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October 27, 2024

Isto é muito difícil

 


No meio de uma multidão pró-Palestina, agressiva, como é hábito nesses manifestantes, um polícia está sozinho com outro e mantém-os afastados, com autoridade, mas sem violência. Conseguimos ver na sua expressão a tensão em que está, apesar de aparentar estar calmo. Isto é muito difícil de fazer e geralmente, o que acontece nestas situações é a polícia sentir-se insegura, ficar num excesso de tensão e responder com excesso de força, porque é preciso ter inteligência, muita experiência, muito-sangue frio e muito auto-controlo para se manter firme e com autoridade, sem violência, quando se está em minoria no meio de um ajuntamento de pessoas com comportamentos agressivos, sem saber se estão armados.

Não há nenhum professor que dê aulas há muitos anos que não tenha já tido experiência desta situação, mais do que uma vez: ter delinquentes dentro da sala de aula, geralmente com dois ou três apoiantes (às vezes indivíduos grandes, com dezasseis ou dezassete anos) ser provocado com agressividade e ter de manter o sangue-frio e a autoridade sem perder a racionalidade - com os outros 26 alunos a observar a cena para saberem o que podem fazer dali para a frente. É muito difícil manter-se calmo e muito fácil perder a racionalidade.

Se o nosso país não tivesse tantos problemas de justiça social, de desinvestimento nos serviços públicos, no ordenamento do território urbano e na cultura, talvez tivesse menos bairros problemáticos com pessoas problemáticas. Porém, mesmo nesse caso e tendo uma polícia bem formada, nada resulta se a polícia estiver em minoria e se sentir insegura no que respeita à sua integridade física.


October 18, 2024

O problema das agressões a professores não se resolve porque as autoridades tratam-nos como coitadinhos




Há alunos que vão para a escola fazer bullying a colegas e professores e quando os levam a tribunal os juízes tratam-nos como coitadinhos. Os pais tratam-nos como vítimas, embora na maioria dos casos haja uma responsabilidade que nunca é, sequer, abordada. As próprias direcções de muitas escolas tratam-nos como coitadinhos. Alunos violentos que agridem professores não têm lugar nas escolas. Têm de ir para outros sítios ser tratados por especialistas. Depois de tratados, então voltam à escola. Um aluno destes estraga turmas inteiras.


Professora agredida na sala-de-aula por aluna em Abrantes

Uma professora foi agredida, ao final da manhã desta quinta-feira, 17 de Outubro, por uma aluna do sexto ano da Escola Básica e Secundária Dr. Solano de Abreu, em Abrantes. Ao que O MIRANTE apurou a agressão ocorreu dentro da sala-de-aula, pouco depois das 12h00, não tendo a agressão causado ferimentos graves na docente.

Contactada pelo nosso jornal a directora do Agrupamento de Escolas Número 1 de Abrantes, Ana Rico, confirma e lamenta o episódio de agressão, adiantando que estão a ser tomados os procedimentos habituais neste tipo de casos. O encarregado de educação da aluna em causa, afiançou, já foi contactado pela direcção.

Segundo Ana Rico não são recorrentes episódios de agressão de alunos a professores no agrupamento que dirige, recordando-se apenas de uma situação que terá mais de sete anos.

A vereadora com o pelouro da Educação, também contactada por O MIRANTE, refere que já tinha tomado conhecimento do sucedido através da direcção do agrupamento, na qual, vincou, confia plenamente para gerir a situação. Celeste Simão afirmou ainda que espera que o caso tenha sido, como é de esperar, reportado às entidades competentes, nomeadamente a Polícia de Segurança Pública, Comissão de Protecção de Crianças e Jovens e Ministério Público.

September 25, 2024

Perturbador

 


Há pouco tempo fui dar com uma série na TV que nunca tinha visto, mas que pelos vistos já dura há 25 anos. Chama-se Lei e Ordem: SVU e é sobre um unidade da polícia dedicada a crimes sexuais. Depois de descobrir a série fui ver os primeiros episódios e vou vendo paralelamente os episódios antigos e os novos. A série é bastante boa. A série começou nos anos 90 quando violar mulheres era considerado um favor sexual que se lhes fazia, sobretudo se não eram bonitas - mesmo que os homens fossem nojentos. A semana passada li uma entrevista com a actriz principal. Ela diz que quando começou a série sabia muito pouco de crimes sexuais e que as vinte e cinco temporadas da série têm sido uma benção e uma maldição. Uma maldição porque todos os episódios são de histórias que aconteceram, embora ficcionadas para efeitos de serem filmes de TV. O que vemos na série, episódio, após episódio é uma educação dos rapazes virada para a violência sobre as mulheres. Vemos a sociedade ser cúmplice da violência contra as mulheres. Se começamos a ver isto com regularidade e sem distanciamento e relativização mudamos a ideia geral sobre os rapazes e os homens. Poe exemplo, no episódio de hoje, uma congregação religiosa do Kansas vai a NY a umas palestras e uma das raparigas é violada. O reverendo aparece a dizer que não tem importância porque as raparigas têm que ser virgens para agradar a Deus, mas se um rapaz vê que ela está em perigo de ser desviada por uma amiga homossexual, pode violá-la porque Deus considera que é um coito curativo: cura-lhe a alma. Os pais da rapariga apoiam isto, o violador diz que lhe fez um favor porque lhe salvou a alma. No fim, vem a saber-se que o reverendo foi quem o mandou violar a rapaiga, como penitência de ele ser homossexual. Estas pessoas das religiões são obcecado por sexo e por virgens, gente com graves problemas mentais. E são encarregues de educar os jovens. Estas histórias não são ficção, são escritas a partir de casos que aconteceram. A educação dos homens precisa de grandes mudanças. Grandes mudanças.


September 22, 2024

A violência contra as mulheres está a aumentar no mundo




Espanha pretende abolir a prostituição

País vizinho realizou o primeiro macro-estudo sobre esta realidade, e quer legislar

Joana Rei

Pelo menos 114 576 mulheres vivem em situação de prostituição em Espanha, 80% das quais - 92.496 - estão em risco de exploração sexual. Os dados são do primeiro macro-estudo sobre a prostituição feito no país, divulgado esta semana. “O que não se fala não existe. É necessário ter um número aproximado de uma população oculta e de difícil acesso como as mulheres vítimas de tráfico, exploração sexual e prostituição, para podermos conhecer a magnitude do problema e enfrentá-lo com políticas públicas”, afirmou Ana Redondo, ministra da Igualdade.

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A violência contra as mulheres está a aumentar no mundo com mais crimes e mais violentos e tentativas de cortar ou até abolir direitos fundamentais como o direito à IVG (os EUA estão a talibanizar-se em muitos Estados republicanos onde vigora a seita neo-calvinista evangélica) ou o direito ao trabalho (aqui no país houve, há pouco tempo, uma tentativa de inscrever na Constituição que o lugar das mulheres é em casa - subordinadas aos maridos). Nos países islâmicos onde houve uma grande evolução nos anos 70 e 80 e depois na Primavera Árabe, há agora uma regressão à escravatura - não metafórica. No Brasil e América Latina obrigam-se raparigas de 10 anos a ter filhos de incesto e mulheres a ter filhos de violadores. Há pouco tempo um adolescente matou várias raparigas que gostam de Taylor Swift. Os Incels perseguem e aterrorizam mulheres. Os crimes de violência doméstica são a causa de quase metade das mortes de mulheres na Europa.

Pessoalmente penso que a disseminação da pornografia e a banalização da prostituição estão ligadas a estes danos. A prostituição e a pornografia, que andam de mão dada e que são duas faces da mesma moeda de violência e subjugação de mulheres, que costumavam ser restritas a certos meios, idades, são agora um veículo de educação das crianças logo aos 10 ou 11 anos, o que significa que as crianças são educadas na ideia de que é normal exercer violência sobre as mulheres, que as mulheres são objectos para humilhar, para castigar com sevícias e subordinar e que a sexualidade é um domínio sobre as mulheres.

Na década de 1980 a escritora e activista Andrea Dworkin e a jurista Catharine MacKinnon pediram ao tribunal para criar uma causa de acção por danos sofridos devido à pornografia com a seguinte premissa: 

"As representações de subordinação tendem a perpetuar a subordinação. “

A pornografia afecta a forma como as pessoas vêem o mundo, os seus semelhantes e as relações sociais. Se a pornografia é, o que a pornografia faz, o mesmo acontece com outros discursos e práticas. Os discursos de Hitler afectaram a forma como alguns alemães viam os judeus. 

Alguém na República de Weimar, em 1930, que pensasse que Hitler e os nazis deviam ser encerrados porque o seu discurso era muito perigoso, estaria de facto correcto: Hitler e os nazis tornaram claro o mal que pretendiam fazer.

A pornografia e a prostituição, actividades que se exercem em contexto de violência, de crime, de tráfico sexual, de drogas e de miséria moral já mudaram os hábitos sociais. Nestes últimos 20 anos vimos as raparigas adoptarem as práticas da prostituição e da pornografia nos hábitos sexuais, na maneira de vestir e de calçar, sempre extremamente sexualizadas, no modo como são pressionadas a apresentam o corpo sem um único pelo a não ser na cabeça. 

Com os homens a serem educados na expectativas de as mulheres se comportarem como atrizes de pornografia e prostitutas, isto é, com submissão e subjugação, não admira que a violência contra as mulheres não pára de crescer.

Parece que a misoginia está em todo o lado e está a piorar: nos últimos cinco anos, em Inglaterra e no País de Gales, os crimes violentos contra mulheres e raparigas aumentaram 37%. Alona Ferber escreve  sobre o fluxo constante de histórias de abuso masculino contra mulheres.

