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June 25, 2023

Filmes - Master Gardener

 


Paul Schrader parece estar sempre a fazer o mesmo filme. Um tipo com um passado de violência torna-se um solitário, consumido pela culpa a buscar a redenção numa dedicação intensa a uma ocupação qualquer da vida - neste filme, na jardinagem. Nesse aspecto, gostei mais de First Reformed do que deste. Do, The Card Counter, não gostei mesmo. Talvez tenha visto num dia 'não', sei lá. 

Este filme começa muito interessante, com uma metáfora banal, mas apresentada de forma diferente. Narvel Roth (representado por Joel Edgerton) é o jardineiro-chefe de um jardim extraordinário incluído numa propriedade do tipo Geórgia, Luisiana, com aquelas enormes casas brancas coloniais. Sabemos depois que Narvel Rot não é o nome dele mas que o adoptou depois de entrar num programa de protecção de testemunhas. Um dia em que tira a camisola -anda sempre tapado- vemos que tem o torso cheio de tatuagens nazis. Portanto, ele é um ex-skinned arrependido que tenta mudar a sua vida através da jardinagem e de uma disciplina de vida muito calculada e contida.

Apresentam-nos logo a metáfora no início do filme: jardinar é um acto optimista de confiança no futuro, pois lançamos as sementes e cuidamos da planta com muita paciência e esperamos que ela cresça como calculámos. Vamos limpando o campo de ervas daninhas e fazendo ajustes no crescimento para orientar o crescimento até ao florescimento. Na jardinagem, o passado da flor não interessa, trabalhamos sempre para o futuro. O jardineiro-chefe diz-nos que sabemos hoje que as sementes não duram apenas 150 anos, como se pensava, mas 1200 anos, pelo menos. Está a falar da educação, claro, de como as sementes de violência se perpetuam de geração para geração e de como é possível, com a educação, re-orientar o crescimento da pessoa e das sociedades tal como se faz com as flores. 
Em suma: os grupo de ódio, sejam racistas ou de outro género de violência, foram 'jardinados' para serem assim e o que acontece é que a maioria não tem nenhum jardineiro positivo com paciência e amor para cuidar duma pessoa dessas num ambiente que a permita modificar-se e sair desse template.

Enfim, a dona da propriedade, representada pela Sigourney Weaver e de quem ficamos sem saber quase nada (o pai tinha uma Luger...), com quem ele tem uma relação complexa (ela acolheu-o sabendo quem ele era e deixou-o crescer) pede-lhe que treine uma sobrinha-neta que anda metida em complicações por más escolhas de vida. O filme até aqui é interessante e deixa-nos na expectativa. Enfim, chega a sobrinha-neta e de repente o filme é: ele apaixona-se por ela (ele está nos 50 anos, ela tem 20...), vai defendê-la dos maus, redime-se pelo amor e depois vive com ela feliz para sempre... well...


June 21, 2023

Filmes - Flags of Our Fathers

 


Clint Eastwood é um realizador que faz filmes não apenas por ser um artista, mas porque tem algo a dizer. Tem um ponto de vista e geralmente é interessante. Quem o viu a fazer de Dirty Harry não o imaginaria como realizador destas cenas complexas de guerra que misturam perspectivas de terra e perspectivas aéreas. Personagens psicologicamente complexas, como o índio Ira, neste filme. Os homens do dinheiro mandam os filhos dos outros para a brutalidade da guerra e para a morte porque querem aumentar a sua fortuna, poder e fama. E fabricam heróis para se usarem deles para mais do mesmo. Sugam-nos até ao tutano e depois atiram-nos para a valeta. Sem escrúpulos nem remorsos. E depois (ou durante) vão de férias nos seus iates.


April 20, 2023

Filmes - "C'est quelque chose qui cloche entre les hommes et les femmes"

 

La Nuit du 12 é um filme francês sobre um inquérito de homicídio ocorrido em França, em Grenoble, em 2016. A abrir o filme é-nos dito que todos os anos em França a polícia judiciária abre cerca de 800 inquéritos de homicídio e que 20% ficam por resolver. Ficamos logo a saber que este é um inquérito sem resolução. Apesar disso, quer dizer, de sabemos que acompanhamos um caso sem desfecho, o filme vê-se com um interesse crescente, porque na verdade não é sobre os homicídios em si (embora também seja) mas sobre o impacto que têm nos outros e, desde logo, nos polícias. É um filme sobre as pessoas que vivem a violência, nomeadamente aquelas que a vivem como profissão.

O homicídio é o de uma rapariga como as outras na casa dos vinte anos que é morta de uma maneira brutal (alguém atira-lhe combustível para a cara e pega-lhe fogo) sem nenhum motivo aparente. A rapariga é filha de alguém que nem suspeita que a pouca distância da casa onde vivem está ela no chão da rua, como se fosse um bocado de lixo, meio-carbonizada da cintura para cima e perfeitamente normal da cintura para baixo - vestida com uns calções de ganga e uns ténis. A cena dos polícias a dizerem à mãe é uma coisa brutal. Um dos polícias, muito experiente, quando está a informar a mãe, de repente olha para uma parede e vê a fotografia alegre da rapariga e fica completamente bloqueado.

O filme começa com a festa de despedida de um polícia que se reforma e a entrada de um novato que o substitui e acompanhamos a investigação ao homicídio e o impacto que o contacto diário com a violência extrema e gratuita tem nos polícias: famílias desfeitas, ansiedade, depressão, desorientação, violência, carência. A violência que testemunham é quase toda dos homens e é exercida, sobretudo, nas mulheres: facadas, murros, sovas, violência psicológica, assassinatos por estrangulamento, tiros, pancada, muitas vezes com crianças como testemunhas. De vez em quando um dos polícias passa-se e descarrega a sua frustração em cima de alguém.

A certa altura, passados três anos, quando o inquérito já foi arrumado numa gaveta, uma nova juíza de instrução pede para falar com o chefe da equipa e pergunta-lhe o que se passou com o caso e ele fala em falta de recursos e em algo ter corrido mal na investigação e nem sequer saberem o quê. Às vezes acontece, diz ele, e passamos o resto da vida com esses fantasmas na cabeça, esses injustiçados. 

