Quem pode trabalha para fabricar uma verdade para a posteridade, mas a história tem um modo de pôr a descoberto a realidade.
Charles Dickens abandonou a sua mulher após dez gravidezes e, pelo menos, dois abortos em quinze anos, chamou-a de deficiente mental nos jornais e ficou-lhe com os filhos.
Catherine Hogarth conheceu Charles Dickens em 1835, quando tinha 19 anos e ele 23 — um jovem jornalista ambicioso que trabalhava para o jornal do pai dela, o
Evening Chronicle. Charles era brilhante, enérgico e já demonstrava sinais do carisma que o tornaria o escritor mais famoso da Inglaterra vitoriana.
Catherine era gentil, bonita e vinha de uma família respeitável e de Edimburgo muito superior financeiramente à dele que tinha crescido na pobreza. Ela desenhava e cantava.
Casaram-se em 1836, justamente quando a carreira de Charles explodiu com o sucesso de
The Pickwick Papers. Catherine engravidou quase imediatamente. Depois, novamente. E novamente.
Ao longo de quinze anos, Catherine Dickens teve dez filhos e, pelo menos, dois abortos. Dez gravidezes, dez partos, dez infantes para cuidar, numa época em que o parto matava regularmente mulheres e a contracepção era praticamente inexistente. Ao mesmo tempo que recebia e entretinha os amigos de Dickens e o acompanhava a festas.
Entretanto, a carreira de Charles disparou. Na década de 1850, Charles Dickens era o escritor mais famoso do mundo anglófono. Dava palestras públicas sempre esgotadas. Viajava constantemente. Geria revistas, escrevia romances, produzia peças de teatro. Estava em toda a parte, fazendo tudo, alimentado por uma enorme energia.
Catherine lutou com a depressão pós-parto — embora ninguém a chamasse assim em 1850 — e a exaustão de tantas gravidezes. Retraiu-se, ganhou peso e deixou de conseguir acompanhar a agenda social implacável de Charles. Tinha 40 anos e passou duas décadas grávida, amamentando ou a recuperar de partos.
Dickens, que teve várias amantes, conheceu uma rapariga com 18 anos que era atriz numa peça escrita por ele -que ia a caminhos dos 50-, ficou obcecado por ela e quis livrar-se da mulher. Culpava-a de terem tantos filhos e de terem problemas financeiros por causa disso e chamava-lhe gorda, aos amigos próximos.
Segundo diz Bowen, Dickens teria tentado primeiro convencer um médico chamado Thomas Harrington Tuke, a interná-la num hospício como demente - era uma maneira de livrar-se dela sem ter de divorciar-se. Porém, o médico recusou internar Catherine. Mais tarde, Dickens, furioso, chegou a referir-se a Tuke como um “ser miserável” e um “médico burro”.
Catherine sabia da atriz mas a sociedade vitoriana não lhe oferecia opções. O divórcio exigia uma lei do Parlamento e provas de extrema crueldade ou adultério, além de outro crime (como incesto). As mulheres que se separavam dos maridos perdiam os filhos, a renda e a posição social. Catherine tentou aguentar, mas em 1858, Charles tomou a sua decisão: queria que Catherine fosse embora.
Dickens, penteado com vaidade e com aquela barba repugnante que era moda, com a idade aproximada do tempo em que conheceu a atriz
Como ele não podia divorciar-se dela — isso exigiria admitir adultério, o que destruiria a sua reputação, fez algo ainda pior: forçou uma separação e depois destruiu a reputação dela de tal forma que as pessoas acreditassem que a vítima era ele.
Grande publicitário de si mesmo e com amigos muito influentes, o escritor fantasiou um retrato falso e desumano da esposa, numa carta para um amigo que convenientemente vazou à imprensa onde lhe chama «incompetente», «mentalmente desequilibrada» e «letárgica», queixando-se de que ela não conseguia gerir a casa (com dez filhos e a receber constantemente visitas). Dickens começou a dormir num quarto separado.
Tirou Catherine da casa da família. Ficou com as crianças, excepto Charley, o mais velho, que escolheu ficar a viver com ela. Os outros nove ficaram com Charles e com a irmã dela que viva com eles.
Insinuou aos amigos que ela nunca amou os filhos adequadamente. Apresentou-se como um marido sofredor, finalmente forçado a agir pelo bem-estar da família. A sociedade vitoriana acreditou nele. Por que não acreditariam? Charles Dickens era amado como a voz da moralidade inglesa, o cronista da injustiça social, o homem que fez os leitores chorarem por Tiny Tim e Little Nell.
Catherine foi silenciada. As mulheres não podiam defender-se nos jornais. Ela não tinha voz pública, nem carreira, nem plataforma, nem independência civil ou financeira.
Ela viveu os 21 anos seguintes num exílio tranquilo, principalmente com o seu filho Charley. Raramente via os outros filhos — a maioria ficou do lado do pai, seja por acreditar genuinamente na versão dele, seja por proteger pragmaticamente as suas heranças. Uma filha acabou por romper com o grupo: Kate Perugini, a segunda filha de Catherine e Charles. Anos mais tarde, após a morte dos pais, Kate falou publicamente sobre o que realmente tinha acontecido.
Disse que a mãe tinha sido tratada de forma «cruel» pelo pai que culpava Catherine pela sua própria inquietação e insatisfação. Que a separação tinha sido injusta e a humilhação pública imperdoável.
Antes de Catherine morrer, em 1879, deu a Kate um pacote de cartas — cartas de amor que Charles lhe escrevera durante o namoro e no início do casamento, quando a chamava de «my little Mouse» e escrevia declarações apaixonadas de amor- e pediu-lhe que desse as cartas ao Museu Britânico, «para que o mundo saiba que ele me amou um dia, independentemente do que veio a dizer depois». Foi a única coisa que pôde fazer para se defender das mentiras e calúnias dele.
Eis o que sabemos agora que os vitorianos não sabiam: Charles Dickens manteve Ellen Ternan, a actriz, como sua amante durante treze anos, até à sua morte em 1870. Arranjou-lhe casas e possivelmente teve um filho com ela (os historiadores debatem este ponto). Ela, não ele, culpava-se de ter destruído o casamento dele e esteve desaparecida em França, pensa-se que para ter uma criança.
Ele passou mais de uma década a viver uma vida dupla, de mentira, mantendo a sua reputação como voz moral da Inglaterra enquanto mantinha um caso e destruía a reputação da mulher para tentar livrar-se dela.
A lei de divórcio vitoriana foi concebida para aprisionar as mulheres. Catherine não podia partir sem perder tudo. Quando Carlos a expulsou, ela perdeu a sua casa, a maioria dos seus filhos, a sua posição social e a sua reputação. Não podia defender-se publicamente e foi por isso que guardou aquelas cartas. Foi um acto silencioso de resistência: a prova de que a narrativa que Carlos havia vendido — de que ela era incompetente e não amada — era uma mentira. No último ano de vida, Catherine revelaria toda a extensão da calúnia a um vizinho, Edward Dutton Cook, que relatou o caso ao jornalista William Moy Thomas.
Charles Dickens escreveu apaixonadamente sobre a injustiça social. Criou heroínas que sofriam nobremente sob sistemas cruéis. Fez os leitores chorarem por vítimas fictícias e fez à sua esposa real o que os seus vilões faziam às suas heroínas.
Fontes: várias