A misoginia não é ódio contra as mulheres. A misóginia é desejo de poder e controlo sobre as mulheres. São os homens a querem voltar ao tempo em que tinham (pelo menos) uma mulher que dependia deles económica e socialmente e a quem podiam bater ou até matar porque tinham sobre elas poder absoluto. Não faz três séculos, via-se mulheres com freios de castigo que na prática eram uma gaiola de ferro que lhes enfiavam na cabeça com um freio com espigões na boca para não poderem falar. Podias ser passeadas pelas ruas, por ordem dos maridos, para serem mais humilhadas. As mulheres que tinham actividades de curandeiras ou outras que pudessem competir com homens eram acusadas de bruxaria e queimadas, para aprenderem que o seu lugar era sempre atrás dos homens. No século XX pais e maridos que entendiam que as filhas e mulheres tinham demasiadas opiniões mandavam fazer-lhes uma lobotomia - sendo o caso da filha dos Kennedys o mais famoso. Até há uma vintena de anos era legal um marido violar a mulher pois esta tinha de cumprir os votos do matrimónio que Deus mandava, sempre que ele quisesse. 

No Ocidente já não fazemos isto de cortar o nariz às mulheres adulteras, mas há muitos sítios do mundo onde ainda se faz isto e muito mais.

A misoginia é o desejo de voltar a estes tempos em que o planeta era dos homens e as mulheres estavam restringidas a certos espaços controlados pelos homens e lhes obedeciam. Eram tempos em que um tipo qualquer, fosse um preguiçoso, um bêbedo, um ordinário ou um porco violento tinha sempre acesso a uma mulher obediente pois o único modo de sobrevivência da maioria das mulheres era o casamento. Como ainda acontece em muitos países islâmicos.

A prostituição e a pornografia são dois meios de degradar as mulheres e disseminar a ideia de que é normal que as mulheres sejam subjugadas, dominadas, maltratadas, degradadas, compradas e vendidas, traficadas, exploradas, tudo feito pelos homens, dentro da lei.

Eu sei que não se acaba com a prostituição nem com a pornografia (nem sou a favor de proibir tout court), mas a legalização da violência contra as mulheres só tem gerado mais violência e é preciso fazer qualquer coisa. Pelo menos quanto à pornografia, pode-se tirá-la das mãos de crianças e adolescentes precoces, -proibir-lhes o acesso- e substituí-la por uma educação sexual, nas escolas. 


September 14, 2024

As “red flags” de Mazan

 


As “red flags” de Mazan


“É possível sentir a falta de um pai', pergunta Caroline Darian em Et j'ai cessé de t'appeler papa (JC Lattès, 2022). Nele, a filha de Dominique Pélicot, actualmente a ser julgado com outros 51 homens por violações, relata o terramoto devastador desencadeado pela revelação, em 2020, dos actos criminosos do seu pai. 

O seu relato lança uma luz muito diferente sobre o “homem fantástico” descrito por Gisèle Pélicot quando falou pela primeira vez. Na sua busca da verdade, Caroline Darian apercebe-se de que as suas recordações de família estão cheias de indícios de um controlo e de um vício que, a pouco e pouco, estrangula toda a família. 

Talvez o problema não seja tanto o facto de os criminosos se esconderem por detrás de de uma dupla personalidade, mas sim o facto de ignorarmos certas pistas em frente de nós.

O relato de Caroline Darian deveria ser lido como um manual de prevenção da violência doméstica. Está lá tudo. Vários anos antes da detenção de Dominique Pélicot, a sua mulher já estava completamente isolada. Tinha discutido e rompido com um amigo que conhecia há 20 anos por causa do comportamento inadequado e dos avanços que ele, alegadamente, lhe tinha feito. A sua vida social diminuiu consideravelmente. O marido aconselha-a a não ir às compras e nem sequer a deixava ir buscar o correio à caixa, de manhã, alegando que ela precisa de descansar. 

Caroline Darian menciona várias conversas telefónicas em que o pai se recusa a passar o telefone à mãe, por esta estar supostamente demasiado cansada. “Quanto mais aprendo sobre a vida dos meus pais, mais me apercebo do domínio que o meu pai exercia sobre ela, sem que ela pestanejasse”, conclui. Um domínio que ele tentou manter uma vez na prisão, tentando contactá-la ilegalmente.

Caroline Darian descreve também todo um clima de incesto que remonta ao avô paterno. Este casou em segundas núpcias com a sua filha adotiva, Lucile, uma mulher com deficiência mental e reduziu-a a uma situação de quase escravatura, humilhando-a regularmente. 

“Perguntei-me sempre porque é que os meus pais continuavam a mandar-nos para lá de férias. E porque é que eles não faziam nada para retirar a Lucile deste ambiente nocivo”, pergunta.  Foi só na adolescência que Caroline Darian exprimiu o desejo de nunca mais lá voltar a pôr os pés. 

Foi neste contexto que nasceu a dúvida insuportável que a atormenta. Entre todas as fotografias encontradas pela polícia nos discos rígidos do pai, há algumas dela, meio despida, mergulhada no que parece ser um sono. Há também fotografias das cunhadas, tiradas com um telemóvel escondido nos seus quartos e casas de banho. Todas foram publicadas na Internet pelo pai, acompanhadas de comentários degradantes e até de insultos.

Há uma expressão que se tornou quase excessivamente utilizada para descrever todas as pistas que Caroline Darian apanhou: bandeiras vermelhas. As bandeiras vermelhas referem-se a um conjunto de comportamentos que nos fazem sentir desconfortáveis, intimidados ou embaraçados, sem que consigamos sempre dizer exatamente porquê.

Por exemplo, o rapaz que não lhe faz perguntas no primeiro encontro e só fala de si próprio. Ou o tipo que minimiza todos os seus conseguimentos. Ou aquele que critica as suas escolhas de roupa - a lista continua e pode também ser usada no sentido feminino. 

O conceito de bandeira vermelha abraça a noção de um continuum de violência, traçando uma linha entre as micro-humilhações da vida quotidiana e a possibilidade de violência física. Afirma precisamente que as primeiras não são caprichos, explosões súbitas de raiva ou malícia, mas o prenúncio das segundas.

Como o comportamento que nos alarma vem por vezes de uma pessoa em posição de autoridade, estamos geralmente habituados a silenciar este instinto que, no entanto, nos diz que algo está errado.

Se este comportamentos provêm de uma pessoa de quem esperamos e por quem temos afeto, ou mesmo amor, por vezes minimizamos o rebaixamento ou mesmo a humilhação. E no entanto... 

Esta vozinha é um mecanismo de sobrevivência. Na verdade, é parte integrante do diálogo permanente connosco próprios que os manipuladores controladores tentam quebrar. Em Quelqu'un à qui parler. Une histoire de la voix intérieure (PUF, 2019), o psicólogo e antropólogo Victor Rosenthal observa que a presença desta voz interior e o diálogo que ela estabelece permitem a formação ética do sujeito e estabelecem a possibilidade de empatia.

Claro que pode tornar-se nociva, dizendo-nos repetidamente que não valemos nada mas, nesse caso, terá assumido a voz do carrasco e quando grita, em caso de perigo, deveria ter um altifalante, porque pode salvar vidas. Os testemunhos de Caroline Darian e de outras vítimas reforçam-no.

Victorine de Oliveira

September 10, 2024

Julgamento das violações de Mazan

 


Gisèle Pelicot falou no tribunal:

“A polícia salvou a minha vida ao investigar o computador", explica Gisèle Pelicot, calma e precisa, já não usando nunca a palavra, 'marido', de quem se está a divorciar. “Ver as imagens em que estou deitada inconsciente na minha cama, a ser violada. São cenas bárbaras. O meu mundo desmoronou-se, tudo o que construí ao longo de 50 anos. Eu achava que ele era um tipo impecável. Eles usam-me como se fosse uma boneca de trapos."

De todos os homens que a maltrataram, diz conhecer apenas um, que se deslocou a casa do casal em Mazan para falar de ciclismo com o marido: “Encontrava-o de vez em quando na padaria e cumprimentava-o - não fazia ideia de que ele tinha ido lá a casa para me violar. Sinto nojo."

Gisèle aborda a questão da submissão química, dos ansiolíticos que o marido a fazia engolir, sem o seu conhecimento, para depois a entregar aos homens que tinha aliciado. “Estou a falar em nome de todas as mulheres que são drogadas e não sabem, estou a fazê-lo em nome de todas as mulheres que talvez nunca saibam o que lhes fazem (...) para que nenhuma mulher tenha de continuar a sofrer de submissão química”.

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Na vila de Mazan onde a maior parte dos crimes aconteceram, estão ainda perto de 30 homens que participaram nas violações e aparecem nos vídeos (cerca de 400 vídeos e imagens) mas que a polícia ainda não foi buscar. Ninguém sabe quem eles são porque os vídeos não foram, nem vão ser, tornados públicos. A vida na vila é agora um cenário de horror. Para além da família de Gisèle Pelicot e das outras famílias que já descobriram que os seus maridos/pais/irmãos/tios são violadores abjectos, porcos e repugnantes, existem ainda todas as outras famílias que não sabem se os seus maridos/pais/irmãos/tios fazem parte dos 30 violadores que falta irem buscar. Não sabem se o seu familiar marido/pai/irmão/tio, é um dos 30 - se é aquele que propôs que violasse a sua filha ou a sua mãe. O ambiente de desconfiança já fez estragos em algumas famílias.

A prática de drogar as raparigas e as mulheres para as violar já não é uma situação excepcional, mais a mais com os sites da internet em que homens se incentivam uns aos outros a serem predadores. Se calhar está na altura de tomar medidas drásticas contra esses indivíduos.