"Há qualquer coisa que não funciona entre os homens e as mulheres", diz o chefe da PJ à juíza- "são eles que matam e elas que morrem e nem sempre somos capazes de resolver os casos. Todos os nosso suspeitos deste caso podiam ser o assassino e fico com a ideia de que, se não o apanharmos, todos esses homens a mataram". Quer dizer, não basta a vivência diária com a violência ainda têm a outra violência da culpa de não conseguirem um desfecho de justiça para as vítimas e para as suas famílias.

Qualquer coisa não funciona no mundo em que vivemos. Como dizia Sandel num pequeno o vídeo que vimos ontem, uma juiza do Supremo ganha 200 mil dólares por ano, mas a Judge Judy do show televisivo ganha 60 milhões por ano. Da mesma maneira um polícia ganha 25 mil euros por ano, mas o actor que faz de inspector na série Luther ganha 1 milhão por episódio. Il y a quelque chose qui cloche avec la valorisation des professions dans notre société. 


April 04, 2023

Filmes - Tetris

 


O jogo Tetris, onde todos já perdemos horas alienantes, foi inventado por um russo, Alexey Pajitnov. Foi descoberto por Henk Rogers, um americano a viver no Japão, nos anos 80, numa convenção. Henk Rogers viu mediatamente o potencial do jogo e decidiu conseguir os direitos do jogo para a Nintendo. Aí vai ele para a URSS, um pequeno e desconhecido programador e vendedor, sem conhecer a língua russa, os meandros da política soviética, o ódio ao capitalismo ou os perigos do KGB. Por coincidência e azar, outra pessoa muito influente e que até conhece Gorbatchev também viu o potencial do jogo e foi atrás dele: Robert Maxwell, o gigante das comunicações. 

As peripécias de Henk Rogers, que entretanto apostou todo o dinheiro da família para conseguir este negócio, na URSS, os diálogos do filme, a atmosfera e a política soviéticas completamente abafantes e opressivas em contraste com o optimismo expansivo e a iniciativa de Rogers, que entretanto conhece Pajitnov e decide arranjar maneira de compensá-lo pela invenção do jogo, são uma espécie de montanha russa em crescendo. O filme é menos sobre o jogo e mais sobre esta luta entre David e Golias num mundo paranóico e esquizofrénico que era o soviético. Muito bom. É um portal muito bem construído para uma outra época. 

Henk Rogers ganha este jogo de gato e rato que mais parece um filme de espiões e consegue o contrato para a Nintendo. O actor que faz de Henk Rogers é muito bom a representar o papel do vendedor americano sempre de sorriso na boca, empreendedor e incapaz de aceitar um não como resposta e dar-se por vencido. Muito bom o filme. O filme está construído como blocos que tentam encaixar-se e limpar a linha, por assim dizer. Muito giro. E deu-me vontade de ir jogar Tetris.


March 21, 2023

"The Quiet Girl", um filme poético

 


The quiet Girl é um filme irlandês, passado nos anos 80, quase todo falado em irlandês, embora de vez em quando em inglês. O mais notável no filme é conseguir mostrar a vida e os adultos através do olhar da rapariga que lhe dá o nome. É sobre esta rapariga, que terá uns 9 ou 10 anos, introvertida, tímida que vive com a família numa casa empobrecida, sem condições nenhumas, em grande parte porque o pai bebe e perde tudo ao jogo e a mãe é bem intencionada mas não tem capacidade para dar atenção aos 4 filhos. O pai é distante e desinteressado. Portanto, a rapariga que tem algumas dificuldades na escola, leva uma vida solitária e negligenciada - ainda molha a cama. Vai para os campos sozinha e deita-se no meio da aveia por ceifar a olhar as árvores e a ouvir os pássaros. Como a mãe está quase a ter o 5º filho, uma prima oferece-se para ficar um ou dois meses com a rapariga, até que a criança nasça. 

A prima é bastante mais velha e casada. Tem, com o marido uma quinta de vacas leiteiras que exploram com sucesso e que lhes proporciona uma vida muito desafogada. Então, vemos o pai, muito bruto a ir levar a rapariga, que tem um ar doce, a casa dos primos e depois vemo-la habituar-se às rotinas na casa da prima: a mulher ensina-a a lavar-se como deve ser, a pentear-se, a ajudá-la na cozinha, a ir pelos campos até ao poço buscar água fresca, tudo sempre com poucas palavras, mas muito carinho, muito cuidado. O marido leva mais tempo a interagir com ela, mas aos poucos começa a levá-la para a vacaria, ensina-a e dá-lhe responsabilidades, faz jogos com ela. Ela começa a sentir-se confortável com eles.

Confesso que quando a rapariga chegou a casa do casal, pensei que ia ser uma história de abuso, mas não é. Ficamos a saber que este casal, que são pessoas que se compreendem e se dedicam um ao outro, teve um filho que morreu num acidente. À medida que o filme progride vemos a rapariga a florescer em todos os aspectos naquele ambiente atento, pacífico e carinhoso: físico, psicológico e emocional. 

Claro que chega a altura de voltar para casa e quando a vão pôr de volta a casa dos pais sentimos a sua desolação, a aflição do casal que se apegou a ela e a dela que olha para o pai como um estranho e para o marido da prima como um pai. Ela quer tanto ficar com o casal. Vemos isso debaixo da superfície da sua aparente calma.

Muito bom o filme e muito poético, na maneira como nos faz ver o que é a vida na perspectiva das crianças, no mundo dos adultos irresponsáveis. Pessoas com grandes dificuldades que vão tendo filhos uns atrás uns dos outros e depois negligenciam-nos por incapacidade económica e por impreparação para criar um lar acolhedor e atento às necessidades das crianças. E como as crianças sentem e vivem essa negligência, com uma resignação inconsciente, até que um dia vão parar a uma casa que é um lar acolhedor e percebem.

A diferença e o impacto que os pais têm na vida das crianças. Um filme bonito e triste ao mesmo tempo.


February 20, 2023

Filme - Elvis

 


Há umas semanas uma colega contou-me que a propósito de qualquer coisa disse a um aluno, 'deve pensar que é o Elvis' e o aluno perguntou, 'quem é o Elvis?' Nunca deixa de me surpreender como se pode viver no mundo como se ele tivesse começado agora mesmo e não ter interesse nenhum na cultura da geração dos pais e avós. É assim que as pessoas se tornam gente que só se vê um palmo à frente do nariz. Enfim, pode ser que com este filme aprendam alguma coisa sobre o Elvis.

