Showing posts with label ciência. Show all posts
Showing posts with label ciência. Show all posts

December 08, 2024

Se a Europa não investe na ciência fundamental fica -ainda- mais para trás do que já está

 


Maria Leptin: em ciência, “quem investe mais, ganha mais” e a Europa ficou para trás

A presidente do Conselho Europeu de Investigação avisa que é necessário mais dinheiro para a ciência. Maria Leptin defende que a Europa não precisa de ser líder, mas tem de voltar ao grupo da frente.

Tiago Ramalho


O tom de Maria Leptin é optimista, apesar dos desafios que a ciência europeia tem pela frente. A presidente do Conselho Europeu de Investigação (ERC, na sigla em inglês) quer mitigar a distância da Europa para o grupo da frente – onde estão China e Estados Unidos. A ciência europeia ficou para trás e agora a tarefa é mais difícil do que parece.

Entre as principais reivindicações, inclusive da presidente desta casa das bolsas milionárias que financiam quase mil projectos de ciência fundamental todos os anos, está a duplicação do financiamento do ERC e do próximo programa europeu para a ciência. Precisamente para que a Europa deixe de ser uma figura de segunda linha. “Por exemplo, das empresas de inteligência artificial, quantas estão na Europa? Praticamente nenhuma”, exemplifica Maria Leptin

O programa Horizonte Europa (destinado ao período 2021-2027) já vai a mais de meio e os 95 mil milhões de euros atribuídos ao actual programa-quadro parecem insuficientes. No novo programa de financiamento (o FP10), pretende-se o dobro do orçamento: cerca de 200 mil milhões de euros para o período 2028-2034. Esta duplicação tem sido defendida pelos relatórios sobre o futuro europeu publicados pelo antigo presidente do Banco Central Europeu Mario Draghi (sobre competitividade) e pelo ex-ministro da Ciência português Manuel Heitor (sobre o futuro da ciência). Ou mesmo o relatório de Enrico Letta, do antigo primeiro-ministro italiano, que defendeu a criação da quinta liberdade do mercado único europeu: a investigação e inovação, para que a aplicação da ciência seja mais transversal a toda a União Europeia (UE).

No entanto, esta ambição de duplicação do orçamento para a investigação poderá sair gorada, sobretudo atendendo ao foco mais premente na despesa militar e de defesa, por exemplo. A duplicação do orçamento atribuído ao ERC – actualmente de cerca de 16 mil milhões – poderá ser mais fácil, dado que o salto é menor. Ainda assim, as respostas só chegarão em meados de 2025, quando for submetida a proposta legislativa para o FP10.

De passagem por Portugal para o primeiro evento ERC-Portugal, organizado na última semana pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), o optimismo de Maria Leptin sobre as verbas para o ERC contrastam com a sua preocupação face ao parco investimento dos governos nacionais.

Defendeu a duplicação do orçamento do ERC e do FP10. Ainda considera isto possível?
Porque não seria possível? Não é como se o ERC recebesse uma grande parte do orçamento global da UE. Algumas pessoas defenderam a duplicação de todo o orçamento da UE, a pensar na necessidade de a Europa crescer em conjunto e de fazer mais – se todo o orçamento da UE fosse duplicado, já seria muito dinheiro.

Tenho defendido ambas as coisas, duplicando o orçamento global do programa-quadro de investigação e inovação da UE – é uma quantia razoável de dinheiro. Ou duplicar apenas o orçamento do ERC, e não é muito. Acho que é claro que é possível, só é preciso vontade política para o fazer.

Vivemos um período em que muitos países têm feito cortes na ciência, como os Países Baixos, a França ou mesmo Portugal. Não vê isso como uma tendência?
O momento actual é difícil. E é claro que temos novos desafios. Para alguns países é a guerra, para outros é a energia. Não é um momento fácil, mas o que tento realçar, tal como fizeram outras pessoas, como Mario Draghi e Manuel Heitor, nos seus recentes relatórios, é que, numa altura em que enfrentamos desafios e problemas, reduzir o nosso potencial para encontrar novas soluções para estes problemas não é muito sensato. E novas soluções exigem novos conhecimentos. Adivinhe de onde vêm esses novos conhecimentos: da investigação fundamental. Simplesmente, não é um passo inteligente fazê-lo.

Compreendo perfeitamente a necessidade e o interesse dos países em gastar dinheiro na resolução de problemas mais próximos, mas também temos de pensar nos problemas que ainda não conhecemos e que nos atingirão dentro de dez anos. A melhor forma de nos prepararmos para um futuro incerto é dar aos nossos melhores investigadores a liberdade de seguirem a sua curiosidade científica e desbravarem novos caminhos.

Vê essa vontade política de que falava?
Sim, acho que sim. A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, afirmou que o orçamento para a investigação fundamental precisa de ser duplicado e que o ERC precisa de ser reforçado

Mas vivemos numa democracia e numa democracia as pessoas têm opiniões diferentes – e isso é normal. Ou seja, nem todos terão exactamente o que querem, terá de haver um compromisso. Espero que os convincentes argumentos apresentados nos relatórios de Mario Draghi e de Manuel Heitor sejam ouvidos e compreendidos.

Não é como se nós, cientistas, quiséssemos mais dinheiro no bolso. De todo. Todos queremos ter mais dinheiro no bolso, mas esta é uma visão externa de pessoas [Mario Draghi e Manuel Heitor] que reconhecem que a investigação é a base para a riqueza, no sentido mais lato do termo.

Em discursos e entrevistas tem mencionado que a falta de financiamento é o motivo para a ciência europeia estar a ficar para trás, sobretudo na comparação com os nossos maiores concorrentes – China e Estados Unidos.
Em grandes temas políticos como este, é muito difícil saber se há uma relação de causa e efeito. No entanto, as correlações são notórias. Os Estados Unidos gastam cerca de 700 mil milhões de euros [em investigação], a China gasta 600 mil milhões de euros e a Europa gasta agora 400 mil milhões de euros.

E depois podemos ver o mesmo nas publicações científicas altamente citadas, que têm um peso importante na ciência. No caso dos Estados Unidos, podemos argumentar que sempre foi assim e que existe um cultura de longa data no financiamento da ciência. No caso da China, não é assim.

Há dez anos, a China estava extraordinariamente atrasada. Há 20 anos, praticamente não tinha peso, excepto em alguns campos de investigação onde eram fortes. Agora são relevantes em todos os campos emergentes porque investiram imenso dinheiro. E, na verdade, nós nem precisamos de ir tão longe como a China.

Existe pelo menos uma correlação muito, muito forte, que provavelmente até é uma relação de causa e efeito: quem investe mais, ganha mais.


E como vê a relação da Europa com estes países?
Ao nível dos cientistas é muito boa e espero que continue assim. Muitos dos nossos estudantes vão para os Estados Unidos, agora as idas para a China também estão a aumentar. Constroem-se relações em que ambos os lados confiam na relação – e é muito importante nutrir estas relações.

Consigo compreender perfeitamente a preocupação relativamente aos países que estão envolvidos em acções hostis e que, por exemplo, roubam a nossa propriedade intelectual. Sabemos que isso já aconteceu, seria ingénuo não olhar para isso.

Mas isso não acontece a todos os níveis e, portanto, afectar todas as áreas seria errado e imprudente. Especialmente tendo em consideração que, em algumas das tecnologias verdadeiramente de ponta, estes países estão à nossa frente. Perdemos mais se não cooperarmos.

O atraso da ciência europeia é só uma questão de investimento?
Agora está a perguntar sobre a inovação. Não sou eu que o digo: os relatórios que citei comentaram isso [a necessidade de promover a inovação na Europa]. Noutros contextos, por exemplo, Jean Tirole, economista vencedor do Nobel, também comentou o mesmo.

Muitas vezes as pessoas gostam de culpar os cientistas por não terem um espírito suficientemente empreendedor. Não é isso que vejo entre os nossos cientistas. Há muitos que adoram inventar coisas e aplicá-las para servir a humanidade. Portanto, essa é uma das acusações geralmente feitas.

Outra é que as universidades não fazem o suficiente para apoiar a transferência [da academia para a sociedade] e para colmatar o fosso entre a ciência e o mercado. Talvez essa seja uma componente importante, mas o que é perfeitamente claro nas pessoas que referi anteriormente (Mario Draghi, Enrico Letta, Manuel Heitor ou Jean Tirole) é a fragmentação da Europa.

