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June 01, 2024

Leituras pela madrugada - Quando a educação não é orientada em direcções específicas, as suas possibilidades são infinitas



Nos EUA estão a surgir instituições de ensino pós-secundário, paralelas às universidades para alunos que pretendem aprender, no sentido de explorar as possibilidades humanas, a partir da leitura e estudo de autores da literatura, da filosofia, das humanidades. E porque é que isto acontece? Porque as universidades já não alimentam a alma a ninguém - estamos a falar de Harvard, Yale e outras dessa categoria, de onde os alunos saem decepcionados porque aprenderam coisas práticas e imediatamente úteis para a carreira, mas nada acerca da grande sabedoria que é suposto essas grandes universidades proporcionarem.

Isto liga-se, claro, ao ataque às humanidades e a todo o ensino que não se reduza a uns trabalhos com exposição, muitos gráficos, imagens, vídeos e números acerca de um problema do mundo (tudo muito superficial), mas nenhum estudo profundo sobre as possibilidades humanas, que se tornou uma imposição no secundário e que entrou nas universidades.

Os professores de humanidades de Harvard, uma instituição de elite, actualmente queixam-se que os alunos não são capazes de perceber as frases da obra A Letra Escarlate, porque não sabem distinguir o sujeito do verbo. Portanto, esses professores já sentem o que nós há muito sentimos no secundário que é a diminuição dos alunos que estão em condições de compreender as possibilidades humanas, para além de, «ter sucesso na vida» o que equivale, para os alunos, a ter muito dinheiro.

E os alunos vêm tão endoutrinados com a ideia de que tudo o que é uma leitura de exploração de ideias sobre as dimensões humanas que não seja reduzido a memes e coisas práticas, é retrógrado e que só as disciplinas que ensinam a ganhar dinheiro é que têm valor, que agora entram nas aulas -nas minhas, pelo menos- como quem tem que sair do comboio principal e perder tempo a fazer um desvio, a pé, usando as suas perninhas, por uma paisagem sem wi-fi.

Acontece que, aqueles que vêm num estado editável -que dantes eram muitos e agora são muito menos-, quando começam a perceber que têm dentro de si outras dimensões para explorar, interessam-se, mesmo que depois lhes falte as ferramentas de leitura para aprofundar esse interesse. 

O ensino básico e secundário está cada vez mais afastado da dimensão humana da pessoa e, nessa medida, contraditório com a nossa evolução social. À medida que se inventam e melhoram as máquinas que nos substituem, mais querem que se treine os alunos em mecanismos e técnicas que qualquer máquina faz. Em contrapartida, aquilo que a máquina não faz que é pensar as nossas condições de ser e de vida profundamente humanas, é objecto de um estigma, como se fosse uma inutilidade e uma perda de tempo, apenas porque não resolve o problema da seca, por exemplo. 

Porém, talvez resolva esse problema a longo prazo, formando pessoas capazes de entender o alcance dos problemas e a importância de entender os outros humanos como seres livres, com direito a ter projectos de vida próprios que dependem de todos termos certas condições de vida. Este é o tipo de aprendizagem não técnica mas reflexiva. 

Não é possível formarmos pessoas e cidadãos autónomos e críticos, se toda a aprendizagem for reduzida a técnicas e a abordagens pragmáticas e superficiais. Pensar e aprender neste sentido de reflexão, requer tempo para maturar e requer capacidades de linguagem pois sem ela o pensamento não descola do visível imediato e superficial.

Este ano tenho turmas do 10º ano às quais faltam ferramentas de linguagem para compreender ideias que vão além do superficial, mas têm grupos grandes de alunos que se interessam por compreender e explorar ideias, de maneira que são editáveis (hoje em dia divido os alunos, conforme chegam ao 10º ano, entre, editáveis e muito dificilmente editáveis, por já virem muito estragados dos currículos medíocres do básico que ceifam os seus recursos intelectuais e motivacionais.) 

Acabámos ontem o programa com a filosofia política de John Rawls e, nomeadamente, com as críticas que lhe fazem Nozick, um liberal extremista que defende que o Estado deve ser mínimo, apenas o necessário para assegurar a integridade física e a liberdade dos cidadãos e não deve redistribuir riqueza nem cobrar impostos, cada um que se desenrasque e, também, Sandel, um comunitarista, que defende o extremo oposto, isto é, que o indivíduo não existe a não ser como abstracção, que a única coisa que interessa são as suas relações sociais e que, por isso, toda a comunidade tem de estar ao serviço da colectividade, sendo a liberdade individual, uma miragem, digamos assim.

Este tema fez eco neles. Relacionaram estas posições filosóficas com partidos políticos e países, (não apenas portugueses) e perceberam as raízes filosóficas das suas posições políticas, quer dizer, o tipo de projecto social e ideias sobre o ser humano e a sua liberdade que tem cada força política. 

Também abordámos os Princípio de Justiça de Rawls, entre os quais o direito às liberdades básicas -de expressão, de pensamento, de consciência, etc- alguns alunos relacionaram com o caso da afirmação de Ventura sobre os turcos e concluíram que, segundo o ponto de vista de Rawls, as pessoas têm a liberdade de pensar ideias que a outros parecem repugnantes (talvez as nossas lhes pareçam a elas repugnantes) e que a resposta a essas pessoas deve ser, não a repressão, própria de ditaduras, mas a argumentação (que estudámos no 2º período), própria das democracias. 