Li que um actor tinha ganho uma data de prémios a fazer de Elvis num filme e fui ver o filme. O actor entrou tão bem dentro da pessoa que foi Elvis que há cenas em que, se não fosse pela voz, não percebíamos que não é o Elvis. Embora o actor cante muito bem e de uma maneira parecida com o Elvis e muito convincente. O que não é fácil, quer dizer, ser excelente a parecer o Elvis sem parecer uma impersonation do Elvis. Porém, o Elvis tinha aquela voz de veludo quando canta baladas, que ninguém mais tem.
A última cena é baseada numa das últimas (ou a última) actuações de Elvis antes de morrer, quando ele já está muito pesado e com aquela cara inchada das drogas (custa vê-lo assim) e a suar em que canta Unchained Melody. A cena começa começa com o actor, mas passa para a decuja gravação do próprio Elvis (o filme acaba com imagens do próprio Elvis), o que se percebe primeiro pela voz. Depois, também se vê a expressão da cara dele quando acaba de cantar, com uma enorme satisfação de ter cantado bem. Como é que ele é capaz de cantar com aquela entrega, naquele mau estado físico, é uma coisa que diz muito da pessoa que ele era e como se transformava liricamente diante do público. (pus essa cena a seguir ao trailer)

Adiante. O filme é sobre a vida de Elvis, mas também sobre a influência ambígua do seu promotor, o Coronel Parker, o homem que o lançou, mas também explorou e abusou dele, económica e artisticamente. Numa altura em que os homens da indústria da música e da TV queria censurá-lo por causa da maneira como dançava e porque cantava música negra (o rock and roll era considerado obsceno e negro), o coronel, primeiro fez um acordo que o despachou para a Alemanha por dois anos, durante a guerra e depois quando voltou enfiou-o em Hollywood a fazer filmes sem interesse nenhum com um ar atinadinho.

 Houve um grupo que conseguiu convencê-lo a fazer aquele concerto especial de Natal, absolutamente fabuloso, onde ele renasceu - canta com a sua banda as músicas que o fizeram famoso, mas depois disso o coronel vendeu-o aos tipos de Las Vegas. Quem faz de coronel é o Tom Hanks e é muito bom a fazê-lo.

Fica-se com um gosto amargo porque percebe-se o que ele poderia ter sido em termos musicais e culturais se o coronel o tivesse deixado ser livre - poderia ter sido ainda muito maior do que foi. Elvis morreu com 42 anos.

Muito bom o filme. Gosto especialmente da primeira parte com aquele ambiente de música entre o gospel e o blues no Sul americano.



January 13, 2023

Filmes - Tár

 

(spoiler alert!)

Um dos melhores filmes que vi nos últimos tempos. O filme é uma tragédia e como tal é anunciada. Começamos a prevê-la cedo no filme que aborda a grande questão sobre a arte e o artista e até que ponto devem ser confundidos. É sobre a cultura de cancelamento, mas é mais do que isso, é sobre o tempo, a complexidade do ser humano e as suas circunstâncias e a decadência da cultura.

O filme é de Todd Field com Cate Blanchett no papel de uma compositora e maestrina, Lydia Tár, que tem uma carreira em ascensão, à beira do estrelato estratosférico, que espera alcançar com a gravação ao vivo da 5ª sinfonia de Mahler com a Orquestra de Berlim -a Rolls Royce das orquestras-, depois de já ter gravado as outras.

Tár pertence à velha escola. Ficamos a saber que foi aluna e protegida de Leonard Bernstein (um amante de Mahler) e percebemos desde o início que tem uma paixão, um talento e uma dedicação à música típica dos grandes maestros. Entende que o maestro tem que 'desaparecer' para fazer brilhar o compositor e a sua música. Guardou de Bernstein que a música expressa sentimentos para os quais não temos palavras e que tem em si uma riqueza que não se encontra em outra arte porque está ao alcance de todos e não é preciso ter conhecimentos de música para a apreender.

Há uma cena extraordinária de uma aula que ela vai dar, na Julliard, onde discute com um aluno porque ele escolhe apresentar uma peça atonal e desinteressante com o argumento de que os grandes compositores do passado eram todos homens cis, brancos e misóginos e que se recusa a aprendê-los. Ela senta-se ao piano e toca, O Cravo Bem Temperado – Prelúdio, de Bach e o rapaz emociona-se mas teima em que não se interessa por Bach porque sabe-se que ele se meteu com uns rapazes novos - ela responde que ele era humano, mas a música dele não, e diz-lhe que um dia também ele vai ser julgado e nesse dia vai querer ser julgado pelo seu talento e pela sua música e não pela sua sexualidade, comportamento, raça, etc.

Nesta cena percebemos que estão em choque duas forças culturais opostas: o velho mundo que aprecia a arte pela arte e não moraliza a arte e o novo mundo que julga a arte pelo filtro do comportamento moral dos artistas.

Tal como os grandes maestros, Tár é uma pessoa cheia de carisma, auto-confiança, uma presença em palco muito forte e muito controladora. Vemos como comanda a orquestra, comanda a família (é lésbica e vive com uma mulher que é a 1º violinista da orquestra e a filha de ambas) e como comanda tudo à sua volta. Vemos até, numa cena com uma vizinha, uma mulher velha que colapsa, o pavor que tem de perder o controlo e ficar dependente.

Bem, acontece que ela gosta de ter casos com raparigas novas da orquestra e vemo-la a manipular as pessoas para que se contratem as raparigas em quem tem interesse amoroso. Vemo-la mentir e também a vemos ser desleal com a sua assistente que tem ambições e julga que tem nela uma aliada (mais tarde a assistente descobre e vinga-se). Vemo-la a ser humana com falhas éticas.

