O artista mais inesperadamente edificante e consolador do século XX foi o pintor abstracto Mark Rothko, o sumo sacerdote da dor e da perda, que passou a última parte da sua carreira a revelar uma sucessão de telas sublimes e sombrias que falavam, como ele disse, da "tragédia de ser humano" - e que, aos 66 anos de idade, em 1970, no seu estúdio em Nova Iorque, cometeu suicídio tomando excesso de barbitúricos e cortando os pulsos.
Nascido em Dvinsk, Rússia, Rothko emigrou para os Estados Unidos com a idade de dez anos e imediatamente desprezou a boa disposição e optimismo agressivos da sua nova terra.
Apreensivo com o sentimentalismo à sua volta, aprendeu a fazer arte insular, implacável, sombria e orientada para a dor. Era, disse um crítico, o equivalente visual do último suspiro de um prisioneiro condenado. As cores preferidas de Rothko eram um grená queimado, o cinzento escuro, o negro e o vermelho sangue, ocasionalmente atenuado por uma lasca de amarelo.
Em 1958, foi oferecida a Rothko uma grande quantia de dinheiro para pintar alguns murais para um restaurante opulento de Nova Iorque, o Four Seasons na Park Avenue, para a sua inauguração.
Era, como ele disse, "um lugar onde os bastardos mais ricos de Nova Iorque viriam para se alimentar e exibir". As suas intenções para os murais depressa se tornaram claras: 'espero arruinar o apetite de todos os filhos da mãe que alguma vez comeram naquela sala' e, com esse fim, pôs-se a trabalhar em alguns grandes campos de cores negras e castanhas, expressando um clima de terror e angústia arcaica.
Era uma comissão improvável para Rothko aceitar, mas tornou-se ainda mais difícil de aceitar quando, após uma viagem a Itália (onde se comoveu muito com as telas da crucificação de Giotto), no Outono de 1959, levou a sua esposa Mell ao restaurante, para almoçar. O seu ódio tornou-se avassalador. Acreditando que era "criminoso gastar mais de 5 dólares numa refeição", não conseguia aceitar os pratos excessivamente caros, os molhos extravagantes e o pomposo pessoal do restaurante.
'Quem quiser comer esse tipo de comida por esse tipo de preços nunca olhará para um quadro meu', prometeu ele. Ele odiava aquela clientela: bronzeados, pessoas ricas e alegres, saíam para celebrar e exibir-se, para fazer negócios e trocar mexericos, os aparentemente vencedores da vida, os que investiram em lições de ténis e branqueamento de dentes.
O seu ódio por eles tinha as suas raízes no seu sentido de que só acedemos à nossa humanidade quando enfrentamos a dor e comungamos à nossa volta com compaixão e humildade. Qualquer outra coisa é grandiosidade e orgulho. Rothko tinha permanecido russo na sua alma.
Após o almoço, Rothko chamou os seus patronos, explicou os seus sentimentos e devolveu o dinheiro. Depois entregou os seus quadros à Tate Gallery de Londres, onde foram pendurados num espaço de contemplação arejado e silencioso, que encerrava o espectador numa atmosfera de mortificação meditativa. Os quadros continuam a ser companheiros ideais para os visitantes que entram na galeria à deriva, que podem estar a tentar ultrapassar a perda de um parceiro ou a ruína da sua carreira - e que precisam de saber que não estão sozinhos. A arte de Rothko não lhe salvou a vida a ele, mas terá impedido muitos outros de se suicidarem.
No. 61 (Rust and Blue), 1953. Photo by Rocor from Flickr.
As telas de Rothko - embora centradas na escuridão - nunca são deprimentes de se olhar porque emprestam dignidade e legitimidade às nossas dificuldades.
Banhar-se na sua atmosfera é ganhar uma distinta sensação de conforto, como deitar-se nos braços de uma pessoa terna que apenas diz "eu sei" em resposta ao nosso desabafo de desânimo e perda.
Com Rothko como nosso guia, importa um pouco menos que o mundo esteja na sua maioria cheio de ruidosos, impetuosos, aparentes vencedores, que ninguém se preocupe muito connosco, que tenhamos falhado em inúmeras áreas, que o nosso nome não esteja nas luzes, que tenhamos inimigos e que já não sejamos jovens.
É-nos oferecido um refúgio das vozes impulsionadoras da sociedade contemporânea e somos capazes de localizar de forma externa obras que ecoam as nossas próprias tristezas confusas e incómodas.
Grande parte da nossa miséria é causada pelo pressuposto cruel e erróneo de que a vida pode ser fundamentalmente uma viagem agradável, capaz de proporcionar satisfação e prazer àqueles que trabalham arduamente e retêm corações nobres e propositados. A verdade não poderia estar mais longe de uma visão tão sentimental.
A agonia está impregnada na condição humana. Estamos a sofrer, não por coincidência, mas por necessidade. Podemos estar concentrados nos erros e crueldades particulares que nos levaram a um ponto depressivo, podemos estar estreitamente preocupados com o que os nossos inimigos nos fizeram, como alguns poucos erros nos custaram tudo ou como fomos abandonados por aqueles que deveriam ter cuidado de nós.