Quero crer e espero que não seja uma ilusão ou uma auto-indulgência, que estes alunos sairam deste programa do 10 ano de filosofia, mais conscientes de si, do mundo em que vivem, da complexidade das relações humanas, do valor da argumentação sobre a censura e a força, portanto, mais preparados para a vida enquanto humanos e seres sócio-políticos.

A aprendizagem para a vida não pode reduzir-se a um conjunto de receitas técnicas e power-points.

 

A leitura profunda salvará a tua alma

As universidades estão em crise - perdendo apoio público, abaladas por divisões internas, enfrentando doadores e antigos alunos zangados e afastando-se cada vez mais da sua missão principal de curiosidade intelectual e investigação aberta. A nossa série, que é possível graças ao generoso apoio das Fundações Arthur Vining Davis, consistirá numa coleção de ensaios de longa duração e entrevistas em podcast com o objetivo de ajudar o ensino superior a enfrentar esta crise.


Na edição de hoje, William Deresiewicz - inspirado pelo legado de um estudante - analisa uma nova e importante tendência: estudantes e professores que abandonam completamente as universidades tradicionais e procuram uma educação em artes li
liberals in autonomous programmes.

- Yascha and the Persuasion team.

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A verdadeira aprendizagem tornou-se impossível nas universidades. Os programas de bricolage oferecem uma forma melhor.

O ensino superior está num impasse. Há muita coisa que não presta e não é provável que nada mude. As faculdades e universidades não parecem dispostas a reformar-se a si próprias e, se o fizessem, não saberiam como e, se soubessem, não conseguiriam. Entre a inércia burocrática, a resistência do corpo docente e as agendas conflituosas de um conjunto heterogéneo de partes interessadas, a mudança concertada parece ser impossível. Além disso, o negócio vai bem, pelo menos nas escolas selectivas. 

A noção, agora difundida por alguns sectores, de que os alunos e os pais abandonarão as Harvards e as Yales por decepção é uma fantasia. Enquanto as instituições de elite continuarem a ser a principal via de acesso aos empregadores de elite (e continuarão a sê-lo), os que se esforçam e os que se dedicam a esse objectivo irão dirigir-se para os seus portões. Tudo o resto - as aulas, a política, as artes e as ciências - é acessório.

O que não quer dizer que não estejam a acontecer coisas interessantes no ensino pós-secundário (e pós-terciário). Apenas não estão a acontecer, na sua maioria, no campus. As pessoas escrevem-me sobre as iniciativas em que participaram. Tanto quanto me é dado perceber, estas iniciativas dividem-se em dois grandes tipos, que correspondem às duas queixas fundamentais que as pessoas exprimem sobre a sua experiência de licenciatura. 

A primeira queixa é a de que a faculdade não os preparou para o mundo real: que todo o exercício - papéis, trabalho, requisitos inúteis; disciplinas em silos e teoria abstrata - parecia distante de qualquer coisa que pudessem realmente querer fazer com as suas vidas.

Os programas que abordam este descontentamento apresentam um conjunto de características notavelmente consistentes. São interdisciplinares, integrando métodos e perspectivas - por exemplo, da engenharia e das ciências sociais - que normalmente são mantidos à parte. São informais, evitando a instrução frontal e os modos tradicionais de avaliação. São experimentais, mais sobre fazer - criar, colaborar - do que ler e escrever. São extramuros, levando os estudantes à comunidade para projectos de serviço, estágios, instalações artísticas ou espectáculos. São direccionados para fins específicos, normalmente relacionados com a melhoria social ou a recuperação ambiental. Acima de tudo, são centrados nos estudantes. Os participantes podem (e devem) orientar a sua educação, construindo currículos personalizados a partir dos recursos a que o programa lhes dá acesso. Numa palavra, estes esforços enfatizam o “envolvimento”.

Tudo isto é ótimo, na medida do possível. Tem análogos e precedentes no ensino superior (Evergreen, Bennington, Antioch, Hampshire), bem como na prática da educação progressiva, especialmente ao nível do ensino secundário. As escolas secundárias centrar-se-ão na “aprendizagem baseada em projectos”, com avaliação realizada através de portefólios e exposições públicas. Um aluno identificará um problema (uma necessidade humana, uma injustiça, um caso de sub-representação), depois conceberá e implementará uma resposta (um sistema físico, um programa virado para a comunidade, um projeto artístico).

Mais uma vez, percebo a lógica, é exatamente o que muitos alunos querem, mas o que me incomoda nesta abordagem educativa - a abordagem “problemática”, a abordagem “STEAM” (STEM + artes) - é o que deixa de fora. Deixa de fora as humanidades. Deixa de fora os livros. Deixa de fora a literatura e a filosofia, a história e a história da arte e a história da religião. Deixa de fora qualquer modo de investigação - reflexão, especulação, conversa com o passado - que não possa ser transformado em fins práticos imediatos. 

Nem tudo no mundo é um problema, e ver o mundo como uma série de problemas é limitar o potencial tanto do mundo como do eu. Que problema é que uma canção resolve? Que problema é que a leitura de Voltaire o ajudará a resolver, de uma forma previsível? A abordagem do “problema” - a abordagem do “empenhamento”, a abordagem do “salvar o mundo” - deixa de fora, finalmente, aquilo a que eu chamaria aprendizagem.