Por exemplo, alguém inventou algo em Barcelona, como ​uma prova de conceito [uma demonstração inicial de um produto ou tecnologia] que vai para o mercado e tem todas as licenças. Agora querem encontrar um investidor que os ajude a abrir uma empresa para vender isso. Têm azar. O mercado para eles é Espanha, enquanto outro colega faz o mesmo nos Estados Unidos e o mercado são todos os Estados Unidos. E são também as grandes empresas, como as farmacêuticas: transferir [produtos e tecnologia] entre países é difícil.

É a isto que também devemos prestar atenção. Os governos nacionais têm de colocar o parque europeu comum à frente do seu próprio parque nacional nesta matéria.

Há uma meta, proposta pela Comissão Europeia, para que todos os Estados-membros atinjam os 3% do PIB investido em ciência até 2030. Será ainda possível atingi-la nestes cinco anos restantes?

Se me estiver a perguntar se é possível atingir os 3% em média [da EU], talvez possa ser um pouco optimista. Se me perguntar se cada país atingirá esta meta… Costuma-se dizer que o comportamento passado é a melhor previsão do comportamento futuro. E parece-me que alguns países não percebem o sentido de investir seriamente em ciência e inovação.

Não consigo compreender como não. Não consigo compreender como é que os governos não vêem que o processo tecnológico é absolutamente fulcral para a riqueza e a prosperidade. E este processo tecnológico depende do conhecimento técnico. Para isso é necessária formação e investigação dentro do seu próprio país. Mas parece que nem todos partilham esta perspectiva. E se não o fazem, provavelmente não investem.

Vejo ministros de muitos países a tentar convencer os seus governos e, por isso, normalmente os ministros da investigação concordam. Mas talvez tenham de lutar contra outros ministros [pelo financiamento].

A ciência não é um tema sexy para vender aos eleitores.
Como cientista, isso é difícil para mim entender isso.

A falta de políticas públicas baseadas em ciência tem sido estudada. Ainda há trabalho a fazer neste campo?
Há sempre mais trabalho a fazer. A certos níveis, penso que [a ciência] é ouvida. Por vezes, a ideologia está em primeiro lugar e a contribuição científica passa para segundo plano. Mas, em geral, tenho confiança de que a ciência é ouvida a nível político.

Também relaciona o facto de a ciência ser ouvida a nível político com a confiança que se tem na ciência? Houve um pico durante a covid-19, mas essa confiança tem caído.
Os cientistas ainda estão entre os profissionais em quem as pessoas mais confiam, ​​se atentar nos relatórios anuais [como os barómetros da UE].

O facto de as pessoas estarem tão disponíveis para ouvir as ditas “verdades” não científicas que não se baseiam em factos é preocupante. Embora seja compreensível, porque torna-se muito mais complicado pensar através de factos científicos.

Os cientistas, se forem bons, não dizem “esta é a verdade”. Dizem “tanto quanto sabemos” ou “isto é o que sabemos hoje”. O que significa que o amanhã pode parecer diferente. Mas isto é mais difícil de compreender para as pessoas do que uma verdade absoluta. Os cientistas têm de trabalhar arduamente para convencer o maior número de pessoas possível a entender como funciona o método científico.

Falou da necessidade de aumentar o investimento em ciência. Por que razão deve a Europa ser líder na ciência?
Não creio que seja esse o cerne da questão. Não se trata de ser líder em ciência, mas sim de estar na zona da frente quanto aos investigadores e à capacidade de trabalhar com a ciência que se desenvolve. Por exemplo, das empresas de inteligência artificial, quantas estão na Europa? Praticamente nenhuma.

Precisamos de dinheiro para lidar com os problemas que enfrentamos e que a nossa sociedade enfrenta. Os países precisam de riqueza e já dissemos centenas de vezes de onde ela surge: da investigação.

Podemos olhar para o ERC. Só financiamos investigação fundamental motivada pela curiosidade e isso tem realmente valido a pena. O trabalho dos bolseiros do ERC conduziu a inúmeras descobertas, muitas patentes e startups, e até a 14 Prémios Nobel durante estes primeiros 17 anos de existência.

Não se trata apenas de fazer descobertas, mas também de formar os recursos humanos que serão capazes de lidar com os desafios que vamos enfrentar no próximo ano, na próxima década e no próximo século. Não se trata de liderar a ciência, mas sim de estar na dianteira e não ficar para trás – e esta é uma enorme diferença.

Público

November 04, 2024

Arthur C. Clarke: "Qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia"

 

Esse dia chegou.


Sai um filete de peixe da impressora

Uma equipa de investigadores do IST está a criar filetes de robalo em laboratório, usando bioimpressão 3D e células estaminais, num processo pioneiro e sustentável, uma alternativa ecológica ao peixe convencional.

August 18, 2024

Heinz Wismann : "À la manière d'Ulysse, il est de bon de quitter sa langue pour mieux y revenir"

 

Historiador franco-alemão, filólogo e helenista, Heinz Wismann é um pensador que encarna o espírito europeu. 



Segunda parte da masterclass: leitura e comentário de um extrato

Facto e sentido. O papel da linguagem na experiência de um mundo partilhado.

"Todas as línguas naturais têm a dupla dimensão do dizer e do querer dizer. Com efeito, se o discurso nasce da necessidade de objetivar a nossa relação com a realidade, a sua função denotativa é complicada por uma sobredeterminação conotativa, que reflecte o ponto de vista do locutor. 
Isto explica por que razão a maior parte das palavras que utilizamos para designar factos são inicialmente metáforas que lhes conferem um significado subjetivo e objetivo. Para evitar esta ambivalência, que alimenta a imaginação poética, a filosofia começou a desenvolver uma linguagem conceptual destinada a garantir a coerência lógica da sua argumentação. 
As ciências seguiram o mesmo caminho, desenvolvendo terminologias ad hoc capazes de formalizar os seus enunciados fundamentais para evitar qualquer risco de equívoco. Este processo culmina nas ciências naturais, que adoptaram uma ferramenta semântica emprestada da matemática pura. 
O resultado é uma situação problemática, caracterizada pelo divórcio entre o discurso da ciência e o discurso sobre a ciência.
Enquanto a primeira é utilizada no interior de campos disciplinares, dando prioridade à sua relevância interna, a segunda faz parte do horizonte mais vasto de uma linha de raciocínio que tematiza o conhecimento enquanto tal. 
Quando uma determinada ciência pretende dar respostas que se aplicam a todas as questões científicas, torna-se cientismo; e quando a epistemologia geral ignora a diversidade da investigação actual, torna-se ideologia. 
Para contrariar estas derivas simétricas e preservar a ideia de uma partilha efectiva de conhecimentos, é necessário repensar o destino das línguas à luz da experiência da tradução".

Heinz Wismann, Ler nas entrelinhas. Nas pegadas do espírito europeu (Albin Michel, 2024)


January 14, 2024

T cell in action

 

Comecei a tomar uma vacina daquelas feitas à medida, para robustecer o meu sistema imunitário em geral. Agora imagino um exército de soldados amarelos e azuis a multiplicarem-se-me no corpo contra todas as células ofensivas.


September 01, 2023

David Hume e Einstein




Contei esta história no blog original, do sapo, em 2019


A teoria da relatividade de Einstein foi inspirada em David Hume

Uma carta descoberta na Universidade of Edinburgh mostra que Einstein estudou o Tratado da Natureza Humana de Hume mesmo antes de propôr a relatividade restrita em 1905.

Foi Hume quem primeiro questionou se o espaço e o tempo seriam fixos e independentes um do outro e sugeriu a necessidade de mais investigação científica sobre o o assunto.

No Tratado da Natureza Humana publicado em 1738 Hume escreveu, 'A principal objecção contra o raciocínio abstracto deriva das ideias de Espaço e de Tempo. As ideias no quotidiano podem parecer claras e inteligíveis mas quando se sujeitam ao escrutínio das Ciências profundas... aparecem cheias de absurdo e contradição."

Na carta que escreveu ao Professor de física em Viena, Moritz Schlick, em Dezembro de 1915, Einstein admite ter-se inspirado em Hume para a teoria da relatividade geral.

“Viu correctamente que esta linha de pensamento teve grande influência nos meus esforços e, de facto, Ernst Mach e mais ainda Hume, cujo Tratado estudei com entusiasmo e admiração pouco antes de encontrar a teoria da relatividade." E continua, "sem estes estudos filosóficos é muito possível que não tivesse chegado à solução."

