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April 12, 2023

A Boa Vida





Fui dar com este livro, The Good Life: Lessons from the World's Longest Scientific Study of Happiness (A Boa Vida: Lições do Estudo Científico da Felicidade mais Longo do Mundo) e interessei-me por saber o que era. Todos os dias até morrer são dias de evoluir, procurar respostas e melhorar a vida, dentro do possível. 

"Pense por um momento num amigo ou familiar que preze, mas com quem não passa tanto tempo como gostaria. Não precisa de ser a sua relação mais significativa, apenas alguém que o faz sentir-se bem e que gostaria de ver com mais regularidade. Com que frequência vê essa pessoa? Todos os dias? Uma vez por mês? Uma vez por ano? Faça as contas e projecte quantas horas anuais passa com a pessoa. Escreva o número e agarre-se a ele.

Nós, Bob e Marc, embora trabalhemos em estreita colaboração e nos encontremos todas as semanas por telefone ou videochamada, vemo-nos pessoalmente apenas durante um total de cerca de dois dias (48 horas) todos os anos.

Como é que isto se soma para os próximos anos? Bob tem 71 anos de idade. Marc tem 60 anos de idade. Sejamos (muito) generosos e digamos que ambos estaremos por perto para celebrar o 100º aniversário do Bob. A dois dias por ano durante 29 anos, são 58 dias que nos restam para passarmos juntos na nossa vida.
Cinquenta e oito em 10.585 dias."

É claro que isto está a assumir muita sorte e o número real vai ser, certamente, mais baixo.


Desde 1938, o the Harvard Study of Adult Development tem vindo a investigar o que faz as pessoas florescerem. Depois de começar com 724 participantes - rapazes de famílias desfavorecidas de Boston e estudantes de Harvard - o estudo incorporou as esposas dos homens originais e, mais recentemente, mais de 1.300 descendentes do grupo inicial. 
Os investigadores entrevistam periodicamente os participantes, pedem-lhes que preencham questionários, e recolhem informações sobre a sua saúde física. Como director do estudo (Bob) e director associado (Marc), pudemos observar os participantes a entrar e a sair de relações, a encontrar o sucesso e o fracasso no seu trabalho, a tornarem-se mães e pais. É o estudo longitudinal mais longo e profundo sobre a vida humana jamais realizado e levou-nos a uma conclusão simples e profunda: o que leva à felicidade são as boas relações humanas. O truque é que essas relações devem ser cultivadas.

Nem sempre colocamos as nossas relações em primeiro lugar. Considere o facto de que em 2018, o americano médio passou 11 horas todos os dias em actividades solitárias, como ver televisão e ouvir rádio. Passar 58 dias durante 29 anos com um amigo é infinitesimal em comparação com os 4.851 dias que os americanos passarão a interagir com os meios de comunicação social durante esse mesmo período de tempo. 

Bem, o estudo conclui que ter um bom emprego e sucesso na carreira só ajudam se não forem um substituto para as relações significativas. Em idades mais jovens ter muitas interacções pode ser importante no trabalho, mas quando se é mais velho são as relações de proximidade ou intimidade que pesam no bem estar geral, da saúde e da longevidade. É certo que há muitos factores de desequilíbrio entre as pessoas e uns nascem com enormes desvantagens relativamente a outras ou têm condicionantes de vida que os põem em desvantagem, mas em todos os casos, as relações humanas de intimidade são universais: a uns compensam a solidão que é muitas vezes o corolário de uma vida dedicada ao sucesso da carreira e a outros compensam as desvantagens e infortúnios da vida. Em ambos os casos são a pedra de toque que faz a diferença.


February 23, 2023

Uma casa para ler



Bruno Schröder, um alemão do Norte que morreu no ano passado com 80 anos, deixou uma biblioteca secreta de 70 mil livros. Ninguém sabia o que ele tinha - bem, talvez o seu livreiro suspeitasse.
Bruno Schröder foi engenheiro de minas durante a maior parte da sua vida. Nos tempos livres e mais tarde durante a reforma passou os dias a folhear as prateleiras de uma livraria local. Comprava 20 livros por semana.
Quando a sua colecção começou a crescer, mudou a casa para acomodar os livros. Resultou nesta coisa espectacular de uma casa para ler, literalmente. Mais do que um leitor, era um colecionador de livros. Não sei o que vão fazer com a colecção, mas era interessante que fizessem da casa uma casa-museu de leitura.





Leituras pela manhã - Não deite fora os seus livros em papel




Guarde os seus livros físicos

Temos de proteger a história cultural

Ben Sixsmith


Há uns anos enviei a minha colecção de livros de Inglaterra para a Polónia. Parte foi sentimentalismo, mas também tinha um instinto conservacionista. Os livros não são como outros objectos. Se um livro se perde, um texto pode perder-se.

Ok, não preciso de uma cópia de The Great Gatsby. Se eu tivesse um desejo repentino de ler o livro, poderia encomendar outro - ou encontrar um online. Mas e a autobiografia de Fred Trueman? E que tal uma defesa da astrologia? E que tal um livro de medicina dos anos 30? Nem sempre é possível encontrar outros exemplares de livros, em formato físico ou electrónico. Essa autobiografia de Fred Trueman tinha sido herdada de um velho tio-avô que tinha vivido numa casa grande que cheirava a fumo de cachimbo. 

Eu uso um Kindle. Afinal de contas, pode ser difícil ter acesso a livros em inglês a curto prazo na Polónia. Se alguém me pedir para rever um livro de 500 páginas ou o novo thriller de Hillary Clinton, não lhes vou pedir que esperem algumas semanas até que os livros cheguem.

Mas não podemos fingir que possuir um livro físico e "possuir" um livro electrónico significa a mesma coisa. Se descarregar o livro para o computador ou para um USB, já se está a aproximar mas se tiver os seus livros electrónicos na sua conta da Amazon e a empresa sair do negócio, eles desapareceram. A Amazon não tem sequer de desaparecer - podem simplesmente fechar a sua conta. A sua posse do texto dura de acordo com os caprichos de um proprietário que o pode vender ou expulsar.

Poderá comprar uma cópia de um livro que foi escrito há anos - ou um filme clássico e/ou uma série de televisão antiga - e descobrir que é muito diferente do que se lembrava. Ora, ninguém vai entrar sorrateiramente em sua casa, tirar os livros das prateleiras e começar a alterá-los. Mas os livros que estão a ser republicados hoje podem acabar por ser completamente alterados  [por políticas woke].

Ontem, o Telegraph mostrou como novas edições de livros infantis clássicos, de Roald Dahl, estão a ser publicadas após alterações substanciais feitas de acordo com os desejos de uma classe mórbida e absurda de pessoas conhecidas como 'leitores sensíveis'. O Telegraph relata:
A linguagem relacionada com o peso,  a saúde mental, a violência, o género e a raça foi cortada e reescrita. Lembra-se dos 'Homens-Nuvem' em James and the Giant Peach? Eles são agora o 'Povo das Nuvens'. As 'Raposas Pequenas' em Fantastic Mr Fox são agora do sexo feminino. Em Matilda, uma menção de Rudyard Kipling foi cortada e substituída por Jane Austen. É Roald Dahl, sim, mas diferente.
É importante esclarecer que estas mudanças não são apenas presunçosas e arrogantes, elas degradam claramente a qualidade do texto. Veja como o doce surrealismo cómico de Dahl dá lugar a um sermão sem graça:



Ninguém nega que Dahl era um escritor muito cru e até sádico, mas parte da diversão de o ler, quando criança, é entrar no lado escuro e começar a compreender as sombras que se vislumbram em todo o mundo. Estes vândalos artísticos de pequenas dimensões, estão a aplanar aquelas peculiaridades interessantes da literatura, por causa do medo paralisante de que alguém, algures, o possa ler e ficar ofendido.

Se Roald Dahl nem sequer pode dizer que a Sra. Trunchbull tem uma cara de cavalo - porque ninguém tem feições de facto, de cavalo, ou porque estamos proibidos de as notar - o que mais se pode mudar? Se livros como Matilda e filmes como E Tudo o Vento Levou estão a ser cortados aos pedaços, o que poderia acontecer a outros menos famosos e mais provocadores? Raios, vejam como os editores de Dahl decidiram que autores tão ilustres como Joseph Conrad e Rudyard Kipling - referidos em Matilda mas agora substituídos por Jane Austen e John Steinbeck - são demasiado perigosos para serem sequer mencionados em frente de crianças. O Coração das Trevas? Kim? Meu Deus, alguém pense nas crianças!