August 05, 2024

Inglaterra a ferro e fogo

 

Acabo de ouvir na BBC uma entrevista a um especialista em criminologia dizer que esta violência não passa de ignorância da extrema-direita.  Estas respostas simplistas para problemas extremamente complexos que os governos não resolvem, porque são é especialistas em demagogia, ajudam imenso...

A Inglaterra -tal como nós e outros países- tem um problema de desemprego jovem, de desinvestimento na educação e na saúde, os jovens não têm perspectivas de futuro, não têm dinheiro para habitação e têm uma comunicação social que explora os temas de maneira a inflamar ânimos, juntamente com redes sociais de vazio mental. Tudo isto em crescimento acelerado. Mas depois depois espantam-se que as pessoas que já de si têm tendência para a para a violência se organizem para a praticar.

Cá é igual, não temos professores, não temos médicos, não temos habitação, não temos empregos com salário decente para os jovens, não temos bebés a nascer, temos as grávidas abandonadas para ter os filhos no meio do mato... o que temos em abundância são bancos cartelizados para explorar o cidadão comum e fazer 400 milhões de euros de lucro por mês. 

As políticas dos governos e as acções dos governantes não são inconsequentes: se as políticas não resolvem os problemas dos cidadãos nem os dos imigrantes, depois têm explosões de violência de ambos os lados. Depois gritam que é ignorância. Não é ignorância, é frustração acumulada.

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Desordeiros tentam incendiar hotel para requerentes de asilo em Rotherham num contexto de violência de extrema-direita

O Ministro do Interior condena as cenas “absolutamente aterradoras” de garrafas e cadeiras atiradas para o exterior do Holiday Inn Express

Vários agentes ficaram feridos e um deles foi levado para o hospital com um ferimento na cabeça causado por um tijolo atirado por um membro da extrema-direita. Um agente experiente da polícia de South Yorkshire afirmou que este foi, de longe, o pior motim em que participou.

Uma mulher chorava enquanto era levada para um local seguro atrás da linha da polícia, com uma ferida a sangrar na nuca. Alguns pais trouxeram os seus filhos, que foram vistos a atirar pedras à polícia de choque.

January 06, 2024

"The border between power and violence is quantitative and fluid" (Leo J. Penta)




A Rússia está a caminho de sofrer 500.000 baixas na Ucrânia - em menos de 3 anos. A loucura de Putin está literalmente a aniquilar os jovens russos, agora à razão de 1.000 baixas por dia.
Glasnost Gone




October 21, 2023

Como se o vandalismo resolvesse a questão climática


Ou das desigualdades sociais.

Três rapazes e uma rapariga dirigiram-se esta manhã à montra da loja Gucci, na Avenida da Liberdade, e partiram o vidro às marretadas. A situação foi presenciada pelo novelista e escritor brasileiro. Aguinaldo Silva que postou um vídeo na rede social X. A PSP de Lisboa confirmou ao DN a ocorrência e que a jovem foi parada por populares e entregue aos agentes.

Em comunicado, a Climáximo justifica a ação na loja da Gucci, em Lisboa, com o facto de aquela marca pertencer "ao bilionário francês François-Henri Pinault, CEO da empresa Kering, com um património líquido de 40 mil milhões de dólares e um dos homens mais ricos do mundo".

"A ONU aponta que os ultra-ricos têm de cortar mais de 97% das suas emissões, no relatório de lacuna de emissões, mas o consumo de luxo nunca esteve tão alto. 

October 20, 2023

Agora está na moda atacar fisicamente os opositores em vez de ser activo na mudança




Alguém pensa que é vítima e agride as pessoas que pensa responsáveis da sua ofensa. Hoje é com tinta, manhã com pedras, depois com tiros.

Penso que estas pessoas deviam ser responsabilizadas. Penso sinceramente que são pessoas infantis, como muitos dos adolescentes das escolas que estão naquela idade em que pensam que a sua perspectiva parcial e subjectiva é a verdade absoluta, não negociável, como diz esta activista. Como não sabem como influenciar a sociedade e os partidos políticos para os seus desígnios e não têm recursos intelectuais, partem para a violência. 

Agora imagine-se se esta gente sem espírito democrático e neste nível de pensamento rudimentar salta destes movimentos para a política. Acho isto grave. Um tipo de activista de violência de péssimo exemplo para os jovens.

Se nós professores fossemos como ela, já há muito tempo que andávamos a atirar sapatos ou pedras ao ME, ao Medina e a Costa por nos roubarem anos de serviço que correspondem a uma enorme facada na reforma, não no futuro imaginado, mas no presente.


Medina atacado com tinta verde na Faculdade de Direito de Lisboa


O ministro das Finanças foi atacado com tinta verde quando discursava na Faculdade de Direito de Lisboa. "Há outras maneiras de luta ou de proposta, crítica", considera o Presidente da República.

"Dissemos que não há paz até ao Último Inverno de Gás, e o orçamento não contempla um plano de como vamos parar de usar o gás fóssil", refere a porta-voz do grupo de ativistas . "Este é um passo essencial para nos mantermos dentro dos limites ditados pela ciência. Não é negociável, é uma necessidade existencial, sublinha.

October 07, 2023

Um primo da Carmo Afonso?




Today should be a day of celebration for supporters of democracy and human rights worldwide, as Gazans break out of their open-air prison and Hamas fighters cross into their colonisers' territory. The struggle for freedom is rarely bloodless and we shouldn't apologise for it.

Hamas

May 05, 2022

A imprensa fazer da vida das pessoas um circo

 


E não separar o culto da celebridade, do excesso de dinheiro e poder, da vida real. Os comentários que no FB as pessoas vão fazendo à medida que ouvem os depoimentos são assustadores e o mais patético é que a maioria são de mulheres. Perturbador.


O que revelam os memes sobre o julgamento de Johnny Depp-Amber Heard

Por Patricia Grisafi

O caso devia proporcionar um olhar sóbrio sobre a violência doméstica e como esta afecta tanto homens como mulheres. Em vez disso, é um circo de misoginia e ilusão.

Os frascos de gorjeta foram a minha gota de água. Apareceram num vídeo TikTok mostrando um drive-thru da Starbucks com frascos na janela de pagamento, um a dizer "Johnny Depp (Jack Sparrow)" rodeado de corações e estrelas e outro a dizer "Amber Heard" rodeado de caras zangadas e um desenho de um cocó. No vídeo, pode-se ouvir alguém dizer, "Vai, Johnny!" depois de um dólar ser colocado no frasco com o seu nome.

O vídeo mostra tanto do que está errado com o consumo público do julgamento de Johnny Depp contra Amber Heard, no qual Heard tomou a posição de testemunha apenas na quarta-feira. É um caso perturbador em que ambas as partes fizeram acusações de violência doméstica. O julgamento centra-se num artigo de 2018 que Heard escreveu para o The Washington Post, contando a sua história de ter sido abusada por um parceiro anónimo - amplamente considerado como Depp.

A Depp nega todas as alegações de abuso e está a processar Heard por 50 milhões de dólares, procurando provar que ela prejudicou a sua carreira com o artigo. Heard negou alegações de abuso, e a sua equipa jurídica contra-atacou por 100 milhões de dólares, alegando que a Depp conduziu uma "campanha de difamação".

O caso deveria proporcionar um olhar sóbrio sobre a violência doméstica e como esta afecta tanto homens como mulheres. Em vez disso, o julgamento transformou-se num circo de misoginia e ilusão. Sou uma sobrevivente de abusos, e é particularmente prejudicial ver as campanhas dos meios de comunicação social centradas numa mulher que nem sequer nomeou inicialmente o seu agressor. Lembra-me que quando as mulheres alegam abuso, são muitas vezes metidas esmagadas - famosas ou não.

A par do nível assustador do sexismo, há uma vibração jocosa em torno deste caso que é perturbadora. Estes são dois seres humanos que falam de uma das partes mais negras das suas vidas e tratam tudo como entretenimento. 
Há a confusão intencional de um actor, Depp, entre a sua pessoa e o seu papel mais famoso e amado, o Capitão Jack Sparrow, o carismático pirata - desfocando as linhas entre a sua vida real e a fantasia do público. E há o fenómeno tóxico de as pessoas aplaudirem sem sentido um homem que já perdeu um julgamento contra o tablóide britânico The Sun depois de lhe ter chamado um "espancador de esposas".

Nesta situação, não sabemos a verdade. Ambos os lados têm feito acusações perturbadoras. O problema é a presunção reflexiva de que o Depp está a ser injustiçado, juntamente com a forma alegre como os meios de comunicação social estão a assediar a mulher que o acusou de violência. Os utilizadores das redes sociais até assediaram uma psicóloga clínica que testemunhou em nome de Heard, enchendo o seu perfil profissional no Google com críticas negativas chamando-a de "mentirosa" e "malvada".

É desencorajador e repugnante ver a «memeificação» e a mercantilização da situação. A violência doméstica não é engraçada. Não deve estimular concursos de popularidade. Não deveria criar uma indústria em que as pessoas vendem mercadoria em Etsy, na qual a Rolling Stone relata que os vendedores estão a fazer artigos como alfinetes, T-shirts e canecas de café com a frase "Justiça para Johnny". Não deve ser um espectáculo em que uma mulher aparece trazendo duas alpacas de apoio emocional para o tribunal para animar o Depp. Não deveria levar os escritores a publicar artigos com títulos como "O julgamento de Johnny Depp e Amber Heard é o entretenimento de que não sabíamos que precisávamos em 2022".

E depois há os memes. Tantas memes.

Memes que envolvem fezes e partes íntimas do corpo e outras referências lascivas ao testemunho lascivo, a maioria deles colocando Heard numa luz muito pouco lisonjeira.