Esta nova carta foi descoberta pelo Professor David Purdie no Institute of Advanced Studies da Universidade de Edinburgh.


Quando andava pelos vinte e tal anos Einstein trabalhou como funcionário no escritório federal suíço de patentes, em Berna, ao mesmo tempo que desenvolvia as suas teorias da relatividade. Fazia parte do grupo chamado, A Academia Olímpica, que reunia semanalmente para discutir física e filosofia. Foi aí que conheceu o Tratado da Natureza Humana de David Hume.

A obra é considerada uma das mais importantes obras filosóficas alguma vez publicadas e a primeira a questionar seriamente Deus e o lugar do ser humano no mundo, muito antes de Darwin.

Sarah Knapton, in Albert Einstein's Theory of Relativity was inspired by Scottish philosopher


Para quem o quiser ler em português, 
https://pt.scribd.com/document/139428890/Tratado-da-natureza-humana-Hume-pdf#

Para quem quiser ler um resumo em edição bilíngue, https://marcosfabionuva.files.wordpress.com/2011/08/resumo-de-um-tratado-da-natureza-humana.pdf

Para quem o quiser ler no original, A Treatise of Human Nature

A filosofia e a ciência andam de mãos dadas





A filosofia e a ciência andam de mãos dadas


A semana passada [há 4 anos] foi revelado que David Purdie, da Universidade de Edimburgo, tinha descoberto uma carta de Albert Einstein em que o grande cientista refere a importância do filósofo escocês do século XVIII David Hume no desenvolvimento da sua teoria da relatividade especial.

Sem ter lido o Tratado da Natureza Humana de Hume, Einstein escreveu: "Não posso dizer que a solução teria surgido". De facto, há muito que os historiadores sabem da dívida de Einstein para com Hume e sabem dessa carta. 

Sabiam também da influência de muitos outros filósofos sobre Einstein, de Ernst Mach a Arthur Schopenhauer. Parte do que muitos consideram intrigante nesta história é a ideia de que as teorias científicas devem ser moldadas por ideias filosóficas. Tornou-se comum os cientistas rejeitarem a filosofia como irrelevante para o seu trabalho. As "ideias dos filósofos", sugere o físico e prémio Nobel Steven Weinberg, são "obscuras e inconsequentes quando comparadas com os sucessos deslumbrantes da física e da matemática".

A ironia é que, ao rejeitarem o valor da filosofia, estão a fazer uma afirmação filosófica. Estão a tomar uma posição filosófica sobre a forma como a ciência deve ser feita. A ciência não é apenas a acumulação de dados empíricos. Tem também a ver com as questões que colocamos, os métodos que empregamos para responder a essas questões, os quadros conceptuais em que enquadramos os factos.

Quer se trate do espaço-tempo ou da natureza humana, é inevitável que os cientistas tenham de pensar filosoficamente, para além de empiricamente.

A filosofia, observou o físico Carlo Rovelli, traz para a ciência "a análise concetual, a atenção à ambiguidade, a precisão de expressão, a capacidade de detetar lacunas nos argumentos padrão, de conceber perspectivas radicalmente novas, de detetar pontos fracos conceptuais e de procurar explicações conceptuais alternativas".

Ou, como disse Einstein, o pensamento filosófico faz a "distinção entre um mero artesão ou especialista e um verdadeiro investigador da verdade".

Kenan Malik 

August 26, 2023

Radioactividade

 

Marie Curie morreu de anemia aplástica em 1934, aos 66 anos, após anos de exposição à radiação exigida pelo seu trabalho. Alguns dos seus cadernos de apontamentos ainda são tão radioactivos (e sê-lo-ão durante mais 1500 anos) que estão guardados em caixas de chumbo até hoje.



O futuro é o passado?

 




May 16, 2023

Quando se vai para a política com uma visão e uma ideia de serviço público

 


Homenagem a José Mariano Gago nos seus 75 anos

Esta é a nota introdutória ao Manifesto para a Ciência em Portugal, que José Mariano Gago publicou em 1990 e que a editora Gradiva reedita agora.

Mário Pimenta


Foto
José Mariano Gago (à direita) e Peter Sonderegger na exposição De Que São Feitas as Coisas?, em 1981DR

A 16 de Maio de 2023, o José Mariano Gago faria 75 anos. Passaram já oito anos desde a sua morte, e 33 desde a publicação do seu Manifesto para a Ciência em Portugal. Contudo, o seu pensamento e acção continuam a ser de extrema actualidade: não há desenvolvimento científico sustentado numa sociedade sem cultura científica, ou que confunda ciência e tecnologia, reduzindo a primeira a um instrumento da segunda, ouvi lhe muitas vezes. Mais do que uma homenagem, a presente reedição do Manifesto para a Ciência em Portugal é o nosso contributo para que cada um, na construção da sua visão própria, possa a ele ter acesso.

Conheci o José Mariano graças a um cartaz pequeno, escrito à mão, afixado à entrada do pavilhão central do IST — Instituto Superior Técnico em 1978. O cartaz anunciava um “curso livre de Física de Partículas”. O José Mariano tinha regressado havia pouco tempo a Portugal e ao IST, de onde tinha partido no início dos anos 70, como bolseiro do IAC — Instituto de Alta Cultura, para fazer um doutoramento em Paris e, depois, trabalhar no CERN — Organização Europeia para a Investigação Nuclear. Tinha saído “a salto”, com mandado de captura emitido pela PIDE, mas mantendo a bolsa, em boa parte graças a Abreu Faro, professor do Técnico e presidente do IAC.

Durante quase dois anos, o curso teve lugar todas as semanas. A ênfase na experiência rigorosa como método e na teoria como modelo de um Universo que se pretende conhecer contrastava com o modo como se ensinava no IST e em Portugal.

Em poucos anos, o José Mariano operou uma revolução no Departamento de Física: no corpo docente, com a entrada de professores que tinham feito o doutoramento fora de Portugal e de muitos jovens assistentes, sedentos de iniciar uma carreira de investigação; no ensino da física experimental, introduzindo pequenos projectos baseados em artigos publicados em revistas internacionais de ensino, que implicavam a montagem de dispositivos experimentais, com a produção de pequenas peças e o empréstimo ou compra de equipamentos e objectos diversos, sempre com orçamentos reduzidos e muita imaginação.

No Verão de 1981, o José Mariano Gago e a Conceição Abreu organizaram, com o apoio do CERN e de outros professores e estudantes, a exposição De Que São Feitas as Coisas?. Era uma exposição de ciência para o grande público, que interpelava directamente as pessoas: dê a volta à manivela, faça girar o velho e lindo gerador que estava há muitos anos no armário e acenda a lâmpada eléctrica; traga o seu anel e logo se diz se é de ouro, prata ou pechisbeque. O impacto foi grande — nas pessoas, que afluíram noite dentro, e nos media, que lhe chegaram a dar destaque de primeira página.

Pela primeira vez senti que, em Portugal, a ideia de desenvolvimento científico estava, mesmo no imaginário das pessoas que pouca instrução tinham, associada à de progresso pessoal e nacional. Essa “aliança” foi acarinhada e fortalecida pelo José Mariano ao longo de toda a sua vida científica e política. Ainda hoje, apesar dos tempos que se têm vivido, é factor maior de sustentação da ciência em Portugal
.

Foto
José Mariano Gago em 1985 (Mário Pimenta é o primeiro do lado esquerdo na imagem) DR

Associada à exposição, realizou se em Lisboa a grande Conferência Europeia de Física das Altas Energias. Estiveram presentes dois prémios Nobel de Física, Richard Feynman e Abdus Salam, algo inédito em Portugal. O INIC — Instituto Nacional de Investigação Científica assinou com o CERN um protocolo, mediado pelo José Mariano, que garantia o financiamento equivalente a um investigador por ano no CERN. Hoje parece pouco, muito pouco, mas na altura esses 12 meses, parcimoniosamente divididos, permitiram dar início a uma presença regular de estudantes e investigadores portugueses, físicos experimentais e teóricos, no CERN. Contou-se ainda com o apoio da embaixada Francesa e da École Polytechnique de Paris, onde o José Mariano tinha deixado inúmeros amigos.