Porém, não é para minimizar estes problemas que insistimos em que são meras manifestações locais do que na realidade são problemas mais globais e endémicos. São apenas os mecanismos específicos pelos quais viemos a saborear a tristeza que - fosse qual fosse o nosso destino - teria sido sempre a nossa sorte pois que é o fardo terrível inerente ao nascimento de todo o ser humano. Em última análise, todos devemos beber a mesma quantidade de líquido envenenado da taça da tristeza, mesmo que em goles diferentes e em momentos diferentes. Ninguém consegue passar incólume.
Yellow and Orange, 1949. Photo by Rocor from Flickr.
No entanto, não só estamos tristes, como estamos isolados e solitários na nossa tristeza, já que a narrativa oficial é imensamente optimista e insiste em que podemos encontrar o parceiro certo, que o trabalho pode proporcionar satisfação, que os destinos são justos e que não há razão inerente para lamentarmos o nosso estado.
Contudo, não merecemos - para além de tudo o resto - ser obrigados a sorrir. Deveríamos ser autorizados a chorar sem que nos chateassem com discursos de positividade. O nosso verdadeiro direito negligenciado não é, afinal, o direito à felicidade; é o direito de sermos infelizes.
Isto pode parecer longe de ser uma razão para viver - mas a capacidade de olhar a escuridão de frente e aceitar o seu papel nos nossos assuntos funciona como a sua própria recompensa muito particular e intensa.
Não devemos continuar a ser surpreendidos pelo nosso sofrimento. Não devemos continuar a ser tomados de surpresa pela miséria. Já não temos de sentir que as nossos revezes de fortuna dizem algo único e chocante a nosso respeito. Podemos começar a redescobrir um gosto pela vida quando vemos que não estamos sozinhos em querer desistir dela; que é aceitável, mesmo necessário, por vezes odiar os "bastardos" sorridentes que tanto irritaram Rothko e irritam qualquer outra pessoa com coração.
Podemos construir amizades - imaginativas, artísticas ou reais - em torno da honestidade partilhada sobre a tragédia. Teremos depositado a nossa primeira razão de viver quando soubermos que não somos excepcionalmente estúpidos por acharmos as coisas muito difíceis. A infelicidade é - como artistas sábios sempre gostaram de nos lembrar e apesar das sugestões de todos os anúncios, das brochuras e das pessoas confiantes que se congratulam nos restaurantes chiques do mundo - muito normal, de facto.
Now applied in thin washes (often composed of both oil and egg-based media), Rothko's color achieved a new luminosity. The artist's technique appears simple, but on close examination is richly varied in its range of effects. At times, paint can be seen running upward across the surface; this is because Rothko often inverted a picture while working on it, sometimes changing the final orientation at a late stage.
“Often, towards nightfall, there’s a feeling in the air of mystery, threat, frustration – all of these at once. I would like my painting to have the quality of such moments.” (the artist cited in David Anfam, Mark Rothko: The Works on Canvas: Catalogue Raisonné, New Haven and London, 1998, p. 88),
“Pictures must be miraculous: the instant one is completed, the intimacy between the creation and the creator is ended. He is an outsider. The picture must be for him, as for anyone experiencing it later, a revelation, an unexpected and unprecedented resolution of an eternally familiar need.” Mark Rothko, "The Romantics were Prompted…,” Possibilities, New York, No. 1, Winter 1947-48, p. 84
Rothko foi um pintor americano expressionista abstracto. O Expressionismo abstracto que vem dos anos 40 e 50 do século XX quer fazer arte que seja ao mesmo tempo abstracta e emocional, expressiva. Foram influenciados pelo surrealismo, pela ideia de que a arte deve vir do inconsciente e também pelo automatismo de Miró: a ideia de que a mão do artista, mais do que afirmativa, deve ser veículo das forças inconscientes. Entre os expressionistas abstractos há os que atacam as telas como Pollock e de Kooning e os que as enchem de uma única cor como Barnett Newman, Clyfford Still e Rothko. Foi Rothko quem, com o seu sucesso, chamou a atenção para o expressioniso abstracto que antes dele era um nicho da arte pouco conhecido. Rothko é influenciado por outros: vemos algo de Turner nas suas obras, bem como da luminosidade de alguns impressionistas e o uso táctil da cor de Giotto - a capacidade de usar a cor para gerar atmosferas. E há algo dos românticos nas suas obras: a arte como um escape contemplativo e meditativo do mundo.
Estes pintores estavam profundamente interessados no mito e criaram composições simples com grandes áreas de cores destinadas a produzir uma resposta contemplativa ou meditativa no espectador. São telas sobre o drama humano de ser.
