A fraude é um comportamento intencional, é um acto de querer enganar. Acusar uma corrente de pensamento de ser uma espécie de conspiração que dura há 70 anos para minar o avanço da ciência é tão ridículo como outros acusarem os homens brancos de estarem numa conspiração intencional de séculos para destruir o mundo, por poder.
Acontece que o pós-modernismo nunca fez tal acusação da maneira que David Marçal apresenta. David Marçal não parece querer compreender essa corrente de pensamento mas apenas acantoná-la num extremo para depois poder destruí-la como extremista, de maneira que incorre em vários erros:
1º - o pensamento pós-moderno não é uma corrente académica obscura - é uma corrente que se vinha anunciando desde o início do século XX e que ganha força após a Segunda Guerra e em parte por causa dela. O pós-modernismo que tem raízes na arquitectura mas ganhou impacto na literatura e na filosofia é, em primeiro lugar, um reflexo da desilusão das grandes explicações unitárias universais e, em segundo lugar, uma procura das fontes de saber, conhecer e ser, adormecidas e abafadas pela hegemonia da ciência na primeira parte do século XX. É uma reacção ao obscurantismo do cientismo dessa época e uma tentativa de o corrigir na sua rota.
2º - o pensamento pós-moderno não se opõe ao conhecimento científico. Não é uma conspiração para acabar com a ciência, mas uma tentativa de a perspectivar tendo em conta outros sentidos do ser e conhecer humanos, outras linguagens, pois a linguagem da ciência não abarca o total da realidade como se quis defender com o cientismo que pretendia substituir os grandes sistemas filosóficos unitários, como o hegeliano e outros antes dele. O pós-modernismo diz que há outras linguagens para além da linguagem científica.
O Iluminismo pode ter começado como uma emancipação do obscurantismo da religião, mas não se tornou em, usar a ciência e, de um modo mais geral, a razão para melhorar as condições de vida de todos os seres humanos. David Marçal engana-se ou se não se engana é intelectualmente desonesto, porque cita as melhorias da ciência -saúde, educação, vacinas, pobreza, etc.- mas deixa de fora as piorias - colonização, destruição ambiental, o genocídio da Segunda Guerra Mundial- resultado dessa crença arrogante da cultura ocidental de ter alcançado com a sua superioridade racional a verdade no conhecimento e forçar todos os outros a ela.
Isso foi um facto que teve consequências nefastas no mundo, para além das positivas que ele cita, quer o veja ou não. Daí não se segue que todas as outras abordagens não-científicas sejam úteis ou boas ou válidas. Muitas estão em decadência, mas outras não estavam e foram aniquiladas. Por exemplo, sabemos hoje-em-dia que as práticas e ideias dos índios da Amazónia são melhores e mais correctas que as da ciência para a preservação do equilíbrio ecológico, mas foram preciso séculos e algum pós-modernismo para que os cientistas ouvissem de facto os nativos da Amazónia em vez de lhes explicar condescendentemente como deviam comportar-se na sua própria casa.
É isto a que se referem os pós-modernistas quando falam em o homem branco ter usado estas invenções para perpetuar o seu poder, mas ao contrário do que diz Marçal, eles não defendem que o europeu foi inventar a ciência para dominar os outros, o que dizem é que se aproveitaram dessa superioridade tecnológica para dominar os outros - ora, quando se domina e controla unilateralmente, anula-se o outro, apesar de haver uma diferença entre ter intenção de anular o outro, ou fazê-lo por egoísmo e ganância de poder. Isto aconteceu e é uma realidade histórica inegável.
3º - O pensamento pós-moderno não diz que, não é possível obter conhecimento objectivo. O que diz é que o conhecimento objectivo é inter-subjectivo, quer dizer, é o acordo entre os membros de uma comunidade (como a dos cientistas) em considerar objectivo o conhecimento que obedece a certos protocolos, como os do método científico, por exemplo. Porém, ter conhecimentos que seguem com sucesso esse método, não lhes confere nenhuma garantia de verificabilidade. A prova científica não é uma verificabilidade.
O exemplo que Marçal dá do conhecimento científico prever os cometas não é um bom exemplo: outras culturas do passado também os previam, como previam outros fenómenos, com métodos anteriores, em milénios, aos que resultaram do Iluminismo. Vemos nas civilizações dos Maias, da China, para não falar dos egípcios cujas descobertas e construções ainda hoje não conseguimos compreender.