Peter Sonderegger acolheu os primeiros estudantes portugueses no CERN. Eu próprio fiz o doutoramento a trabalhar directamente com o Peter, tendo o José Mariano Gago e o Jorge Dias de Deus como orientadores. Em finais de 1984, tudo acelerou. Surgiu uma oportunidade para Portugal aderir ao CERN e o José Mariano agarrou a com as duas mãos. O acordo de adesão foi assinado em 1985. O “Fundo CERN”, que ainda hoje assegura a participação dos grupos portugueses no CERN, foi instituído. O LIP — Laboratório de Instrumentação e Física Experimental de Partículas foi criado em Maio de 1986, por iniciativa do José Mariano, que nesse mesmo mês de Maio assumiu a presidência da JNICT — Junta de Investigação Científica e Tecnológica. A “pré-história” tinha acabado, a “História” ia começar..

April 06, 2023

Livros e Leituras - Kuhn

 

The Last Writings of Thomas S. Kuhn: Incommensurability in Science 
edited by Bojana Mladenović.
Chicago, 302 pp., £20, November 2022, 978 0 226 82274 7


Paradigmas à Solta

Steven Shapin

A tragédia da vida de Thomas Kuhn foi ter escrito um grande livro. Tinha quarenta anos quando a "Estrutura das Revoluções Científicas" foi publicada, em 1962 e depois passou o resto da sua vida angustiado com o seu próprio sucesso. Vendeu 1,7 milhões de exemplares e foi traduzido em 42 línguas. São raros os livros académicos que vendem esses números e menos ainda aqueles que, passados sessenta da sua publicação, continuam a ser vistos como o último grito. 

A obra cruza disciplinas. É lida por historiadores, sociólogos e filósofos cujo trabalho é pensar no que é a ciência e como muda e também por cientistas que têm um olhar reflexivo. É lida por teólogos que ponderam as diferenças e semelhanças entre ciência e religião e por antropólogos que consideram as características do pensamento 'ocidental' e 'não-ocidental'. 
O livro insinuou-se na linguagem quotidiana. Kuhn arrancou a palavra 'paradigma' da linguística - onde se referia à permutação de formas com uma raiz comum, como a conjugação de verbos ou a declinação de substantivos - e redireccionou-a como o termo para um recurso regulador, chave, na investigação científica, um modelo de 'o caminho certo a seguir'. 
Por fim, muitas coisas destinadas a serem consideradas como "inovadoras" e "boas" foram marcadas como "mudanças de paradigma": novas formas de produzir frangos criados em fábricas, a mais recente solução para as dificuldades colocadas pelo Brexit para acordos comerciais na Irlanda do Norte, o surgimento da cultura de chefes-cozinheiros celebridades. 
Uma banda desenhada nova-iorquina mostra vagabundos encostados a uma parede: 'Boas notícias - ouvi dizer que o paradigma está a mudar'. Uma outro tem dois homens, com as suas roupas a esvoaçar, especulando que deve ter havido uma 'mudança de paradigma'. Lê-se num autocolante: Shift Happens: Buddy Can You Paradigm?

Os 'últimos escritos' aqui recolhidos incluem os textos de várias conferências que Kuhn deu nos anos 80 e que circularam como textos samizdat entre os académicos próximos dele, mas o principal interesse do livro está nos esboços editados de cerca de dois terços da 'magnum opus' sobre a qual Kuhn vinha trabalhando há mais de dez anos quando morreu, em 1996, com o título provisório 'The Plurality of Worlds: An Evolutionary Theory of Scientific Development'. 
Não vou aqui comentar esses textos, mas sim descrever o significado do caminho de Kuhn desde o seu estudo na área da Física em Harvard nos anos 40, até à escrita de "Estrutura das Revoluções Científicas" e depois ao seu esforço ao longo da vida para gerir as explosões de entusiasmo e críticas que o livro desencadeou.

Uma teoria sobre mudanças científicas não é um assunto óbvio para gerar um bestseller americano, mas na época da sua publicação, pensar sobre a natureza da ciência estava na ordem do dia. 
Na Segunda Guerra Mundial o radar e a bomba atómica tinham instalado a ideia de que a ciência podia gerar a supremacia militar e o governo dos EUA derramava somas de dinheiro exorbitantes na investigação académica. 
A contínua mobilização da ciência na corrida ao armamento da Guerra Fria garantiu o lugar da física e de várias outras disciplinas a favor do Estado, mas a proximidade com o governo, os militares e a grande indústria deixou alguns sectores da intelectualidade desconfortáveis. 
Poderiam as virtudes da ciência (as mesmas que as da democracia: mente aberta, universal, contra a autoridade) florescer em espaços secretos, sendo a sua agenda controlada por forças externas e as suas crenças distorcidas pelo dogma? A comunidade científica americana estava muito empenhada em questões deste tipo e o tom era dado pelos físicos que tinham construído a Bomba H. 

Em 1961, o discurso de despedida de Eisenhower alertou para os perigos políticos colocados pelo "complexo militar-industrial" e para o potencial de corrupção da ciência se esta fosse feita a mando do Estado. Na primeira parte do século XX, nos países capitalistas, a ciência era considerada uma planta frágil, prosperando apenas no solo das sociedades abertas; no início dos anos 60, surgiram ansiedades acerca do papel da ciência no reforço da autoridade política e mesmo no estabelecimento de agendas autoritárias.

[Q: não estamos a pagar esta intromissão do Estado e da sua 'agenda' na ciência? Não vemos isso na desconfiança face às vacinas, às questões do ambiente e outras movimentações anti-científicas?]

Uma resposta a este novo estado de coisas era pensar e escrever sobre a ciência enquanto fenómeno cultural e social normal e não algo à parte das preocupações civis. Um fenómeno para ser descrito e interpretado de forma desinteressada, em vez de apenas criticado ou condenado. Assim, havia um terreno fértil para uma teoria geral da ciência escrita de forma cativante. 

A Estrutura das Revoluções Científicas tinha apenas de 172 páginas de texto, na sua maioria acessível aos leitores em geral, com aforismos inolvidáveis : uma notável fusão de virtude intelectual e literária. 
Kuhn considerou-o como pouco mais do que um "esboço altamente esquemático" de uma monografia muito mais longa e mais profissional que tinha em mente para o futuro. 
Originalmente, não foi concebido como um livro independente, tendo sido encomendado como uma entrada alargada na Enciclopédia Internacional da Ciência Unificada, editada por filósofos emigrados do Círculo de Viena. Mesmo assim, Kuhn antecipou um público exclusivamente académico, principalmente historiadores e filósofos da ciência. Por conseguinte, não estava preparado para o sucesso popular, não sabia lidar com isso, e não gostava.

Kuhn não tinha formação em filosofia, e a "Estrutura# referia-se ao trabalho apenas de alguns filósofos do século XX (Wittgenstein, Quine, Popper, Nelson Goodman, Norwood Russell Hanson). Porém, os filósofos reconheceram-na como um exercício pertencente à sua disciplina. 

A ciência era vista como a instanciação da racionalidade, objectividade, abertura de espírito e progressividade. Comparava metodicamente expectativas teóricas contra evidências observacionais e experimentais; purgava-se de preconceitos e expectativas anteriores; o seu conhecimento era cumulativo; a qualidade desse conhecimento era garantida por normas metodológicas explícitas partilhadas por toda a comunidade científica; os vários pedaços de ciência faziam parte de uma unidade fundamental de conceitos, de factos ou de métodos; chegava à verdade, ou pelo menos aproximava-se dela. 

A Estrutura das Revoluções Científicas negava todas estes pressupostos:
- As observações não podiam ser confrontadas com uma teoria específica, mas apenas com uma rede alargada de teorias, tornando problemáticas as noções de confirmação e de desconfirmação. 
- Os cientistas não tinham uma mente aberta. A sua formação encorajava o abraço daquilo a que Kuhn chamou 'dogma': 'uma educação rígida, provavelmente mais do que qualquer outra, excepto talvez na religião ortodoxa'. 

Se a descrição da "Estrutura" fosse aceite, as noções de ""progresso científico" e de "objectividade científica" poderiam parecer em parte redundantes". Podemos "ter de renunciar à noção" de que a mudança científica aproxima os cientistas "cada vez mais da verdade", escreveu Kuhn. O conhecimento científico não se acumula: passou de momentos de "ciência normal", uma espécie de resolução de puzzles, orientada por um paradigma, para períodos de "crise" e "revolução", até entrar outra vez em "ciência normal" governada por um novo paradigma. E os paradigmas (a mecânica aristotélica versus a clássica, digamos, ou astronomia geocêntrica versus heliocêntrica) eram 'incomensuráveis': não havia uma forma independente de os comparar; o abraço de um novo paradigma 'só pode ser feito com base na fé'.