It would be good if little places could be set up all over the country, like a little chapel where the traveler, or wanderer could come for an hour to meditate on a single painting hung in a small room, and by itself.” (the artist cited in Exh. Cat., Riehen/Basel, Fondation Beyeler, Mark Rothko: A Consummated Experience Between Picture and Onlooker, 2001, p. 22)
Mais do que criar arranjos de formas e cores queriam expressar emoções humanas profundas. Rothko pintava muitas vezes atormentado pelas suas emoções. Gostava de supervisionar a disposição das suas telas expostas e queria que ocupassem, sozinhas, de preferência mais do que uma, lado a lado, uma sala inteira. A ideia era pôr o espectador numa situação imersiva, como se diz hoje, completamente mergulhado em si mesmo a partir das telas, sem distrações que o desviassem desse, 'mergulhar em si'.
“I paint very large pictures…precisely because I want to be very intimate and human. To paint a small picture is to place yourself outside your experience…However you paint the larger picture, you are in it. It isn’t something you command.” (Exh. Cat., London, Tate Gallery, Op. Cit., p. 85)
As telas de Rothko distinguem-se de todas as outras -pelo menos é assim que as vejo, sinto e penso- pela textura emocional e profundidade plástica. Por exemplo, esta pintura neste tom é tão brilhante que quase se ouve, tem uma textura sonora e depois, as linhas de ruptura e manchas criam camadas de profundidade plástica. O que quero dizer é que a pintura dele convoca as nossas emoções (que têm cores consoante são mais pesadas, vibrantes, afirmativas, depressivas, leves, etc.) como faz a música que tem essa capacidade de fazer bypass da razão e ir directamente à emoção e ao inconsciente e desassossegá-los. Faz isso ao mesmo tempo que se adapta à profundidade de cada um e é a isso que chamo profundidade plástica: pessoas com profundidades, dramas e experiências diferentes vão dentro da tela até onde podem e a pintura aceita-as a todas, se é que me faço entender.
A apreciação de uma obra destas de Rothko, mais do que outras figurativas, tem de fazer-se em presença se queremos ser afectados pelo seu poder metamorfoseador. É o mesmo que vermos na internet uma fotografia do pico de uma montanha ou a beira de um precipício. Sim, ficamos com uma ideia da grandiosidade, até majestade, do pico e do perigo do precipício, mas a sensação de esmagamento diante do pico ou de excitação e medo perante o precipício, essa emoções que ficam em nós e nos movimentam o arranjo interno, só mesmo estando lá em frente deles. Com estas telas é a mesma coisa (uma das minhas viagens de sonho era fazer um roteiro tendo como pontos de paragem, algumas obras de arte, que queria muito ver ou rever, entre elas muitas de Rothko)
As obras de Rothko são das que mais têm um poder terapêutico e pedagógico - um guia que ajuda a fazer viagens dentro dos nosso próprios picos e precipícios e a sair de lá, não só intactos mas com a força criativa que a visão desses sítios de difícil acesso proporcionam, longe da placidez das superfícies planas.
Rothko era um leitor convicto de Nietzsche.
De onde nasce o instinto para a expressão artística em geral, do artista e do ser humano comum? Ou já nasce de algum modo com a pessoa, essa visão diferente de percepcionar a realidade, como acontece com os artistas, ou nasce associada a um acontecimento emocional forte, como o amor, por exemplo, que altera, expande, a percepção da realidade e põe as pessoas a escrever poesia. Portanto, é da revelação de certas regiões internas que não eram exploradas que nasce o impulso criador e a possibilidade de plenitude. A vida rica, criativa e livre implica uma pedagogia do 'eu'. Tal como a vida, as obras de Rothko precisam do investimento do humano nelas.
“There is a need for a whole world of torment in order for the individual to sit quietly in his rocking row-boat in mid-sea, absorbed in contemplation.” (Friedrich Nietzsche, The Birth of Tragedy, translation by Francis Golffing, New York, 1956, pp. 33-34)
Esta pintura, hoje, faz-me pensar nos horizontes de possibilidades da existência. Como tudo recomeça. O amarelo brilhante como o sol é quente e esse calor enche a tela toda até às bordas e transborda para dentro de mim. Há um fluir de cor e de luz, uma atmosfera etérea, neste infinita, mas densa -nas zonas superiores onde sombras sublinham- explosão de luz. Há uma linha vermelha de vida mas muito ténue, quase rosada que não perturba dramaticamente esta sensação de plenitude de expansão do 'eu' e de exaltação da vida. E depois em baixo, o amarelo é um mar de calma com zonas de profundidade. Uma tela optimista e cheia de força vital.
“We live as we dream - alone. While the dream disappears, the life continues painfully.” ― Joseph Conrad, Heart of Darkness
“It was written I should be loyal to the nightmare of my choice.” ― Joseph Conrad, Heart of Darkness
“But her soul was mad. Being alone in the wilderness" ― Joseph Conrad, Heart of Darkness
“the mind of man is capable of anything--because everything is in it, all the past as well as the future” ― Joseph Conrad, Heart of Darkness
I couldn't have felt more of lonely desolation somehow, had I been robbed of a belief or had missed my destiny in life...” ― Joseph Conrad, Heart of Darkness