Começam a aparecer nos jornais rumores de que ela é uma abusadora que troca trabalho por favores sexuais (o que é um grande exagero, porque ela é muito rigorosa na qualidade dos músicos que escolhe, mas não deixa de ser verdade) depois de uma ex-protegida dela de suicidar e, para piorar, alguém gravou, editou maliciosamente e vazou nas redes sociais a aula dela na Julliard de maneira a parecer que ela é ordinária e abusadora; mas nem mesmo assim ela percebe o poder destruidor do cancelamento e o perigo em que está.
De vez em quando saímos da sua perspectiva, onde estamos sempre e vemos o que a assistente dela e outros falam sobre ela nas mensagens de telemóvel que trocam e isso mostra-nos o quão longe ela está de controlar a sua imagem sem o perceber.

Um maestro amigo dela, muito famoso e já reformado, que foi seu mestre, avisa-a. Fala-lhe no Furtwängler e diz-lhe para ter muito cuidado porque nos dias que correm um rumor desse género é uma pena de morte que compara à desnazificação no pós-guerra.
Furtwängler foi um maestro alemão, uma figura mítica que punha as orquestras a tocar de uma maneira seminal e transformadora. Era o maestro preferido de Hitler, mas ele não era nazi, nunca se inscreveu no partido apesar das pressões, protestou publicamente contra a expulsão de judeus, recusou-se a substitui-los por nazis, denunciou a decadência da cultura, nunca fez a saudação nazi, que era obrigatória nos espectáculos e arranjou sempre maneira de se afastar dos nazis. Porém, dado que trabalhou sempre durante a guerra e não fugiu da Alemanha (ele dizia que vivia para a Alemanha da arte e não para a Alemanha nazi), teve que sujeitar-se a uma desnazificação, ficou manchado e embora tenha retomado a carreira depois da guerra, nunca mais foi o mesmo e acabou a tocar para os mortos. Uma desnazificação era o tipo de rumor que ficava adesivado para sempre à pessoa.

Há uma cena no filme muito boa e assustadora de onde Tár sai com a cara desfigurada e percebe a violência da massa anónima escondida camuflada na escuridão. Ela pensa que a jovem violoncelista por quem se entusiasma é inocente mas a ingénua é ela que não percebe o mundo em que vive.

No fim do filme ela perdeu tudo -a posição, a fama- e está algures num país asiático a conduzir uma orquestra (com a mesma paixão e rigor que são a sua marca) que toca ao vivo a música de um videojogo Monster Hunter (muito a propósito), numa convenção cheia de cosplayers: toda a assistência vestida de monstros. Uma maneira de dizer que o monstro em que os media canceladores a tornaram, desapareceu, mas os monstros, no final, são eles mesmos e que o cancelamento dos artistas, leva ao cancelamento e decadência da arte e da própria cultura.

(Nesse país asiático ela atravessa um rio num bote com outros da orquestra e vendo as águas muito calmas pergunta se não podem tomar um banho. Eles respondem que por baixo dessa aparente calma estão crocodilos que escaparam de um filme de Marlon Brando rodado ali e ela diz, 'mas isso foi há muito tempo' e eles respondem, 'mas eles nunca mais morreram'.)

Cate Blanchett tem aqui o papel da vida artística madura. A actriz alemã que faz de mulher dela, também muito boa e todos em geral muito bons.

É provável que o filme seja cancelado pelos fanáticos do cancelamento indiscriminado e acéfalo.

December 30, 2022

Filmes - Argentina 1885

 

Um excelente drama histórico sobre o julgamento civil dos nove líderes (generais) das Juntas Militares que governaram o país durante os dez anos sangrentos de ditadura, após o golpe de Estado de 1976, por crimes de homicídio, tortura, rapto, etc. Estima-se em 30 mil o número de pessoas desaparecidas durante aqueles anos. O julgamento foi uma promessa feita na campanha eleitoral de 1883 pelo vencedor, Raúl Alfonsín, um denunciante dos crimes da ditadura. Assim que foi eleito revogou a auto-amnistia dos militares e enviou-os a julgamento, mas dado que a situação política no país era periclitante e os militares tinham apoiantes, ninguém sabia como ia acabar o processo. Foi a primeira vez na história que um tribunal civil condenou uma ditadura militar. O filme é muito bom. Conseguimos sentir o ambiente e a atmosfera da Argentina de então e acompanhamos a histórias de pessoas -o procurador, o adjunto e a sua equipa- que não sendo heróis, acabaram por sê-lo.

December 23, 2022

Filmes - The Fabelmans

 


The Fabelmans, como todos sabem, é um filme autobiográfico de Spielberg acerca do período da sua infância e adolescência, do interesse pelo cinema, do contexto familiar, da presença marcante dos pais: um pai pioneiro na ciência dos computadores, uma mãe excêntrica, grande pianista e restauradora de arte. O filme é simultaneamente mágico, na parte descoberta do cinema e cru, na parte da vivência familiar. Recria tão bem os anos 50 e 60 na mentalidade, nos gestos, na atmosfera, nas cores e no imaginário da infância, enfim, parece uma viagem no tempo, exterior e interior.


December 21, 2022

Filmes - Triangle of Sadness

 



Triângulo da Tristeza é o nome que se dá à área entre as sobrancelhas, que muitos mantêm lisa com tratamentos de Botox. O filme começa com um casting de modelos masculinos. Um entrevistador pergunta a um deles como consegue trabalhar num meio onde as mulheres ganham muitíssimo mais e tem que andar constantemente a lidar com o assédio dos homossexuais que são a maioria e mandam nesse meio. Ele não lida bem com o facto de ser um homem sexualmente objectificado, um produto comercializável. Portanto, o início do filme diz-nos logo que vamos assistir a um mundo de pernas para o ar.