Memes que fazem luz do problema do Depp a beber, brincando com a quantidade de vinho que consome. A frase "mega-pint de vinho" - uma infeliz reviravolta de palavras do advogado de Heard - foi amplamente partilhada no TikTok e no Twitter.

Memes a celebrar as violentas mensagens de texto do Depp sobre Heard. (Depp disse que "não se orgulha" de ter escrito esses textos e afirma que alguns deles eram apenas "humor negro").

Memes sobre Jack Sparrow triunfando sobre Amber Heard, como se o julgamento por difamação fosse uma sequela de "Piratas das Caraíbas".

Os memes são grotescos. Mostram-nos que a cultura das celebridades nos cega e permite um comportamento tóxico, desde a intimidação online de qualquer pessoa que questione o Depp até ao culto acrítico dos fãs. E essas reacções indicam que as mulheres ainda são injustamente sobrecarregadas com a prova de que foram abusadas ao mesmo tempo que também têm de provar que foram vítimas "perfeitas".

É claro que esta não é a primeira vez que acusações de abuso são feitas para o abuso dos meios de comunicação social. Mas enquanto outros casos envolvendo celebridades de alto nível geraram a sua quota-parte de memes e apoio de fãs, o julgamento do Depp e Heard sente-se diferente por causa de quão prevalecente é a brigada fanática de Depp e de quão antiquada tem sido a retórica sobre a violência doméstica. É como se #MeToo nunca tivesse acontecido.

March 28, 2022

E ontem passou-se a premiação de um actor depois da sua censura e violência sobre outro

 


Mais uma vez o agressor é justificado como estando, inevitavelmente, a reagir a ofensas de outrem e a ter problemas no seu passado que fazem perceber esta atitude. O agredido não tem justificação e ninguém quer saber dele.

Depois de agredir o apresentador, com a mão e com palavras violentas, deram-lhe um prémio e ovacionaram-no de pé. Ele subiu ao placo e chorou muito, disse que é uma profissão difícil [é isso... ser bombeiro ou soldado ou professor é que é fácil - estamos cheios de pena dele com os 20 milhões que ganha por filme] porque o desrespeitam constantemente [é isso... os outros milhares de milhões de humanos do planeta não são desrespeitados, são todos tratados com respeito] e que tem um passado difícil [é isso... porque o passado dos outros milhares de milhões do planeta foi fácil como se vê pelos refugiados de todo o mundo, por exemplo] e que só quer proteger a família [é isso... porque os outros não querem a família protegida] e que está cheio de amor por toda a gente... Quem diz que bate por amor são os que praticam a violência doméstica.

Um indivíduo faz uma piada de muito mau gosto e a reacção natural de outro é bater-lhe e depois justificar a legitimidade da violência e não ser capaz de um mínimo de responsabilidade pedindo desculpa ao agredido. O seu orgulho está acima dessas minudências. E ainda por cima levar um prémio, ser consolado pela sua acção e baterem-lhe palmas. A piada, que foi de mau gosto pois gozou com uma doença, não foi contra ele, mas contra a sua mulher, também actriz, que tem a doença, mas ele, como bom machista que é, não pensa que a sua mulher tem autonomia e maioridade para se defender e vai defendê-la como defendeu as crianças no filme, como depois disse. O filho, escreveu no twitter, "E é assim que as coisas se resolvem" elogiando o pai. Portanto, o filho a seguir as pegadas do pai na maneira de resolver problemas.

Este é o argumento dos muçulmanos radicais para agredirem e perseguirem os que fizeram caricaturas de Maomé ou os que fazem críticas ou piadas: ou as tuas piadas são respeitosas e de bom gosto ou nós vamos atrás de ti e reagimos com violência. Portanto, censura e violência foi o que se passou, nos óscares, em directo na TV. 

Censuraram a referência ao que se passa na Ucrânia para não estragar o glamour da festa com a realidade da violência, mas a violência está ali, debaixo dos fatos, vestidos e jóias de milhares de dólares onde se escondem estes alienados -salvo excepções- que vivem numa bolha de falsas prerrogativas à conta do excesso de dinheiro que lhes pagam.




February 14, 2022

#LovesickDay - Não confundir amor e abuso

 


Os números da violência e abuso durante o namoro são muitos altos:  

"58% de jovens que namoram ou já namoraram reportam já ter sofrido pelo menos uma forma de violência por parte de atual ou ex-companheiro/a; e 67% de jovens consideram como natural algum dos comportamentos de violência. O estudo aponta para a elevada prevalência e legitimação de formas específicas de violência como a violência psicológica, aquela exercida através das redes sociais ou as atitudes de controlo (sobre vestuário e hábitos de convívio, entre outros). Neste Estudo, realizado anualmente desde 2017, participam jovens do 7º ano ao 12º ano de escolaridade, do ensino regular ou profissional e de várias escolas distribuídas a nível nacional."


November 02, 2021

Porque é que os videojogos não são todos mais ou menos assim?

 


Construir uma cidade, resolver um problema ambiental, fazer uma caça ao tesouro numa floresta, etc., em vez de serem sobre matar, matar de maneira mais violenta, estropiar em cenários de degradação, violência sexual contra mulheres e coisas do género? Há muitos adolescentes viciados em jogos extremamente violentos. A TV é violenta. As séries como o Game of Thrones, são extremamente violentas. Todo o entertenimento banaliza e normaliza a violência.


September 26, 2021

O massacre da Vendeia

 


O genocídio francês que tem sido arredado da história

Jaspreet Singh Boparai

François Flameng - Le massacre de Machecoul (wiki)


A História Secreta

A 4 de Março de 2011, o historiador francês Reynald Secher descobriu documentos nos Arquivos Nacionais em Paris confirmando o que sabia desde o início dos anos 80: tinha havido um genocídio durante a Revolução Francesa. Os historiadores sempre estiveram conscientes da resistência generalizada à Revolução. Mas (com algumas excepções) caracterizam invariavelmente a rebelião na Vendée (1793-95) como uma guerra civil abortada e não como um genocídio.

Em 1986, Secher publicou as suas descobertas iniciais em Le Génocide franco-français, uma versão ligeiramente revista da sua dissertação de doutoramento. Este livro vendeu bem, mas destruiu qualquer hipótese que ele pudesse ter tido de uma carreira universitária. Secher foi difamado por jornalistas e académicos de renome por ousar questionar a versão oficial dos acontecimentos que tinham ocorrido dois séculos antes. A Revolução tornou-se um mito de criação sagrada, pelo menos para alguns dos franceses e não são gentis para os blasfemos.

Guardiães da Chama

O primeiro grande mitógrafo revolucionário foi o jornalista e político Adolphe Thiers (1797-1877), que se tornou o primeiro Presidente da Terceira República de França, em 1871. Ele fez o seu nome na década de 1820 com um best-seller de 10 volumes de história da Revolução. Puramente como história, o seu trabalho era descuidado e pouco fiável; mas o objectivo era celebrar o assunto, não examiná-lo. Thiers não desculpa as atrocidades na Vendée; de facto, quase nem as menciona.

Ao contrário de Thiers, Jules Michelet (1798-1874) olhou realmente para os documentos ao pesquisar a sua história de sete volumes da Revolução (1847-53). Michelet, mais do que qualquer outro historiador, é responsável pela mitologia oficial que representa a rebelião da Vendée como uma pretensa guerra civil instigada por camponeses iludidos e crédulos que não compreendiam que estavam a lutar contra o Progresso - uma espécie de versão do século XVIII dos protestos dos gilets jaunes.

Michelet culpa as mulheres da Vendée por serem "sinceras, violentamente fanáticas" ao assediarem incessantemente os seus maridos até os levarem a pegar em armas contra a Revolução. Elas eram "campeãs da contra-revolução"; critica-as pelo seu "amor ao passado; pela força do seu hábito; pela sua fraqueza natural; e pela sua piedade pelas vítimas da Revolução". Com "inacreditável ingratidão, injustiça e absurdo", forçaram a rebelião sobre os seus homens.

Para crédito de Michelet, ele admite pelo menos alguns dos "excessos" dos Revolucionários, mas só depois de insistir que houve atrocidades de ambos os lados. No entanto, ele evitou conspicuamente lidar com provas de dezenas de milhares de mortes de civis na Vendéé - mesmo as enumeradas pelo antigo soldado e político revolucionário Jean-Julien Savary (1753-1839), cuja Guerres des Vendéens et des Chouans contre la République française (1824-27) Michelet descreveu como "o trabalho mais instrutivo sobre a história da Vendée".

O primeiro mitógrafo estatal da Revolução foi François Aulard (1849-1928), que ocupou a cadeira inaugural da História da Revolução Francesa na Sorbonne, de 1891 a 1922. A Histoire politique de la Révolution française (1901) de Aulard institucionalizou o ponto de vista de Michelet sobre a rebelião da Vendée. Os rebeldes eram camponeses insignificantes e supersticiosos (p.376) que, de alguma forma, eram também um grande perigo para a República (p.378). Eles podem ter feito parte de uma grande conspiração internacional para a qual ainda não foi encontrada documentação convincente.

Aulard parece não ter notado o massacre em massa de civis, não provocado, pelo Exército Revolucionário em 1794. No entanto, fundou a Sociedade para a História da Revolução, editou a revista académica La Révolution Française, publicou inúmeras colecções de material ao longo de quase meio século de investigação profissional e treinou os seus estudantes para examinarem sistematicamente os materiais de origem primária, insistindo que fornecessem documentação completa de todas as teses. O seu domínio dos recursos de arquivo não ficou atrás do de ninguém. Algo deve ter estado errado com a sua abordagem da história.