Precisamos de manter os livros físicos. Diabos, devemos até guardar os nossos DVDs. Quase me arrependo de me ter livrado dos meus VHSs - embora, sabe Deus que não teria maneira de os ver. Tal como queremos possuir terras que ninguém pode destruir, devemos querer possuir terras culturais com as quais ninguém se pode intrometer. 

Talvez seja cómico lutar ferozmente para que as crianças ainda tenham a oportunidade de ler sobre a cara de cavalo da Sra. Trunchbull, mas se não tomarmos uma posição, onde é que isto vai acabar? 


February 16, 2023

Estou a ler um livro fascinante

 


Chama-se, Os livros que fizeram o Iluminismo europeu. E começa assim:

Podia estar a falar da internet 🙂

O livro é uma abordagem ao Iluminismo diferente de tudo o que já li. Aponta a lanterna para os hábitos de publicação e leitura que se espalharam como um rastilho pela Europa (mudaram os discursos, os interesses, as exigências relativamente aos governantes, etc.) e analisa a circulação e o efeito de 12 livros escolhidos, na mudança social. O que vemos é uma imagem diferente da que tínhamos -que eu tinha, pelo menos- de o Iluminismo ser consequência de um punhado de escritores e filósofos cujas ideias circularam entre outros homens e através deles penetraram no tecido social. Nada disso. Nada disso. Fascinante.

Acabei o 1º capítulo que trata de mostrar como os livros eram publicados, quem os lia, como circulavam e por onde e quais os títulos que fizeram bestsellers e tiveram trinta edições ou assim. Uma dica: não foram os filósofos e muito menos os religiosos.


February 14, 2023

Uma pessoa - Madeline Kripke

 


Eu tenho uma atómica (depois de ler isto) colecção de dicionários. A ideia de ter uma casa cheia de dicionários para ler é... Os dicionários são livros de história porque a linguagem expressa a visão do mundo das pessoas, os hábitos do quotidiano, os conhecimentos, os sonhos, a mitologia e por aí fora. Que preciosidade ter uma colecção destas. E que inferno, ter que lidar dela.



The Mistress of Slang


Madeline Kripke reuniu o que poderá ser a maior colecção de dicionários do mundo.

Em 2020, na Perry Street, em Manhattan West Village, vivia uma mulher chamada Madeline Kripke mais os seus livros. Kripke tinha 76 anos e tinha coleccionado dicionários e livros sobre dicionários, a maior parte da sua vida, quase desde que os seus pais lhe deram o Webster's Collegiate quando tinha 10 anos.

Kripke não era uma coleccionadora como você ou eu seríamos. Os dicionários revestiam não só as prateleiras que tinha construído especialmente para eles, mas também todas as superfícies do seu considerável apartamento. Gavetas foram puxadas para fora para fazer mais superfícies sobre as quais empilhar livros, que também se viam em cima do frigorífico e na sua cama. Os livros ficavam em torres ao longo do chão, com passagens estreitas entre eles. 
"É a maior colecção de dicionários, ponto final", disse o lexicógrafo Jesse Sheidlower, autor de The F-Word
Sheidlower faz parte de uma coorte de lexicógrafos que conheceram Kripke e usaram os seus livros, e os seus conhecimentos, para inspirar o seu próprio trabalho. "É melhor do que o que existe no Bodleian e no NYPL combinados", disse, referindo-se à sua colecção.

Madeline Kripke, at her home in lower Manhattan in 2013, spotlights her “slang wall.”


Kripke não era apenas uma coleccionadora. Ela lia dicionários e comparava-os. Sabia o que os seus 20.000 volumes continham e adorava partilhar isso com pessoas que se preocupavam com o que ela sabia. (Juntamente com o seu apartamento tinha pelo menos dois armazéns de Manhattan, cada um com "mais material do que provavelmente qualquer outra colecção de dicionários em qualquer outra parte do país", disse Tom Dalzell, co-editor do The New Partridge Dictionary of Slang and Unconventional English)

Ela tinha faro para encontrar títulos obscuros e memorabilia de dicionário, como a correspondência entre os dois irmãos Merriam sobre como comprar os direitos de um dicionário de um tipo chamado Webster.

Em Março de 2020, Kripke, que não estava bem, contraiu Covid-19 e um mês mais tarde morreu. Durante essas primeiras semanas da pandemia em Nova Iorque, reinou o caos e "Linnie", como a sua família a chamava, não parecia estar assim tão doente. Juntamente com o choque e tristeza pela sua morte, os amigos souberam que ela não tinha deixado testamento. O que aconteceria aos seus livros?

"Madeline tinha olhos brilhantes, um sorriso bonito e era muito extrovertida quando se tratava de livros e de partilhar essa parte de si mesma", segundo Vancil que uma vez tentou persuadir Kripke a doar a sua colecção à ISU, sem sucesso.

No mundo dos livros raros, disse Vancil, destacam-se alguns nomes. Rob Rulon-Miller, em Minneapolis; Bruce McKittrick, na Pennsylvania. A maioria dos coleccionadores tem hipotecas, pensões de alimentos, despesas de vida; precisam de ganhar a vida. Não Kripke. Isto porque o seu pai, o rabino Omaha Myer Kripke, que morreu em 2014 aos 100 anos de idade e a sua mãe, Dorothy, investiram "com o seu amigo Warren Buffet, algumas dezenas de milhares de dólares que se tornaram em 25 milhões de dólares."

Mas quando Madeline Kripke se formou no Barnard College, em 1965, ainda não era rica e precisava de um emprego. Trabalhou como professora e assistente social e acabou no mundo da publicação. Como editora, utilizava dicionários. Apercebeu-se como poderiam ajudá-la a ganhar a vida e a sua verdadeira devoção tornou-se na compra e venda dos livros.
Queria desenvolver uma "narrativa através da recolha", disse o seu amigo Michael Adams, "sobre a vida das palavras e o papel dos dicionários no seu registo".

Um bom exemplo, disse Adams, que preside o departamento de inglês da Universidade de Indiana, é Um Dicionário Clássico da Língua Vulgar, do Capitão Francis Grose, publicado na Grã-Bretanha em 1785. Grose, a quem Adams chama um "oficial comissário com excesso de peso" no exército britânico, visitou bordéis e tabernas à procura de recrutas e registou as palavras que ouviu. Depois de Grose ter publicado a primeira edição do Vulgar Tongue, anotou-a com as novas palavras que aprendeu e publicou-as numa segunda edição. Kripke era proprietária das duas edições, mais a edição anotada. 
Quando o seu amigo Jonathon Green, autor do Multivolume Green's Dictionary of Slang e também coleccionador, comprou a terceira edição anotada, Kripke nunca mais lhe falou. Ela era esse tipo de curadora, disse Adams, que "não suportava que fosse outro a caçar o que queria".

Ela tinha " prateleiras com três filas de livros. Quem sabe o que estava na fila dois ou três"? Num memorando, Green escreveu que Kripke primeiro se tornou negociante de livros para ganhar um rendimento, mas depois "à medida que o negócio de livros se desvanecia, no século passado, a colecção continuava a avançar".

O seu "muro de calão", como alguns descreveram uma parte do seu apartamento na Perry Street, incluía panfletos do tipo encontrado em paragens de descanso ao longo de uma auto-estrada estatal no Arkansas, por exemplo. 
Era proprietária de livros, brochuras e cartazes sobre o jargão de adolescentes, de prisioneiros, de prostitutas, de trabalhadores carnavalescos, soldados e carteiristas. Era a orgulhosa proprietária da Lexical Evidence From Folk Epigraphy in Western North America: A Glossarial Study of the Low Element in the English Vocabulary (1935), por Allen Walker Read. Apesar do seu título académico, a Lexical Evidence é uma compilação de graffiti de casas-de-banho de homem que foi inicialmente considerado demasiado arriscada para publicar nos Estados Unidos. 
Read, uma lexicógrafa da Universidade de Columbia, conseguiu que fosse publicada em França e contrabandeou alguns exemplares para os EUA. Read foi a mentora de Kripke; a sua colecção inclui a edição de contrabando da própria Read.

