Aparelho do Estado foi manobrado, diz MP, mas houve quem resistisse ao grupo de Galamba
Ana Henriques|Público
Na sequência de uma notícia do jornal Nascer do Sol sobre o assunto no Verão de 2021, o então secretário de Estado João Galamba entrou em contacto com o chefe de gabinete de António Costa, Vítor Escária. Para, segundo o Departamento Central de Investigação e Acção Penal, o instar a convencer o primeiro-ministro a intervir na situação, forçando a alteração dos limites geográficos da zona protegida.
Tratava-se de uma questão delicada, pedia-lhe para não falar nisso a ninguém. “Só há aqui uma solução (…) que é o ICNF rectificar a zona, como fez no Freeport e noutras zonas. Não é preciso comunicar à Comissão Europeia, é um decreto regulamentar do Governo”, dizia ao chefe de gabinete. Dois dias depois, Galamba informava o secretário de Estado da Internacionalização, Eurico Brilhante Dias, que o assunto já tinha chegado aos ouvidos do chefe do Governo: “Epá isto já chegou ao PM. O Siza [Vieira, ministro da Economia] falou comigo e acho que o PM pediu ao Siza para ver isso com o Matos Fernandes [ministro do Ambiente] para resolver este problema”.
A Agência Portuguesa do Ambiente – cujo presidente, Nuno Lacasta, também foi constituído arguido neste processo – facilitou como pôde o licenciamento do empreendimento. Isso fica claro numa escuta de um telefonema realizado na Primavera de 2022 em que Lacasta fala com o presidente do Instituto da Conservação da Natureza (ICNF), Nuno Banza: “Nós estamos já completamente organizados com o promotor, há um ano e tal, eles têm sete módulos, desses sete módulos estão agora a construir dois, foram isentados de Avaliação de Impacte Ambiental. Já está resolvido esse tema, percebes? Há um compromisso do promotor que depois fará uma Avaliação de Impacte Ambiental para o resto da coisa, mas são sete módulos é uma coisa gigante, são não sei quantos hectares, portanto isso está tudo resolvido, está tudo feito, está tudo tratado, está tudo tranquilo”.
O presidente do ICNF bem tenta argumentar: “Aquilo tem lá umas espécies prioritárias e uns habitats prioritários”. Mas o seu interlocutor insiste: “E tu não consegues fazer uma espécie de compensação (…) ali perto?”. Banza responde-lhe que não: “Tu consegues fazer isso para os habitats da directiva, desde que não sejam prioritários. Aquela merda é quase intocável, tás a ver? Vou ter de dar parecer desfavorável”.
Horas depois Banza recebe um telefonema do próprio João Galamba, e parece já ter claudicado: “Tens que me ajudar a meter na cabeça desta gente que a solução não é eu ir perguntar nada à Bruxelas. A solução é eu fazer o o processo de avaliação de impacto ambiental, e se houver necessidade propor as medidas compensatórias, fechar o processo, licenciá-lo e deixar lá estar a Zona Especial de Conservação na maior, tás a ver?”.
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Porém, nem todos os interlocutores de Galamba e do seu grupo claudicaram. Há diversas referências feitas pelos procuradores que lideram a investigação à resistência de uma vereadora da Câmara de Sines, Filipa Faria, e de uma chefe de divisão, a arquitecta Fátima Guiomar Matos, às pressões de que foram alvo para licenciar o que não parecia ser licenciável.
“É uma pessoa muito complicada... Epá, que os gajos têm medo, claramente têm medo dela, claramente têm medo dela, epá, e ela faz-lhes a cabeça em água e os gajos... epá não consigo perceber!", diz o vice-presidente da comissão executiva da AICEP Global Parques, Miguel Gama sobre a arquitecta, que não está a facilitar.
Do lado de lá do telefone, o CEO do consórcio do centro de dados, Afonso Salema, tem uma ideia e pergunta-lhe a que partido pertence a teimosa técnica. Será comunista, alvitra o outro. São boas notícias, reage Salema: “Temos apoio do PCP também, o PCP gosta muito de nós. Então se calhar vou pedir ao Diogo, que já se ofereceu várias vezes, para ter uma conversa no comité central”.
Mas no despacho de indiciação do Departamento Central de Investigação e Acção Penal os capítulos em que fica mais patente a manipulação do aparelho de Estado pelos arguidos relacionam-se com o fabrico de legislação à medida dos interesses dos seus alegados cúmplices no sector privado. Entre os vários diplomas legais que o Ministério Público garante terem sido redigidos ou ajudados a redigir por advogados que não pertencem aos quadros do Estado ganha especial destaque o chamado Simplex Industrial, aprovado em conselho de ministros em Outubro passado. Com o objectivo assumido de desburocratizar o licenciamento de projectos industriais, este decreto-lei terá nascido para beneficiar o empreendimento de Sines.
"Antes de ser submetido a conselho de ministros, o diploma foi preparado, do ponto de vista jurídico por João Tiago Silveira, sócio da sociedade de advogados Morais Leitão”, pode ler-se no despacho de indiciação. Este antigo secretário de Estado socialista e agora também arguido já reagiu às suspeitas que sobre ele recaem: "Há uma nota comum em toda a minha carreira, no sector público e no sector privado: a honestidade e o estrito respeito pela legalidade.”
Outro diploma apontado como tendo favorecido os interesses do mesmo grupo foi publicado em Setembro passado e destina-se a atribuir a capacidade de ligação à rede de instalações de consumo de electricidade em zonas de grande procura. Ou seja, este decreto-lei regula os leilões de atribuição de capacidade. "Dele resulta um expresso favorecimento a projectos com estatuto de Potencial Interesse Nacional, bem como o estabelecimento de procedimento excepcional quanto à área territorial de Sines", diz o Ministério Público. Nas escutas, os arguidos referiam-se-lhe com especial apreço: chamavam-lhe o despacho do bar aberto.