E esta é a segunda queixa que os licenciados tendem a exprimir: que terminaram a faculdade sem a sensação de terem aprendido alguma coisa, neste sentido essencial. Que não foram tocados. Que não foram transformados. Que existe um tesouro lá fora - chamem-lhe os Grandes Livros ou apenas grandes livros, a sabedoria dos tempos ou o melhor que foi pensado e dito - que o seu objetivo é activar o tesouro dentro deles, que tinham vindo para uma destas esplêndidas instituições (cuja arquitetura fala de cultura, cuja idade dá a entender profundidade) para serem iniciados nele, mas que lhes tinha sido negado, privado. Que tinham sido, por razões pouco claras, enganados.

Tive alunos assim em Columbia e Yale. Nunca foram muitos e, a julgar pelo que tem acontecido com as matrículas em humanidades, são cada vez menos. (De 2013 a 2022, o número de pessoas que se licenciam em inglês diminuiu 36%. Como percentagem de todos os diplomas, diminuiu 42%, para menos de 1 em cada 60). 

Diziam-me - estes peregrinos, estes intelectuais em embrião, estas almas acesas - como lhes era difícil obter o tipo de educação que tinham ido buscar à universidade. Os professores estavam muitas vezes preocupados, com pouca paciência para a tutoria, para a exploração em horário de expediente. As aulas, mesmo em áreas como a filosofia, pareciam sem vida, impessoais, como a engenharia, mas com palavras em vez de números. Pior do que tudo eram os seus colegas de curso, aqueles que se dedicavam à escalada e à carreira. “É difícil construir a nossa alma”, como me disse um dos meus alunos, “quando todos à nossa volta estão a tentar vender a deles”.

O nome desse estudante era Matthew Strother. Foi através de Matthew - que por esta altura já tinha trinta e poucos anos e continuava à procura - que tomei conhecimento das duas iniciativas mais proeminentes que surgiram fora do campus nos últimos tempos em resposta à fome de estudo sério. 

A primeira é o Brooklyn Institute for Social Research, fundado em 2012 e que actualmente oferece dezenas de cursos por ano, tanto presenciais como online. Os seus seminários reúnem-se três horas por semana durante quatro semanas. As ofertas recentes incluem aulas sobre O Homem de Confiança de Melville, Mimesis de Eric Auerbach, contos de fadas e Mesopotâmia. Com os seus compromissos de esquerda, o BISR também tem cursos de teoria crítica e ciências sociais: Jacques Lacan, Gilles Deleuze, “Capitalismo Racial”, “A Política da Gravidez”.

A segunda iniciativa para a qual Matthew me alertou é o Projeto Catherine, lançado em 2020. O seu ambiente é muito diferente do da BISR. A BISR foi fundada por um grupo de estudantes de doutoramento da Columbia. O Projeto Catherine foi fundado por Zena Hitz, uma professora do colégio St. John's Great Books em Annapolis, uma católica convertida e, durante três anos, residente na Madonna House, uma comunidade monástica no leste de Ontário. O BISR tem o nome do Instituto de Investigação Social de Frankfurt, local de nascimento, nos anos 30, da Escola de Frankfurt do pensamento social marxista. O Projeto Catarina deve o seu nome a Catarina de Alexandria, uma mártir cristã primitiva, e a Catherine Doherty, fundadora da Madonna House.

O BISR é explicitamente político e educativo; o seu programa Praxis oferece workshops e outros recursos a sindicatos e organizações sem fins lucrativos. O Projeto Catherine vê-se a si próprio como estando no negócio de criar “comunidades de aprendizagem”; os seus princípios incluem “conversação e hospitalidade, ‘simplicidade [e] transparência’. Têm um limite máximo de quatro a seis alunos (no BISR, o limite é 23), funcionam duas horas por semana, durante doze semanas, e são orientadas para o cânone: os gregos e os romanos, Pascal e Kierkegaard, Dante e Cervantes (o projeto também acolhe um grande número de grupos de leitura, que abordam uma gama mais vasta de textos). Se o BISR aspira a criar um mercado mais justo para o trabalho académico - os professores ficam com a maior parte dos honorários - o Projeto Catherine funciona como uma economia de oferta (embora esteja previsto começar a oferecer aos tutores honorários modestos).

A estes junta-se o Zephyr Institute, fundado em 2014, que gere programas baseados nas humanidades em Silicon Valley. Acrescente o programa de humanidades da Fundação Hertog, que desde 2020 tem realizado seminários online para grupos mistos de estudantes de graduação, pós-graduação e jovens profissionais. Acrescentem-se os grupos de leitura e os salões que têm vindo a proliferar, tanto presencialmente como em linha. E muitas mais iniciativas, sem dúvida, de que ainda não tive conhecimento.

Há uma série de factores que contribuem para este aumento. Um deles, claro, é a Internet, tanto como meio de estudo como de divulgação de oportunidades offline. Outro é a sensação de que os departamentos académicos de humanidades há muito que são hostis à investigação humanista - uma das principais razões pelas quais os estudantes universitários se sentem defraudados - em oposição ao discurso político. 