O livro de Kuhn foi ao encontro das tendências revisionistas que então emergiram entre os historiadores da ciência. O novo pensamento era que não se podia descrever inteligentemente a ciência passada como uma ciência falhada; não se podia trazer "uma ciência mais antiga para a barra do juízo de uma ciência mais recente". Em casos cruciais de julgamento científico, "não há norma mais elevada do que o consentimento da comunidade relevante". 

De facto, a "Estrutura" desafiou implicitamente a noção de que existia algo como uma comunidade científica unificada; pelo contrário, havia muitas comunidades, cada uma delas organizada através do seu empenho em realizações específicas, métodos específicos e normas específicas de ajuste entre expectativa e evidência. 
A muito apreciada ideia de "unidade científica" também foi sacrificada: a ciência era uma "estrutura ramificada com pouca coerência entre as suas várias partes". Os filósofos da ciência há muito que aceitavam o seu papel na justificação da ciência, defendendo que o conhecimento científico era verdadeiro, objectivo, racional, fiável, progressivo, poderoso. Pois Kuhn argumentava que os filósofos tinham estado a apontar as suas investigações para alvos errados.

A "Estrutura" fez de Kuhn uma estrela de rock intelectual. Desde o momento em que o livro foi publicado até à sua morte, Kuhn não conseguiu libertar-se desses leitores todos. Todos queriam algo dele: saber o que ele realmente pensava; se aprovava a leitura que tinham feito do seu livro; se aceitava as críticas que lhe tinham feito; e, especialmente, o que viria a seguir. 

Alguns leitores Kuhn ignorou, outros desprezou e outros, passou o resto da sua carreira a tentar desesperadamente satisfazer-los. De um modo geral, os filósofos foram críticos, alguns de forma violenta. Tomaram o livro como um exemplo virulento de 'relativismo', 'construtivismo' ou 'subjectivismo'. 

Kuhn recordou que, logo após a publicação, grupos de filósofos tinham-se "reunido e dito que o livro deveria ser queimado". Os historiadores ficaram intrigados, mas poucos deles viam a teorização sobre "a natureza da ciência" como a sua área. Os sociólogos estavam eventualmente entre os entusiastas do livro, mas sobretudo um pequeno número de sociólogos epistemológicos na Grã-Bretanha; o corpo muito maior de sociólogos americanos levou mais tempo a apreciar o que se estava a passar. 
As ciências humanas estavam notavelmente ausentes do livro - quase todos os exemplos históricos foram extraídos da física, astronomia e química. No seu prefácio, Kuhn sugeriu que a inspiração para a ideia do paradigma/ciência normal lhe tinha chegado durante um ano passado no Stanford Centre for Advanced Study in the Behavioural Sciences, onde ficou espantado ao ver que os cientistas de ciências humanas discutiam sobre os fundamentos das suas próprias disciplinas, enquanto nas ciências físicas, em que tinha sido formado, parecia haver um grande consenso.

Onde os filósofos se opuseram à "Estrutura", Kuhn aceitou de um modo geral que eles tinham posto o dedo nas fraquezas ou ambiguidades genuínas. Talvez a natureza e o alcance das "revoluções" não tivessem sido suficientemente circunscritas. Talvez não tivesse insistido na 'racionalidade' residual da ciência. Talvez o sentido adequado dos 'paradigmas' não tivesse sido coerentemente especificado. 

Kuhn definiu paradigmas como "realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, proporcionam problemas de modelo e soluções para uma comunidade de profissionais", ou "exemplos partilhados de práticas bem sucedidas" que poderiam alcançar o tipo de consentimento colectivo que as regras formais não conseguiriam. 

Mas Kuhn apercebeu-se de que tinha convidado a possibilidade de estas serem mal concebidas como quadros perceptuais vinculativos. A "Estrutura" aborda o famoso problema da Gestalt da imagem do coelho-pato, no qual se pode ver apenas um dos animais de cada vez, implicando que cada um representa uma constelação diferente de crenças ou de quadros perceptuais. 
Kuhn tinha permitido que uma ajuda metafórica fosse tomada literalmente e mais tarde admitiu que tinha sido um "erro terrível". Respeitou os filósofos e ficou horrorizado ao descobrir que muitos deles o acusavam de ser um relativista, um irracionalista ou um negacionista da verdade - Kuhn era, como disse, "muito mais admirador dos meus críticos do que dos meus fãs".

Nas ciências sociais, havia uma tendência excitável para ler a "Estrutura" como um manual de como ter sucesso académico: "Uau, só precisamos de descobrir qual é o nosso paradigma e aplicá-lo", dizia-se, como se os paradigmas fossem teorias a serem tiradas da prateleira de um supermercado intelectual. 

Os cientistas não estavam, na sua maioria, incomodados com o livro - estavam demasiado ocupados a fazer ciência para teorizar sobre ela - embora uma leitura casual oferecesse um vocabulário útil para aqueles que queriam distinguir entre ciências 'maduras' e 'genuínas' (que tinham um paradigma) das pseudo-ciências (que não tinham). Na opinião de Kuhn, estas pessoas eram apenas idiotas. Mas o que o chocou mais profundamente foi o abraço do livro pelos radicais dos anos 60. 

Kuhn leccionava em Berkeley quando foi publicado e sabia ser provável que o livro fosse (mal) lido como um tratado anti-científico. Estava "certo de que parte da razão pela qual o livro atraía tanta atenção, particularmente entre as pessoas que tinham menos de trinta anos na década de 1960", era que "podia ser usado como um chicote para bater nas ciências". Ficou angustiado ao descobrir que na Universidade do Estado de São Francisco - que rivalizava com Berkeley pelo radicalismo - os dois grandes heróis intelectuais dos estudantes eram Herbert Marcuse e ele próprio. A ideia de 'ser um guru', disse ele, 'assustou-me'.

Os radicais do campus leram o livro de Kuhn como uma exposição brilhantemente subversiva. Tal como tinham suspeitado, a ciência não era a busca objectiva aberta da verdade, mas apenas mais um modo de autoritarismo. Os cientistas eram tão dogmáticos como qualquer outro e uma forma de ver o mundo era tão boa como outra. 
Se o critérios de juízo era o consenso da comunidade, por que haveria alguém de se curvar perante os pronunciamentos dos cientistas? 
Os estudantes radicais leram a "Estrutura" como uma revelação da irracionalidade na ciência - o que, disse Kuhn, "me deu cabo da cabeça". Kuhn foi acusado de ser mais um "corruptor filosófico da juventude". 

Kuhn desprezava os 'kuhnianos' politicamente radicais. Não via que houvesse algo de interesse ideológico na "Estrutura": descrevia revoluções mas, devidamente compreendido, era "um livro profundamente conservador". 
Os cientistas eram criaturas de tradição: o seu objectivo era conservar e alargar a tradição e não derrubá-la e a mudança revolucionária - quando ocorria - era o produto de impulsos conservadores que esbarravam contra provas obstinadas. 
As "anomalias" que provocaram as crises científicas só surgiam quando as comunidades científicas que se esforçavam por preservar os métodos e realizações existentes eram forçadas a enfrentar os fracassos. Muitos na área do ensino da ciência viram na "Estrutura" algo que os radicais deixaram passar: o livro podia ser utilizado para apoiar a ideia de que a pedagogia deveria encorajar não a abertura de espírito, mas o seu oposto. E se havia algum sentimento marxisante no livro, era o Marx de The Eighteenth Brumaire of Louis Bonaparte: 'Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem como querem'. Eles fazem-no 'em circunstâncias já existentes, dadas e transmitidas do passado'.

Kuhn agonizava sobre poder ter ter alguma responsabilidade por todas as leituras erradas. Um filósofo visou aquilo a que chamou purple passages de Kuhn - por exemplo, não haver um padrão de juízo científico superior ao "parecer favorável da comunidade relevante". Kuhn aceitou a crítica: "Para minha consternação ... as minhas 
purple passages levaram muitos leitores da Structure a supor que estava a tentar minar a autoridade cognitiva da ciência". 
Kuhn sentiu-se obrigado a registar oficialmente que era 'pró-ciência'. Era um homem apaixonado, desconfiado e propenso a explosões - pela sua própria descrição, "ansioso" e "neurótico". Os entrevistadores eram tratados como maus leitores crónicos, obrigados a apresentar previamente as perguntas escritas e, na maioria das vezes, era-lhes negado o acesso. 
Kuhn aceitou uma responsabilidade limitada por erros de leitura, mas foi necessário traçar uma linha. Convidado para um seminário por estudantes universitários de Princeton inspirados pelo que tomaram como anti-autoritarismo do livro, Kuhn entrou em erupção. Dizia continuamente: "Eu não disse isso! Eu não disse isso! Eu não disse isso!"