Portanto, o pós-modernismo não é contra a ciência ou o desenvolvimento tecnológico: é a favor dele não ser usado para se aniquilarem outras linguagens e abordagens do real e com isso empobrecer-se a experiência humana do real.
Quando usa a expressão, 'narrativa' para falar da teoria científica, não está a dizer que a linguagem da ciência é uma ficção como o romance literário. Isso é o que entende o senso-comum e que o leva a pensar que tudo é opinião equiparável. É o que leva o nosso ministro da educação, por exemplo, a dizer que os alunos têm direito à sua opinião como se a epistemologia fosse uma questão jurídica.
O facto de todo o conhecimento ser opinião, não significa que toda a opinião seja conhecimento. O relativismo não é uma invenção pós-modernista e tem um fundamento filosófico válido, quer este senhor o saiba ou não saiba.
4º - É à luz destes dois princípios que podemos entender alegações como a de que não existem apenas dois sexos biológicos. Um dos temas do pensamento pós-moderno é o esbatimento de fronteiras definidoras, recusando à biologia qualquer papel na definição de conceitos como homem ou mulher, categorias que, no quadro desse pensamento, são socialmente construídas.
David Marçal gostava que a vida fosse perfeita com todos os seres organizadinhos segundo categorias simples e inconfundíveis, mas isso não existe como ele muito bem sabe, dado que tem formação em biologia: a categorizarão das espécies e sub-espécies de animais e outros seres é difícil e complexa porque a própria definição é um conceito muito complexo, já que os seres não têm sempre ou quase nunca têm fronteiras estanques. Um ser categorizado numa espécie tem características de outra e de outra e por vezes isso obriga a criar um nova categoria, ela mesma com fronteiras difíceis de definir. A realidade é complexa.
Na realidade, em termos biológicos, a maioria dos seres humanos cabe em uma de duas categorias -homem ou mulher- mas existem minorias que não têm as características próprias e exclusivas de apenas um deles. São sexualmente ambíguos, sem uma genitália definida segundo os cânones e, dentro desses, há vários sub-tipos e graus que vão de alterações pequenas a grandes e que podem ter consequências de ambiguidade na produção de hormonas, etc. São uma minoria mas existem e têm que ser reconhecidos para poderem ser devidamente acompanhados. Como dizia Nietzsche, enquanto não temos uma palavra para nomear as realidades elas são-nos invisíveis.
Por muito que incomode a David Marçal que as pessoas não nasçam todas 'segundo a norma' para não criar problemas e incómodos à sociedade e à classificação dos biólogos, essa não é a realidade. E se dantes se escondia a realidade das minorias, hoje-em-dia não.
Outra realidade que existe, quer Marçal queira quer não, é a influência da sociedade na identidade psicossocial das pessoas e a ideia de mulher e de homem com os seus papéis atribuídos e lugares assignados na sociedade é, em parte, uma construção social imposta pela educação. A educação tem sempre algo de coacção, de definição exterior, o que não é mau nem bom, é assim. Se falo português com um bebé estou a defini-lo para a língua portuguesa. Se o educo como rapaz com as tradições de rapaz estou a defini-lo para esse papel. Acontece que há casos em que as pessoas não se identificam com esse papel em que são educadas. É a realidade e reconhecer a sua existência não é ser pós-moderno ou extremista.
Os problemas advêm, não da realidade de existirem pessoas que não se enquadram na norma da maioria, mas da maneira como têm querido, uns e outros, lidar com elas: uns negando e querendo fingir que não existem, outros querendo que todos se modifiquem para os integrar à sua maneira. Uns e outros não procuram pontos comuns de entendimento que não ofendam nenhum dos grupos. Em vez disso preferem, como David Marçal, acantonarem os outros num extremo e depois acusarem-nos de extremismo e tentarem aniquilar-se mutuamente: uns negam a biologia, outros negam a sociedade.
O pensamento pós-moderno, e o activismo que dele decorre, nunca demonstrou qualquer utilidade para os oprimidos que afirma defender. Pelo contrário.
