November 29, 2020

A um cartoonista não chega [usei a palavra de propósito] saber desenhar

 


... como se vê por aqui. Tem que ter um sentido da história, da pertinência dos acontecimentos e da adequação das imagens. Olho este cartoon que retrata muito bem ambos os políticos do ponto de vista morfológico mas num contexto desadequado que me faz imediatamente perceber que este cartoonista não sabe do que está a falar. Hoje-em-dia chama-se nazi a toda a gente e comparam-se todos os líderes de quem não se gosta a Hitler. Essa banalização do nazismo, fruto de ignorância (deviam ir ler muitas obras) só serve para que as gerações futuras não compreendam o alcance de certas práticas e não saibam ver os sinais de perigo. É como gritar pelo lobo todos os dias só para chocar, como na história de Pedro e o Lobo e depois quando ele vem mesmo ninguém vê, ninguém percebe e ninguém liga. 

Hitler mandou assassinar os seus camaradas de partido, rivais do poder, não figurativa, mas literalmente, com sangue, armas de fogo, cordas e facas -uma noite inteira de assassinatos- e foi assim que tomou de assalto o poder de modo irrevogável. Que tem isso que ver com Ventura e Rio?

Os grandes cartoonistas são também pessoas de fina inteligência. so... nope...




Procrastinar

 


Tenho uma cena para acabar de escrever mas vou procrastinar uma hora ou duas. Fui dar com este vídeo de mostra de uma exposição de desenhos de Miguel Ângelo no MET. É assim que se procrastina em NY: vai-se até ao MET ver preciosidades de encher a alma e o olho. I wish...


Com isto concordamos

 


A obrigação cívica de desconfiar
Miguel Poiares Maduro


Até porque não passámos um cheque em branco ao governo. Nem podíamos passar... porque os políticos são mais ou menos assim:



Pois eu, nem com os óculos novinhos de ver mais longe...

 

... alguém está em casa a dar baixa na garrafeira.



Miguel Poiares Maduro. "Via muito bem Passos Coelho como presidente da Comissão Europeia"

Notícias do dia II

 


Outgoing Democratic Rep. Tulsi Gabbard has put out a plea for Edward Snowden and Julian Assange to be pardoned by the president, less than a day after Donald Trump pardoned former National Security Advisor Michael Flynn.




Notícias do dia - morreu o Darth Vader

 


O actor, claro.


Darth Vader actor Dave Prowse dies aged 85 | Star Wars | 
www.theguardian.com 








Às vezes a verdade mostra-se sem querer

 





Augusto Paulino Silva Paulino - interior da barraca de tiro no Parque Mayer, Lisboa, início dos anos 30

Psyco, not for the faint-hearted

 



A 30 second clip of a cat watching Psyco with the scary Herrmann’s score. Para ouvir com som.


Nunca perder de vista e descurar o que verdadeiramente interessa

 


... seja em que circunstância for.






©️ᴊᴏsᴇᴘʜ ᴇɪᴅ | ᴀғᴘ ᴘʜᴏᴛᴏ-ᴄᴏᴏʀᴅɪɴᴀᴛᴏʀ ᴀɴᴅ ᴘʜᴏᴛᴏɢʀᴀᴘʜᴇʀ ғᴏʀ ʟᴇʙᴀɴᴏɴ-sʏʀɪᴀ ᴀɴᴅ ᴊᴏʀᴅᴀɴ

November 27, 2020

Break time

 


... for the weekend. I will be back.



Talvez esta tenha sido a primeira selfie

 



Dürer contraiu uma doença e desenhou esta 'selfie' para enviar ao médico para ele fazer um diagnóstico e aponta para o rim -penso- como quem diz, 'é aqui que dói'. Escreveu mais uns esclarecimentos. Mas, quer dizer, desenhou-se como deve ser, não fez só um rabisco: a expressão dele é séria e de aflição. Devia ter uma pedra no rim ou assim, o que é horrível, dói brutalmente, parece que alguém está a torcer o rim como se faz à roupa molhada para enxaguar. Já tive uma infecção no rim há muitos anos, uma vez que fui a Espanha e adorando presunto espanhol passei o tempo a comer presunto pata negra e cheguei a Portugal a pensar que ia morrer. Aquelas coisas inteligentes que faço.