Este filme é uma comédia satírica, caricaturada e nada subtil, acerca da imoralidade dos super-super ricos. O filme tem três partes. Na primeira seguimos o tal modelo entrevistado e a namorada, uma super-modelo influencer de moda e de parvoíces, nas suas vidas de narcisistas que se comportam como se tivessem direitos especiais de não terem que pagar por coisa alguma da vida. Ela, sempre carregada de roupas e acessórios de super-marcas, confessa que quando já não puder trabalhar como modelo faz tenção de ser uma trophy wife
Na segunda parte acompanhamos um cruzeiro de super-luxo em que este casal de modelos participa por ela ter ganho bilhetes de borla de uma super-marca. No cruzeiro estão personagens como, um casal idoso de bilionários que enriqueceu a vender minas terrestres e granadas de mão - ele queixa-se das restrições da ONU à venda de armas; um bilionário russo que se gaba de ser o King of Shit. Tem um monopólio de venda de adubos e produtos para a agricultura. Viaja com a sua trophy wife; um tipo que enriqueceu a fazer códigos informáticos para empresas de videojogos e outras vícios digitais; o capitão do navio que faz nada, só bebe, mas é marxista e passa a vida a citar Lenine, etc. Vemo-los na sua vida fútil e hipócrita a chatear os empregados. Nesta parte há uma cena de mais de 10 minutos em que num jantar com mau tempo e o barco a balouçar começam todos a vomitar. Assim que a realidade balança e há uma borrasca ficam logo doentes a vomitar? Alguns vomitam ouro... Enfim, o capitão, podre de bêbedo, deixa o iate nas mãos do oligarca russo e o iate naufraga - o que se passa na política do mundo real?
Na terceira parte do filme estão numa ilha e os sobreviventes, entre os quais, o casal de modelos, o informático, o oligarca russo, uma alemã, a chefe dos funcionários do iate e a responsável pelo saneamento, mais um ou dois entregam rapidamente o poder à funcionária das casa-de-banho porque é a única que sabe fazer lume e pescar peixe. Um retrato de uma sociedade onde os super-super ricos o são por falta de ética como pessoas e nos negócios e, o seu poder sobre os outros nada tem que ver com capacidades ou virtudes enraizadas, de maneira que rapidamente se desmoronaria numa situação de sobrevivência. De início as mulheres separam-se dos homens e mandam neles porque os homens não sabem fazer nada e só roubam comida, mas depois a funcionária das casas-de-banho promovida a chefe começa a exercer os seus privilégios de punição nos outros, de discriminação e de assédio sexual ao jovem modelo, numa muito óbvia referência ao dito do marquês de Dalberg-Acton, Power tends to corrupt, and absolute power corrupts absolutely.
O filme é interessante porque mostra a realidade debaixo do verniz social, mas às vezes é indigesto... a cena dos vómitos é nojenta... a cena do jovem modelo a pedir instruções à namorada sobre a melhor maneira de lidar com o assédio sexual das pessoas em posição de poder, não tendo dúvida nenhuma que a empregada das casas-de-banho vai querer que ele durma com ela em troca de favores de sobrevivência.
A actriz que faz de modelo, uma sul-africana de 32 anos, entretanto morreu, de maneira que o filme fica marcado por essa tragédia.


December 17, 2022

Filmes - "We fall in love the way you fall asleep: slowly, and then all at once.” (John Green)

 

Bones And All, o título deste filme, refere-se a um ritual de passagem que consiste em comer alguém até ao tutano, ossos e tudo -dizem-nos no filme- numa óbvia referência sexual. Este filme, que pensaríamos ser uma história de terror, é uma história de amor intensa (embora não bem conseguida, na minha opinião) e macabra, mas sempre no limiar do aceitável, dentro da lógica da transgressão. É quase todo acompanhado pelo som de uma guitarra em tom de balada. É claro que o canibalismo, palavra que nunca é referida no filme, tem conotação com o amor e a intensidade da assimilação do outro, mas também tem outras conotações que são afloradas no filme - a violência dos pais nos filhos, por exemplo. É-nos apresentada a ética desses transgressores, eaters, como se denominam uns aos outros e reconhecem instintivamente.
O filme está encostado àquelas grandes paisagens americanas do Midwest e à marginalidade das vidas fora dos carris na época de Reagan. Os interiores com aquela pobreza de paredes sujas amerelo-acastanhado vai bem com o tom do filme. A actriz que faz de Maren, a personagem principal -Taylor Russel- constrói uma personagem coerente, intensa e credível e é ela que dá credibilidade a todos os outros. É fenomenal. Só por ela vale a pena ver o filme. Põe a personagem a desenrolar-se à nossa frente. Mark Rylance é assustador, mas triste. Michael Stuhlbarg é só assustador. Chloë Sevigny tem um pequeníssimo papel, mas com um tremendo impacto. Como diz a certa altura do filme, 'só queria ser amada' e, lá no fundo, é o querem todos.


 

December 09, 2022

"Her soul is like a chaotic museum"

 


'Corsage' é um filme sobre a imperatriz Elizabeth da Áustria, mais conhecida por Sissi. 'Corsage' (espartilho) é ao mesmo tempo o nome do filme e a situação dela na vida de reclusa nos palácios. Uma mulher retratada como exuberante e maior que a vida, encerrada no espartilho de uma vida performativa, sem utilidade para além do formalismo da corte que a espia para ver se envelheceu, se engorda, se o cabelo já não é bonito, etc. A imperatriz anda muitas vezes velada com um véu negro, em parte para permitir que outras compareçam no seu lugar em cerimónias públicas e em parte, penso, como metáfora da sua vida privada que nada tem que ver com a percepção pública de glamour e fausto, percepção que perdura até aos dias de hoje por conta dos filmes acerca dela. Na realidade a vida dela é triste: perdeu a filha e depois o filho tragicamente, faz uma dieta de comer quase nada para estar de acordo com a imagem que o marido e o povo tem e quer dela, está sozinha numa corte que a idolatra mas não a vê nem a ouve. O filme é a vida de muitas mulheres -relegadas a um papel decorativo sem possibilidade de realização, de voz própria e de expansão de ser- e é a vida das monarquias em decadência, onde os monarcas são reduzidos a modelos performativos, sem substância - pensamos na monarquia britânica, nas suas princesas que em cada acto público são escrutinadas quanto à roupa, ao chapéu, ao sorriso, ao andar, ao estar em pé, ao cabelo, ao peso, à elegância e o diabo a nove.


December 03, 2022

Filmes - The Wonder



Este filme cheio de imagens bonitas, como esta que parece uma pintura e fortes como aquela em que a família está à mesa a comer e lembra 'Os Comedores de Batatas' de Van Gogh, passa-se na Irlanda após a grande fome de meados do século XIX, onde morreram um milhão de pessoas e um quarto da população fugiu do país para não mais voltar.
O filme é um confronto entre a narrativa da religião e das sociedades religiosas e a narrativa da ciência e das sociedades científicas.