Madeline Kripke

"Ela tinha sempre a melhor cópia possível de qualquer livro", disse Ammon Shea, um autor. Quando Kripke ouviu falar da escrita de Shea, contactou-o por e-mail, sugerindo que a visitasse pois poderia ter um ou dois artigos que ele gostaria de ver.

O que era absurdo sobre ir visitar Madeline", disse Shea, "é que eu passava por lá para uma visita de 20 minutos e cinco horas depois ainda estávamos no vestíbulo do apartamento a falar de dicionários e dos seus criadores".
Sempre que ia à Perry Street, quatro ou cinco vezes por ano depois de a ter conhecido em 2000, "sentia que aprendia um semestre inteiro de informação".
Kripke sustentaria, não de forma dogmática ou pedante, que havia uma ligação interessante entre este e aquele autor ou que "esta obra foi influenciada por esta edição, porque apesar de pensarem que esta palavra tem origem ali, eu vi-a antes neste dicionário aqui".


Madeline "poderia muito bem ter sido eu", disse Connie Eble, professora emérita de inglês na Universidade da Carolina do Norte e autora de Calão e Sociabilidade: Linguagem em grupo entre estudantes universitários. "Ela poderia ter tido facilmente um doutoramento, mas escolheu "um caminho próprio". Na academia "há todo o tipo de controlo sobre o seu desenvolvimento da pessoa como académica dentro do sistema", disse Eble. "Madeline não estava interessada em ser controlada. Ela era uma pessoa extremamente independente".

Kripke trabalhava sozinha mas conheceu Eble e outros lexicógrafos, alguns deles académicos, através da Sociedade de Dicionários da América do Norte, que Kripke ajudou a iniciar. O grupo, fundado em 1975, reúne-se de dois em dois anos. Victoria Neufeldt, uma antiga editora do Webster's New World dictionary, lembra-se que Kripke ia a essas reuniões com uma mochila que podia ter enchido com "pequenos glossários de coisas como a linguagem da indústria da destilação". Ficava encantada em revelar tudo o que tinha trazido para partilhar.

Às vezes era maliciosa. Peter Sokolowski, editor na Merriam-Webster Inc., recorda-se de visitar Kripke em 2014 com John Morse, então editor e presidente da empresa. 
Kripke mostrou-lhes um Webster's precoce, da vida de Noah Webster e anúncios coloridos de dicionários do século XIX da revista Harper's. 
Depois de horas passadas em pé, Sokolowski ficou espantado quando Kripke tirou da cartola uma carta de George a Charles Merriam, a discutir como beber vinho e jantar com um livreiro chamado Adams, para obter os direitos do dicionário Webster em 1844, que o livreiro detinha, um ano após a morte de Noah Webster. 
"Este é o primeiro documento que liga o dicionário Webster ao nome de Merriam", disse Sokolowski. Kripke sabia que "só duas ou três pessoas na América" se importava tanto como eles com isso mas fê-los esperar horas em pé até estarem "cansados, desidratados e famintos" só para o verem. "Até hoje, é um dos dias mais espantosos de trabalho que já tive em toda a minha vida".

Ao contrário de outros coleccionadores, a maioria dos quais são homens, Kripke estava interessada nos aspectos quotidianos da elaboração de dicionários e nos pequenos dicionários baratos que não são fáceis de encontrar. 
Ela "afasta-se daquilo que poderíamos pensar como estereótipos masculinos sobre o que faz um dicionário valioso", disse Lindsay Rose Russell, professora de inglês na Universidade de Illinois e autora de Women and Dictionary-Making
Kripke não jogava segundo as regras de apenas possuir as edições mais caras com as proveniências mais prestigiadas, como o A Dictionary of the English Language de Samuel Johnson (1755). Também as coleccionava, mas entendia a lexicografia como uma "prática das massas", dizia Russell, na medida em que "todos os tipos de pessoas são fabricantes de dicionários, o tempo todo".

A sua colecção inclui um Dicionário de Termos Musicais para o Uso de Cegos, um raro volume de letras em relevo publicado em 1884, antes do Braille ter sido amplamente utilizado pelos americanos, e uma edição cor-de-rosa, 1959 de Webster's chamada Dig These Definitions!, comercializada a raparigas adolescentes.

Era proprietária de "dictionariana", do mundo. Kripke tinha fotografias de fabricantes de dicionários, imagens de caixas de fósforos e de caixas de charutos. Noah Webster é normalmente mostrado como um cavalheiro idoso, mas Kripke tinha um desenho dele como um jovem com cabelo castanho a fluir. Na sua colecção está uma fotografia de Allen Walker Read, pendurada na lateral de um moinho de vento do Midwestern. Tinha uma carta escrita por Walt Whitman, então editor de um jornal em Brooklyn, pedindo uma cópia gratuita do dicionário Webster, que o poeta disse ser-lhe devida depois de lhe ter dado uma crítica favorável.

E no chão do que Ammon Shea chama de "manicómio dos livros", Kripke encontrou-lhe várias dezenas de exemplares da Broadway Brevities, uma revista de fofocas do início do século XX, cuja editora pressionou os anunciantes a comprar anúncios, ameaçando-os de denunciar serem homossexuais. Num canto, pilhas do The Hobo Times.

Kripke viu os dicionários como um interesse comercial e um modo de vida. Esse tipo de procura "requer muito tempo e energia e concentração", disse Russell. "E o mundo académico está tão cheio de outras coisas, ensino, e muitas exigências de serviço, e muita politiquice que não é precisas aturar se estiveres no teu apartamento com os teus livros favoritos".

Quando uma pessoa morre sem testamento, a doação dos seus pertences torna-se mais complexa, especialmente se os pertences compreendem 20.000 livros, muitos dos quais raros. O executor dos bens de Madeline Kripke era o seu irmão, Saul. Mais velho que Linnie, Saul Kripke, morreu em Setembro de 2022. Uma irmã, Netta, morreu antes de Madeline e a decisão ficou para os dois filhos de Netta que tentam pensar o que faria Saul com os livros se estivesse vivo.

Então o que é que ele faria? Venderia os livros em leilão? Madeline não teria querido isso. Saul e Madeline não eram os irmãos mais próximos, mas qualquer que fosse a sua relação quando ela era viva, Saul queria cuidar do legado da sua irmã aquando da sua morte. Além disso, em 2020, ele estava ocupado a construir o seu próprio legado, editando as suas obras inéditas. Ele era filósofo.

Madeline tinha falado em doar os livros. A certa altura pensou doá-los ao "Michigan", disse a sua amiga Barbara Minsky. Noutra altura a Northwestern. Minsky, uma pintora, sugeriu que a sua amiga doasse apenas alguns deles, apenas para se dar mais espaço. Mas Kripke não se podia separar deles. "Ela dizia: 'Barbara, sabes como os teus quadros são os teus bebés? Estes livros são os meus bebés"."

Minsky dizia: "Centenas e milhares?".

"'Eles são os meus bebés'".

"Eu nunca a vi vender ou dar nada", disse Minsky a The Chronicle. "Só coleccionava".

Pouco tempo depois da morte de Madeline, Jonathon Green reuniu os seus amigos lexicógrafos, e Saul Kripke, para decidir o destino dos "bebés". O grupo incluía Adams, de Indiana; o editor do dicionário de calão Dalzell; Kripke e o seu assistente, Padro; Sheidlower; e Shea.

Então, se dois livros valem 50.000 dólares, qual o preço de toda a colecção? Ninguém dirá com precisão, mas a Biblioteca Lilly da Universidade de Indiana fez uma oferta, que foi aceite. Joel Silver, director da Lilly, disse que estava "nos seis algarismos médios e altos". Não chegou a um milhão de dólares, mesmo com o custo de embalagem e envio dos livros de Nova Iorque para Bloomington, disse ele.

Havia outras ofertas? Silver não sabe. Mas Saul Kripke fez "o que tinha de fazer para manter a colecção junta em vez de ser cortada e vendida para que pudessem dividir o dinheiro", disse Tom Dalzell.

Os livros chegaram em cerca de 1.500 caixas em 30 paletes, suportadas por dois camiões semi-reboque, em Dezembro de 2021. (A embalagem começou em Agosto desse ano, mas isso é outra história.) Adams está encantado. Está a escrever um blogue para o website das bibliotecas IU, "Desembalar a Colecção Kripke", descrevendo o que encontra ao abrir as caixas, 100 das quais já foram processadas.