Uma iniciativa para a celebração dos 900 anos da Fundação de Portugal

 


Um artigo antecipando o 1º de Dezembro. Continuo a pensar como completamente estranho e absurdo que se comemore aqui tudo quanto é data e se deixe de fora o mais importante dia que foi o do nosso nascimento enquanto comunidade própria. Assim como as pessoas comemoram o dia do seu nascimento, também o país, que tem uma identidade própria, devia comemorar o seu. Não sou fanática da Pátria, não celebro patriotismos e muito menos nacionalismos, mas sinto-me portuguesa duma maneira sentimental, embora também me sinta europeia e de outros povos, de uma maneira filosófica, mas penso que a improbabilidade da nossa existência enquanto país, dado o tamanho, ganância e força da vizinhança e o facto de existirmos apesar disso e sermos até o país com o território de fronteiras definidas estavelmente mais antigo do mundo, um acontecimento alegre de se celebrar. 900 anos nestas condições não são pouca coisa. Ninguém apostava em nós e ainda cá estamos. Haja alegria!




"Birthday Tribute to Jimi"

 


Jimi Hendrix wrote a classic song "If 6 was 9" suggesting that the rapture and mystery of the golden mean Phi Spiral is in the mass consciousness and that there is an interplay between the polarities of Nature's hidden forces. This song inspired a whole generation unconsciously, planting the seed of sacred geometry at its core, irregardless whether the shape of the spiral was upright or downward, whether 6 were 9 or 9 were 6.
It also hinted at the Language of Light, that the origin of our flame letters was based or indexed about the critical tilt angles of the omnipotent Phi Spiral whose essential form is the "6-Shape" or the "9-Shape" viewed from various perspectives, giving rise to our Alpha-Beta or Origin of the Alphabet and decimalized numerical system.
Jain 108

Excerpts of some of the Lyrics
"Now if 6 turned out to be 9,
I don't mind, I don't mind .... "
"... I'm gonna wave my freak flag high, high.
Wave on, wave on ... "




Descobri este blog: O Sal da História



Muito interessante. Vou deixar aqui o post que me levou até ao blog.


o sal da história


Promessas e sinais não salvaram os órfãos da roda


Mais de metade das milhares de crianças abandonadas à guarda da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa traziam consigo um bilhete ou outro sinal para que se distinguissem das demais. De pouco valeram promessas e explicações, porque a esmagadora maioria morreu antes de qualquer tentativa de resgate.




Durante o século XIX*, cerca de 160 mil crianças, maioritariamente recém-nascidos e bebés pequenos, foram abandonadas às portas da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, cumprindo uma assombrosa cadência de cinco por dia, duas mil por ano. Metade destas, trazia consigo um bilhete, um colar ou pulseira, uma medalha pendurada num fio de retrós ou uma fita de cor particular, um amuleto..., enfim, um sinal que as distinguisse entre os demais órfãos a cargo da instituição.

Muitas carregavam consigo um bilhete com a promessa, tão firme quanto raramente cumprida, de um dia serem resgatadas. A maioria morreu antes de qualquer tentativa.

A “Roda dos Expostos” foi criada para salvar as crianças, que antes eram deixadas na rua, à mercê de todos os perigos. Mas não cumpriu o seu desígnio. Terá, antes, contribuído para facilitar a vida de famílias numerosas, preservar intacta a honra das mães, bem como o prestígio dos pais ilegítimos. Terão os sinais que acompanhavam os enjeitados atenuado a consciência de quem assim se descartava de filhos indesejados ou inconvenientes?


Os bilhetes que chegaram até aos nossos dias mostram habitualmente uma escrita atabalhoada, espelho da fraca escolarização de quem os escreveu, mas também os há em papel caro e com caligrafia e ortografia cuidadas. Forneciam informações sobre as crianças, o nome pretendido ou com o qual haviam sido batizadas; a data do nascimento e até, estranhamente, em alguns casos, a identidade dos progenitores que, pelas mais variadas razões, nem sempre claras nas missivas, não os podiam manter.
Avançavam com a proveniência da família – a cidade de Lisboa, mas também toda a região, de Almada a Alcochete; de Cascais a Setúbal; da Moita a Oeiras... até alguns estrangeiros. Pediam que os bebés fossem tratados com cuidado, entregues a amas carinhosas e saudáveis.



