December 03, 2022

Filmes - The Wonder



Este filme cheio de imagens bonitas, como esta que parece uma pintura e fortes como aquela em que a família está à mesa a comer e lembra 'Os Comedores de Batatas' de Van Gogh, passa-se na Irlanda após a grande fome de meados do século XIX, onde morreram um milhão de pessoas e um quarto da população fugiu do país para não mais voltar.
O filme é um confronto entre a narrativa da religião e das sociedades religiosas e a narrativa da ciência e das sociedades científicas.

Um conselho de homens de uma aldeia isolada -que inclui o médico, o padre, o juiz e o professor- contrata uma enfermeira para ir observar, juntamente com uma freira, uma rapariga que está, alegadamente, sem comer há quatro meses. Cada uma delas tem de observar sem intervir e no fim entregam um relatório dos factos para os da aldeia decidirem se há ali milagre ou fraude. 
A enfermeira assim que chega a casa da rapariga estabelece um protocolo para que ninguém se aproxime da rapariga -uma adolescente- e a observação se faça com rigor. A miúda começa logo a piorar e a enfermeira descobre que a mãe tinha um estratagema para a alimentar, sem que a própria miúda o percebesse. 
A miúda é sincera, acredita piamente na narrativa do padre e da família e pensa que está a ser sustentada por um maná celestial enviado por Deus. Há no filme uma crítica tão forte ao modo como a religião sacrifica a saúde mental das crianças para atingir os seus objectivos de poder...

Enfim, depois o filme é uma luta entre a aldeia religiosa que está disposta a observar a rapariga a morrer à fome sem fazer nada, a não ser rezar, com a narrativa de que "esta vida é um sopro e a que vem a seguir é que conta por ser eterna", de maneira que é para essa que se vive e a enfermeira que tenta salvar a rapariga de morrer no sofrimento lento da fome. A narrativa da ciência ganha porque a enfermeira, depois de tentar várias vezes, sem sucesso, que a miúda coma, corrige a sua narrativa e arranja uma narrativa que a rapariga possa aceitar para se libertar da pressão daquela sociedade religiosa e salvar-se sem o peso da culpa de renegar a religião. É uma maneira de dizer que a vantagem da narrativa da ciência sobre a da religião é a sua capacidade de se corrige constantemente.

Há uma altura do filme em que a enfermeira discute com um jornalista que lhe diz que ela não percebe, mas que a família da rapariga e as pessoas da aldeia (que querem muito um milagre ou uma santa, enfim, uma narrativa de esperança que redima a aldeia do horror dos anos de fome) a amam, ao que ela responde que o amor não é uma coisa teórica de observar ao longe, mas uma prática, uma acção de intervenção e cuidado para aliviar o sofrimento do outro. Claramente aqui o filme fala da hipocrisia da igreja e das sociedades religiosas que pregam o amor do púlpito e praticam o desamor ao próximo na indiferença com que observam o sofrimento,  porque desvalorizam esta vida em nome de outra. Portanto, no filme, a ciência é, tanto na teoria como na prática, uma narrativa que se corrige para poder cuidar do outro, muito preferível ao imobilismo dogmático da religião. 

O filme é complexo e tem uma leitura também do calculismo e desinteresse das elites políticas que vêem as crianças na pobreza mas não corrigem os fossos sociais. No filme contam-nos uma história de uma família que nos anos da fome se trancou em casa para não passarem pela vergonha de acontecer caírem mortos de fome no meio da rua.

O filme lembrou-me um outro, 'A Festa de Babette' que é um filme passado numa daquelas ilhas dinamarquesas onde as aldeias no Inverno ficam praticamente isoladas por causa da neve e onde as pessoas são muito religiosas naquela versão puritana muito austera e se privam de todos os prazeres por amor a Deus, mas têm pouco amor ao próximo. Acabam por aproximar-se uns dos outros de uma maneira cristã, através de um repasto faustoso de uma chefe cozinheira francesa que ali conseguiu refúgio do terror da guilhotina e um dia ganha a lotaria francesa e gasta tudo num banquete que cozinha com muito amor e oferece aos da aldeia para agradecer o acolhimento, o que representa um acto de amor muito superior àquelas rezas constantes e regras puritanas. Também é um filme que mostra que o amor não é uma palavra ou um sentimento mas uma acção de cuidado e que em todo o lado há pessoas que são muito mais do que aparentam.

Esta atriz, Florence Pugh, é uma mulher petite, mas com muita presença. O cenário do filme é de privação e austeridade. Casas pobres, campos agrestes e nus, pessoas rudes. 

Florence Pugh, Tom Burke and Kíla Lord Cassidy in The Wonder. Credit: PictureLux / The Hollywood Archive 


No comments:

Post a Comment