November 27, 2020

do livro PALOMAR, Italo Calvino





A Espada do Sol


O reflexo aparece no mar quando o sol desce: uma mancha ofuscante estende-se a partir do horizonte até à costa, feita de míriades de cintilações ondulantes; entre uma cintilação e outra o azul opaco do mar ensombra a sua rede. Os barcos, brancos em contraluz, tornam-se negros, perdem consistência e encolhem, como se tivessem sido consumidos por todas aquelas salpicadelas resplandescentes.

É a essa hora que o senhor Palomar, homem de hábitos nocturnos, dá as suas braçadas crepusculares. Entra na água, afasta-se da costa, e o reflexo do sol transforma-se numa espada cintilante, que se estende pelo mar, do horizonte até ele. O senhor Palomar nada nessa espada(...)

Enquanto o sol desce em direcção ao acaso, o reflexo branco e incandescente vai-se tingindo de ouro e de cobre. E, para onde quer que o senhor Palomar se desloque, é sempre ele o vértice daquele triângulo dourado; a espada segue-o, apontando-o como um ponteiro de relógio que tem por centro o sol.

«É uma homenagem pessoal que o sol me faz a mim, pessoalmente», sente-se tentado a pensar o senhor Palomar, ou antes, o eu egocêntrico e megalómano que nele habita. Mas o eu depressivo, ou masoquista, que coexiste com o outro no mesmo invólucro, objecta: «Todos aqueles que têm olhos podem ver este reflexo que os segue; a ilusão dos sentidos e da mente mantém-nos sempre a todos prisioneiros». Intervém então um terceiro inquilino, um eu mais imparcial: «De qualquer modo, quer dizer que eu pertenço ao grupo dos sujeitos sensíveis e pensantes, capazes de estabelecerem uma relação com os raios solares e de interpretarem e avaliarem as percepções e as ilusões».

Todos os banhistas que nadam a esta hora em direcção ao poente podem ver essa tira de luz que se dirige em direcção a eles, para se apagar um pouco mais além do ponto que as suas braçadas conseguem alcançar; cada um deles possuí um reflexo seu, que só para si tem aquela direcção, e que se desloca com ele. De ambos os lados do reflexo, o azul da água é mais escuro. «Será esse o único dado não ilusório, comum a todos, a escuridão?» pergunta a si mesmo o senhor Palomar. Mas a espada impõe-se igualmente ao olhar de cada um, não existe maneira de lhe fugir. «O que temos em comum é precisamente aquilo que é dado a cada um como exclusivamente seu?»

As pranchas de wind surf deslizam na água, cortando com rotas oblíquas o vento de terra que se levanta a esta hora. Figuras erectas seguram o aro da vela com os braços esticados como se fossem archeiros, sustendo o ar que bate com violência no pano(...)

«Tudo isto não acontece no mar, nem no sol – pensa o nadador Palomar - mas sim dentro da minha cabeça, nos circuitos entre os olhos e o cérebro. Estou a nadar na minha mente; só dentro dela é que a espada de luz existe; e é exactamente isso que me atrai. É este o meu elemento, o único que, de alguma forma, eu posso conhecer».

Mas pensa também: «Não a posso alcançar, está sempre ali à minha frente, não pode, ao mesmo tempo, estar dentro de mim e ser alguma coisa na qual eu nado; se a vejo é porque estou fora dela e ela fora de mim».

As suas braçadas tornam-se pesadas e incertas: dir-se-ia que todo o seu raciocínio, em vez de aumentar o prazer de nadar naquele reflexo, o está a estragar, como se lhe fizesse sentir uma limitação, ou uma culpa ou uma condenação. E é até uma responsabilidade à qual não pode escapar: a espada só existe porque ele está ali; se ele se fosse embora, se todos os banhistas e nadadores voltassem para a praia, ou mesmo, se se limitassem a voltar as costas ao sol, onde iria parar a espada? Num mundo que se vai desfazendo, a coisa que ele gostaria de salvar é a mais frágil: aquela ponte marinha entre os seus olhos e o sol poente. O senhor Palomar perdeu a vontade de nadar; sente frio. Mas continua: agora, será obrigado a permanecer na água até que o sol desapareça.

E então pensa: «Se eu vejo e penso e nado o reflexo, é porque na outra ponta está o sol que lança os seus raios. Só interessa a origem daquilo que é: algo que o meu olhar não pode suster senão de uma forma atenuada, como neste pôr-de-sol. Tudo o resto é reflectido entre os reflexos, incluindo eu próprio».

(...) Que alívio sentiria se pudesse anular o seu eu parcial e cheio de dúvidas, na certeza de um princípio do qual tudo derivasse! Um princípio único e absoluto, onde actos e formas encontrassem a sua origem? Ou então um certo número de princípios distintos, linhas de força cuja intersecção desse uma forma ao mundo, tal qual ele aparece, único, instante a instante? (...) Mas nada do que ele vê existe na natureza; o sol não se põe, o mar não tem aquela cor, as formas são aquelas que a luz projecta na retina. A natureza não existe?

(...) a sensação de que estamos aqui, mas poderíamos não estar, num mundo que poderia não estar aqui, mas está. (...) O senhor Palomar interroga-se o que seria o mundo sem ele: o mundo ilimitado de antes do seu nascimento, e o outro, bem mais sombrio, de depois da sua morte.

(...) Agora todas as pranchas de surf recolheram à praia e até mesmo o último banhista arrepiado - um banhista chamado Palomar – sai da água. Está convencido de que a espada existirá mesmo sem ele: finalmente, enxuga-se com uma toalha turca e regressa a casa.


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