Algumas destas missivas prestavam informação sobre a realidade do País, os conflitos armados, como as invasões francesas ou a guerra civil entre liberais e absolutistas; outros tentavam justificar o abandono. A doença ou morte da mãe; a falta de leite; uma casa cheia de bocas para alimentar e sem recursos para a sobrevivência; a pobreza extrema; a ausência do pai... a bastardia. Por vezes, as razões não eram ditas, mas adivinhavam-se nas entrelinhas. Dramas pessoais e coletivos que nunca serão completamente entendidos.


Prometiam pagar as despesas uma vez fossem recuperar os filhos e asseguravam recompensas às amas zelosas.


Certos enjeitados traziam enxoval, mais ou menos composto, outras foram deixados sem qualquer proteção.


Sobretudo, os "recados" rogavam que os bebés não fossem trocados. E por isso se multiplicavam os sinais. Um número considerável assumindo formas curiosas, engenhosas, como senha e contra-senha infalível para quando se procedesse à tentativa de recuperar as crianças.


Até porque garantiam, vezes sem conta, que a passagem pela Santa Casa seria breve, que os menores seriam resgatados à orfandade, chegando a apontar uma data certa para cumprir. Daí o medo da troca.


Os registos provaram que não importou a riqueza dos cueiros; o valor do amuleto; a elegância da escrita; a devoção à santa cuja imagem servia de base ao bilhete; a complexidade do sinal criado para alegadamente não perder o rasto ao filho assim entregue; a esperança dada pela firmeza das juras de um reencontro futuro, tantas vezes repetidas.



Em perto de uma século, com 160 mil crianças documentadas como entregues na roda da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, apenas um quinto sobreviveu à orfandade e à passagem pela instituição, embora lhes estivesse destinado, muito provavelmente, um destino de miséria e vagabundagem. Com sorte, teriam engrossado a grande massa de criadagem que pululava pelas casas da capital ou, eventualmente, poderiam ter aprendido algum ofício lhes desse mais ferramentas para acudir à sobrevivência.
Só há notícia de 53 expostos terem regressado à companhia dos pais.


Em Portugal, a legislação sobre o abandono de crianças e o encargo pela sua criação passou por várias fases, apontando para uma responsabilização dos municípios para com os menores nestas condições nas suas áreas geográficas, o que muitas vezes era rejeitado por estas instituições, por falta de meios e/ou vocação para tal. Só no século XVIII são formalizadas as “Casas da Roda**” como entidades às quais cabia a recolha e assistência aos expostos em cada concelho, à exceção de Lisboa, onde a Santa Casa da Misericórdia era responsável. Genericamente, as crianças eram recebidas pela ama rodeira, limpas, alimentadas e os seus dados e características, bem como dos bens que as acompanhavam, eram registados ao pormenor. No dia seguinte, eram batizadas (se não houvesse informação de o haverem sido antes) e enviadas para amas externas, que as criavam até aos sete anos de idade. Isto teoricamente, porque as taxas de sobrevivência eram muitíssimo baixas. Todo o processo tinha inúmeras exceções e perversidades, desde mães que abandonavam os filhos e depois se iam oferecer como amas com o intuito de receber dinheiro para os criar; a municípios que patrocinavam a entrega de crianças em rodas de outros concelhos, de forma a evitar despesas...
Em Portugal não há conhecimento de tão inominável prática, mas em algumas regiões de Espanha e Itália, os expostos eram marcados com um ferro em brasa, recebendo assim uma marca indelével e medonha que os condicionaria para o resto da vida.
Mas isso é outra história...
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Os bilhetes que acompanham as crianças, tristes missivas do abandono, são todos diferentes, mas também apresentam muitas semelhanças entre si.
Seguem alguns exemplos.


sinal 311 de 1803 + texto.JPG

sinal 1208 de 1820.JPG

sinal 1320 de 1860.JPG

sinal 1365 de 1845+texto.JPG

sinal 1458 de 1872 +texto.JPG




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*O estudo consultado tem o horizonte temporal de 1790-1870 e analisou uma amostra de 7589 sinais, pertencentes a 7610 crianças.
**Na origem, as rodas eram um sistema existente nos conventos e que permitia a troca de objetos com o exterior sem que houvesse contacto com as religiosas. Este anonimato fez com que as rodas fossem usadas para abandonar crianças, assim entregues à caridade das ordens religiosas.