A Lilly abriga outros arquivos de dicionários, incluindo a vasta Colecção Breon Mitchell de Dicionários Bilingues, 1559-1998, na sua maioria línguas não europeias. 
A conhecida colecção de Warren N. e Suzanne B. Cordell do Estado de Indiana está a menos de uma hora de distância. Indiana tem assim um Corredor de Dicionários no meio dos Estados Unidos, aberto a qualquer nerd de palavras, no mundo.

"Nunca é demais sublinhar o quanto estou contente por os livros não ficarem trancado em Harvard ou Yale", disse Shea. "Indiana tem um grande historial de ser assertivamente aberta às pessoas".

Kripke foi uma curadora que se alegrava ao comprar um livro e não só por causa de o adquirir. Estudava-o. Mostrava-o às pessoas. Os seus livros "não eram posses", disse Dalzell. "Estavam à sua guarda temporária". "Ela queria uma grande colecção da qual o mundo pudesse beneficiar".

Graças ao seu irmão, aos seus amigos lexicógrafos, e à Biblioteca Lilly, isso será possível. Já só faltam a Adams abrir 1.400 caixas.

January 26, 2023

Livros - "Os Últimos Escritos de Thomas Kuhn"



Apresentando as Palestras do Memorial Shearman no University College, Londres, em Novembro de 1987, Thomas Kuhn reflectiu sobre o momento que lançou a sua carreira filosófica. Era um estudante da licenciatura e enquanto preparava o inquérito obrigatório a caloiros na história da ciência, tentava compreender como era possível alguém ter aceitado, alguma vez, a física aristotélica. Kuhn lembra-se vivamente de olhar pela janela durante algum tempo antes de perceber subitamente que Aristóteles usava o termo, movimento, com um significado muito diferente dos seus sucessores newtonianos. A noção de Aristóteles era mais ampla: abrangia o modo como a bolota se transforma num carvalho ou o declínio do corpo da saúde para a doença, em vez de apenas significar o modo como os objectos físicos se movem de um local para outro. Muitos dos aparentes absurdos da sua teoria - a impossibilidade de um projéctil continuar a mover-se uma vez lançado da sua fonte - foram na realidade o resultado da leitura dos seus textos a partir de conceitos contemporâneos de movimento. Portanto, era essencialmente um problema de tradução: de não ser capaz de se pensar num mundo completamente diferente e não simplesmente um problema de tentar captar a nuance do grego original. Dito de forma simples, não se podia esperar que duas épocas diferentes esculpissem a natureza usando as mesmas ferramentas.  ~Paul Dicken

January 08, 2023

Fui dar com esta frase na folha de ante-rosto de um livro

 


Não sei porque a escrevi - calculo que tenha que ver com o livro em questão [Contributions to Philosophy (From Enowning - Heidegger] que comecei a ler há uns nove meses e depois parei, no início do ano lectivo. Seja como for, a frase tem tanta aplicação na vida, na filosofia, na ciência, no conhecimento em geral, que fico contente de a ter escrito. Vou ter que recomeçar o livro porque anotei as margens mas não organizei notas - mas só por causa desta frase já estou com curiosidade e interesse no livro.



November 19, 2022

Livros - A internet é uma grande invenção 🙂





Comprei este livro. Chegou hoje. O livro acompanha uma exposição internacional de pinturas e desenhos da Fundação Oskar Reinhart em Winterthur, uma das melhores colecções de arte alemã, austríaca e suíça da Europa.
Oskar Reinhart (1885-1965) apresentou a sua extraordinária colecção de arte Romântica e Realista do Norte, à cidade de Winterthur, criando um museu com mais de quinhentas pinturas e vários milhares de desenhos. A colecção foi aberta ao público em 1951 mas é pouco conhecida fora da Suíça pois nunca foi exibida no estrangeiro e raramente empresta obras.
São 300 páginas de umas dezenas de artistas que vão da era Romântica e do encanto de Biedermeier até aos pintores Realistas e Simbolistas no final do século, todos comentados por especialistas.
Tem pinturas de grandes artistas - Friedrich, Runge, Menzel, Bocklin, Liebermann e Hodler - e de outros menos conhecidos. 
Custou-me 10$. Dez dólares! A internet é uma grande invenção. 🙂







November 15, 2022

Leituras pela manhã - Darwin no Brasil

 

A estadia de Darwin no Brasil, que teve grande importância na sua teoria evolucionista, está cheia de vívidas descrições de deslumbramento pela beleza e exotismo das paisagens e acutilante observação do comportamento dos animais e insectos, mas também dos brasileiros. Ele fala com horror do esclavagismo, ao ponto de jurar nunca mais pôr os pés no Brasil. Fala do contraste entre a enorme riqueza das terras e o tão pouco cuidadas que estão, bem como da total falta de infra-estruturas em áreas vastíssimas: nem uma única estrada, só caminhos abertos pelos próprios animais e carroças (todos os homens andam com um facalhão à cintura para abrir caminho) e nem uma única ponte de pedra. Mesmo as pontes de madeira e as de cordame num tal estado que na maioria dos casos têm de ser passadas por debaixo e não por cima. A burocracia de enlouquecer qualquer um, a corrupção endémica. É preciso ver que Darwin passou pelo Brasil apenas 10 anos após a independência, de maneira que estas críticas atingem-nos, sobretudo, a nós.









October 21, 2022

Livros - "What We Owe the Future", de William MacAskill

 



What We Owe the Future, de William MacAskill 

O filósofo de Oxford William MacAskill pensa que a moralidade exige que tomemos conta do futuro. O seu novo livro, What We Owe the Future, procura explicar a que se deve esta obrigação e intervém em vários debates filosóficos sobre moralidade e estatuto moral. 

"Pode-se moldar o curso da história", escreve MacAskill - e deve-se fazê-lo.

Deve-se fazer o que se puder para assegurar que o futuro tenha muitas pessoas felizes e prósperas. Devemos concentrar-nos nas escolhas com os efeitos mais significativos, persistentes e contingentes: efeitos que conduzam ao mais bom (significado), durante mais tempo (persistência) e que não se concretizariam se não agisse (contingência). 
Para MacAskill, pode fazer dois tipos de coisas importantes para a humanidade: ajudar a garantir a sua sobrevivência e mudar a sua trajectória. Imagine um gráfico em que assegurar a sobrevivência significa assegurar que a linha da existência humana ao longo do tempo é longa e mudar de trajectória significa assegurar que a linha da qualidade de vida humana é elevada. MacAskill quer maximizar o bem total no futuro do mundo, que, no gráfico, seria a área sob a curva ao longo de todo o tempo que ainda tem de passar. A tese de que isto é o que devemos fazer chama-se "longtermismo".

Com estes pontos de partida teóricos estabelecidos, o resto do livro discute formas de realizar estas tarefas - alterando os maus hábitos ou reforçando os bons; evitando a extinção, o colapso e a estagnação.
Por um lado, a população pode crescer significativamente, mas mesmo que atinja um planalto, a vasta extensão de tempo em que a civilização pode continuar significa que poderá haver muito mais pessoas no futuro do que no presente e no passado. 

Então, o que devemos fazer pelo futuro? Como podemos cuidar dele? A forma mais óbvia é evitar a extinção e o colapso: proteger contra futuras pandemias, contra impactos de asteróides, contra a guerra nuclear, contra as alterações climáticas e contra o esgotamento de combustível. 
MacAskill discute formas de explicar o facto de que o futuro pode não ser humano: que em caso de extinção humana, outra espécie sapiente poderia evoluir no nosso lugar, ou que uma inteligência artificial que criamos poderia substituir-nos. 
Para além do conteúdo filosófico, a gama de questões empíricas que a MacAskill aborda é impressionante. O que levou os seres humanos mais ou menos universalmente a verem a escravatura como o mal? Irá a nossa civilização estagnar? Irá uma inteligência artificial altamente poderosa partilhar os nossos valores? MacAskill emprega vários métodos para descobrir o que somos capazes de fazer e, mais geralmente, que tipos de eventos são susceptíveis de ocorrer, a fim de informar a sua discussão sobre o que devemos fazer.