Um ex-aluno que fez um mestrado em ficção numa grande universidade pública observou que, embora o ensino de escrita do programa fosse apenas razoável, pelo menos os workshops davam a oportunidade de ler a sério, ao contrário do que acontecia no que ele chamava o departamento de inglês “palhaço” da instituição.

Uma terceira é menos óbvia. A crise de longo prazo no emprego académico - a mudança para o trabalho adjunto, o excesso de doutoramentos - criou uma grande reserva de instrutores qualificados apenas vagamente ligados à academia, ou totalmente desligados dela. O corpo docente da BISR, quase todo com doutoramento, inclui não só adjuntos (e professores nomeados), mas também editores de livros, escritores a tempo inteiro, um bibliotecário universitário, um arqueólogo e um psicanalista em formação. 

Como Russell Jacoby observou, a migração de intelectuais para as universidades nas décadas após a Segunda Guerra Mundial, que ele documentou em The Last Intellectuals, inverteu-se mais recentemente. A ascensão, ou reascensão, de pequenas revistas (Dissent, Commentary, Partisan Review na altura; n+1, The New Inquiry, The Point, The Drift, et al. agora) faz parte da mesma história.

O corpo docente do Catherine Project reflecte um quarto factor. Se há estudantes que desesperam com o estado das humanidades no campus, há professores que também o fazem: “Atraímos académicos - que frequentam os nossos grupos e também os dirigem - porque a vida da mente está a morrer ou está morta nas instituições convencionais”. O ensino pré-graduado, acrescentou, “é particularmente difícil”, e o Projeto Catherine oferece aos professores a oportunidade de ensinar pessoas “que querem realmente aprender”.

E, acrescentaria eu, quem é que pode. Há nove anos, Stephen Greenblatt escreveu: “Mesmo os alunos mais dotados das minhas aulas de Shakespeare em Harvard são menos susceptíveis de serem tocados pela magia subtil das suas palavras do que eu era há tantos anos ou do que os meus alunos eram nos anos 80 em Berkeley. ... O problema é que o seu envolvimento com a linguagem ... parece muitas vezes surpreendentemente superficial ou tíbio”. 

Actualmente, é claro, o cenário é muito pior. No ano passado, num artigo sobre a queda das matrículas nas humanidades, outra professora de inglês de Harvard, Amanda Claybaugh, foi citada da seguinte forma: “Da última vez que ensinei A Letra Escarlate, descobri que os meus alunos estavam realmente a ter dificuldades em compreender as frases, a ter dificuldade em identificar o sujeito e o verbo.” E isto em Harvard. Não é de admirar que os professores estejam sedentos de alunos com quem possam efectivamente dialogar sobre os livros que adoram.

Eu próprio estou envolvido num destes empreendimentos fora do campus. O meu aluno Matthew, depois de ter passado muitos anos a procurar, e depois a sonhar, com o seu ambiente intelectual ideal, decidiu criá-lo ele próprio. Este ambiente combinaria o estudo rigoroso em grupo de textos literários e filosóficos com uma vida consciente e a abstenção das tecnologias de comunicação. Seria uma comunidade face-a-face, um retiro da distração, uma escola para adultos. Seria pequena, autónoma, contemplativa e gratuita. Estudou modelos: Deep Springs College, a Academia de Platão, as experiências de Nietzsche em Villa Rubinacci. Tomou notas abundantes. Delineou um conjunto de princípios. Comprou uma propriedade no norte do estado de Nova Iorque.

Mas não viveu para ver os seus planos ganharem forma. Matthew morreu no ano passado, de cancro, aos 35 anos, no meio do caminho da sua vida. Mas tal era a beleza do seu sonho e o amor que ele inspirava, que alguns de nós que o conhecíamos, liderados pela sua viúva, Berta Willisch, decidiram vê-lo realizado. Já este ano, o Matthew Strother Center for the Examined Life está a realizar três programas-piloto de dez dias para cinco participantes cada (os planos são expandir para grupos de dez e oferecer também sessões mais longas). O corpo docente inclui-me a mim, Zena Hitz e Len Nalencz, um amigo de Matthew e professor na Universidade de Mount Saint Vincent.

A reação ao anúncio dos nossos programas-piloto confirmou para mim a existência de um grande desejo, não satisfeito, de exploração de textos, tocando nas questões mais profundas, fora dos limites do ensino superior. Com publicidade limitada, um prazo apertado e um processo de candidatura bastante exigente, recebemos cerca de 160 candidaturas. Os candidatos iam desde finalistas universitários até pessoas na casa dos 70 anos. Incluíam professores, artistas, cientistas e estudantes de doutoramento de todas as disciplinas; um oficial de submarinos, um estudante rabínico, um contabilista e um capitalista de risco; reformados, pais de crianças pequenas e jovens de vinte e poucos anos na encruzilhada. Chegaram formulários da Índia, da Jordânia, do Brasil e de nove outros países estrangeiros. Os candidatos eram, enquanto grupo, tremendamente impressionantes. Se fosse possível, teríamos aceite muitos mais do que quinze.