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As imagens de crianças são meramente ilustrativas, não correspondendo aos órfãos a cargo da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa

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Fontes

Ler sinais: os sinais dos expostos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (1790-1870), de Maria José da Cunha Porém Reis - Tese elaborada para a obtenção do grau de Doutor em História especialidade em Sociedades e Poderes – Programa Interuniversitário de Doutoramento em História - Universidade de Lisboa; ISCTE Instituto Universitário de Lisboa; Universidade Católica Portuguesa e Universidade de Évora - 2016


Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa
http://arquivomunicipal.cm-lisboa.pt/pt/

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/ACU/000725

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/ACU/001772

Joshua Benoliel
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/001538

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/001808


José Artur Leitão Bárcia
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/BAR/000043

Alberto Carlos Lima
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/LIM/000874


A sério?? 😀

 


Estava a precisar de qualquer coisa para ficar bem disposta. Já está.


Outono em Setúbal

 






A heart on fire

 




Richard Nass - ágata

A Rothko darkness

 


...and some quotes


“We live as we dream - alone. While the dream disappears, the life continues painfully.” 
― Joseph Conrad, Heart of Darkness

“It was written I should be loyal to the nightmare of my choice.” 
― Joseph Conrad, Heart of Darkness

“But her soul was mad. Being alone in the wilderness"
― Joseph Conrad, Heart of Darkness

“the mind of man is capable of anything--because everything is in it, all the past as well as the future” 
― Joseph Conrad, Heart of Darkness

I couldn't have felt more of lonely desolation somehow, had I been robbed of a belief or had missed my destiny in life...” 
― Joseph Conrad, Heart of Darkness





nº 8

1964




nº 7

1964



untitled

do livro PALOMAR, Italo Calvino





A Espada do Sol


O reflexo aparece no mar quando o sol desce: uma mancha ofuscante estende-se a partir do horizonte até à costa, feita de míriades de cintilações ondulantes; entre uma cintilação e outra o azul opaco do mar ensombra a sua rede. Os barcos, brancos em contraluz, tornam-se negros, perdem consistência e encolhem, como se tivessem sido consumidos por todas aquelas salpicadelas resplandescentes.

É a essa hora que o senhor Palomar, homem de hábitos nocturnos, dá as suas braçadas crepusculares. Entra na água, afasta-se da costa, e o reflexo do sol transforma-se numa espada cintilante, que se estende pelo mar, do horizonte até ele. O senhor Palomar nada nessa espada(...)

Enquanto o sol desce em direcção ao acaso, o reflexo branco e incandescente vai-se tingindo de ouro e de cobre. E, para onde quer que o senhor Palomar se desloque, é sempre ele o vértice daquele triângulo dourado; a espada segue-o, apontando-o como um ponteiro de relógio que tem por centro o sol.

«É uma homenagem pessoal que o sol me faz a mim, pessoalmente», sente-se tentado a pensar o senhor Palomar, ou antes, o eu egocêntrico e megalómano que nele habita. Mas o eu depressivo, ou masoquista, que coexiste com o outro no mesmo invólucro, objecta: «Todos aqueles que têm olhos podem ver este reflexo que os segue; a ilusão dos sentidos e da mente mantém-nos sempre a todos prisioneiros». Intervém então um terceiro inquilino, um eu mais imparcial: «De qualquer modo, quer dizer que eu pertenço ao grupo dos sujeitos sensíveis e pensantes, capazes de estabelecerem uma relação com os raios solares e de interpretarem e avaliarem as percepções e as ilusões».

Todos os banhistas que nadam a esta hora em direcção ao poente podem ver essa tira de luz que se dirige em direcção a eles, para se apagar um pouco mais além do ponto que as suas braçadas conseguem alcançar; cada um deles possuí um reflexo seu, que só para si tem aquela direcção, e que se desloca com ele. De ambos os lados do reflexo, o azul da água é mais escuro. «Será esse o único dado não ilusório, comum a todos, a escuridão?» pergunta a si mesmo o senhor Palomar. Mas a espada impõe-se igualmente ao olhar de cada um, não existe maneira de lhe fugir. «O que temos em comum é precisamente aquilo que é dado a cada um como exclusivamente seu?»