(...)
Para alguns críticos, apenas o aqui e agora, as pessoas vivas de hoje, importam. Porém, há pouca diferença de princípio entre a recusa de ajudar alguém porque está num tempo diferente e a recusa de ajudar alguém porque está num lugar diferente. 
O longo tempo de MacAskill é uma extensão da motivação original por detrás do "altruísmo eficaz", enraizado num argumento feito pelo filósofo Peter Singer sobre salvar uma criança que se afoga. Singer pensou que, se seria monstruoso não saltar e salvar uma criança que um dia se viu afogada porque poderia estragar uma camisa cara, seria igualmente monstruoso não doar dinheiro que salvaria uma criança esfomeada num país qualquer empobrecido para comprar uma camisa cara. Para Singer, a proximidade física não fazia uma diferença moral. Nestes termos, também é difícil ver como a proximidade temporal faz.

(excertos)


October 14, 2022

Livros - O que é a consciência

 



Como é ter um cérebro? Sobre  o livro, "Dezanove maneiras de olhar para a consciência" de Patrick House

- Por Henry M. Cowles


When the blackbird flew out of sight,
It marked the edge
Of one of many circles.


Pense em qualquer coisa com suficiente frequência, de ângulos diferentes e está sujeito a fragmentá-la e refractá-la. As nossas mentes são como caleidoscópios, repletas de espelhos que torcemos para ver o mundo de novo. Às vezes torcemos conscientemente, outras vezes inconscientemente, mas de uma maneira ou de outra, acabamos por ver padrões que são mais um produto da ferramenta que temos em mão do que do mundo que está do outro lado. Desta maneira, o poema de Stevens, Thirteen Ways of Looking at a Blackbird, é menos sobre os melros do que sobre as lentes que usamos para os espiar. É um aviso, por outras palavras, para não confundir o caleidoscópio com o universo.
(...)
Os cérebros são pedaços de carne ou uma abreviatura para o conhecimento ou o núcleo do eu moderno, dependendo de como se olha para eles. E olhar para eles de uma forma significa, pelo menos de momento, pôr de lado outras formas de olhar. Stevens tem-nos dado muitas aves, mas há muitas mais empoleiradas mesmo fora da página, a agitar as penas e a deslocar-se em pés brilhantes.

Ou assim se conclui do livro de Patrick House's Nineteen Ways of Looking at Consciousness, um livro sobre a neurociência e os seus limites. A referência no título do livro de House, embora também poética, não é ao poema de Stevens mas sim poema de quatro linhas da Dinastia Tang, Nineteen Ways of Looking at Wang Wei.

O que é uma pena! Há muito a aprender ao comparar as aves de Stevens com os cérebros do House. No início, parecem semelhantes. O poema salta para trás e para a frente e o livro de House também o faz. 
Um capítulo é uma estranha parábola (A Small Town with Too Much Food), outro é uma experiência de pensamento (A Secondhand Markov Blanket) e um terceiro transcreve uma entrevista (Endeavoring to Grow Wings). 
Conhecemos um homem com um tumor cerebral, aprendemos a história das máquinas de pinball, comemos num restaurante que anda à roda na Noruega e consideramos um peixe numa tigela e como o nosso cérebro é como aquele peixe. Tanto o poema como o livro desenrolam-se de acordo com uma ordem inexplicável, como se a aleatoriedade fizessem parte da questão.
E embora não seja um poeta (tanto quanto sei), House é um prazer de ler. 

Como Oliver Sacks e Robert Sapolsky, que o aconselhou em Stanford, House destilou os detalhes da psiquiatria e neurologia em formas digeríveis. 
Perto do início, os cérebros "levam consigo, nas suas suposições e lições, estatísticas sobre o mundo em que actuam". E perto do fim: "A informação nos computadores é armazenada como limite das possibilidades de, para onde os electrões podem ir". Extraindo de revistas de ficção científica e revistas científicas, de episódios históricos e da sua própria experiência, House pinta um quadro de um campo que é ao mesmo tempo caótico e controlado. "A neurociência é um campo frustrante para se estar", admite ele desde cedo, até porque parece estar cada vez mais longe de cumprir os seus objectivos.

Quais são esses objectivos? Desde a explicação da consciência até ao desenvolvimento de drogas., neurociência é uma grande tenda que cobre muitos objectivos, mas se se aprofundar, torna-se claro que a visão do House da neurociência como sendo orientada para fins específicos também se aplica à consciência. 
O campo (neurociência) e o seu objecto (o cérebro) esbatem-se juntos: ambos são ferramentas para dar sentido ao mundo, esforços evoluídos para simplificar a complexidade com o propósito de tomar medidas. É quase como se o caleidoscópio House não só tivesse refractado a sua visão do cérebro, mas também se tivesse tornado a sua visão do cérebro. Aos seus olhos, o cérebro é um instrumento científico como aqueles os que se utiliza para o estudar.

The river is moving.
The blackbird must be flying

Para o homem com um scanner, tudo se parece com um cérebro. Mas claro, existem outras ferramentas para explorar o que pode ser a consciência - não apenas para o que é, mas como é. A poesia é uma delas, insiste Stevens. Penso que House concordaria. O seu livro está salpicado de referências literárias - de Anna Karenina até Mister Ed - que servem sobretudo como introdução às abordagens científicas que estes autores ou inventores inadvertidamente predisseram ou confirmaram.

Alguns textos primam ausência, como o ensaio de Thomas Nagel, What Is It Like to Be a Bat?, cujos parâmetros definiram a pesquisa do House. É verdade que vários neurocientistas contestaram a afirmação de Nagel segundo a qual há algo como 'ser um morcego' e que esta dimensão subjectiva da consciência é inacessível ao estudo objectivo. 
Mas House adopta a perspectiva de Nagel, embora sem o nomear. "A única coisa que sabemos ao certo para cada um de nós", escreve House, é que "há algo que é como «sermos nós»". E para ambos os homens, esse "algo" só é acessível à pessoa que o experimenta. 
O conhecimento subjectivo de mim nunca evolui para um conhecimento objectivo de vós. Por mais que tentemos, "só podemos arranhar a superfície do que realmente se passa no interior" dos outros. Enquanto esta visão leva Nagel ao pessimismo, House mantém a esperança de que, se continuarmos a escavar, vamos ultrapassar a divisão e explicar o que é ser um morcego - ou qualquer outro ser consciente.

Fazê-lo seria resolver o que David Chalmers chamou de "o duro problema da consciência". Enquanto que explicar as funções mentais em termos físicos era "fácil", o problema "difícil" era explicar porque é que elas eram acompanhadas pela experiência de as desempenhar. 

Among twenty snowy mountains,
The only moving thing
Was the eye of the blackbird.

Mas talvez isso seja parte da questão. Há uma imagem particular que aparece repetidamente no livro de House. Extraída de um artigo de uma página publicado em 1998 chamado Electric Current Stimulates Laughter (incluído como apêndice no livro de House), a imagem é de um paciente induzido a um riso jovial por um eléctrodo durante uma cirurgia ao cérebro.

O paciente, a quem House chama Anna, ri-se em cada capítulo do seu livro à medida que os cirurgiões operam o seu cérebro. Os investigadores sabiam que tinham estimulado o riso de Anna com um eléctrodo, mas para Anna o que causou o riso foi uma sensação da qual deu diferentes explicações: uma imagem de um cavalo, ou a presença de uma pessoa. Se estas imagens não parecerem engraçadas - bem, isso é o que as torna interessantes.

Há uma velha teoria que pode ajudar a explicar a resposta de Anna, mas House não a menciona. Tornada famosa por William James, a teoria diz algo do género: em vez de expressar emoções através de comportamentos como rir, por exemplo, as nossas emoções são antes respostas a movimentos que fazemos sem saber porquê. Não cerramos o punho com raiva porque nos sentimos zangados, antes sentimos raiva quando o nosso punho se cerra. No caso de Anna, isto significaria que em vez de ser a estimulação da alegria no seu cérebro o que a fez rir em voz alta, os cirurgiões fizeram-na rir em voz alta - ao que Anna respondeu com a emoção de sentir alegria.

Algumas vezes no livro, House aproxima-se da abordagem de James e dá a mesma prioridade ao movimento. "Qualquer acto de pensar", escreve ele a certa altura, "é apenas fingir agir"; ou, todo o pensamento é "movimento planeado sem saída muscular". 
A questão é que, mesmo no nosso momento mais privado e contemplativo, a consciência é sobre os efeitos, sobre mudar o mundo (potencialmente) à nossa volta. James teria concordado. 