Quando lhes perguntaram por que razão queriam participar, alguns deles falaram das patologias da educação formal. “Temos uma relação muito negativa com a aprendizagem”, disse um deles. “Devia ser divertido, não assustador” - ou seja, sentimos que é suposto sabermos a resposta, o que, como estudante, não faz sentido. “O estudo ou a atenção”, disse outro, “foi alojado numa instituição que tem os seus próprios incentivos”, como a classificação por “mérito”. “Precisamos de oportunidades de leitura e exploração que estejam fora do sistema de credenciais da universidade moderna”, continuou, porque há tanta coisa nesta última que vai contra “a forma lenta como esse tipo de aprendizagem se desenvolve”. 

Um terceiro, um autodidata dedicado que abandonou uma instituição de prestígio, utilizou a noção de “gradiente de intimidade” do teórico da arquitetura Christopher Alexander para descrever a sua vontade de entrar em contacto mais profundo com o material do que os cursos universitários normalmente permitem. “Para as questões importantes da vida”, escreveu ele, “como a forma como se pode escolher viver, as respostas devem ser encontradas movendo-se ao longo do gradiente, e não deambulando pela periferia.”

“Como se pode escolher viver”. Para muitos dos nossos candidatos - e é disto que trata o programa, é disto que tratam as humanidades - a aprendizagem tem, ou deveria ter, um peso existencial. Por detrás da sua conversa sobre educação, sobre desligar-se da tecnologia, sobre ter tempo para a criatividade e a solidão, detectei um desejo de se libertarem de forças e agendas: a agenda da universidade sobre “relevância”, a agenda do professorado sobre mobilização política, a agenda do mercado sobre produtividade, a agenda da Internet sobre vigilância e dependência. 

Em suma, toda o forro ideológico algorítmico capitalista da homogeneidade coagida. O desejo é não ser recrutado, não ser instrumentalizado, permanecer (ou tornar-se) um indivíduo, resistir à regressão para a média.

É por isso que é crucial que o Centro Matthew Strother não tenha qualquer objetivo - e isto é verdade para o Projeto Catherine e para outros programas de humanidades fora do campus - para além da procura da aprendizagem em seu próprio benefício. 

Ou seja, para o bem dos alunos, independentemente do que estes queiram fazer com ela, de quem quer que ela os torne. Isto é liberdade. Quando a educação não é orientada em direcções específicas, as suas possibilidades são infinitas. 

Depois da faculdade, Matthew desapareceu na Europa. Não tive notícias dele durante cinco anos. Finalmente, recebi uma carta - com cerca de trinta páginas, a mais longa que alguma vez recebi. Era um diário espiritual que também era um registo de leitura. Fazia referência a Joyce, Hesse, Bellow, Camus, Lawrence, Larkin, Miller, Maugham, Hemingway, Chesterton, Salinger, Durell, Ozick, Blake, Gorky, Chekhov, Geoff Dyer, Paul Goodman, Roberto Calasso, David Shields, Gregoire Bouillier e George WS Trow. No final, escreveu o seguinte: “O rio recto da minha narrativa abriu-se para os largos deltas do presente, e olhando para o mar não há para onde ir senão para qualquer lado.” Exatamente.

William Deresiewicz deep-reading-will-save-your-soul

May 20, 2024

Leituras pela madrugada - “Nothing feels safe, and I feel there are no grown-ups left in the world”

 


Há mais do que um tipo de ansiedade. Eis algumas dicas para lidar com ela.

Este estado de alerta e de pensamento rígido pode dominar as nossas vidas, tornando difícil sentirmo-nos tranquilos e mantendo-nos num estado de preocupação constante.

A ansiedade pode ser avassaladora e consumir tudo. Um doente com ansiedade grave disse-me: “Nada me parece seguro e sinto que já não há adultos no mundo.”

Outra doente sentia-se terrivelmente ansiosa sempre que pensava que alguém tinha dito algo crítico sobre ela. Comparava-o a alguém que lhe “envenenava” a mente, pois repetia as palavras vezes sem conta, tornando impossível fazer ou pensar noutra coisa. Isto levava-a a isolar-se e a faltar ao trabalho até a sua mente se acalmar.

Se certas pistas desencadearem uma cascata de preocupações e stress, podemos fixar-nos nelas e ampliar o seu significado, mantendo a nossa mente e o nosso corpo em excesso. Isto pode dificultar a nossa capacidade de refletir sobre as situações. Os nossos pensamentos podem ser orientados pelas emoções, negativos, repetitivos e difíceis de mudar (o que se designa por “cognição perseverante”).

Neurobiologicamente, durante a ansiedade, o “cérebro emocional” (incluindo áreas como a amígdala, que determina a qualidade e a força das nossas reacções emocionais) é sobreactivado, sobrepondo-se ao “cérebro pensante” (que inclui áreas do córtex pré-frontal ou PFC, responsáveis por limitar a atividade da amígdala).

À medida que a ansiedade aumenta, temos menos acesso às áreas corticais pré-frontais que permitiriam um pensamento flexível. Nesses casos, a amígdala assume o controlo, estimulando outras áreas a libertar hormonas do stress, como o cortisol e a noradrenalina, preparando o corpo e a mente para a ameaça percebida.

Este estado de alerta e de pensamento rígido pode dominar as nossas vidas, tornando difícil sentirmo-nos tranquilos e mantendo-nos num estado de preocupação constante.

A ansiedade também pode perturbar o sono, uma vez que é difícil livrarmo-nos desses pensamentos perturbadores durante a noite. Quando o sono é limitado ou fragmentado, o cérebro pode dar prioridade à consolidação de experiências negativas e de memórias de medo durante o sono. Isto pode reforçar as perspectivas pessimistas.