O ex- historiador comunista François Furet (1927-97) escreveu sobre os historiadores activistas que se dedicaram ao estudo da Revolução Francesa ao longo do século XX. Eles foram abertamente e apaixonadamente pró-Revolucionários. Para os historiadores mais influentes que ocupavam posições de poder nas principais instituições francesas, a Revolução Francesa não era um tema de investigação mas um mito de origem - o coração da cosmologia da sua fé secular. Como poderiam celebrá-la se ela levasse a um genocídio?

A Vendée 'Inexplicável

A Vendée é uma região do oeste de França cujos habitantes se tornaram famosos pela sua piedade depois de os protestantes terem sido expulsos da zona, na sequência do Édito de Fontainebleau do Rei Luís XIV (1685). Ao longo do século XVIII, a Vendée foi, cultural, política e economicamente, um remanso de água. A grande cidade mais próxima, Nantes, continua a ser conhecida pelo seu papel no tráfico de escravos.

Os Vendéens pareciam ter acolhido a Revolução Francesa, pelo menos inicialmente. Todos ficaram aborrecidos com os elevados níveis de tributação. Até os fiéis estavam fartos do que tinham de pagar à Igreja. O problema não era tanto com o clero, mas com as assembleias paroquiais (fabriques), que controlavam as finanças paroquiais. Os Vendéens tinham pouca interacção com a nobreza local, que em regra permanecia na região e conhecia bem os camponeses. Apenas uns poucos deles passavam algum tempo em Paris, Versalhes ou mesmo Nantes. Os nobres ressentiram-se demasiado com a administração centralizada.

Religiões Conflituosas

Em 2 de Novembro de 1789, a recém-criada Assembleia Nacional Constituinte (NCA) em Paris (antiga Assembleia Nacional) declarou que todos os bens geradores de receitas da Igreja, em França, seriam nacionalizados. Em 19 de Abril de 1790, os legisladores revolucionários decidiram ajudar-se a si próprios com o resto dos bens da Igreja. Os bens seriam vendidos; a riqueza seria redistribuída pelo governo revolucionário.

A 12 de Julho o NCA aprovou uma lei, a Constituição Civil do Clero, que subordinava completamente a Igreja Católica ao governo Revolucionário e proibia a fidelidade católica a qualquer autoridade estrangeira (por exemplo, o Vaticano, ou o Papa). Não haveria mais reconhecimento da autoridade de bispos que tivessem sido nomeados por potências não francesas. O clero foi também ordenado a jurar fidelidade aos Revolucionários. Agora, seriam agora nomeados funcionários públicos, completamente sujeitos ao novo Estado francês.

A maioria dos padres e bispos não só condenou a nova Constituição Civil do Clero, como também se recusou a prestar o juramento que os submeteria como funcionários civis. As autoridades revolucionárias estavam preocupadas com o facto de as pessoas ainda serem leais ao clero. Em Outubro o Directório do Baixo Loire foi obrigado a recordar ao clero que estavam a ser teimosos e que tinham de fazer o que lhes foi dito. Porém, a maioria dos padres continuava a desobedecer .

Em 10 de Novembro de 1790, 103 padres da diocese de Nantes assinaram uma carta de protesto, em termos muito claros, ao NCA, condenando o seu autoritarismo. Os legisladores ficaram chocados e zangados com a ingratidão. Alguns meses mais tarde, o Bispo de Nantes ordenou ao seu clero que rejeitasse a Constituição Civil. Nove em cada dez nem sequer precisavam dessa ordem. As autoridades revolucionárias não tiveram outra escolha senão nomear novos bispos entre os poucos padres que juraram submeter-se à NCA.

Em 26 de Junho de 1791, o NCA declarou o direito à deportação ou ao exílio do clero "refractário" que se tinha recusado a fazer o juramento. Apenas o clero "constitucional" obediente que tinha prometido a sua lealdade ao NCA foi autorizado a cumprir quaisquer deveres. Em breve houve falta de sacerdotes; a maioria das paróquias não tinha agora ninguém legal para realizar baptismos, casamentos, ou funerais. As Igrejas eram encerradas pelas autoridades. No entanto, os cidadãos continuavam a aparecer na igreja aos domingos, mesmo quando as portas estavam seladas e o padre estava preso ou escondido. Era necessária a força para manter os novos regulamentos da NCA sobre religião.

O povo recusou-se a comparecer nas missas celebradas por padres "constitucionais". De facto, o clero "constitucional" foi amplamente ridicularizado como cobarde, traidor e infiel. Frequentemente eram sujeitos a agressões físicas, mas como agora eram funcionários públicos, podiam ser protegidos pelas forças armadas, se necessário, particularmente quando os fiéis os sujavam com terra e estrume, atiravam pedras, pontapeavam e cuspiam nas suas caras.

A 20 de Setembro de 1792, a Convenção Nacional (NC) substituiu o NLA, que tinha suplantado o NCA, que tinha sido formado em Julho de 1789 a partir da Assembleia Nacional original (estabelecida em Junho de 1789). A posição dos Revolucionários sobre o clero permaneceu consistente. Não queriam bons padres, ou padres inteligentes, ou padres bem educados, ou padres que conhecessem as suas paróquias e as necessidades dos seus paroquianos: queriam padres que lhes obedecessem, que seguissem ordens e que não lhes respondessem. O clero conseguiu impedir os planos de recrutar trezentos mil homens para o exército revolucionário.

Desobediência Civil

Em 6 de Março de 1793, todas as igrejas católicas não servidas pelo clero "constitucional" foram permanentemente encerradas. A 7 de Março, entrou em vigor uma lei de recrutamento. Os líderes revolucionários, legisladores, autoridades municipais, administradores e funcionários do governo em geral foram naturalmente isentos do serviço militar.

Na Vendée, o pedido de alistamento do NC não foi recebido com entusiasmo. Quando o Comissário Distrital de Thouaré tentou anunciar o decreto oficial ao povo, foi recebido com quarenta camponeses armados com paus que cantavam "liberdade santa, liberdade sagrada". Um deles gritou:

Matastes o nosso rei, afugentastes os nossos padres e vendestes os bens da nossa Igreja. Onde está o dinheiro? Gastaram-no todo. Agora quereis os nossos corpos? Não! Não os tereis!

Outros camponeses de Saint-Julien-de-Concelles perguntaram:

O quê? Espera que vamos lutar por este governo? Que vamos lutar sob o comando de homens que viraram a administração deste país de cabeça para baixo, executaram o nosso rei, venderam todas as terras da Igreja e querem submeter-nos a padres que não queremos enquanto mandam os verdadeiros líderes da nossa Igreja para a prisão?

Disseram aos Revolucionários para tirarem as mãos dos bolsos do povo e devolverem-lhes os seus velhos padres. Se agra eram livres como a propaganda revolucionária dizia, porque não eram livres para trabalhar nos seus campos e serem deixados em paz?

A revolta na Vendée começou seriamente a 10 de Março com ataques coordenados em todo o campo, principalmente a oficiais da Guarda Nacional que estavam estacionados fora das igrejas oficialmente sancionadas para proteger o clero "constitucional" no seu interior.

Eclodiram tumultos nas cidades. As multidões itinerantes começaram a saquear escritórios revolucionários, armados com enxadas, forquilhas e outro equipamento agrícola. Tanto os presidentes de câmara como o clero "constitucional" foram fisicamente atacados. Em Machecoul e Challeau, os edifícios da administração municipal foram queimados até ao chão. Oficiais e "patriotas" revolucionários foram obrigados a fugir do campo e procurar abrigo em enclaves burgueses ricos nas cidades onde os seus princípios eram mais bem-vindos.

Os funcionários revolucionários em Paris não tiveram outra escolha senão prestar atenção à rebelião do povo. O próprio NC estava em tumulto: políticos influentes estavam a tentar substituir o ineficaz Comité Executivo que acabaria por ser chamado, Comité de Segurança Pública. Enquanto o governo tentava reorganizar-se novamente, as autoridades revolucionárias reuniam informações na Vendée. Teriam de fazer dos rebeldes um exemplo ou perderiam o controlo do resto do país.

Os Revolucionários foram confrontados com uma conspiração tão ameaçadora que todos os afectados por ela teriam de ser exterminados no caso de a poluição moral ser contagiosa. Quarenta e cinco mil tropas foram enviadas para pôr fim à rebelião.

Hillbilliescom forquilhas

O exército voluntário dos rebeldes contava entre 25.000 a 40.000 camponeses cuja principal experiência de combate consistia em rixas de bêbados nas tabernas das aldeias. Não tinham uniformes; a maioria usava "sabots" (tamancos de madeira) em vez de botas. No entanto, conseguiam constantemente bater de volta soldados profissionais bem armados e experientes. Alguns tinham espingardas de caça e eram excelentes atiradores; mas a grande maioria estava armada com forquilhas, pás e enxadas. Quando as forças revolucionárias recuaram, os reblels voltaram para casa para cuidar das suas quintas, para que as suas famílias não passassem fome.

Os generais revolucionários não esperavam que eles lutassem tão ferozmente. Claro que os rebeldes não tinham reforços atrás de si e sabiam que se não repelissem os Revolucionários, as suas casas seriam destruídas e as suas famílias massacradas. Os Vendéens não foram pagos pelos seus combates. As suas principais recompensas por terem vencido uma batalha não estavam a ser abatidos por mais algum tempo. Nestas circunstâncias, a sua disciplina era notável, como até os generais revolucionários admitiram.