As pranchas de wind surf deslizam na água, cortando com rotas oblíquas o vento de terra que se levanta a esta hora. Figuras erectas seguram o aro da vela com os braços esticados como se fossem archeiros, sustendo o ar que bate com violência no pano(...)

«Tudo isto não acontece no mar, nem no sol – pensa o nadador Palomar - mas sim dentro da minha cabeça, nos circuitos entre os olhos e o cérebro. Estou a nadar na minha mente; só dentro dela é que a espada de luz existe; e é exactamente isso que me atrai. É este o meu elemento, o único que, de alguma forma, eu posso conhecer».

Mas pensa também: «Não a posso alcançar, está sempre ali à minha frente, não pode, ao mesmo tempo, estar dentro de mim e ser alguma coisa na qual eu nado; se a vejo é porque estou fora dela e ela fora de mim».

As suas braçadas tornam-se pesadas e incertas: dir-se-ia que todo o seu raciocínio, em vez de aumentar o prazer de nadar naquele reflexo, o está a estragar, como se lhe fizesse sentir uma limitação, ou uma culpa ou uma condenação. E é até uma responsabilidade à qual não pode escapar: a espada só existe porque ele está ali; se ele se fosse embora, se todos os banhistas e nadadores voltassem para a praia, ou mesmo, se se limitassem a voltar as costas ao sol, onde iria parar a espada? Num mundo que se vai desfazendo, a coisa que ele gostaria de salvar é a mais frágil: aquela ponte marinha entre os seus olhos e o sol poente. O senhor Palomar perdeu a vontade de nadar; sente frio. Mas continua: agora, será obrigado a permanecer na água até que o sol desapareça.

E então pensa: «Se eu vejo e penso e nado o reflexo, é porque na outra ponta está o sol que lança os seus raios. Só interessa a origem daquilo que é: algo que o meu olhar não pode suster senão de uma forma atenuada, como neste pôr-de-sol. Tudo o resto é reflectido entre os reflexos, incluindo eu próprio».

(...) Que alívio sentiria se pudesse anular o seu eu parcial e cheio de dúvidas, na certeza de um princípio do qual tudo derivasse! Um princípio único e absoluto, onde actos e formas encontrassem a sua origem? Ou então um certo número de princípios distintos, linhas de força cuja intersecção desse uma forma ao mundo, tal qual ele aparece, único, instante a instante? (...) Mas nada do que ele vê existe na natureza; o sol não se põe, o mar não tem aquela cor, as formas são aquelas que a luz projecta na retina. A natureza não existe?

(...) a sensação de que estamos aqui, mas poderíamos não estar, num mundo que poderia não estar aqui, mas está. (...) O senhor Palomar interroga-se o que seria o mundo sem ele: o mundo ilimitado de antes do seu nascimento, e o outro, bem mais sombrio, de depois da sua morte.

(...) Agora todas as pranchas de surf recolheram à praia e até mesmo o último banhista arrepiado - um banhista chamado Palomar – sai da água. Está convencido de que a espada existirá mesmo sem ele: finalmente, enxuga-se com uma toalha turca e regressa a casa.


Jimi Hendrix, Arendt, Kafka - o passado, o presente e o futuro ou, mais sinteticamente... cenas

 


Se fosse vivo, Jimi Hendrix faria hoje perto de 80 anos. Imaginamo-lo com 80 anos? Completamente. Como o mesmo espírito, simultaneamente inteligente, irreverente, verdadeiro e bondoso. 

O que uma pessoa não dava para ter assistido a isto... ele chega, pede desculpa por ter perdido um minuto a afinar a guitarra (lol) e depois começa a fazer magia: a tirar aqueles sons lânguidos e penetrantes de blues da guitarra que ele põe a falar como se fosse uma pessoa, totalmente concentrado e absorto como se no mundo fossem só, ele e a guitarra e se entendessem como amantes. A mão direita dele é tão grande que dá completamente a volta ao braço da guitarra e ainda sobram dedos e é por isso que ele toca a guitarra de qualquer maneira, até atrás das costas. Tão intenso e verdadeiro na música que a vibração das cordas entra pelas nossas emoções adentro.