Mas para mim, é a forma do livro que mais se aproxima de James: ler é uma forma de expectativa, o que significa que "fazer o nosso caminho" através de um livro é mais do que apenas uma metáfora. Os nossos olhos contorcem-se, os nossos corações batem, olhamos em frente até ao fim das frases e páginas em busca do que vem a seguir. Mesmo no sofá, estamos sempre em movimento.

The blackbird whirled in the autumn winds.
It was a small part of the pantomime.

A consciência é diferente em cada capítulo - às vezes um animal ou uma máquina, outras uma cidade ou uma peça de música. Afinal, como House, Nagel e Chalmers insistem - cada um de nós está consciente à sua maneira, vivo na sua própria mente e consciente do mundo através dos seus próprios sentidos. Há boas razões para acreditar que somos semelhantes uns aos outros, vendo as coisas da mesma maneira, ou experimentando os mesmos prazeres e dores. Mas como que é, «ser você» e qual é a natureza do seu mundo, são coisas que estão fora do meu alcance.

Isto é um lembrete de que, no final, o livro do House não é sobre consciência - é sobre um conjunto de formas de olhar para ela. 
Trata-se de neurociência, por outras palavras. E a neurociência tem os seus limites. Nenhum dos 19 modos de House se cruza com perspectivas religiosas, humanistas ou literárias (apesar das suas referências literárias). Nunca vemos a consciência como um ponto de contacto com o divino, ou como algo que se estende para além da mente individual, como o próprio Chalmers a propõe. Dê ao House 19 mais formas de olhar e ele encontrará algumas personagens surpreendentes: fantasmas, digamos, ou agências governamentais. A neurociência pode tornar-se mais estranha.

Tal como a consciência, a neurociência não existe no vácuo. Quer a nossa consciência seja, ou não, para alguma coisa, a neurociência certamente o é. Por vezes esse objectivo é óbvio: um neurocientista trabalha avidamente para desenvolver um medicamento. Outras vezes, os usos da neurociência são mais distantes. 

Quando Stevens escreveu sobre um melro rodopiante que era "uma pequena parte da pantomima", ele quis dizer que era uma parte de algo maior - de um drama sem um autor, desdobrando-se a cada instante. As suas aves comunicavam de muitas maneiras, todas elas através do movimento - outro ponto de contacto com a visão do mundo do House. 
A consciência é, como James sugeriu, uma série de "voos" e "poleiros" - e a neurociência também o é. Afinal, o que é qualquer ciência - qualquer forma de olhar - senão uma espécie de movimento. A questão é: para onde?

¤
Henry M. Cowles é um historiador da ciência e da medicina modernas da Universidade de Michigan. O seu livro, "The Scientific Method" (O Método Científico): An Evolution of Thinking from Darwin to Dewey, foi publicado pela Harvard University Press em 2020.

October 07, 2022

Pedaços de Portugal em banda desenhada

 


Histórias à Sombra do Montado, um projecto de banda desenhada coordenado por Hugo Tornelo e Rita Gonzalez, reúne “quatro histórias independentes”, impressas em formato de jornal e de livro. Pode descarregar-se as histórias aqui.

São histórias sobre os sobreiros portugueses e a vida do Alentejo. Muito giras.



September 04, 2022

Livros da Feira - "Sempre a direito não se vai lá muito longe"

 


Um Principezinho miniatura. Uma edição cuidada, bem encadernada, bom papel, ilustrada. O livro é amoroso. Dois euros. Nem dá para pagar a encadernação. 





De facto, Portugal é a parvónia e o resto é paisagem

 

Sempre assim foi, sempre será.

Li este livrinho muito giro que comprei na Feira, onde se conta a história dos caminhos de ferro do Douro -e um pouco da história portuguesa da época- apresentada de uma maneira encantadora como conversas entre um avô, antigo ferroviário da linha do Douro e o seu neto. 
Tanto lê bem o adulto como o adolescente e a criança. Instrutivo sem ser maçador e com umas ilustrações de bom gosto.
Como se lê nesta página, antes da chegada do caminho-de-ferro, as populações daqueles sítios estavam isoladas e de cada vez que desciam à vila ou à cidade, até se iam confessar e rezar, tais eram os perigos e as distâncias das viagens. E quem adoecia e tinha de morrer morria...
Isso mudou um bocadinho, mas não muito, como se vê pelas grávidas que têm o azar de não ser da parvónia.

E esta é a autora. 

Uma página da «Viagem À Roda Da Parvónia»

 


Farto-me de rir em todas as páginas 😁 Nada mudou debaixo do sol, neste rectângulo à beira-mar plantado.


E mais duas 




September 03, 2022

Literatura

 

"Literature is as old as speech. It grew out of a human need for it, and it has not changed except to become more needed."
In 1962, John Steinbeck
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Ontem comprei um livro -um romance- a uma autora que andava na Feira a promovê-lo. Disse-me que era o primeiro livro que escrevia, que estava a ser muito bem recebido. Enfim, não interessa. O que interessa é que admiro a coragem das pessoas que neste país se dedicam à literatura e não se deixam desanimar por sermos um país onde tudo funciona por endogamia. 

September 02, 2022

Livros

 


Não sei se posso voltar à Feira do Livro. Ia lá ver as vistas e comprar a Isabel de Aragão da Isabel Stillwell. Não encontrei lá esse livro e comprei uma data de livros que não ia comprar. Mas estavam tão baratos... excepto o Karl Jaspers que curou 13 euros, os outros foram todos entre os 5 euros e os 7 euros. O livro dos ícones do Jazz, que é um livro grande com fotografias de página inteira em cada folha, em papel couché, custou 6 euros. Vi um livro lindo, lindo, de pássaros e outro de borboletas, mas já vinha carregada e o livro era grande...

Enfim, uma coisa que não percebo é haver pouquíssimas edições do Torga. Encontramos edições de obras completas de tudo quanto é autor português, mas do Torga não há quase nada. Hoje comprei uns tomos dos Diários. Comprei um livro sobre viagens de comboio no Douro. Um volume de poesia inglesa e a correspondência entre Joaquim Veríssimo Serrão e Marcello Caetano entre 1974 e 1980.

Este ficou-me 





August 26, 2022

Livros - D. Teresa de Isabel Stilwell



Comecei a ler este livro que chegou ontem ao fim da tarde. Li cerca de cem páginas, o que não é muito porque o livro tem mais de quinhentas, embora tenha a letra grande.
Confesso que nunca tinha lido nenhum romance desta autora que só conhecia como jornalista. Deixei de ler romances, é muito raro ler, mas fui dar com um artigo acerca de Isabel Stilwell ter uma coleção sobre rainhas de Portugal e interessei-me porque temos muita informação sobre a vida dos reis portugueses mas não das rainhas.

Enfim, comecei pelo início da nossa história, pela D. Teresa. Estou a gostar bastante. Na senda de Mário Domingues ou de António de Campos Júnior, Isabel Stilwell escreve um livro ao mesmo tempo informado e sensorial, quer dizer, ao mesmo tempo que vai discorrendo os acontecimentos da história de D. Teresa, impregna-os dos cheiros e emoções da época, crava-os nas paisagens, na arquitectura, na cultura e no quotidiano medieval, de maneira que conseguimos ver, ouvir e sentir o pulsar daquela vida. A história é contada da perspectiva da própria D. Teresa e da mãe, pelo menos até agora.

Um livro que tanto serve a adultos como a adolescentes e, tal como os livros dos outros dois autores citados, é o tipo de romance histórico que nos faz apaixonar pela história e interessar pelas suas personagens, os seus episódios marcantes. Já me fez ir pesquisar sobre Bierzo e o Monasterio Santa María de Carracedo - fiquei com vontade lá ir e também a Leão, por onde já passei mas não parei. Se os outros livros da colecção das rainhas forem como este, vou lê-los todos. 

Anasisapta: uma palavra que não conhecia e passei a conhecer.