Os Revolucionários não gostavam de perder para um bando de camponeses e começaram oficialmente a descrevê-los como "bandidos". Agora que eram "salteadores", podiam ser tratados como os criminosos que eram. Como o padre "constitucional" Abbé Roux, vigário de Champagne-Mouton, assegurou aos seus senhores revolucionários a 7 de Maio de 1793, perante os seus restantes paroquianos:
Os filhos da região de Charente aguardam as vossas ordens para exterminar estes bandidos que estão a dilacerar a nossa amada nação. Vós, cidadãos, permanecei firmes nos vossos postos: não percam de vista os traidores e os conspiradores: nunca esqueçam que se mostrarem misericórdia, estarão a alimentar vampiros e abutres dentro dos recintos desta cidade, e um dia beberão profundamente do sangue daqueles que os salvaram da vingança que os seus crimes merecem.
Justiça para Bandidos

A partir de Abril de 1793, as autoridades locais começaram a reunir os suspeitos de bandidagem em grupos de 30 ou 40 e a executá-los sem julgamento. Mas, como o General Beysser observou num despacho ao seu colega General La Bourdonnaye a 11 de Abril:
...a morte de um homem é logo esquecida, enquanto que a memória de queimar a sua casa dura anos.

As forças revolucionárias geralmente asseguravam que não havia ninguém em casa quando incendiavam as casas dos bandidos. Também começaram a disparar canhões contra as igrejas.
Os exércitos revolucionários estabeleceram fundições para canhões em território amigável: havia muitas igrejas em toda a Vendée que ainda não tinham sofrido disparos. Além disso, no interesse da segurança pública, tinham de ir de casa em casa para confiscar o máximo de metal que conseguissem encontrar. Qualquer coisa podia ser usada como arma contra eles, mesmo um garfo. Os Revolucionários também confiscavam sinos de igreja onde podiam. Não só para serem derretidos para as balas de canhão: também, alguns bandidos pareciam estar a usá-los para sinalização.

Convenientemente, as autoridades revolucionárias ainda tinham dinheiro suficiente da venda de terras da Igreja para pagar comités de vigilância e outros oficiais de segurança. Criaram dois tribunais criminais na Vendée para assegurar aos cidadãos leais que, mesmo os bandidos não fossem imediatamente fuzilados, encontrariam alguma forma de justiça. As forças armadas revolucionárias foram encorajadas a retirar bens às famílias dos bandidos, particularmente quando os homens estavam fora a lutar e não havia ninguém em casa para defender os fracos, os doentes ou os idosos.

No final de Junho os exércitos revolucionários estavam a lutar para manter a ordem: os seus homens recusavam-se a disparar contra os bandidos; alguns estavam mesmo a abandonar os seus postos, e a abandonar a causa do Progresso. Mas os Revolucionários, ao contrário dos bandidos, podiam de facto substituir homens que fossem mortos, feridos ou desertores. Outros 20.000 soldados endurecidos na batalha foram despachados para a Vendée. 
Como o General Salomon tinha lembrado aos seus homens (17 de Junho de 1793) enquanto esperavam por reforços:
Esta é uma guerra de salteadores: exige que todos nos tornemos salteadores. Neste momento, temos de esquecer todos os regulamentos militares, cair em massa sobre estes criminosos e persegui-los incansavelmente: a nossa infantaria tem de os expulsar do mato e da floresta para que a nossa cavalaria os possa espezinhar na planície. Numa palavra: não devemos deixá-los reagrupar-se.

Já tinham começado a destruir moinhos de vento e torres de sinos; agora começaram a demolir sistematicamente casas, chateaux e quaisquer outras estruturas que parecessem poder servir no futuro como casas seguras para bandidos. Ainda não dispunham de mão-de-obra para queimar florestas ou devastar terras agrícolas de forma significativa; pelo menos podiam fazer saber aos salteadores que não tinham onde se esconder.

Começa a purificação

O Exército Revolucionário ultrapassava agora o número dos bandidos e estava muito melhor armado. À medida que o Verão avançava, começaram a reconquistar território e a afastar os camponeses. Agora a matança podia começar a sério. Os Revolucionários preferiram não fazer prisioneiros. Não haveria clemência ou misericórdia para os salteadores. À medida que o Inverno se aproximava, era evidente que a insurreição não sobreviveria por muito tempo.

O Comité de Segurança Pública enviou Jean-Baptiste Carrier a Nantes: chegou a 20 de Outubro de 1793 e aí permaneceu até meados de Fevereiro. Carrier foi pioneiro na técnica de afogamento de bandidos para poupar dinheiro em balas. Durante os seus quatro meses como representante do Comité, em Nantes, 452 alegados bandidos foram absolvidos e libertados da prisão, 1.971 foram executados por meios normais, cerca de 3.000 morreram de doença, e 4.860 foram afogados. Talvez 3.000 prisioneiros tenham sobrevivido.

No início, o afogamento foi utilizado para lidar com o clero "refractário". A 16 de Novembro de 1793, 80 sacerdotes foram afogados juntos num barco; a 5 ou 6 de Dezembro mais 58 foram eliminados da mesma forma; 10 dias depois, o afogamento foi aberto a bandidos em geral e 129 Vendéens foram afogados.

Tornou-se habitual afogar os bandidos nus, não apenas para que os Revolucionários pudessem ajudar-se a si próprios com as roupas dos Vendéens, mas também para que as mulheres mais jovens entre eles pudessem ser violadas antes da morte. 
Os afogamentos espalharam-se muito para além de Nantes: a 16 de Dezembro, o General Marceau enviou uma carta ao Ministro Revolucionário da Guerra anunciando triunfantemente, entre outras vitórias, que pelo menos 3.000 mulheres Vendéen não combatentes tinham sido afogadas em Pont-au-Baux.

Os Revolucionários estavam bêbedos de sangue e não podiam massacrar os seus prisioneiros ladrões com rapidez suficiente - mulheres, crianças, idosos, padres, doentes, enfermos. Se os prisioneiros não conseguiam andar suficientemente depressa até ao local da matança, eram baionetados no estômago e deixados no chão para serem espezinhados por outros prisioneiros enquanto sangravam até à morte.

O General Westermann, um dos soldados mais célebres da Revolução, notou com satisfação que chegou a Laval a 14 de Dezembro com a sua cavalaria para ver pilhas de cadáveres - milhares deles - amontoados em ambos os lados da estrada. Os corpos não foram contados; foram simplesmente despejados depois dos soldados terem tido a oportunidade de os despojar de quaisquer objectos de valor (principalmente roupas).

Nenhum bandido seria autorizado a regressar a casa: Westermann e os seus homens massacraram todos os bandidos possíveis que encontraram, até que as estradas da área estivessem repletas de cadáveres. O dia 29 de Dezembro foi um dia particularmente bem sucedido, com uma colheita de 400 Vendéens que foram esquartejados por trás. Mas o melhor dia de abate do General Westermann teve lugar em Savenay, a 21 de Dezembro. 
Como ele anunciou, a um Comité de Apreciação e Agradecimento pela Segurança Pública:

Cidadãos da República, não há mais Vendée. A Vendée morreu na ponta do nosso sabre da liberdade, com as suas mulheres e filhos. Enterrei-a nos bosques e pântanos de Savenay. Seguindo as vossas ordens, esmaguei os seus filhos debaixo dos cascos dos meus cavalos, e massacrei as suas mulheres ... agora já não darão à luz mais bandidos. Não há um único prisioneiro que possa criticar as minhas acções - eu exterminei-os a todos....

Em Savenay, 3.000 camponeses foram mortos e outros 4.000 foram feitos prisioneiros para serem abatidos mais tarde.
Os generais revolucionários também decidiram pôr fim às vidas de Vendéens que tinham ficado em casa durante a rebelião ou que de alguma forma tinham conseguido regressar a casa. Já em Dezembro, 20 soldados estavam a passar o campo a pente fino em busca de candidatos a execuções extrajudiciais. Alguns compararam o processo à caça de coelhos: nenhuma das presas estava armada. 
Nunca foram guilhotinados, porque estes eram meros camponeses e artesãos; havia poucos espectadores que estariam particularmente interessados em vê-los morrer.

A Cruzada pela Liberdade

O departamento de Vendéen do governo revolucionário emitiu uma proclamação oficial na 12ª Frimaire do Ano Dois da Revolução (2 de Dezembro de 1793) prometendo paz e segurança aos cidadãos da região:

Chegou o momento...de os franceses se reunirem como uma e a mesma família. O seu povo desapareceu; o comércio foi aniquilado; a agricultura murchou graças a esta guerra desastrosa. Os vossos delírios resultaram em muitos males. Vós sabeis disso. Mesmo assim, a Convenção Nacional, que é tão grande como o povo que representa, perdoou e esqueceu o passado.
É decretado por lei... que todas as pessoas conhecidas como rebeldes na Vendée... que deponham as suas armas no prazo de um mês após o decreto, não serão procuradas nem incomodadas por se terem rebelado.
Esta lei não é uma amnistia falsa. Viemos em nome da Convenção Nacional, que nos encarregou de executar a lei, para trazer paz e consolação, falando a linguagem da clemência e da humanidade. Se os laços de sangue e afecto não forem totalmente quebrados, se ainda amais o vosso país, se o vosso regresso é sincero, os nossos braços estão abertos: abracemo-nos como irmãos.

Na verdade, foi uma amnistia falsa. A 17 de Janeiro de 1794, o General Turreau partiu com dois exércitos de seis divisões cada um numa "Cruzada da Liberdade" para lidar com o que restava dos bandidos. Ordenou aos seus tenentes que não poupassem ninguém: mulheres e crianças também deveriam ser apunhaladas no estômago se houvesse o mínimo indício de suspeita. Casas, quintas, aldeias e matas deviam ser todas incendiadas. Qualquer coisa que pudesse arder teria de ser queimada. Os soldados nas "Colunas Infernais" da Cruzada tinham instruções explícitas para eliminar todos os últimos vestígios possíveis de resistência ou rebelião.

