November 27, 2020

Jimi Hendrix, Arendt, Kafka - o passado, o presente e o futuro ou, mais sinteticamente... cenas

 


Se fosse vivo, Jimi Hendrix faria hoje perto de 80 anos. Imaginamo-lo com 80 anos? Completamente. Como o mesmo espírito, simultaneamente inteligente, irreverente, verdadeiro e bondoso. 

O que uma pessoa não dava para ter assistido a isto... ele chega, pede desculpa por ter perdido um minuto a afinar a guitarra (lol) e depois começa a fazer magia: a tirar aqueles sons lânguidos e penetrantes de blues da guitarra que ele põe a falar como se fosse uma pessoa, totalmente concentrado e absorto como se no mundo fossem só, ele e a guitarra e se entendessem como amantes. A mão direita dele é tão grande que dá completamente a volta ao braço da guitarra e ainda sobram dedos e é por isso que ele toca a guitarra de qualquer maneira, até atrás das costas. Tão intenso e verdadeiro na música que a vibração das cordas entra pelas nossas emoções adentro.



Tive um amigo, músico, que morreu tragicamente e demasiado cedo com quem compartilhava um gosto e admiração por este indivíduo, como músico e como pessoa. Ele sabia tudo sobre o Hendrix, lia tudo, ouvia tudo, via tudo. Sabia muito mais do que eu, sendo eu da mesma época que Hendrix e ele vinte anos mais à frente, numa época de outro estilo de música muito diferente, mas era nos músicos desta época, sobretudo, que ele vivia. O que é muito interessante, quer dizer, conseguia dar sentido à força do passado e integrá-la no futuro, na questão da música. 

Aquela παραβολή de Kafka que Hanna Arendt disseca e comenta em, Entre o Passado e o Futuro -oito exercícios sobre o pensamento político:


Esta é uma parábola (a parábola tem esta característica de ser como que uma luz que penetra até à estrutura do real que quer apreender e a clarifica) que fala sobre como as forças do passado se atiram de encontro às forças do futuro e desequilibram o homem que se encontra no meio, no ponto de intersecção de ambos a tenta aguentar o choque de ambas e aguentar-se ele próprio, enquanto sonha em deixar de lutar com o passado e o futuro, mas antes encontrar o ponto do equilíbrio que corresponde à paz da compreensão de como todas as forças se conjugam.

Nesta parábola, o passado não é uma linha recta, morta, inerte, é antes uma força viva que se atira de encontro a nós - isso percebe-se, penso, se pensarmos na nossa própria história pessoal, como queremos fugir aos acontecimentos do passado que exercem pressão sobre nós e o nosso presente, sobre a nossa acção presente, mesmo que inconscientemente e chocam com o nosso futuro. 

Na história do povo humano, acontece sairmos de uma época e não haver ninguém que a tenha resolvido, em termos de sentido, de modo a podermos integrá-la no futuro, o que gera choques entre essas forças vivas do passado que se atiram, em entropia, contra nós e penetram nos orifícios da rede dos acontecimentos do presente e levam à destruição ao futuro.

Talvez, digo eu, seja essa a razão de repetirmos constantemente os mesmos erros: vem de não termos sido capazes de reflectir e encontrar um sentido unitário que se organize como herança positiva do nosso presente e futuro. Encontrar o sentido é diferente de caracterizar; por exemplo, sabemos caracterizar a guerra fria ou a crise de 2008 mas não soubémos dar-lhe um sentido e agora estamos outra vez num pântano e não sabemos sequer, se estamos a repetir os mesmos erros; assim como sabemos caracterizar as guerras do século XX europeu, mas ainda ninguém as traduzir num sentido, uma visão coerente à maneira do que fala Hegel, de modo a saber como ultrapassar esse problema; então, hoje-em-dia, todos falam do ressurgimento do fascismo mas ninguém sabe do que está a falar, se está a exagerar, se estamos em perigo e porquê. Esse talvez seja o grande desequilíbrio do fluir da história humana.

O século XX, ainda por cima, desistiu do pensamento, como diz Arendt. Não sabendo resolver os problemas metafísicos deixados por Kant, varreu-os para o lado e escolheu o caminho da acção, encarnado no existencialismo. Só que a acção tem implícita um pensamento: as tais forças do passado que se atiram contra o futuro e nos desequilibram no presente, onde estamos.

Enfim, fica aqui esta explosão de música sem um segundo de monotonia ou ausência de virtuosismo - uma autêntica enciclopédia de possibilidades de sons, que nos põe -pelo menos a mim- num lugar qualquer estratosférico. Ele tem a técnica, o talento, a originalidade, o virtuosismo, a criatividade, o sentimento. É um músico completo.

Jimi Hendrix faz-me lembrar uma estrela que vi explodir num céu de Agosto há muitos anos, lá em baixo no Algarve: parece ter aparecido de repente mas sabemos que viajou, talvez mil anos, até explodir em nossa frente, depois de um breve fulgor a iluminar o céu. Ele morreu com 26 anos, mais ou menos a idade com que morreu o meu amigo, também...

 Quantos anos e que conjugação de forças é necessário que se passem neste universo para produzir uma força e um talento destes? Não sabemos, mas felizmente já havia gravadores e filmes que o deixaram, a ele e à sua música, connosco.


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