Um conselho de homens de uma aldeia isolada -que inclui o médico, o padre, o juiz e o professor- contrata uma enfermeira para ir observar, juntamente com uma freira, uma rapariga que está, alegadamente, sem comer há quatro meses. Cada uma delas tem de observar sem intervir e no fim entregam um relatório dos factos para os da aldeia decidirem se há ali milagre ou fraude. 
A enfermeira assim que chega a casa da rapariga estabelece um protocolo para que ninguém se aproxime da rapariga -uma adolescente- e a observação se faça com rigor. A miúda começa logo a piorar e a enfermeira descobre que a mãe tinha um estratagema para a alimentar, sem que a própria miúda o percebesse. 
A miúda é sincera, acredita piamente na narrativa do padre e da família e pensa que está a ser sustentada por um maná celestial enviado por Deus. Há no filme uma crítica tão forte ao modo como a religião sacrifica a saúde mental das crianças para atingir os seus objectivos de poder...

Enfim, depois o filme é uma luta entre a aldeia religiosa que está disposta a observar a rapariga a morrer à fome sem fazer nada, a não ser rezar, com a narrativa de que "esta vida é um sopro e a que vem a seguir é que conta por ser eterna", de maneira que é para essa que se vive e a enfermeira que tenta salvar a rapariga de morrer no sofrimento lento da fome. A narrativa da ciência ganha porque a enfermeira, depois de tentar várias vezes, sem sucesso, que a miúda coma, corrige a sua narrativa e arranja uma narrativa que a rapariga possa aceitar para se libertar da pressão daquela sociedade religiosa e salvar-se sem o peso da culpa de renegar a religião. É uma maneira de dizer que a vantagem da narrativa da ciência sobre a da religião é a sua capacidade de se corrige constantemente.

Há uma altura do filme em que a enfermeira discute com um jornalista que lhe diz que ela não percebe, mas que a família da rapariga e as pessoas da aldeia (que querem muito um milagre ou uma santa, enfim, uma narrativa de esperança que redima a aldeia do horror dos anos de fome) a amam, ao que ela responde que o amor não é uma coisa teórica de observar ao longe, mas uma prática, uma acção de intervenção e cuidado para aliviar o sofrimento do outro. Claramente aqui o filme fala da hipocrisia da igreja e das sociedades religiosas que pregam o amor do púlpito e praticam o desamor ao próximo na indiferença com que observam o sofrimento,  porque desvalorizam esta vida em nome de outra. Portanto, no filme, a ciência é, tanto na teoria como na prática, uma narrativa que se corrige para poder cuidar do outro, muito preferível ao imobilismo dogmático da religião. 

O filme é complexo e tem uma leitura também do calculismo e desinteresse das elites políticas que vêem as crianças na pobreza mas não corrigem os fossos sociais. No filme contam-nos uma história de uma família que nos anos da fome se trancou em casa para não passarem pela vergonha de acontecer caírem mortos de fome no meio da rua.

O filme lembrou-me um outro, 'A Festa de Babette' que é um filme passado numa daquelas ilhas dinamarquesas onde as aldeias no Inverno ficam praticamente isoladas por causa da neve e onde as pessoas são muito religiosas naquela versão puritana muito austera e se privam de todos os prazeres por amor a Deus, mas têm pouco amor ao próximo. Acabam por aproximar-se uns dos outros de uma maneira cristã, através de um repasto faustoso de uma chefe cozinheira francesa que ali conseguiu refúgio do terror da guilhotina e um dia ganha a lotaria francesa e gasta tudo num banquete que cozinha com muito amor e oferece aos da aldeia para agradecer o acolhimento, o que representa um acto de amor muito superior àquelas rezas constantes e regras puritanas. Também é um filme que mostra que o amor não é uma palavra ou um sentimento mas uma acção de cuidado e que em todo o lado há pessoas que são muito mais do que aparentam.

Esta atriz, Florence Pugh, é uma mulher petite, mas com muita presença. O cenário do filme é de privação e austeridade. Casas pobres, campos agrestes e nus, pessoas rudes. 

Florence Pugh, Tom Burke and Kíla Lord Cassidy in The Wonder. Credit: PictureLux / The Hollywood Archive 


November 05, 2022

Hoje é o dia internacional do cinema. Vamos lá ver um par de filmes

 


Já vi um: Don't Worry Darling. «Spoiler alert»! A premissa do filme é a seguinte: imagine que os homens (sobretudo os 'incel', mas não só) conseguiam voltar atrás no tempo, aos anos 50, digamos e arranjavam maneira de enfiar as mulheres em casa a fazerem de empregadas domésticas e mães de dia e de sexy vamps à noite, sempre contentes, disponíveis e dependentes dos maridos, sem elas perceberem a armadilha em que estavam? É isso.


October 05, 2022

Filmes - Blonde


Hoje vi este filme que pretende ser sobre Marilyn Monroe. O filme é péssimo em todos os sentidos. Traça uma imagem dela hiper-sexualizada, como se ela, mesmo sozinha em casa, estivesse sempre pintada e em poses sexuais. Ou a chorar... Inventa factos que nunca aconteceram como a mãe a tentar afogá-la. Retrata-a como uma mulher promíscua e superficial cuja vida só existe na relação com os homens quando sabemos que ela tinha amigas mulheres e prezava essas amizades. O filme reduz a sua pessoa a uma vítima dos homens: não há um único homem no filme que não seja, ou um velho paternalista que a quer como uma boneca ou um depravado que abusa dela. O filme dá a entender que todos os homens de poder do estúdio a violam e que é só por isso que ela consegue os papéis quando sabemos que isso é mentira. 

Depois, na altura em que ela perde o filho (ela tentou engravidar várias vezes, mas nunca conseguiu levar a gravidez até ao fim) o realizador põe o feto a ver-se como um bebé já formado e nascido a falar com ela e a dizer-lhe, 'não me faças mal. Olha que o me acontecer é decisão tua'. Inacreditável. Calculo que o filme foi encomendado pelos fundamentalistas americanos que invejam o Khamenei. Enfim, quem não saiba nada dela e veja este filme pensa que ela foi uma tolinha com mamas grandes e carinhas sedutoras que levou uma vida imoral e mereceu as sovas que lhe dava o Joe DiMaggio e a crueldade de Arthur Miller.