Os Cruzados pela Liberdade foram relativamente poupados na sua utilização da baioneta. Homens, mulheres e crianças eram mais frequentemente fuzilados, ou queimados vivos nas suas casas. 
Alguns dos soldados tiveram a ideia de acender fornos, alimentá-los e cozer neles famílias Vendéen. Os bebés não eram poupados; nem crianças pequenas ou crianças pequenas. A prática habitual era matar os bebés à frente das suas mães e depois matar as mães. As jovens eram frequentemente afogadas, depois de terem sido violadas. As viúvas eram normalmente espancadas, insultadas e afogadas. Embora não houvesse um procedimento padrão estabelecido.

Nem todos os cadáveres de bandidos eram abandonados, ou deixados nas ruínas das suas casas. Muitos corpos eram esfolados. Em 5 de Abril de 1794 em Clisson, os soldados do General Crouzat queimaram 150 mulheres vivas para extrair a sua gordura para usar como óleo. Embora de um modo geral os soldados da Cruzada pela Liberdade raramente fossem tão empreendedores: eram bem pagos, e quaisquer lucros que obtivessem eram incidentais. 
A Cruzada foi dispendiosa: no total,  participaram até 62.000 soldados.
Para a eficiência sistemática de todos os Cruzados houve numerosas dificuldades logísticas imprevistas com o seu trabalho. Eventualmente, tiveram de ver como enterrar os corpos dos bandidos que não tinham sido afogados. A enorme massa e quantidade de cadáveres representava um risco potencial para a saúde dos homens do General Turreau. No entanto, muitos salteadores tinham sobrevivido. Como a burocrata revolucionária Marie-Pierre-Adrien Francastel reclamou mais tarde: "Ainda há 20.000 gargantas por cortar nesta província miserável".

Eventualmente, a matança terminou. Em 17 de Fevereiro de 1795, o que restava da liderança dos bandidos assinou um tratado de paz com o governo revolucionário, o qual permitiu generosamente que Vendéens, que tinham sido destituídos pela destruição dos seus bens e meios de subsistência, se juntassem ao exército revolucionário; embora o seu número fosse estritamente limitado e fossem mantidos sob rigorosa vigilância no caso de terem alguma ideia. 
A rebelião dos bandidos nunca terminou realmente; os revolucionários foram ocasionalmente obrigados a tomar novas medidas, como em Chanzeaux a 9 de Abril de 1795, quando rebeldes sitiados foram queimados vivos na sua igreja. Pelo menos a sua liberdade de religião tinha sido oficialmente restaurada (21 de Janeiro de 1795).

Conclusões provisórias

Reynald Secher estima que pouco mais de 117.000 Vendéens desapareceram em resultado da rebelião dos bandidos, de uma população de pouco mais de 815.000 habitantes. Isto equivale a cerca de um em cada sete Vendéens fatalmente afectados por acções militares e pela Cruzada pela Liberdade. 
Embora algumas áreas tenham perdido metade ou mais da sua população, com perdas notáveis em Cholet, que perdeu três quintos das suas casas, bem como a mesma proporção da sua população. 
Colégios, bibliotecas e escolas foram destruídas, assim como igrejas, casas particulares, quintas, oficinas e locais de negócios. A Vendée perdeu 18% das suas casas privadas; um quarto das comunas de Deux-Sèvres assistiu à destruição de 50% ou mais de todos os edifícios habitáveis. Outras consequências da Cruzada pela Liberdade incluíram uma epidemia generalizada de doenças venéreas.

Ultimamente, os historiadores tentaram caracterizar o extermínio dos bandidos como um genocídio. O jurista Jacques Villemain argumenta que o governo revolucionário pode ser justamente acusado de crimes de guerra, crimes contra a humanidade e o crime de genocídio. Embora isto fosse anacrónico: o termo correcto é "populicídio", que foi usado pela primeira vez pelo intelectual revolucionário François-Noël "Gracchus" Babeuf no seu estudo pioneiro de 1794 sobre O Sistema de Despovoamento, um texto que também fornece o primeiro relato detalhado das execuções de Jean-Baptiste Carrier por afogamento em Nantes.

Um Legado Duradouro

A carreira do General Turreau demonstra a facilidade com que a sede de sangue pode ser aproveitada para a prossecução de ideais nobres. Apesar das críticas, e de uma curta pena de prisão, acabou por ser recompensado pela sua liderança durante a Cruzada pela Liberdade e passou oito anos como embaixador de Napoleão nos Estados Unidos (1803-11). 
O seu nome está inscrito no Arco do Triunfo em Paris, no topo da 15ª coluna, juntamente com os de outros heróis que lutaram pelos princípios consagrados no lema original da Revolução Francesa: "LIBERTY, EQUALITY, FRATERNITY-OR DEATH".

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[* campónios, gente bruta da montanha - é um termo pejorativo americano]

November 25, 2020

Hoje comemora-se o dia internacional pela eliminação da violência contra as mulheres

 


25 NOVEMBRO | DIA INTERNACIONAL PELA ELIMINAÇÃO DA VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES


'Um dia para lembrar as vítimas desse massacre absurdo. Um dia para todas as mulheres mas, acima de tudo, um dia para lembrar aos homens'


artwork: Andrea Torres Balaguer


"A Polícia de Segurança Pública (PSP) salienta que só em 2020 já apreendeu 192 armas de fogo e refere que entre 2017 e 2019 registou 309 ocorrências de violência doméstica com armas de fogo.

A PSP vai destruir mais de 13.500 armas para assinalar o Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres, já que nos últimos três anos houve mais de 300 ocorrências de violência doméstica com armas de fogo."


No âmbito desta pandemia com confinamentos obrigatórios, quantos mulheres vivem por aí no inferno?

Aqui há uns anos foi lá parar à escola uma colega vítima de violência domestica. Andava com uma daquelas cenas de pânico. Toda a história dela com o indivíduo, mais a situação dela, muito precária, a viver fora da sua própria casa e dependente de decisões judiciais, era tão... demente, que nem sei como ela conseguia trabalhar, quer dizer, funcionar, ter rotinas... ou melhor, sei, era por causa do filho pequeno que aguentava o inferno em que estava. 
Uma coisa é ouvirmos falar destes casos nos jornais, outra muito diferente é conhecermos alguém que nos conta os pormenores sórdidos do quotidiano duma vida dessas. 

Acredito que grande parte da violência vem da educação. Há muita violência dentro de portas. Os rapazes, sobretudo, são educados no machismo violento: entre os meus alunos de Psicologia, quando abordamos o tema da violência e dos factores da violência há sempre alguns que falam na violência que se passa em casa e no medo que têm de virem a tornar-se violentos como os pais. Depois há as mães que vêem falar connosco e também contam da violência.

October 19, 2020

De manhã palmas, à tarde socos

 


Os políticos tratam mal as profissões públicas por questões economicistas e depois isso tem consequências nos ignorantes, que são multidão. Esta ministra da saúde é mestre nisso. Aliás, é a única coisa que faz com competência.

Há cinco profissionais de saúde agredidos por dia

Até março, houve 500 episódios nos centros de saúde e nos hospitais. Injúrias e ameaças nas redes sociais aumentam. A violência pode crescer com falta de resposta.

July 26, 2020

Equívocos e contradições de Fernanda Câncio



FC começa logo por tratar as pessoas como estúpidas dizendo que a maioria pensa que poder é um termo que se restringe a governo ou muito ricos e que não percebem que toda a estrutura social está marcada por relações de poder. Esse é o primeiro equívoco, partir do princípio que é uma elite entre ignorantes.

Em seguida fala de 'cultura de cancelamento' dando o exemplo da carta assinada pelos 153 intelectuais americanos que terá sido motivada, em sua opinião, pela polémica à volta dos tuítes de J.K. Rowling sobre a expressão, 'pessoas que menstruam' no âmbito de uma campanha de produtos higiénicos (tradicionalmente chamados femininos). Esse é o segundo equívoco de FC porque J.K. Rowling, ao falar acerca do assunto, está a dar voz às pessoas que critica e não a silenciá-las. Ora, a cultura de cancelamento é justamente o oposto: trata-se de silenciar pessoas não lhes dando voz, tirando-lhes a voz ou ignorando-as como se não existissem. 
Não estou aqui a concordar ou a discordar da opinião de J.K. Rowling, estou a fazer notar que criticar (entenda-se criticar como um processo analítico) e argumentar são modos de dar aos outros um estatuto de igualdade e por isso a crítica e a argumentação estão presentes em democracia e não em ditaduras.

Cultura de cancelamento era -e ainda é- o que se fazia aos negros e às mulheres e não só, que eram ostracizados e ignorados, quer dizer, nem sequer se lhes reconhecia voz. Como se faz em muitas culturas de modo generalizado.

 Ora, J.K. Rowling dá voz aos seus opositores a partir do momento em que os reconhece como interlocutores, mesmo que seja para criticá-los. A reacção dos opositores que se sentiram atingidos não foi a de argumentar e criticar mas de chamar-lhe nomes e peticionar para que fosse ostracizada. Imediatamente apareceram pessoas a dizer que se recusavam a trabalhar com ela ou a participar na edição dos seus livros. Nem um argumento contra, apenas castigo. 
Cá em Portugal também se escreveu uma carta aberta a pedir que calassem o André Ventura por ser fascista. Não me lembro de ver FC criticar essa carta como critica esta. Será porque está de acordo com o conteúdo da carta? Esse é o equívoco e a contradição: sermos a favor de cartas abertas que mandam calar alguém de que não gostamos e contra cartas abertas que pedem para que se possa falar do que não gostamos.

