presidente Costa Gomes, na mensagem de Ano Novo, anunciou-o com a perspectiva de que o Conselho de Ministros o aprovasse no início de Janeiro.
E antes de começar a discussão fragmentária sobre a unicidade sindical?
Sim. O MFA, depois de reunido, veio declarar-se “por unanimidade” favorável à unicidade sindical, só que depois veio a saber-se que tinha havido votos contra. E quando a solução foi votado pelo Governo no final de Janeiro, houve também votos contra e abstenções. Quer Álvaro Cunhal, quer os ministros militares — pois o MFA declarara-se por unanimidade favorável — votaram a favor. Eu, Maria de Lurdes Pintasilgo e Almeida Santos abstivemo-nos, dizendo que não havia condições para uma decisão. Já Mário Soares e Salgado Zenha votaram contra e comunicaram que a continuidade do PS no Governo ia ser equacionada.
Todo o mês de Janeiro é ocupado a discutir a unicidade sindical. O tema surgiu para esvaziar a discussão em torno do “plano Melo Antunes”?
Foi um atraso que muito prejudicou o sucesso do plano. (...)
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Ainda assim, o Governo aprova-o a 7 de Fevereiro. Como votou Vasco Gonçalves?
Não votava, não houve votos contra. O único ministro que teve um elogio para o documento foi Salgado Zenha — de resto, ninguém se manifestou. Tanto que no preâmbulo Melo Antunes escreveu: “Obra colectiva do Governo provisório.”
E o documento é apresentado a 21 de Fevereiro?
No Palácio Foz, quando já decorrem as ocupações de empresas e de terras. E na apresentação estão jornalistas estrangeiros que nos questionam se achávamos que, sendo o documento moderado, era compatível com o que se passava no terreno. O plano tinha 70 medidas urgentes e começo a trabalhar nelas, mas já não havia condições. Em Fevereiro ainda vou à Noruega negociar vários apoios e quando ocorre o [golpe de] 11 de Março, participo no Conselho de Ministros e vou ao Palácio das Necessidades assinar um acordo de comércio com a Suécia.
O 11 de Março e as nacionalizações enterram de vez o “plano Melo Antunes”...
É verdade. Depois foi criado o Conselho da Revolução e decretadas as nacionalizações. E, no IV Governo, Melo Antunes assume a pasta dos Negócios Estrangeiros. E quem passa a comandar a Economia? Mário Murteira, que vinha do tempo de Marcello Caetano, dos católicos, e acabou numa vertigem revolucionária. Eu saio a seguir ao 11 de Março e só regresso em 1976, no I Governo Constitucional.
Nessa altura visitam Portugal muitos dirigentes europeus...
Convidei Pierre Mendès France [ex-primeiro-ministro francês] e Christopher Soames, vice-presidente da CEE, e vieram ambos em Fevereiro de 1975. Soames fala com Costa Gomes e com Vasco Gonçalves — assisti às duas conversas. Com o Presidente da República houve cordialidade, mas com Vasco Gonçalves nem tanto, porque o primeiro-ministro falava em “capitalismo selvagem” e dizia que não queria que Portugal fosse explorado pelas multinacionais.
Ficou atrapalhado?
Estava habituado, não era novidade. Já depois da reunião o Soames comentou: “Vocês precisam de muita coragem...”
Vasco Gonçalves e outros oficiais vieram apelar ao voto em branco nas primeiras eleições democráticas (25 de Abril de 1975), por faltar aos portugueses "consciência plena do que iam fazer.” O Governo debateu o tema?
Álvaro Cunhal defendia que na Assembleia Constituinte devia estar o MFA. Mas há uma declaração curiosa de Otelo [Saraiva de Carvalho, o comandante do Copcon] a defender que o MFA não deve estar na Constituinte, apesar de a corrente que ele representava o defender. Ele era assim… Mas, no fundo, foi importante tê-lo dito.
Para si, quais são os protagonistas que permitiram que o projecto de democratização do país acabasse por vingar?
As duas pessoas que garantiram que as eleições de 25 de Abril de 1975 se realizassem: o Presidente Costa Gomes e o tenente-coronel Costa Braz. Costa Gomes marcou-as e assegurou que se realizavam, apesar de muito pressionado pelas correntes antieleições, cujos chefes de fila eram Álvaro Cunhal e Vasco Gonçalves. E teve o bom senso de as adiar para 25 de Abril, por causa do 11 de Março. Como ministro da Administração Interna, Costa Braz fez o recenseamento oficioso, ao contrário do que queria Cunhal, que defendia o recenseamento voluntário. Ambos, Costa Gomes e Costa Braz, foram fundamentais para que houvesse eleições com a garantia de serem livres.
Público