Muitos doentes referem que a sua ansiedade atinge o pico ao acordar, sentindo medo do dia que se segue.
Há muitas formas de a ansiedade se manifestar e, muitas vezes, as experiências das pessoas não se enquadram numa determinada categoria. Eis algumas formas comuns de sentir ansiedade.

1. Ansiedade social
Na ansiedade social, podemos estar preocupados com o facto de sermos julgados, imaginando que os outros nos estão a escrutinar. Estas crenças podem ser alimentadas por uma “tendência para a negatividade”, que impede o reconhecimento das verdadeiras intenções e mentalidades das pessoas, reforçando crenças distorcidas.
Como resultado, podemos comportar-nos de forma a limitar a nossa exposição aos outros, minimizando as interacções sociais e as situações que poderiam chamar demasiado a atenção para nós. Quando o medo da vergonha ou do embaraço é grande, podemos chegar a extremos para evitar qualquer compromisso social. Vários doentes que lutam contra a ansiedade social partilharam o seu alívio por terem a oportunidade de trabalhar à distância.

2. Ansiedade generalizada
Na ansiedade generalizada, podem existir várias situações recorrentes ou factores de stress que provocam constantemente ansiedade (como obrigações profissionais e domésticas, prazos e contas), levando a um estado de preocupação persistente. A ansiedade generalizada é também marcada por sintomas relacionados com o corpo, como a tensão muscular, a fadiga e a inquietação.

Enquanto outras formas de ansiedade são frequentemente atribuídas a factores de stress específicos, a ansiedade generalizada pode ser mais difusa, com um sentimento contínuo de mal-estar que pode não estar ligado diretamente a qualquer coisa. Os doentes que sofrem de ansiedade generalizada referem frequentemente que “tudo, qualquer coisa” é motivo de preocupação, o que torna difícil encontrar estratégias de controlo satisfatórias.

3. Ataques de pânico
Uma das formas mais angustiantes de ansiedade é o ataque de pânico, marcado por uma onda de medo ou desconforto intenso que pode atingir o pico em poucos minutos, bem como por fortes efeitos no corpo e na mente - por exemplo, o medo de morrer ou de perder o controlo, dores no peito e abdominais, tremores, respiração acelerada, batimentos cardíacos acelerados, suores e sensação de vertigens.
O pânico é tão avassalador que a ativação do cérebro pode entrar em “modo de sobrevivência”, estimulando áreas como a cinzenta periaquedutal, que conduz a respostas comportamentais ao longo do espetro luta-fuga-congelamento, como a paralisia ou o congelamento, ou estratégias de fuga.

Alguns ataques de pânico estão relacionados com situações ou circunstâncias; no entanto, se uma pessoa já teve um ataque de pânico anteriormente, pode haver uma preocupação significativa com a possibilidade de ter outro, dado o seu carácter angustiante. A pessoa pode ter um ataque de pânico motivado pela preocupação de ter um ataque de pânico no futuro.

4. Fobias
A ideia de nos envolvermos com objectos ou ambientes que nos causam medo ou preocupação pode levar a escolhas de vida que são ditadas por estratégias de “reforço negativo” (comportamentos destinados a remover ou evitar sentimentos desagradáveis).

Por exemplo, uma pessoa com fobia a agulhas ou a ver sangue pode recusar-se a procurar cuidados médicos, dada a possibilidade de ter de fazer análises laboratoriais. Ou, alguém com medo de estradas movimentadas pode recusar um emprego promissor porque a deslocação para o trabalho exigiria conduzir na autoestrada. Estes comportamentos podem limitar a ansiedade, mas podem ter consequências significativas.

Estratégias úteis para lidar com a ansiedade
Quando a ansiedade toma conta de si, experimente estes métodos:


Dê um tempo a si mesmo: Não há forma de controlar totalmente as nossas reacções ao ambiente que nos rodeia. Todos nós temos limitações e reacções individuais às situações. Respeitar a forma como a nossa mente funciona, em vez de tentar mudá-la a todo o custo, pode ajudar-nos a cultivar a auto-aceitação.

Aproxime-se, na medida do possível: À medida que a auto-aceitação cresce, podemos encontrar formas pequenas e sustentáveis de “convidar” a ansiedade e de nos sentarmos com ela, em vez de a evitarmos ou de nos livrarmos dela. A criação de uma “hierarquia de exposição” pode ajudar a mapear o padrão das nossas reacções ansiosas e a encontrar formas aceitáveis de nos envolvermos com sinais angustiantes. Por exemplo, uma pessoa com medo de elevadores pode ter uma lista onde, “estar à porta de um edifício com elevador” está em primeiro lugar e “entrar num elevador cheio” está em último, com vários passos intermédios.

Encontrar um espaço intermédio: É difícil redirecionar o pensamento motivado pela ansiedade, mantendo-nos presos em ciclos de pensamento imutáveis. Encontrar formas de ver os pensamentos apenas como isso (“pensamentos”) em vez de realidade absoluta pode criar distância da nossa mentalidade perturbadora. 