Como a FC muito bem sabe, hoje-em-dia o twitter tornou-se uma guilhotina e nos EUA, sobretudo, um professor universitário, um dirigente de uma empresa, um autor, etc, ser acusado de racismo ou homofobia ou machismo, sem um único argumento que seja, dá origem a despedimentos sem apelo nem agravo, porque, felizmente, os que não tinham voz, agora têm, mas, infelizmente, às vezes usam-na exactamente da mesma maneira que os antigos opressores usavam:  mandam calar e castigar. Tem havido casos escandalosos. Não me parece que isso seja um benefício social, que melhore o racismo, a homofobia, a transfobia, o machismo ou outro 'ismo' qualquer.

Há muito me confunde o tipo de raciocínio que combina uma defesa maximalista da liberdade de expressão com a aflição face às reações - também discursivas - de desagrado que certas expressões de liberdade ocasionam. Esta frase não é séria pois ninguém, e FC sabe-o, defende a total liberdade de expressão. É difícil e complexo saber onde está a linha de demarcação entre liberdade de expressão e abuso, mas ninguém defende que possa dizer-se tudo e mais alguma coisa, de modo que basear uma argumentação neste falso princípio de que as pessoas que defendem a liberdade total de expressão querem calar os oprimidos está manchada de equívoco e falsidade, logo nos pressupostos.

Finalmente, FC admira-se que pessoas que são feministas possam assinar uma carta contra 'oprimidos', em seu entender. De facto, muita gente, e a FC é uma dessas pessoas, pelo que lemos nas suas crónicas de jornal, abstêm-se de criticar as mulheres, sendo mulheres, os gays, sendo gays, os negros, sendo negro, os políticos de esquerda, sendo de esquerda, os partidos de direita, sendo de direita, etc. Para essas pessoas, eu estar aqui a criticar a FC, uma feminista, é um erro. Como nunca devia ter criticado a Lurdes Rodrigues ou esta Ministra da Saúde ou outra qualquer mulher, porque na opinião dessas pessoas, se critico mulheres estou a dar armas ao inimigo, por assim dizer. Só que a mim parecem-me esses serem são maus princípios para se construir uma sociedade mais justa e igualitária e não critico ou elogio pessoas na base do sexo, cor, credo, orientação política, etc.

Liberdade de expressão e de crítica, que estão na base de uma cultura de 'não cancelamento' e não opressão, só se preservam e fortalecem se defendermos regimes políticos que as valorizem, desde logo dando voz às pessoas, dando instrumentos de controlo à oposição, valorizando vozes críticas, dando força à imprensa livre. Não me lembro de uma única vez, sequer, ter lido crónicas de FC a criticar governos que se destacaram na censura de opositores, na tentativa de controlo dos meios de comunicação social, nem sequer me lembro de ler críticas a indivíduos extremamente machistas da esquerda, ou mulheres ministras que usavam do cancelamento para calar tudo e todos. Dir-me-à que nas suas crónicas fala do que quer. Pois, é exactamente isso a liberdade expressão. Não estou de acordo com ela neste aspecto (embora concorde com muitas das suas crónicas) mas defendo o seu direito a falar do que quer, como quer.

No que me diz respeito sou a favor de argumentar e criticar e não de mandar calar. Já me tentaram calar muitas vezes à força, com bullying, com calúnias vergonhosas. Continuei a falar. Nunca na minha vida colaborei para que alguém deixasse de ter voz. De vez em quando tenho alunos muito racistas e machistas. Podia, pura e simplesmente, mandá-los calar e não lhes dar voz, como vejo outros fazerem. Não deixo que ofendam ninguém, mas não os mando calar. Argumento e obrigo-os a argumentar até que não tenham argumentos. E faço isto uma e outra vez com muita paciência e sem me irritar até que são os próprios a reconhecer que não têm razão. Alguns são teimosos e nunca dão o braço a torcer mesmo não tendo argumentos. Não fico a embirrar com eles por causa disso. São fruto de uma educação e sei muito bem não consigo chegar a todos e há quem não goste mim... A diferença entre mim e a FC é que, muito provavelmente, a FC entende que a mera opinião racista ou machista deles já é, por si, ofensiva para essas minorias, e que isso é razão suficiente para os mandar calar. Não é a minha maneira de pensar.

Lembro-me de um deputado do Parlamento Europeu, há pouco tempo, ter defendido no plenário que as mulheres deviam ganhar sempre menos que os homens pela razão de os homens, serem, obviamente, mais inteligentes que as mulheres. Houve logo petições para o destituir, como castigo de ser tão machista e de o PE não querer que se pense que ele é representativo da casa. A questão é que ele é mesmo representativo pois representa todos os que votaram nele. O que é preciso mudar é a mentalidade das pessoas que votam em homens como ele e não cancelá-lo. 

Estou convicta que para se mudar as mentalidades de maneira sólida e não provisória, é preciso persistência e resistência, argumentos convincentes, firmeza e coerência, coragem. Acredito na educação como modo de melhorar as sociedades, mas não à força. Pela palavra. É preciso atitude filosófica de distanciamento e paciência para perceber que a sua luta de hoje vai ser aproveitada, não por si, mas pelos que vieram depois. E que até podem deitar tudo a perder. 


Embora falar de "cancel culture", então
Fernanda Câncio

Não é fácil consciencializar que a despeito dos nossos sentimentos, das nossas ideias e intenções, fazemos parte de uma estrutura de poder. Até porque para a maioria das pessoas, aparentemente, "poder" é sinónimo de governo ou cargo político ou muito dinheiro; a ideia de que existem relações de poder historicamente codificadas na estrutura social e cultural, que essas relações nos precedem e transcendem e estão inscritas na linguagem, por exemplo, tem sido, como se sabe, objeto de enorme resistência - aquela que se tem erguido face ao que é denominado de "politicamente correto" e também ao que tem sido referido como "cancel culture", duas noções relacionadas entre si.

É sobre essa denominada "cultura de cancelamento", representada como associada à esquerda, a carta aberta surgida a 7 de julho no site da revista americana Harper com o título "Uma carta sobre a justiça e o debate livre". Assinada por 153 intelectuais, muitos deles vistos como de esquerda, e incluindo os escritores Salman Rushdie (o qual, recorde-se, foi alvo em 1989 de uma fatwa do então supremo líder do Irão, aiatola Khomeini, sentenciando-o à morte por causa de Os Versículos Satânicos), Margaret Atwood, J. K. Rowling e Martim Amis, a histórica feminista Gloria Steinem e o filósofo Noam Chomsky, adverte para aquilo que identifica como "restrição do debate, seja por um governo repressivo ou uma sociedade intolerante" e "o clima de intolerância que se instalou em todos os quadrantes", considerando que "a troca livre de informação e de ideias, sangue vital de uma sociedade liberal, está a ser mais constrangida a cada dia que passa".

A escolha da expressão "sangue vital" ganha uma tonalidade sarcástica se soubermos que a carta surge um mês após J.K. Rowling, autora de Harry Potter, ter sido acusado de transfobia na sequência de uma série de tuítes nos quais reagia à frase "pessoas que menstruam" (a qual refere o facto de haver homens transexuais que têm o período, assim como hermafroditas ou outras pessoas que não se identifiquem como mulheres), ironizando: "Estou certa de que existia uma palavra para isso, qual era?" Perante a maré de críticas, manteve a sua posição: "Conheço e amo pessoas trans, mas apagar o conceito de sexo impede que muitos possam falar das suas vidas. Não é ódio dizer a verdade."
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Há muito me confunde o tipo de raciocínio que combina uma defesa maximalista da liberdade de expressão com a aflição face às reações - também discursivas - de desagrado que certas expressões de liberdade ocasionam. E mais me confunde ainda que quem repita "palavras são só palavras, não são ações", se transtorne com tempestades tuiterianas (a última vez que vi, o Twitter é feito de palavras), protestos vocais ou mesmo apelos a boicote. Raios, isso não é tudo palavras? Tão palavras como dizer que uma mulher trans não é uma mulher, ou que só as mulheres menstruam, e que se menstrua é mulher - o que é afinal uma forma não particularmente subtil de boicotar vários grupos de pessoas, recusando-lhes o direito a definir a sua identidade e, decorrentemente, a, como a minha amiga, entrar numa casa de banho identificada com o género com que se identificam.

Assim, o que Rowling fez, do seu considerável lugar de poder, foi participar no "cancelamento" daqueles grupos de pessoas - grupos de pessoas historicamente perseguidas, anuladas, obliteradas, assassinadas. E o que esta carta faz, ao afirmar que há menos liberdade discursiva e de debate hoje, é fazer de conta que antes não havia grupos inteiros de pessoas "canceladas", sem direito a voz ou a sequer se autonomearem, e que esse cancelamento, derivado de estruturas relacionais de poder que se perpetuam, não continua a subsistir.

Para dar um exemplo que vai ao encontro das preocupações feministas de Rowling, basta atentar ao que sucede às mulheres no espaço público - à forma como são sistematicamente alvo de tentativas de intimidação, humilhação e silenciamento (ou seja, cancelamento) através da perpetração de violência, seja ela simbólica, discursiva ou física. Como explicou Alexandria Ocasio-Cortez de forma cristalina esta semana no Congresso dos EUA, essa é ainda hoje a realidade das mulheres, incluindo das que como ela ocupam "lugares de poder".

Que haja feministas a assinar uma carta na qual se certifica existir menor liberdade de debate porque os historicamente oprimidos e silenciados agora falam, se irritam e contra-atacam, disputando o poder, é mesmo muito deprimente.