Quando era jovem, o realizador de documentários Errol Morris entrou na escola de Princeton com a esperança de estudar com Kuhn. A experiência não foi o que esperava. 
Morris escreveu um trabalho de trinta páginas, em espaço duplo, para o seminário de Kuhn, incluindo passagens em que encontrou falhas na noção de paradigma. Kuhn detestou o artigo e escreveu trinta páginas de comentários em espaçamento simples como resposta; na discussão, Morris argumentou; o professor voltou a argumentar; os ânimos inflamaram-se. 
Segundo Morris, Kuhn ' gemia, pôs a cabeça entre as mãos e murmurou: "Ele está a tentar matar-me". 
No fim da discussão Kuhn, irado, atirou um cinzeiro 'com malícia', na sua direcção: 'Veio correndo pela sala, aos gritos'. (Kuhn e cinzeiros eram companheiros constantes; ele fumava mais de seis ou sete maços de cigarros por dia, e morreu de cancro na garganta). 
Primeiro Kuhn atirou o cinzeiro, depois atirou Morris para fora da universidade. A experiência roeu Morris durante cinquenta anos e foi suficientemente traumatizante para que em 2018 escrevesse um livro intitulado The Ashtray (Or the Man Who Denied Reality), no qual Kuhn é retratado como um intelectual pernicioso.

Eu próprio tive uma mão cheia de encontros com Kuhn ao longo dos anos. Eram geralmente simples, embora ele tenha acabado por me ver como um dos seus tristemente mal orientados 'fãs'. 
Os seus humores, contudo, podiam ser voláteis. Uma vez, como estudante júnior, fiz parte de um painel de conferências no qual Kuhn iria ser comentador. Na noite anterior, veio ter comigo ao átrio da conferência e disse que gostaria de me dar uma palavrinha. Disse-me que no dia seguinte iria ter de me "destruir". No entanto, o painel correu realmente bastante bem e o comentário de Kuhn apenas foi ligeiramente crítico. Mais tarde, veio pedir-me desculpa pela conversa no átrio: tinha relido o meu trabalho e apercebeu-se que tinha 'confundido' o meu argumento com o de outra pessoa. (Nunca percebi o que foi aquilo, ao certo).

A recepção da "Estrutura" foi um espinho constante. As críticas deixavam-no tão zangado que ele 'atirava-as pela sala' como um cinzeiro.
Kuhn foi educado numa série de ambientes relativamente isolados. Filho de uma família judaica de Nova Iorque (não praticante) abastada, Kuhn andou em escolas privadas progressistas e em 1940 entrou em Harvard, que o seu pai e outros membros da sua família também tinham frequentado. 
Sem saber exactamente o que queria fazer, Kuhn acabou por se dedicar à física, embora não a achasse emocionante. 
Dedicou-se à literatura inglesa e frequentou vários cursos de história. Recém licenciado em física, queria frequentar seminários de filosofia, mas as pessoas com quem desejava estudar ainda não tinham voltado da guerra e ficou ofendido com a ideia de ter de fazer cursos introdutórios. 
Quando era estudante de doutoramento, o presidente de Harvard, o químico James Bryant Conant, pediu-lhe para ensinar um novo curso de graduação - ciência para não cientistas - concebido como resposta à nova importância cultural e política da ciência no mundo pós-Hiroshima. 
A ideia de Conant era introduzir os futuros líderes da sociedade -o que os licenciados de Harvard iriam obviamente ser - às realidades da ciência tal como esta era realmente praticada. Para Conant, isto significava que, em vez da imagem tradicional da ciência, os estudantes seriam expostos a estudos de casos históricos da prática experimental. Foi o primeiro encontro significativo de Kuhn com a história da ciência e os estudos de caso do curso tiveram um lugar proeminente na "Estrutura".

A relação de Kuhn com o presidente de Harvard ajudou-o a ser eleito para a Society of Fellows de elite, onde teve três anos livres de responsabilidades para fazer o que quisesse e ler o que quisesse. 
Começou um programa auto-dirigido de leitura na história da ciência e áreas afins da psicologia e filosofia. 

Depois disso, ficou em Harvard, ensinando uma série de cursos de história da ciência e escreveu o seu primeiro livro, A Revolução Copernicana (1957). O livro mostrava porque é que o sistema de Copérnico, centrado no Sol, era "em muitos aspectos uma teoria científica típica e como a sua história pode ilustrar alguns dos processos pelos quais os conceitos científicos evoluem e substituem os seus predecessores" - mas o livro não era um trabalho programático, e não abordava o aparente conflito entre revolução e evolução. 
Kuhn esperava que o livro garantisse o seu lugar em Harvard - Conant, na altura Alto Comissário na Alemanha, escreveu um prefácio lisonjeiro - mas a sua candidatura foi recusada. 'Harvard não me queria' pensou, mas de facto, a avaliação de Harvard tinha sido de que o livro se baseava muito em fontes secundárias e pouco na pesquisa de arquivos originais. 
Ele foi procurar emprego noutro lugar. Entre 1956 e 1964 Kuhn esteve em Berkeley, passando um ano no Centro de Estudos Avançados de Stanford. Depois deixou a Califórnia para assumir o programa de história da ciência de Princeton. Em 1979 regressou a Cambridge, como professor de filosofia no MIT. Foi uma carreira de ouro, embora não aquilo a que se poderia chamar uma carreira normal. Estava isolado da cultura quotidiana e das preocupações do dia-a-dia.

Essa desconexão pesou sobre a sua identidade disciplinar. Ele reconheceu que a física teórica era "o único campo em que podia afirmar ter sido devidamente treinado". Tudo o que entrava no seu trabalho publicado provinha do auto-aprendizagem. 
A Estrutura das Revoluções Científicas foi o resultado de Kuhn vaguear entre as disciplinas, algo que na altura era muito difícil e que hoje é quase impossível. Kuhn estava ciente das lacunas na sua educação, mas presumiu correctamente que se tivesse sido educado de forma mais sistemática, não teria escrito um livro como a "Estrutura." 
Alinhou com a sabedoria tradicional de que os historiadores visavam narrativas sobre pormenores do passado e os filósofos visavam a teoria geral - e não pensava que ambos os objectivos pudessem ser realizados de uma só vez. 
Berkeley ofereceu-lhe um compromisso tanto no departamento de filosofia como no de história, e Kuhn aceitou o acordo conjunto porque, como disse, "eu queria fazer filosofia". Ele pensou na "Estrutura" como 'um livro para filósofos'. No entanto, quando pediu a Berkeley o cargo de titular em filosofia, foi-lhe dito que "os filósofos seniores tinham votado unanimemente a favor da sua promoção mas... na história". Essa rejeição corroeu-o durante anos.

A filosofia académica tem tendências de exclusão e as críticas dos filósofos à "Estrutura" tiveram algo a ver com a falta de profissionalismo disciplinar de Kuhn. Quando escreveu o livro, admitiu mais tarde, " não tinha lido muito de filosofia da ciência e não fazia ideia do que se passava nesse campo". 
O livro é frequentemente lido como um repúdio das posições 'positivistas' e 'empiristas lógicas' da ciência, mas a hostilidade de Kuhn não era muito informada por uma profunda familiaridade com essas tradições. 

Quando ele se referia a "esse tipo de imagem quotidiana do positivismo lógico", o que ele tinha em mente eram os pressupostos sobre "a natureza da ciência" frequentemente encontrados nas primeiras páginas dos manuais escolares. Kuhn pensava que os manuais escolares representavam grosseiramente as realidades da investigação científica e presumia o mesmo das opiniões dos filósofos sobre a ciência. 
Os filósofos não gostaram. Pensavam que ele os caricaturava e havia uma sensação de que Kuhn não era um filósofo.

A Estrutura das Revoluções Científicas tinha tornado Kuhn famoso. Tinha-lhe trazido uma audiência que ele não queria nem esperava e cujas atenções ele achava stressantes. 
O que fazer a seguir? Uma decisão firme foi nunca mais escrever esse tipo de livro, nunca mais escrever nada acessível ao leitor geral, nunca mais dar pérolas intelectuais a porcos. 

