January 13, 2023

Filmes - Tár

 

(spoiler alert!)

Um dos melhores filmes que vi nos últimos tempos. O filme é uma tragédia e como tal é anunciada. Começamos a prevê-la cedo no filme que aborda a grande questão sobre a arte e o artista e até que ponto devem ser confundidos. É sobre a cultura de cancelamento, mas é mais do que isso, é sobre o tempo, a complexidade do ser humano e as suas circunstâncias e a decadência da cultura.

O filme é de Todd Field com Cate Blanchett no papel de uma compositora e maestrina, Lydia Tár, que tem uma carreira em ascensão, à beira do estrelato estratosférico, que espera alcançar com a gravação ao vivo da 5ª sinfonia de Mahler com a Orquestra de Berlim -a Rolls Royce das orquestras-, depois de já ter gravado as outras.

Tár pertence à velha escola. Ficamos a saber que foi aluna e protegida de Leonard Bernstein (um amante de Mahler) e percebemos desde o início que tem uma paixão, um talento e uma dedicação à música típica dos grandes maestros. Entende que o maestro tem que 'desaparecer' para fazer brilhar o compositor e a sua música. Guardou de Bernstein que a música expressa sentimentos para os quais não temos palavras e que tem em si uma riqueza que não se encontra em outra arte porque está ao alcance de todos e não é preciso ter conhecimentos de música para a apreender.

Há uma cena extraordinária de uma aula que ela vai dar, na Julliard, onde discute com um aluno porque ele escolhe apresentar uma peça atonal e desinteressante com o argumento de que os grandes compositores do passado eram todos homens cis, brancos e misóginos e que se recusa a aprendê-los. Ela senta-se ao piano e toca, O Cravo Bem Temperado – Prelúdio, de Bach e o rapaz emociona-se mas teima em que não se interessa por Bach porque sabe-se que ele se meteu com uns rapazes novos - ela responde que ele era humano, mas a música dele não, e diz-lhe que um dia também ele vai ser julgado e nesse dia vai querer ser julgado pelo seu talento e pela sua música e não pela sua sexualidade, comportamento, raça, etc.

Nesta cena percebemos que estão em choque duas forças culturais opostas: o velho mundo que aprecia a arte pela arte e não moraliza a arte e o novo mundo que julga a arte pelo filtro do comportamento moral dos artistas.

Tal como os grandes maestros, Tár é uma pessoa cheia de carisma, auto-confiança, uma presença em palco muito forte e muito controladora. Vemos como comanda a orquestra, comanda a família (é lésbica e vive com uma mulher que é a 1º violinista da orquestra e a filha de ambas) e como comanda tudo à sua volta. Vemos até, numa cena com uma vizinha, uma mulher velha que colapsa, o pavor que tem de perder o controlo e ficar dependente.

Bem, acontece que ela gosta de ter casos com raparigas novas da orquestra e vemo-la a manipular as pessoas para que se contratem as raparigas em quem tem interesse amoroso. Vemo-la mentir e também a vemos ser desleal com a sua assistente que tem ambições e julga que tem nela uma aliada (mais tarde a assistente descobre e vinga-se). Vemo-la a ser humana com falhas éticas.

Começam a aparecer nos jornais rumores de que ela é uma abusadora que troca trabalho por favores sexuais (o que é um grande exagero, porque ela é muito rigorosa na qualidade dos músicos que escolhe, mas não deixa de ser verdade) depois de uma ex-protegida dela de suicidar e, para piorar, alguém gravou, editou maliciosamente e vazou nas redes sociais a aula dela na Julliard de maneira a parecer que ela é ordinária e abusadora; mas nem mesmo assim ela percebe o poder destruidor do cancelamento e o perigo em que está.
De vez em quando saímos da sua perspectiva, onde estamos sempre e vemos o que a assistente dela e outros falam sobre ela nas mensagens de telemóvel que trocam e isso mostra-nos o quão longe ela está de controlar a sua imagem sem o perceber.

Um maestro amigo dela, muito famoso e já reformado, que foi seu mestre, avisa-a. Fala-lhe no Furtwängler e diz-lhe para ter muito cuidado porque nos dias que correm um rumor desse género é uma pena de morte que compara à desnazificação no pós-guerra.
Furtwängler foi um maestro alemão, uma figura mítica que punha as orquestras a tocar de uma maneira seminal e transformadora. Era o maestro preferido de Hitler, mas ele não era nazi, nunca se inscreveu no partido apesar das pressões, protestou publicamente contra a expulsão de judeus, recusou-se a substitui-los por nazis, denunciou a decadência da cultura, nunca fez a saudação nazi, que era obrigatória nos espectáculos e arranjou sempre maneira de se afastar dos nazis. Porém, dado que trabalhou sempre durante a guerra e não fugiu da Alemanha (ele dizia que vivia para a Alemanha da arte e não para a Alemanha nazi), teve que sujeitar-se a uma desnazificação, ficou manchado e embora tenha retomado a carreira depois da guerra, nunca mais foi o mesmo e acabou a tocar para os mortos. Uma desnazificação era o tipo de rumor que ficava adesivado para sempre à pessoa.

Há uma cena no filme muito boa e assustadora de onde Tár sai com a cara desfigurada e percebe a violência da massa anónima escondida camuflada na escuridão. Ela pensa que a jovem violoncelista por quem se entusiasma é inocente mas a ingénua é ela que não percebe o mundo em que vive.

No fim do filme ela perdeu tudo -a posição, a fama- e está algures num país asiático a conduzir uma orquestra (com a mesma paixão e rigor que são a sua marca) que toca ao vivo a música de um videojogo Monster Hunter (muito a propósito), numa convenção cheia de cosplayers: toda a assistência vestida de monstros. Uma maneira de dizer que o monstro em que os media canceladores a tornaram, desapareceu, mas os monstros, no final, são eles mesmos e que o cancelamento dos artistas, leva ao cancelamento e decadência da arte e da própria cultura.

(Nesse país asiático ela atravessa um rio num bote com outros da orquestra e vendo as águas muito calmas pergunta se não podem tomar um banho. Eles respondem que por baixo dessa aparente calma estão crocodilos que escaparam de um filme de Marlon Brando rodado ali e ela diz, 'mas isso foi há muito tempo' e eles respondem, 'mas eles nunca mais morreram'.)

Cate Blanchett tem aqui o papel da vida artística madura. A actriz alemã que faz de mulher dela, também muito boa e todos em geral muito bons.

É provável que o filme seja cancelado pelos fanáticos do cancelamento indiscriminado e acéfalo.

1 comment:

  1. Um filme que gostaria de ver. Quando estreie em cinema; li que será só em Fevereiro.

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