Uma porcaria de filme e chato de ver. Com este nome, Blonde, pensei que o filme queria mostrar uma perspectiva dela realista, baseada no que foi a vida dela para além dos estúdios e na incessante busca dela pelo respeito dos outros. Ela era uma mulher que lia, que se interessava por música, pela cultura, que tinha amizades fora dos canais de Hollywood. Mas não, afinal o filme defende mesmo que ela era uma burra loura como os machistas e inceis gostam de pensar nas mulheres. Talvez esses apreciem o filme, eu tive dificuldade em aguentar o filme até ao fim.  

Na verdade, o filme diz-nos mais sobre o realizador, o tipo de pessoa que é e como se relaciona com as mulheres e as actrizes do que sobre Marilyn Monroe. Tive curiosidade de ir ver alguma coisa do realizador e ouvir o que ele tem a dizer. Pois, nada. Parece que nunca viu nenhum filme dela.


September 29, 2022

Filmes - Crimes do Futuro

 

Este é um filme de Cronenberg para um certo gosto que não é o meu. O Cronenberg tem filmes que gosto imenso como Eastern Promisses ou A Dangerous Method, outros que gosto mas metem-me nojo como, «A Mosca» e outros, como este, que não gosto mesmo. Este filme passa-se num futuro em que já não há ambiente natural para salvar. Não se vê, em todo o filme, uma árvore, um campo com erva, uma flor. As pessoas só saem ao entardecer ou à noite por causa do sol. Nesse futuro, o corpo humano sofreu mutações devido aos problemas ambientais. Logo na primeira cena do filme vê-se um miúdo (a única criança que aparece no filme) a enfiar-se na casa de banho e a ir ao caixote do lixo comer o plástico com uma sofreguidão de viciado. A mãe mata-o nessa noite depois de ver aquilo. O corpo humano desorganizou-se, parece ter saído do caminho evolutivo e crescem orgãos estranhos às pessoas, dentro e para fora do corpo. Podem ter orelhas no topo do crânio, por exemplo. Existe o medo que esses crescimentos anormais se transmitam geneticamente aos filhos e façam degenerar a evolução. Já não havendo ambiente para salvar, tentam salvar a humanidade do ser humano controlando o crescimento caótico de orgãos do corpo humano, isto é, controlando a evolução.

Nesse futuro, o ser humano perdeu a capacidade de sentir dor física, como se uma apatia se tivesse instalado nos genes, de maneira que não tem nenhum 'aviso' de que algo corre mal no corpo. A transformação do corpo tornou-se numa arte performativa. As personagens principais do filme são um homem a quem crescem tumores desordenadamente e a sua parceira artística, uma cirurgiã que abandona o hospital para se tornar artista com o corpo dele. Então faz-lhe cirurgias públicas e artísticas. É preciso estômago para ver isto porque a câmara demora-se muito tempo nestas cirurgias que têm uma parte de horror e outra de erotismo: vemos tubos a entrar no corpo, facas a abrir o corpo, os orgãos a ser removidos, olhos e boca a serem cozidos como nos livros de Sade, mas tudo muito cru e ambivalente. Não tem nada que ver com um ambiente hospitalar, não. É um ambiente de voyeurismo erótico.

 Chiça... enfim, não é o tipo de filme que me entusiasme ou que queira ver uma segunda vez, mas percebo que é o tipo de filme para ter fãs. O filme é só bons actores, alguns dos quais trabalham muito com ele, como Viggo Mortensen.


September 15, 2022

Filmes - King Charles III

  

Em 2017 estreou um filme da BBC chamado, 'King Charles III'. O filme começa com as cerimónias do funeral da rainha, com cenas exactamente iguais à realidade que está a passar-se: o caixão transportado naquela geringonça militar com a coroa em cima, a vigília da guarda na Abadia, etc.

O filme depois continua com a incapacidade de Carlos III se manter fora do trabalho executivo do governo, a incapacidade para se manter uma figura protocolar, o primeiro-ministro a interceder junto de William para meter no juízo na cabeça do pai. Harry é retratado como um totó sem tino à procura duma mommy. No fim Charles abdica, contra a sua vontade, forçado, a favor de William. O filme não é simpático para ninguém da família, mas para Carlos é particularmente castigador. Talvez injusto.

September 13, 2022

Jean-Luc Godard 1930-2022




Jean-Luc Godard, o director radical de À bout de souffle, Alphaville e mais recentemente, Socialisme, uma figura chave na Nouvelle Vague francesa, morreu com 91 anos. De facto, há uma era que se começa a fechar.



August 19, 2022

Filmes - Margrete den første

 


Fui ver este filme. O filme é impressionante. É uma filme de época, a medieval, mas é um filme de pessoas, de emoções e de relações entre pessoas. Muito bom. Depois, a fotografia... aquelas paisagens selvagens da Dinamarca, as tundras agrestes, muito ventosas e as florestas de faias... O castelo medieval à borda do penhasco. Sempre os tons escuros de pouca luz, dentro e fora dos castelos. 

O filme passa-se na Scania, uma região do sul da Dinamarca que agora é sueca mas que foi dinamarquesa até meados do século XVII, a quem os romanos deram o nome por considerarem que as terras a norte da Germânia faziam todas parte de uma ilha a que chamavam Scania.

A Escandinávia, palavra que deriva de Scania, engloba a Dinamarca, a Suécia e a Noruega. Em 1397 a rainha Margrete I, que foi uma grande e importante rainha, conseguiu que os três países escandinavos parassem de guerrear-se entre si e formassem uma aliança, chamada União de Kalmar, que durou mais de dois séculos, para se defenderem dos germânicos. A Suécia acabou por sair, mas a Noruega e Dinamarca seguiram juntas até 1814.

Neste filme, a rainha está prestes a fazer uma aliança com os ingleses, que têm um exército poderoso. A aliança consiste no casamento do seu filho adoptivo e herdeiro com a princesa inglesa em troca do apoio dos ingleses contra os alemães. No dia em que a princesa chega à Dinamarca com a comitiva inglesa aparece um indivíduo que clama ser o filho da rainha e, seu herdeiro, supostamente morto há 15 anos. Todo o filme se passa à volta deste episódio que põe em causa a União de Kalmar, a aliança com a Inglaterra e a defesa contra os teutões. 