Podemos anotar os nossos “registos de pensamentos automáticos” - respostas a factores de stress (incluindo cognições motivadas pela ansiedade) - e formas alternativas de pensar sobre a situação (por exemplo, o que diríamos a um amigo que estivesse a ter ansiedade e pensamentos negativos em circunstâncias semelhantes). Essa perspetiva pode servir como uma “bússola interior” a que podemos aceder quando estamos ansiosos, ajudando a reenquadrar cognições rígidas em circunstâncias difíceis.

Christopher W.T. Miller, MD, é um psiquiatra e psicanalista in washingtonpost.com/anxiety-stress

March 08, 2024

Leituras pela madrugada - "A história está hoje mais ou menos no mesmo ponto em que a astronomia estava "quando Galileu olhou pela primeira vez para cima com o seu telescópio".




Tempestades solares, núcleos de gelo e dentes de freiras: a nova ciência da História

by Jacob Mikanowski

Os citas faziam coisas terríveis. Há dois mil e quinhentos anos, estes nómadas guerreiros, que viviam nas pastagens do que é hoje o sul da Ucrânia, gozavam de uma reputação verdadeiramente feroz. De acordo com o historiador grego Heródoto, os citas bebiam o sangue dos seus inimigos caídos, levavam as suas cabeças para o seu rei e faziam bugigangas com os seus escalpes. Por vezes, colocavam peles humanas inteiras sobre os seus cavalos e usavam pedaços mais pequenos de couro humano para fazer as aljavas que continham as flechas mortíferas pelas quais eram famosos.

Os leitores duvidaram durante muito tempo da veracidade desta história, tal como fizeram com muitos dos contos mais estranhos de Heródoto, recolhidos em todos os cantos do mundo antigo. (Não é por acaso que o "pai da história" também era conhecido como o "pai das mentiras" na antiguidade). 

Recentemente, porém, surgiram provas que confirmam a sua versão. Em 2023, uma equipa de cientistas da Universidade de Copenhaga, liderada por Luise Ørsted Brandt, testou a composição de artigos de couro, incluindo várias aljavas, recuperados de túmulos citas na Ucrânia. Utilizando uma forma de espetrometria de massa, que lhes permite ler o "código de barras molecular" das amostras biológicas, a equipa descobriu que, embora a maior parte do couro cita fosse proveniente de ovelhas, cabras, vacas e cavalos, duas das aljavas continham pedaços de pele humana. "Os textos de Heródoto são por vezes postos em causa pelo seu conteúdo histórico e algumas das coisas que ele escreve parecem ser um pouco mitológicas, mas neste caso pudemos provar que ele tinha razão", disse-me recentemente Brandt.

Portanto, um ponto para Heródoto. Mas o trabalho de detetive de alta tecnologia dos investigadores de Copenhaga também aponta para outra coisa sobre o futuro da História como disciplina. Nas suas técnicas fundamentais, a escrita de história não mudou muito desde os tempos clássicos. Como historiador, pode fazer o que Heródoto fez - viajar por todo o lado, falar com pessoas interessantes e recolher as suas recordações de acontecimentos (embora hoje em dia chamemos a isto jornalismo). Ou pode fazer o que a maior parte dos historiadores que se seguiram a Heródoto fizeram, ou seja, compilar documentos escritos no passado e sobre o passado e depois tentar fazer coincidir os seus diferentes relatos e interpretações. Foi certamente assim que fui formado na escola de pós-graduação nos anos 2000. Líamos textos primários escritos nos períodos que estudávamos e obras de historiadores posteriores, e depois tentávamos encaixar um argumento baseado nesses documentos numa conversa conduzida por esses historiadores.

Mas e se houvesse outra forma? E se, em vez de escavar nos arquivos e criticar argumentos, fosse possível escrever a história diretamente a partir dos restos físicos do passado, reconstruindo os acontecimentos com o detalhe forense de um investigador de cenas de crime? Esta seria uma história escrita não a partir de palavras, mas de coisas. 

A arqueologia, a história da arte e outras disciplinas que se baseiam no estudo minucioso da cultura material há muito que oferecem esta promessa. Mas, tradicionalmente, tem havido uma linha divisória entre o que estas disciplinas podem oferecer e o que muitos historiadores consideram ser a sua verdadeira tarefa. Estes domínios tendiam a mover-se em escalas diferentes e a prestar atenção a assuntos diferentes. 

Os historiadores, ao examinarem documentos de arquivo, anais escritos e inscrições, concentravam-se mais em indivíduos nomeados em momentos específicos. Os arqueólogos e os seus irmãos, examinando a evolução dos estilos arquitectónicos, os enterramentos, os fragmentos de cerâmica, etc., reuniam muitas informações, mas a uma escala mais vasta. Em alguns pontos, como o estudo das moedas e dos selos, os dois métodos sobrepõem-se. Mas, de um modo geral, estas duas abordagens do passado - baseadas em textos e em coisas - foram atribuídas a domínios diferentes. Recentemente, porém, esta divisão tornou-se mais ténue.

Na última década, a capacidade dos cientistas para extrair informações de vestígios materiais aumentou exponencialmente. Nalguns casos, como o estudo de climas antigos, foram utilizadas técnicas antigas com novo alcance e precisão. Noutros, procedimentos como a sequenciação do ADN do genoma completo - outrora dispendiosos e propensos a erros quando aplicados a amostras antigas - tornaram-se fiáveis e omnipresentes. Dispomos também de novos métodos de datação, imagiologia e análise química, que permitiram que os detritos da antiguidade - tudo, desde dentes a sapatos e ao próprio lixo antigo - falassem do passado de forma tão eloquente como qualquer arquivo.