Tive um amigo, músico, que morreu tragicamente e demasiado cedo com quem compartilhava um gosto e admiração por este indivíduo, como músico e como pessoa. Ele sabia tudo sobre o Hendrix, lia tudo, ouvia tudo, via tudo. Sabia muito mais do que eu, sendo eu da mesma época que Hendrix e ele vinte anos mais à frente, numa época de outro estilo de música muito diferente, mas era nos músicos desta época, sobretudo, que ele vivia. O que é muito interessante, quer dizer, conseguia dar sentido à força do passado e integrá-la no futuro, na questão da música. 

Aquela παραβολή de Kafka que Hanna Arendt disseca e comenta em, Entre o Passado e o Futuro -oito exercícios sobre o pensamento político:


Esta é uma parábola (a parábola tem esta característica de ser como que uma luz que penetra até à estrutura do real que quer apreender e a clarifica) que fala sobre como as forças do passado se atiram de encontro às forças do futuro e desequilibram o homem que se encontra no meio, no ponto de intersecção de ambos a tenta aguentar o choque de ambas e aguentar-se ele próprio, enquanto sonha em deixar de lutar com o passado e o futuro, mas antes encontrar o ponto do equilíbrio que corresponde à paz da compreensão de como todas as forças se conjugam.

Nesta parábola, o passado não é uma linha recta, morta, inerte, é antes uma força viva que se atira de encontro a nós - isso percebe-se, penso, se pensarmos na nossa própria história pessoal, como queremos fugir aos acontecimentos do passado que exercem pressão sobre nós e o nosso presente, sobre a nossa acção presente, mesmo que inconscientemente e chocam com o nosso futuro. 

Na história do povo humano, acontece sairmos de uma época e não haver ninguém que a tenha resolvido, em termos de sentido, de modo a podermos integrá-la no futuro, o que gera choques entre essas forças vivas do passado que se atiram, em entropia, contra nós e penetram nos orifícios da rede dos acontecimentos do presente e levam à destruição ao futuro.

Talvez, digo eu, seja essa a razão de repetirmos constantemente os mesmos erros: vem de não termos sido capazes de reflectir e encontrar um sentido unitário que se organize como herança positiva do nosso presente e futuro. Encontrar o sentido é diferente de caracterizar; por exemplo, sabemos caracterizar a guerra fria ou a crise de 2008 mas não soubémos dar-lhe um sentido e agora estamos outra vez num pântano e não sabemos sequer, se estamos a repetir os mesmos erros; assim como sabemos caracterizar as guerras do século XX europeu, mas ainda ninguém as traduzir num sentido, uma visão coerente à maneira do que fala Hegel, de modo a saber como ultrapassar esse problema; então, hoje-em-dia, todos falam do ressurgimento do fascismo mas ninguém sabe do que está a falar, se está a exagerar, se estamos em perigo e porquê. Esse talvez seja o grande desequilíbrio do fluir da história humana.

O século XX, ainda por cima, desistiu do pensamento, como diz Arendt. Não sabendo resolver os problemas metafísicos deixados por Kant, varreu-os para o lado e escolheu o caminho da acção, encarnado no existencialismo. Só que a acção tem implícita um pensamento: as tais forças do passado que se atiram contra o futuro e nos desequilibram no presente, onde estamos.

Enfim, fica aqui esta explosão de música sem um segundo de monotonia ou ausência de virtuosismo - uma autêntica enciclopédia de possibilidades de sons, que nos põe -pelo menos a mim- num lugar qualquer estratosférico. Ele tem a técnica, o talento, a originalidade, o virtuosismo, a criatividade, o sentimento. É um músico completo.

Jimi Hendrix faz-me lembrar uma estrela que vi explodir num céu de Agosto há muitos anos, lá em baixo no Algarve: parece ter aparecido de repente mas sabemos que viajou, talvez mil anos, até explodir em nossa frente, depois de um breve fulgor a iluminar o céu. Ele morreu com 26 anos, mais ou menos a idade com que morreu o meu amigo, também...

 Quantos anos e que conjugação de forças é necessário que se passem neste universo para produzir uma força e um talento destes? Não sabemos, mas felizmente já havia gravadores e filmes que o deixaram, a ele e à sua música, connosco.