O filme é baseado em factos históricos, quer dizer, houve mesmo esse episódio. No entanto, pouco se sabe dessa crise, a não ser que esse que clamava ser o verdadeiro herdeiro e rei dinamarquês foi queimado numa pira, pois todos os documentos das audiências e do julgamento foram queimados com ele. Esse desconhecimento do que se passou deu ao argumentista a liberdade de imaginar uma trama.

A actriz principal que faz de Margrete I, Trine Dyrholm, conta, numa pequena entrevista no YouTube, que na estreia do filme em Copenhaga, a rainha actual da Dinamarca, Margrete II, esteve presente e ficou sentada a seu lado. Quando a rainha entrou levantaram-se todos. Depois começou o filme e numa das primeiras cenas a rainha Margrete I, protagonizada por si, Trine, entra numa sala e todos se levantam. Ela conta isso como uma espécie de momento trans-temporal, quer dizer, 700 anos separam uma Margrete de outra, mas a teatralidade dos gestos e dos rituais é exactamente a mesma. 


July 28, 2022

Filmes/Séries - Under the Banner of Heaven

 


Estive a ver esta mini-série em sete episódios. É baseada num livro de 2003, se não me engano, sobre crimes que ocorreram no Utah, o Estado dos Mormons - o seu contexto é essa religião, dos Santos dos Últimos Dias, como eles se denominam.

À medida que vamos acompanhando o caso vamos tendo flasbacks da história da religião, nomeadamente das perseguições aos mórmones (sempre que assentavam em algum sítio e começavam a ter muitos seguidores e, com isso, poder político, escorraçavam-nos) do assassinato de Joseph Smith e do envolvimento de Brigham Young nesse crime, que o filme defende explicitamente, atribuindo ambos à poligamia, pois Joseph Smith queria reverter essa "revelação" e B. Young, que viria a ter 55 mulheres, algumas com 12 anos, não queria. 

A poligamia, que na prática incluía incesto, violações e pedofilia, foi proibida pelo 4º presidente da Igreja, mesmo no final do século XIX. No entanto, continua a ser praticada pelos ramos fundamentalistas que vivem em sociedades de patriarcardo retrógrado, lá para trás do sol posto, sempre de espingarda na mão. São muito violentos e não são aceites pela igreja oficial dos  mórmones.

O detective encarregue do caso é mórmon e é casado com uma mórmon totalmente beliver. Têm duas filhas que ela educa naqueles credos e práticas fundamentalistas, como na religião muçulmana e judia ortodoxa. Rezam por tudo e por nada e em todas as frases que dizem entra a expressão, o «pai celeste». Allahu Akbar em versão mórmone...
Porém, à medida que o filme progride, percebemos que as práticas destes mórmones não são nada ao pé de outros fundamentalistas: a família do marido da vítima principal, a que desencadeia a investigação. E esses, não são ainda os mais fanáticos: há os tais outros que ainda mantêm a poligamia.

O filme é perturbador. A maioria, como a religião incentiva a ideia que todos são intérpretes de Deus, passa a vida a ter 'visões'. Parece que estamos noutra dimensão da realidade onde as pessoas são alucinadas.

O detective, conforme se vão desenrolando os acontecimentos, vai entrando numa crise de fé, porque vê em primeira mão, as mentiras dos Elders, o encobrimento da história violenta e criminosa da religião, a hipocrisia das cúpulas, que entram pela esquadra adentro e simplesmente pedem que os prisioneiros, por serem mórmones, sejam libertados à sua guarda (como faz a igreja católica com os padres pedófilos) e dizem ao detective que há questões da igreja que não se investigam. São para ficar na prateleira. 

À medida que ele entra numa crise de fé, a mulher dele diz-lhe claramente que se ele deixa de ter fé, vai-se embora à procura de um pai fiel para as filhas. Assim mesmo: é brutal. A relação deles é estranha. Um dia ela vai dar com ele a chorar dentro do carro, na garagem. Ele diz-lhe que está numa luta interna e ela em vez de falar com ele e tentar ajudar, diz-lhe para rezarem e depois vai-se embora e deixa-o lá sozinho a chorar. Como ele é o homem da família, o priesthood, que é a voz de Deus na família, o que comanda, ela não entende que ele possa pedir-lhe orientação espiritual. Então, em vez de o ajudar vai relatar a situação ao presidente da igreja que manda uns Elders falar com ele. Não sei, não estão unidos um ao outro, têm sempre Deus e os padres e as suas regras e castrações no meio. Parece um casamento um bocado infantil.

O detective ajudante dele é um índio que tem uma visão da espiritualidade muito mais natural e ligada à apreciação da natureza e à ligação com todos os seres vivos. Um indivíduo experimente e pragmático que o ajuda a não se perder naquela loucura.

A série mostra muito bem o que é uma educação e uma vivência mórmones, aquela tacanhez toda e a culpa, sempre a falar de pecados às crianças e de se entregarem ao pai celeste... as religiões estão na origem de muitas neuroses...

Pelo que depois li, a série tem sido muito polémica ou criticada, porque a religião dos Santos não gosta que se desenterre a sua história suja e as suas psicoses no que respeita à sexualidade.

Muito boa. Perturbadora, mas muito boa. Bons actores. A desconstrução interna, gradual, do indivíduo que é o líder dos assassinatos devido às características da organização familiar mórmone e todas as suas alucinações, é extraordinária. Um grande trabalho desse actor. Uma espécie de entrar no labirinto do Minotauro, mas sem Ariadne de maneira que em vez de se encontrar, perde-se.
E a actriz que acaba por ser a vítima do crime (ela e a filha bebé), também excelente no papel da pessoa positiva que assume uma missão como uma cruzada e tenta mudar o mundo mas é traída pelos homens da religião que não gostam de mulheres protagonistas.

O indivíduo que escreveu o romance, um ex-mórmon, investigou bastante o caso, pelo que li. Soube apresentá-lo na complexidade das suas circunvulações, digamos assim, embora a figura do detective e da sua família e isso sejam ficcionais.