Nisto, Kuhn foi inteiramente bem sucedido. Em 1953 foi abordado pela primeira vez para escrever o ensaio enciclopédico que acabou por se tornar na "Estrutura", mas afirmou que a concepção básica do livro lhe chegou como uma epifania em 1947 - de modo que, no final, o livro foi um slog de quinze anos. 

Em 1951, foi-lhe pedido para dar um conjunto de palestras de interesse geral em Boston, que continham uma série de ideias centrais para a "Estrutura". Fio-lhe difícil prepará-las e "quase se foi abaixo". 

Depois da "Estrutura", demorou mais dezasseis anos até publicar um novo livro. Esta foi a Teoria de Corpo Negro e a Descontinuidade Quântica, 1894-1912 (1978), a única monografia que Kuhn publicou após a "Estrutura", um relato detalhado e exigente do papel de Max Planck no desenvolvimento da mecânica quântica. 
A Teoria do Corpo Negro foi bem recebida pelos historiadores da física moderna e por alguns filósofos da ciência, mas atraiu poucos outros leitores. Depois houve o grande livro deixado inacabado aquando da sua morte, muito do qual foi editado para inclusão nos Últimos Escritos. O livro tinha sido prometido, e fofocado, durante muitos anos. Kuhn esperava que ele fosse definitivo, e que resolvesse muitas das questões que a "Estrutura" tinha deixado penduradas
No entanto, embora milhões agora conheçam o nome Thomas Kuhn e saibam algo do seu segundo livro, poucos serão capazes de nomear qualquer outra coisa que ele tenha escrito, e menos ainda irão querer, ou ser capazes de trabalhar através dos rascunhos contidos nos Últimos Escritos.

Um público restrito era exactamente o que Kuhn pretendia. A esse respeito, a sua carreira acompanhou a trajectória da profissionalização académica em geral. A "Estrutura" era, como agora se diz, "interdisciplinar" - uma palavra que estava apenas a entrar em voga quando o livro apareceu. Era interdisciplinar não porque Kuhn o pretendesse como tal, mas devido ao problema que estava a abordar e ao ambiente institucional em que trabalhava, o que lhe permitia vaguear livremente entre as disciplinas estabelecidas. E à medida que essas disciplinas foram crescendo no poder ao longo das décadas que se seguiram, o ambiente de onde Kuhn emergiu tornou-se um habitat em perigo de extinção. 

Kuhn disse intermitentemente que era um historiador, mas à medida que o tempo foi passando, foi-se dirigindo cada vez mais às preocupações da filosofia anglo-americana. Kuhn desesperava com o estado da história da ciência. Ninguém, incluindo quase todos os seus estudantes (que eram poucos em número), estava a fazer a "história das ideias analíticas" que ele aprovou; a moda crescente do trabalho sobre "ciência e sociedade" irritava-o imensamente. Durante muitos anos, disse, não tinha "lido praticamente nada na história da ciência".

O caminho desde A Estrutura das Revoluções Científicas até aos esboços dos Últimos Escritos foi, em grande medida, uma longa caminhada de regresso - a tentativa de Kuhn de clarificar, rever, assegurar e modificar as purple passages, para se dissociar a si próprio e ao seu livro dos relativistas. 
Uma questão, contudo manteve com firmeza: não devia pensar -se que a mudança científica aproximava cada vez mais os cientistas "da verdade". Ele tinha procurado recuperar uma ideia de progresso a partir do relato de mudanças revolucionárias descontínuas e usou a linguagem da evolução para resolver problemas precipitados pela ideia de revolução. 

A evolução darwiniana descreve a mudança orgânica sem referência ao objectivo final - sem a ideia de que a mudança ia no sentido da perfeição da espécie humana. Então porque é que a noção de mudança científica deveria necessariamente implicar ir no sentido ou aproximar-se de "um relato completo, objectivo, verdadeiro da natureza"? 
O resultado da mudança, em termos kuhnianos, foi "a selecção por conflito no seio da comunidade científica da forma mais adequada de praticar a ciência do futuro". Kuhn invocou a mudança evolucionária para resolver alguns dos problemas filosóficos colocados pela sua própria noção de revoluções científicas descontínuas.

As tarefas assumidas do editor dos Últimos Escritos a que chama "o Kuhn tardio" ou "a filosofia madura de Kuhn" eram triplicadas: reparar e renomear a sua concepção original do "paradigma"; restringir o âmbito da "incomensurabilidade" e os problemas que ela colocava à objectividade científica; mostrar como o progresso poderia ocorrer através dos paradigmas e porque é que o envolvimento da subjectividade na ciência poderia ser considerado inócuo.

Kuhn considerava as críticas dos filósofos legítimas, respondeu-lhes e continuou a desenvolver as suas ideias sobre as estruturas regulamentares na ciência durante o resto da vida. 
Mas os paradigmas - que se tornaram selvagens na cultura - também o incomodaram; queixou-se de ter "perdido totalmente o controlo" da utilização correcta do termo, e prometeu que no futuro "raramente" o utilizaria. A Teoria do Corpo Negro continha apenas uma menção de um paradigma e não fazia qualquer referência à "Estrutura." 

Durante todo o tempo, Kuhn procurou reter a ideia de paradigmas como estruturas concretas, não regulamentares, e ao mesmo tempo rebaptizá-los como algo menos cativante, mais reconhecível para os filósofos, menos susceptível de circular na cultura mais ampla. 
Uma das primeiras possibilidades era a "matriz disciplinar", embora, à medida que Kuhn lustrou o termo, se parecesse muito com o paradigma. 

Na "Estrutura, o 'paradigma' figurava num relato da forma como a prática científica era organizada no dia a dia; em rascunhos do seu último trabalho, a palavra 'paradigma' aparece quase exclusivamente como referências à "Estrutura". Para escolher o que era que os grupos tinham em comum e utilizavam para coordenar as suas actividades, Kuhn veio a preferir os termos 'léxico estruturado' e 'conjunto de tipo estruturado', sinalizando assim uma filiação com teorias gerais de linguagem, significado e aplicação de conceitos.

Talvez as passagens mais puras da "Estrutura" fossem as que continham as alegações de que os paradigmas eram 'incomensuráveis' e que os cientistas de paradigmas diferentes vivem e trabalham 'num mundo diferente'. 
Não havia corpos de factos, métodos para estabelecer factos, ou teorias para interpretar os factos, que fossem independentes do paradigma; não havia um 'algoritmo neutro' para o juízo. 

Este era o Kuhn que era considerado um relativista realista e renegador da razão. Como se podia falar de objectividade ou de progresso, dada a incomensurabilidade de "outro mundo"? Kuhn distingue a compreensão dos historiadores da compreensão dos cientistas. 

Independentemente das questões que eram disputadas entre grupos científicos no passado, os cientistas eles partilham o suficiente para poderem compreender os métodos, conceitos e conhecimentos factuais dos opositores. Para eles, a incomensurabilidade é apenas local. Os historiadores, porém, olham para o passado a partir de uma distância cultural e para eles a incomensurabilidade parece total. 
Esta distinção limitou o problema da incomensurabilidade e impediu-o de estragar a imagem da racionalidade científica.

A Estrutura das Revoluções Científicas foi o trabalho de um amador. Tinha muitas das falhas, excessos e declarações a que os amadores são propensos. A sua concretude, os seus momentos aforísticos, e a indeterminação da sua identidade disciplinar tornaram-na acessível a muitos. No relato de Kuhn, a ciência continuou a ser um feito humano eminente, mesmo enquanto desacreditava as histórias tradicionalmente contadas sobre a forma como a ciência funcionava. 

A "Estrutura" não conseguiu fornecer uma história alternativa completamente convincente, mas na sua destruição do mito, foi um triunfo. Os escritos de Kuhn nos seus últimos anos são o trabalho de um profissional. São bem referenciados, bem defendidos contra possíveis mal-entendidos, firmemente centrados num público filosófico particular, purgados de retórica, estilizados para assegurar a sua inacessibilidade ao intelectualmente inculto. 
Os filósofos acabarão por dar o seu veredicto. Alguns aplaudirão a tentativa de Kuhn de fundamentar o seu relato da ciência numa teoria geral de significado e aplicação de conceitos; poucos, se é que há algum, assinalarão que isto é exactamente o que estava a ser feito há anos atrás pelos sociólogos da ciência que ele tanto desprezava.