August 23, 2022

Caos e ordem

 


Nesta breve história da China que estou a ler, as dinastias sucedem-se como sequências de caos e ordem. Uma pessoa assalta o poder e instaura uma dinastia que será mais confuciana ou daoísta consoante for mais severa e deontológica ou relativista e fluída como a água. Essa dinastia prospera. Geralmente tem uma característica que lhe marca a personalidade: ou são guerreiros, ou são organizadores político-sociais, etc. A certa altura a corrupção, que vai sempre crescendo à medida dos interesses das famílias e oficiais que rodeiam o imperador, desagrega a sociedade que se torna um alvo fácil de assalto. Após um período de caos, uma outra dinastia começa. Tem sido assim até agora e vou no século IX, na dinastia Tang, que inaugurou uma época de poesia, como se pode ler aqui.

A língua que chamamos mandarim é muito complexa. A fonética importa no que respeita ao sentido de uma palavra numa frase. Por ex., se dizemos a frase com uma entoação a subir de tom ela tem um sentido e se a dizemos a descer de tom tem outro.

No século III AEC, quando a China era um pedaço, não unificado, do que é hoje em termos de território, os chineses já eram 36 milhões!

Talvez se deva ao facto dos ricos terem muitas concubinas e, por isso, muitos filhos?

Uma coisa que estranhamos é a China não ter monumentos muito antigos, como existem no Mediterrâneo e na Europa, com excepção das famosas muralhas.

August 18, 2022

Livros - O que é a democracia e porque devemos defendê-la







John Keane é professor de política na Universidade de Sidney. Por vezes, é admiravelmente sucinto. "A democracia aumenta a consciência do que é indiscutivelmente o principal problema político: como evitar o domínio por uns poucos, que agem como se fossem poderosos imortais nascidos para governar?", escreve ele.

O que Keane chama ao problema do titanismo - 'governo de falsos gigantes' - ameaça a democracia, mesmo em tempo de paz. 

A democracia sempre teve métodos rivais de distribuição do poder. Da monarquia e do império à tirania e ao despotismo, a história, no relato de Keane, é uma ladainha de sucessivos arranjos políticos. Nenhum, excepto a democracia, mantém no coração um princípio de governo igualitário. Ele escreve que "a democracia é excepcional ao exigir que as pessoas vejam que tudo é construído nas areias movediças do tempo e do lugar, e assim, para não se entregarem aos monarcas, imperadores e déspotas, eles precisam de viver aberta e flexivelmente".

A democracia, diz-nos Keane, é a amiga da contingência. Ele fornece em 240 páginas uma taxonomia instrutiva - da "assembleia" à democracia "eleitoral" e "monitória", cada acordo uma resposta a diferentes contingências.

Keane escreve eloquentemente sobre os primórdios da democracia. As primeiras formas de democracia de assembleia, com reuniões públicas de cidadãos que debatem e decidem assuntos por si próprios, aparecem primeiro na Síria-Mesopotâmia e deslocam-se para leste para o subcontinente indiano e para oeste para cidades fenícias. A democracia instala-se de forma famosa em Atenas. Lá, a democracia de assembleia permitiu uma forma directa de auto-governo, e os cidadãos fizeram uma forma artística de falar à assembleia, lutando por um consenso político. Mas Atenas não conseguiu reunir toda a gente. As mulheres e os escravos sustentaram a liberdade dos cidadãos atenienses sem a partilharem. E talvez esta injustiça fundacional tenha levado ao impulso antidemocrático que, segundo Keane - a construção do Império - Atenas acabou por desfazer. Quando os macedónios finalmente derrotaram Atenas em 260 a.C., desmantelaram os seus ideais e instituições democráticas, que se tinham tornado fatalmente manchados pela sedução da riqueza imperial e a sua consequente militarização da vida política.

A democracia foi apanhada nas regiões atlânticas a partir do século XII, quando emergiu uma forma mais "eleitoral" de democracia. A governação da igreja e as primeiras formas de parlamento foram vistas de Espanha à Islândia, instituindo a escolha de delegados de um círculo eleitoral que tinham poderes para tomar decisões em seu nome. Em cada caso, foi encontrada uma solução sem violência para classificar os diferentes interesses e para moderar o poder.

O método eleitoral da democracia diferiu do método da assembleia, permitindo o ajustamento das diferenças e não a determinação do consenso. Nisto residia uma grande virtude da democracia: a resolução pacífica de conflitos, mantendo o pluralismo. Para todos os discursos sobre "o Povo", na prática não existia uma tal vontade unificada. Keane mostra que, apesar da retórica da soberania do Povo, a nova força da democracia eleitoral estava na sua capacidade de encontrar vectores fora de divisão através da partilha do poder.

A teoria e a prática da democracia eleitoral levaram até ao século XX a amadurecer e a florescer, mas após a Segunda Guerra Mundial atingiu uma grande marca de água na governação das nações, como Keane delineia. Havia uma crença explícita na possibilidade de a forma democrática de governo, tomada como um preceito global, poder proteger o mundo da catástrofe da guerra, numa era de armas de destruição maciça.

A Ucrânia, uma democracia europeia moderna, foi invadida pelo seu vizinho imperialista autocrático em Fevereiro deste ano. Surgiu como um choque existencial dramático para o Ocidente globalizado, mesmo quando Putin tinha reunido tropas na fronteira durante meses, e mesmo na sequência de agressões anteriores como a anexação da Crimeia e os combates em Donbas.

Na Europa, a horrível face da guerra tinha estado escondida durante oitenta anos. Apesar de se esconder à vista de todos, mostrado à noite na televisão - "e um aviso que esta filmagem contém imagens de guerra"; sem ordem particular, Chechénia, Iraque, Afeganistão, Iémen, Geórgia, Síria - foi preciso o conflito na Ucrânia para que a Europa a olhasse nos olhos. Pessoas um dia sentadas em cafés, os seus filhos a brincar em baloiços em parques infantis, os seus pais envelhecidos sentados em salas de estar de apartamentos com a televisão ligada e, no dia seguinte seguinte, enormes buracos soprados naqueles apartamentos, arrancando as janelas, expondo a decoração como tantas casas de bonecas. Os parques infantis desmembrados por conchas explodidas, agora deitados no chão ao lado do equipamento lúdico.

As pessoas mostradas vestiam nomes de marcas conhecidas nas suas camisolas ou nas suas mochilas, em casacos insufláveis, atirando-se para comboios e autocarros, apertando sacos de compras e malas de rodas com os pertences que conseguiam agarrar enquanto fugiam de suas casas. Correndo pelas suas vidas. Ou pior, incapazes de sair, encalhados em abrigos anti-bombas e estações ferroviárias subterrâneas sem comida, água e energia, quanto mais roupas limpas, duches quentes, ar fresco e conforto.

A invasão russa da Ucrânia foi uma lembrança forçada de que os longos anos de paz após as guerras mundiais não foram uma posição padrão global. Não há "fim da história", apesar de Francis Fukuyama e outros teóricos políticos que tropeçaram numa história de "como o Ocidente ganhou" no rescaldo da Guerra Fria.

Keane argumenta que hoje mais do que nunca a democracia representa o método mais justo mas também mais contingente de governação do poder num mundo incerto. A democracia "pede às pessoas para verem através de conversas de deuses, governantes divinos e mesmo da natureza humana, para abandonarem todas as reivindicações a um privilégio inato baseado na superioridade "natural" de cérebros ou sangue, cor da pele, casta, classe, fé religiosa, idade ou preferência sexual". Isto, escreve Keane, é a sua principal qualidade: "A democracia desnaturaliza o poder". Mas será que isto esquiva a complexidade do poder? Como se viu em Atenas, mas sem dúvida mais aguda no nosso próprio tempo, a pressão económica pode ser uma pressão interna que perturba e até corrompe os meios políticos democráticos. O capitalismo, embora coincidindo com grande parte da era moderna da democracia, não tem partilhado de forma fiável o seu espírito igualitário.

A última iteração da democracia, segundo a análise de Keane, surge do globalismo. Afinada com a escala transnacional de poder e riqueza, e ligada pelas esferas digitais de comunicação, vigilância e meios de comunicação social, a democracia 'monitorial' desenvolveu-se para ampliar os governos eleitos através de entidades que relatam tudo, desde as alterações climáticas aos direitos humanos. Estes esforços de monitorização podem ser tão informais como o jornalismo cidadão e tão estruturados como os órgãos das Nações Unidas. O controlo dos relatores e um quadro de leis internacionais modificam a soberania do Estado-nação, vinculando os seus processos democráticos a compromissos supranacionais.

