September 14, 2024

As “red flags” de Mazan

 


As “red flags” de Mazan


“É possível sentir a falta de um pai', pergunta Caroline Darian em Et j'ai cessé de t'appeler papa (JC Lattès, 2022). Nele, a filha de Dominique Pélicot, actualmente a ser julgado com outros 51 homens por violações, relata o terramoto devastador desencadeado pela revelação, em 2020, dos actos criminosos do seu pai. 

O seu relato lança uma luz muito diferente sobre o “homem fantástico” descrito por Gisèle Pélicot quando falou pela primeira vez. Na sua busca da verdade, Caroline Darian apercebe-se de que as suas recordações de família estão cheias de indícios de um controlo e de um vício que, a pouco e pouco, estrangula toda a família. 

Talvez o problema não seja tanto o facto de os criminosos se esconderem por detrás de de uma dupla personalidade, mas sim o facto de ignorarmos certas pistas em frente de nós.

O relato de Caroline Darian deveria ser lido como um manual de prevenção da violência doméstica. Está lá tudo. Vários anos antes da detenção de Dominique Pélicot, a sua mulher já estava completamente isolada. Tinha discutido e rompido com um amigo que conhecia há 20 anos por causa do comportamento inadequado e dos avanços que ele, alegadamente, lhe tinha feito. A sua vida social diminuiu consideravelmente. O marido aconselha-a a não ir às compras e nem sequer a deixava ir buscar o correio à caixa, de manhã, alegando que ela precisa de descansar. 

Caroline Darian menciona várias conversas telefónicas em que o pai se recusa a passar o telefone à mãe, por esta estar supostamente demasiado cansada. “Quanto mais aprendo sobre a vida dos meus pais, mais me apercebo do domínio que o meu pai exercia sobre ela, sem que ela pestanejasse”, conclui. Um domínio que ele tentou manter uma vez na prisão, tentando contactá-la ilegalmente.

Caroline Darian descreve também todo um clima de incesto que remonta ao avô paterno. Este casou em segundas núpcias com a sua filha adotiva, Lucile, uma mulher com deficiência mental e reduziu-a a uma situação de quase escravatura, humilhando-a regularmente. 

“Perguntei-me sempre porque é que os meus pais continuavam a mandar-nos para lá de férias. E porque é que eles não faziam nada para retirar a Lucile deste ambiente nocivo”, pergunta.  Foi só na adolescência que Caroline Darian exprimiu o desejo de nunca mais lá voltar a pôr os pés. 

Foi neste contexto que nasceu a dúvida insuportável que a atormenta. Entre todas as fotografias encontradas pela polícia nos discos rígidos do pai, há algumas dela, meio despida, mergulhada no que parece ser um sono. Há também fotografias das cunhadas, tiradas com um telemóvel escondido nos seus quartos e casas de banho. Todas foram publicadas na Internet pelo pai, acompanhadas de comentários degradantes e até de insultos.

Há uma expressão que se tornou quase excessivamente utilizada para descrever todas as pistas que Caroline Darian apanhou: bandeiras vermelhas. As bandeiras vermelhas referem-se a um conjunto de comportamentos que nos fazem sentir desconfortáveis, intimidados ou embaraçados, sem que consigamos sempre dizer exatamente porquê.

Por exemplo, o rapaz que não lhe faz perguntas no primeiro encontro e só fala de si próprio. Ou o tipo que minimiza todos os seus conseguimentos. Ou aquele que critica as suas escolhas de roupa - a lista continua e pode também ser usada no sentido feminino. 

O conceito de bandeira vermelha abraça a noção de um continuum de violência, traçando uma linha entre as micro-humilhações da vida quotidiana e a possibilidade de violência física. Afirma precisamente que as primeiras não são caprichos, explosões súbitas de raiva ou malícia, mas o prenúncio das segundas.

Como o comportamento que nos alarma vem por vezes de uma pessoa em posição de autoridade, estamos geralmente habituados a silenciar este instinto que, no entanto, nos diz que algo está errado.

Se este comportamentos provêm de uma pessoa de quem esperamos e por quem temos afeto, ou mesmo amor, por vezes minimizamos o rebaixamento ou mesmo a humilhação. E no entanto... 

Esta vozinha é um mecanismo de sobrevivência. Na verdade, é parte integrante do diálogo permanente connosco próprios que os manipuladores controladores tentam quebrar. Em Quelqu'un à qui parler. Une histoire de la voix intérieure (PUF, 2019), o psicólogo e antropólogo Victor Rosenthal observa que a presença desta voz interior e o diálogo que ela estabelece permitem a formação ética do sujeito e estabelecem a possibilidade de empatia.

Claro que pode tornar-se nociva, dizendo-nos repetidamente que não valemos nada mas, nesse caso, terá assumido a voz do carrasco e quando grita, em caso de perigo, deveria ter um altifalante, porque pode salvar vidas. Os testemunhos de Caroline Darian e de outras vítimas reforçam-no.

Victorine de Oliveira

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