David Marçal
Tem sido publicada nestas páginas uma polémica que, partindo de um texto de José Pacheco Pereira, suscitou diversas reacções. Um dos lados dessa polémica defende a ideia da “opressão pela linguagem”, procurando fazer passar conceitos e formas de falar que têm a sua raiz no pensamento pós-moderno, que, sendo uma obscura corrente académica, tem hoje importantes implicações no activismo.
Os resultados são impressionantes: existem hoje, em número absoluto, menos pessoas no mundo que vivem em pobreza extrema do que no início do século XIX, apesar de a população ser cerca de sete vezes maior do que nessa altura. Vivemos mais, temos em média mais rendimentos, homens e mulheres frequentam a escola durante mais anos e temos acesso a melhores cuidados de saúde, que se traduzem, por exemplo, numa menor mortalidade infantil e no controlo de várias doenças infecciosas através da vacinação. Não obstante existirem inúmeras coisas a melhorar, o mundo está cada vez melhor.
Apesar das suas falhas, a ciência e a racionalidade produziram um entendimento do mundo que é verificável empiricamente e que tem resultados óbvios: conseguimos prever a passagem de cometas, construir telemóveis e fazer vacinas para a covid-19.
É à luz destes dois princípios que podemos entender alegações como a de que não existem apenas dois sexos biológicos. Um dos temas do pensamento pós-moderno é o esbatimento de fronteiras definidoras, recusando à biologia qualquer papel na definição de conceitos como homem ou mulher, categorias que, no quadro desse pensamento, são socialmente construídas.
Outro aspecto do pensamento pós-moderno é a ideia que os grupos oprimidos (as mulheres, os negros, os homossexuais, as pessoas obesas ou qualquer pessoa com uma combinação das anteriores) possuem um conhecimento vivencial próprio, que se sobrepõe à ciência e à racionalidade. Esta ideia pode-se traduzir em assumir a deficiência como uma identidade (recusando tratamentos para a surdez, por exemplo) ou rejeitar a existência de problemas de saúde decorrentes da obesidade (medicalizar a obesidade seria uma agressão à identidade).
Mais: estas afiliações identitárias são usadas para empoderar esses grupos, estabelecendo uma hierarquia baseada no opressão e no privilégio, na qual, por exemplo, uma mulher negra “cis” deve reconhecer o seu privilégio face a uma mulher negra “trans”. Há casos complicados, como comparar uma mulher negra heterossexual com um homem negro homossexual – quem é o privilegiado aqui?
Os teóricos pós-modernos inventarão uma resposta, se é que não têm já uma. A questão é que essa hierarquia, assim como todos os aspectos do pensamento pós-moderno, são apenas efabulações teóricas muito desligadas da realidade. As crenças pós-modernas não são comprováveis, pois os seus arautos não aceitam testes que se lhes possam fazer para verificar se elas são verdadeiras ou falsas. Por exemplo, a afirmação de que todos os brancos são racistas, mesmo que não o saibam, pois tem “ângulos mortos”, é uma afirmação não comprovável: não há nenhuma observação ou experiência que se possa fazer que tenha a capacidade de demonstrar que ela é falsa. Claro que a ciência e a racionalidade são, para os teóricos pós-modernos, apenas formas de manter os homens brancos no poder, eles são insensíveis a quaisquer argumentos científicos ou sequer racionais.
Os grandes avanços nos direitos dos negros, das mulheres e dos homossexuais são anteriores a este tipo de pensamento, tendo raízes no Iluminismo e um forte impulso com os movimentos dos direitos civis nos Estados Unidos. Estes avanços, em grande parte ocorridos nas décadas de 1960 a 1990, assentam na ideia de que todos somos iguais em direitos e dignidade, independentemente de sexo, cor da pele (não há raças humanas) ou orientação sexual. São abordagens universalistas e não sectárias. O sexismo, o racismo ou a homofobia são cada vez mais inaceitáveis nas sociedades modernas. É este caminho que importa prosseguir, porque foi ele que alcançou resultados inegáveis em muitos países. São estes valores universalistas que estão plasmados no artigo 13.º da nossa Constituição.
O pensamento pós-moderno, e o activismo que dele decorre, nunca demonstrou qualquer utilidade para os oprimidos que afirma defender. Pelo contrário, tem o dom de tornar pessoas razoáveis e tolerantes em adversários, que se vêem catalogadas como racistas ou homofóbicas simplesmente por não professarem o credo pós-moderno.
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