Depois há os grupos de interesses especiais e lobistas dos meios de comunicação social que amplificam ou impedem o envio de mensagens da representação política tradicional. A democracia monitorial traz uma camada de complexidade aos ideais padrão da democracia acarinhados como 'liberais' ou 'sociais', e pode mesmo criar o caos dentro deles. O populismo, em particular, pode devolver a democracia eleitoral a formas mais autocráticas com uma velocidade alarmante sob a pressão destas mobilizações não eleitas, auto-seleccionadas e poderosas da vontade política.

Se valorizamos a democracia, argumenta Keane, temos de trabalhar assiduamente para a defender. O tom optimista de Keane pode, por vezes, atingir o leitor como líder de claque romântico. 
O cepticismo e o cinismo sobre a democracia surgem do mal do poder centralizado e despótico e do outro extremo, a dispersão da vontade política na diversidade exagerada, argumenta ele. 

O valor da democracia está de novo vivo. Novos vocabulários irrompem - Morrison chamou-lhe um 'eixo da autocracia', Biden disse ao 'Quad' que esta aliança era importante porque agora 'são os democratas contra os autocratas'. Os muros entre a paz e a guerra pareciam finos de papel.

Keane reflecte sobre um desânimo e perda de fé na democracia, especialmente por parte dos mais jovens e especialmente na Índia e América do Sul, como demonstrado em vários estudos globais. Ele aponta para o desenvolvimento de uma "democracia gerida" pouco saudável em muitos lugares, onde os interesses da indústria empresarial tomam o controlo do governo com a ajuda dos meios de comunicação e desmobilizam os cidadãos.

É óbvio para Keane que a democracia, pelo menos no Ocidente, tem sido desfigurada pelo poder triunfante dos negócios, bancos e política neoliberal conservadora. Ele escreve: "As políticas estatais de "salvar o capitalismo" enfraqueceram os sindicatos, promoveram a desregulamentação dos serviços públicos e difundiram a cultura do consumo alimentada pelo crédito privado e a crença na santidade do indivíduo sem obrigações".

A sua crítica vai mais longe, em direcção ao que adverte ser um "novo despotismo". As democracias monárquicas enfrentam um novo concorrente global: os regimes da Rússia, Turquia, Hungria, Emirados Árabes Unidos, Irão e China "com uma arquitectura política de cima para baixo e a capacidade de conquistar a lealdade dos seus súbditos utilizando métodos diferentes de tudo o que era conhecido no mundo moderno anterior".

Escreve sobre 'os abutres a apodrecerem, os críticos da democracia monitorial... desfrutando de uma festa única na vida de cinismo e rejeição da democracia de partilha do poder'. Coisas fortes - e ainda não está claro se isto está eclipsado na brusca reversão da Rússia à guerra. Contra a ambivalência que procura envolver a democracia de formas que a enfraquecem (incluindo por inferência a sua crítica como artefacto colonial), Keane direcciona-nos para um ideal lateral, algures entre filosofia e história, de "re-imaginar a democracia como guardiã da pluralidade".

Jurgen Habermas argumentou quando era antiquado - ou seja, antes de Fevereiro - que a União Europeia deveria ser entendida "como um passo importante no caminho para uma sociedade mundial politicamente constituída". Enquanto muitos questionavam a razão pela qual o projecto político da União Europeia deveria continuar, agora que (sic) "o motivo original de tornar as guerras na Europa impossíveis está esgotado", a resposta de Habermas estava à altura do desafio de uma união económica que está em perigo de eclipsar o político.

Os governos "têm falta de coragem e estão a bater impotentes no dilema entre os imperativos dos grandes bancos e das agências de notação, por um lado, e o seu medo de perder legitimidade entre as suas próprias populações frustradas, por outro", escreveu ele. Mas três componentes de uma política democrática - "a associação de pessoas colectivas livres e iguais, uma organização burocrática de acção colectiva, e a solidariedade cívica como meio de integração política" -, no seu conjunto, argumenta Habermas, fornecem um mandado para uma nova emancipação da democracia, que sobreviveria para além do Estado-nação ou território étnico.

Keane propõe que o problema do abuso de poder é o problema para o qual a democracia é a solução indispensável. Isto é democracia "entendida como um processo interminável de humilhar o poder sem constrangimentos". Leva Keane às palavras do filósofo francês Jean-Luc Nancy: 'a democracia não é figurativa'; não tem forma fixa ou justificação passada; é 'anárquica, permanentemente insatisfeita com a forma como as coisas são'; é mesmo uma 'mudança de forma'.

Nancy esboça dois momentos contraditórios para a democracia que 'desfocam' o conceito. O primeiro é um momento de origem, antes da lei entrar em vigor para actos legítimos de soberania - o ponto de revolução, quando uma revolta da vontade popular se afirma contra um poder opressivo. O segundo é o momento regulamentar, quando o direito e a soberania já se aplicam - o acto rebelde não é reconhecido como democrático, mas como um movimento contra a democracia, como traiçoeiro ou criminoso.

Entre estes dois significados de democracia, o ideal oscila e aponta para a linha de falha, sublinhando a insegurança de qualquer momento democrático. Está apenas a um passo de um golpe de Estado bem sucedido (pense-se na invasão de 6 de Janeiro do Capitólio dos EUA).

As imagens da guerra da Ucrânia foram postas de lado pela pantomima de uma campanha eleitoral federal. Enquanto esperava que o tédio acabasse, estava cheio de queixas petulantes. Porque é que os políticos são tão vulgares quando se pensa que teríamos o mais brilhante e o melhor a chegar ao prato? 
Durante todas as horas de cobertura, a própria democracia dificilmente foi discutida, mesmo quando os seus excessos e distorções estavam em exposição como nunca antes. Porque foi dada a Clive Palmer (ou Simon Holmes à Court, já agora) a oportunidade de financiar as eleições? Porque é que o destino de um bom governo depende de um punhado de eleitores desvinculados numa mão-cheia de assentos mais antigos?

Mesmo numa democracia moderna, a defesa dos valores democráticos é um trabalho a tempo inteiro. E que tal um ICAC federal? E que tal um financiamento igual para as escolas? E que tal Fechar a Abertura? E que dizer de salários iguais para trabalho igual? Tudo para evitar que a maioria se torne regra da máfia.

E parecia haver um ar de exaustão em torno dos principais partidos. Seria este um momento de risco para a democracia australiana, ou apenas uma mudança de marcha à medida que os eleitores se afastavam de um modelo bipartidário rígido? Há anos que a Europa tem tido governos minoritários e coligações estranhas, apontaram os especialistas.

O poder caprichoso dos meios de comunicação social sublinhou como as coisas mudaram na era da democracia monitória. Teria o Labor julgado mal o momento, ficando com o tradicional líder 'legado'? Entretanto, Morrison pode ser um 'palhaço', e o pão e os circos trabalham durante algum tempo, mas mesmo os comerciantes não podem ficar no governo para sempre, certamente?

E depois lembrei-me - vendo as casas de campo dos agricultores nas aldeias ucranianas bombardeadas até aos escombros, e políticos populares presos em Myanmar para toda a vida - que Churchill tinha uma coisa certa; a democracia é o sistema 'menos pior'. A alternativa é realmente pior. O problema para a democracia é todo o resto. Dentro do círculo encantado, tudo é banalidade. Mas no exterior está uma violência horripilante - uma linha de tropas feridas e esfarrapadas rastejou para fora da siderurgia de Asvol após semanas de combate, tendo falhado em manter uma cidade em ruínas.

Finalmente, num sábado, alguém apertou um interruptor. Após dez anos de 'guerras climáticas', um eleitorado foi persuadido da necessidade de avançar para uma energia limpa. A Voz ao Parlamento avançaria, os cuidados infantis seriam mais baratos, os trabalhadores idosos devidamente pagos, haveria um fim à supressão de salários.

E as mulheres ganhando em todo o lado, um "banho verde". As mulheres, diziam as sondagens, já não aguentavam mais, tinham ficado fartas das taxas dos colegas e da misoginia sexista que se aproveitava da vida pública. Há uma justiça do género quando um governo pode mudar sem derramamento de sangue, excepto num "banho verde" metafórico.

Essa é a prova da democracia - novas abordagens de um dia para o outro, nova energia e determinação para pôr fim aos abusos de poder.

Robyn Ferrell in review/keane-shortest-history-democracy/