Outros hão-de reter o juízo sobre um projecto inacabado e tomarão estes esboços principalmente como fontes-materiais para a biografia intelectual. Mas o caminho da "Estrutura" até aos últimos escritos tem as suas próprias histórias para contar. Uma delas tem a ver com a ambição de um autor individual - brilhante, original, picuinhas, apaixonado, outra sobre o poder das disciplinas à medida que controlam cada vez mais a vida académica e se afastam da esfera pública.


July 10, 2022

October 21, 2021

O mundo dos blobs







Tristan Vey/Le Figaro

À primeira vista, pode ser confundido com bolor comum ou um pequeno pedaço de líquen. Nada de muito espectacular. A sua cor amarelo vivo é certamente bela e destaca-se bem na casca ou nos cotos de árvores, mas também não é deslumbrante. Além disso, a coisa não se move realmente - bem, não se pode ver a olho nu: apenas alguns centímetros por hora... A conferência de imprensa organizada pelo jardim zoológico de Paris para a abertura, marcada para sábado, da sua novíssima "zona de blobs" foi, no entanto, um sucesso. Estiveram presentes mais de vinte jornalistas de todos os meios de comunicação social.

É preciso dizer que o "blob" tem uma reputação sólida: é um ser unicelular que é ao mesmo tempo voraz, inteligente, frágil, estranho e não classificável. Não é realmente um animal, nem uma planta ou um fungo, mas uma mistura de todos estes. Define uma classe própria, os mixomicetos. Etimologicamente, 'fungos viscosos'. Embora desde então se tenha descoberto que está de facto geneticamente mais próximo das amibas...

Em suma, se é conhecido em França, é em grande parte graças ao trabalho de uma investigadora do CNRS da Universidade Paul Sabatier III em Toulouse, Audrey Dussutour, que o baptizou com esta alcunha de 'blob' e a utilizou para comunicar os seus resultados de 2016.

Num delicioso livro publicado em 2017, Tout ce que vous avez toujours voulu savoir sur le blob sans jamais oser le demander , esta especialista em formigas conta como a ideia lhe surgiu quando descobriu a extrema gula do espécime que lhe tinha sido confiado no dia anterior: "Foi aí que lhe veio à mente uma imagem. Era de um antigo filme de Steve MacQueen chamado 'The Blob'. Aqui está o tom: um organismo parecido com uma geleia inglesa chega de outro planeta e devora tudo no seu caminho. Quanto mais habitantes engole, maior fica".

Neste caso, o 'blob' do laboratório come aveia, mas cresce não menos rapidamente. Pode facilmente duplicar de tamanho durante a noite e se encontrar comida à sua volta, pode espalhar-se por vários metros. Os poucos espécimes em exposição no Parque Zoológico de Paris não são maiores do que cerca de dez centímetros quadrados neste momento. São expostos numa sala escura do viveiro, longe da luz, que não podem suportar. Esta é a razão pela qual sabemos tão pouco sobre ela, apesar de estar presente nas nossas florestas: vive na sua maioria escondida.

Mas também pode desaparecer subitamente. "Por vezes chegamos de manhã e um dos blobs que cultivamos já não está lá. Não fugiu: foi esporulado." Audrey Dussutour explica: "Quando o blob esporula, a sua célula gigante, que contém milhões de núcleos, transforma-se e produz milhões de pequenos esporos (tantos quantos os núcleos existentes) que são espalhados pelo vento e por isso não resta nada da célula gigante!

Outra característica surpreendente: o blob é 'curioso' e 'inteligente'... embora não tenha sistema nervoso por definição, uma vez que é constituída por uma única célula. Estende constantemente os seus filamentos em busca de alimentos e parece ser capaz de resolver problemas complexos, tais como mover-se através de um labirinto. Os Blobs também são capazes de aprender coisas e comunicar informações uns com os outros. Os mecanismos precisos envolvidos, incluindo onde e como armazenam as suas memórias, permanecem um mistério.

Todas estas pequenas particularidades e muitas outras, podem ser descobertas nos vídeos e nos painéis explicativos muito bem feitos que acompanham os pequenos blobs exibidas no Parque Zoológico. De facto, eles são o principal interesse deste novo espaço de exposição.

Par Tristan Vey

--------------

Há centenas de espécies de mixomicetos. É o Physarum polycephalum, que literalmente quer dizer "bolor de várias cabeças". Conhecido como "Blob", o curioso organismo será exibido no zoológico de Paris, na França, a partir deste fim de semana.



Óscar C.M
Lamproderma aff. violaceum 0,2 mm

September 23, 2021

Nuno Maulide em entrevista





"Como se transforma ar em pão", novo livro de Nuno Maulide

O piano e a química são paixões, mas fixou-se na segunda por ser menos solitária. É membro da Academia das Ciências da Áustria e recebeu o prémio de Cientista do Ano. Veio a Portugal apresentar o livro que simplifica o complicado.

Formou-se no Instituto Superior Técnico e depois seguiu pelo mundo até se fixar na Áustria, há oito anos. É professor de Química Orgânica na Universidade de Viena. Elegeram-no Cientista do Ano em 2019, recebeu depois o prémio Lieben e, em 2020, ascendeu à Academia das Ciências da Áustria. É o único estrangeiro não germanófono e o mais novo, tem 41 anos. Veio a Portugal para a apresentação do livro Como se Transforma Ar em Pão? Estas e Outras Questões a Que Só a Química Sabe Responder, que escreveu com a jornalista de Ciência Tanja Traxler. Na forja está um segundo, este sobre cozinha molecular. Mas com coisas simples.

Ao ler o livro, fica-se com a ideia de que tudo é química.
É a ideia correta. Mas quando se ouve a palavra "químicos", há uma reação negativa.

Há químicos bons e maus?
Não se deve dar uma conotação positiva ou negativa aos compostos químicos porque tudo depende do uso que lhes dermos. A água é um químico bom, nós somos 70% água, mas morremos se bebermos quatro litros numa hora, os órgãos começam a falhar. Muitos compostos químicos não são bons nem maus, dependendo do seu uso, podem ter consequências boas ou más.

Como o plástico, a descoberta do século XX e que caiu em desgraça?
E continua a ser a maior descoberta da química no século XX, revolucionou a sociedade e a maneira como olhamos para os materiais. Só tínhamos a madeira e o metal, hoje em dia, temos coisas que parecem madeira e metal mas que são polímeros [plásticos] e compósitos, e que são utilizados de formas muito diferentes. Não refletimos sobre os problemas que ocorreriam quando, depois de os utilizarmos, os deitamos fora sem pensar duas vezes.

A solução está na reciclagem.
Se pensássemos que não se decompõe tão facilmente, que não é biodegradável, teríamos evitado muitos problemas. Todo o plástico tem implicações no ambiente. Tem de ser reutilizável ou ter mecanismos de o reciclar de forma apropriada.

Sabia-se quando foi inventado?
Não se sabia porque não se quis estudar, queria fazer-se coisas rapidamente e ganhar dinheiro. Não houve pressão nem da sociedade civil nem das entidades reguladoras para se fazer um estudo sobre o que acontece ao plástico quando vai para o aterro sanitário. Sem as embalagens de plástico, dois terços da produção mundial de alimentos estragava-se sem chegar ao seu destino. Quando eu era mais novo não havia todos os dias arroz no supermercado, massa, todos os frutos, não havia capacidade para preservar esses alimentos e os fazer transportar. As pessoas estavam limitadas à produção local ou regional e hoje em dias os supermercados estão cheios porque há uma rede de transporte que precisava das embalagens de plástico para se poder colher, empacotar e transportar.


(...)

Sente que os cientistas portugueses são reconhecidos?
Portugal terá a suas limitações, o que também tem que ver com a falta de financiamento. Não se pode ter num financiamento de 1% do PIB para a ciência e querer ter o mesmo resultado do que num país com um financiamento de 3%, não há milagres. As barreiras têm diluído com a UE, somos todos cientistas europeus. Eu não insisto em ser considerado um cientista português, ou viver na Áustria, sou um cidadão do mundo.

Porque é que emigrou?
Emigrei muito antes, fui para a Suíça seis meses, depois para a Bélgica, os Estados Unidos e a Alemanha. Emigrei quando achei que me faltava estar num ambiente em que não soubesse muito. Quando se fica muito tempo num sítio tem-se a tendência para estagnar e a mim faz-me falta sair da minha zona de conforto. Saí na perspetiva de aprender.

(excerto)