Hoje em dia, os historiadores não se limitam a ler os manuscritos; testam as próprias páginas para localizar os genes dos rebanhos de vacas e ovelhas cujas peles foram utilizadas para fazer o pergaminho. Vestígios minúsculos de proteínas encontrados em escavações arqueológicas podem agora ser usados para identificar com precisão restos de matéria orgânica em decomposição - peles de castor numa sepultura viking, para dar um exemplo - e levá-los ao seu ponto de origem. O estudo das proteínas antigas é agora um domínio próprio, denominado paleoproteómica. 

Outras técnicas forenses abriram outras páginas perdidas do passado. A análise de isótopos estáveis preservados em ossos humanos e dentes de animais permitiu aos cientistas seguir o rasto da deslocação de uma única rapariga da Alemanha para a Dinamarca na idade do bronze, localizar a importação de babuínos para o antigo Egipto a partir do corno de África e seguir um mamute lanoso do Indiana nas suas migrações anuais através do centro-oeste há 13 000 anos. A sequenciação de ADN antigo retirado de peças de xadrez medievais em marfim permitiu traçar as suas origens até às savanas africanas. Ossos de galinha antigos foram usados para traçar a expansão dos povos polinésios pelo Pacífico.

Estes desenvolvimentos não foram universalmente celebrados. Os académicos humanistas tendem a ver os acontecimentos passados em termos humanos, com os grandes motores da história a provirem de mudanças na cultura e na sociedade. Os cientistas naturais tendem a centrar-se nas flutuações do mundo natural, atribuindo frequentemente a queda de impérios e reinos a factores como secas prolongadas e surtos de peste. Alguns historiadores, como os bizantinistas Merle Eisenberg e John Haldon, advertem contra "suposições exageradas" no que respeita à relação entre sociedade e ambiente e alertam para "afirmações exageradas" sobre o impacto do clima e das doenças na civilização.

Outros historiadores estão entusiasmados com as possibilidades que a nova ciência oferece. Para Michael McCormick, medievalista de Harvard e titular da cátedra de Ciência do Passado Humano da Universidade, o efeito cumulativo destas várias inovações foi uma "revolução científica", que ainda está a dar os primeiros passos. Falando com um entusiasmo audível a partir da sua casa em Cambridge, Massachusetts, McCormick disse-me que a história está hoje mais ou menos no mesmo ponto em que a astronomia estava "quando Galileu olhou pela primeira vez para cima com o seu telescópio".

Nos anos 70, enquanto estudante na Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica, McCormick aprendeu todas as competências então exigidas a um historiador medieval: "filologia grega e latina, história linguística, latim vulgar, grego tardio, grego clássico e paleografia". Atualmente, considera, este tipo de formação deve ser complementado com uma atenção comparável às provas materiais. "Quando se tem nas mãos peças físicas do passado, é possível aplicar todo o conjunto de ferramentas da revolução científica", afirma. "Se tivermos couro, podemos ver o que a vaca bebeu. Se tivermos madeira, podemos ver em que floresta cresceu. Com os dados moleculares, estamos a abrir esta gigantesca casa do tesouro da história humana, que remonta à nossa migração de África."

Muitos partilham o entusiasmo de McCormick. Uma vaga de dinheiro e de subsídios tem sido canalizada para os esforços de aplicação de métodos laboratoriais ao estudo do passado. Institutos, iniciativas e centros de excelência dedicados ao tema têm surgido por todo o lado, de Oslo a Pequim - e com eles soluções para questões que os historiadores nunca souberam colocar, quanto mais responder.

A nova ciência da história é particularmente esclarecedora quando aplicada a épocas em que a documentação escrita é escassa. Muito do que sabemos sobre a vida naquilo a que os estudiosos chamam o período medieval inicial, por exemplo - o período outrora amplamente conhecido como a idade das trevas - provém das crónicas monásticas e das vidas dos santos. Estas fontes fornecem muita informação sobre a observância religiosa, mas têm muito menos a dizer sobre a origem dos reinos, por exemplo, ou sobre o crescimento do comércio.

Na última década, a ciência conseguiu preencher alguns dos espaços em branco. Após a queda do Império Romano do Ocidente, a economia europeia entrou em parafuso. Não havia nenhum índice económico que permitisse acompanhar o alcance ou o momento da queda, mas os historiadores conseguiram recuperar uma visão panorâmica do que se estava a passar, observando as provas preservadas no gelo. Os núcleos de gelo retirados dos glaciares suíços e gronelandeses preservam um registo cronológico da composição da atmosfera, acumulada ano após ano. Os níveis de chumbo nestes núcleos estão correlacionados com a quantidade de prata que estava a ser extraída num determinado momento. Quando os cientistas atmosféricos mediram a quantidade desta antiga poluição por chumbo em secções do núcleo de gelo que datam do primeiro milénio d.C., descobriram que a produção de prata caiu no século III - mais cedo do que se esperava e muito antes do fim do poder romano - e só voltou a aumentar 400 anos depois, quando os merovíngios reabriram grandes minas de prata em França.

A nível microeconómico, as provas arqueológicas, analisadas de novas formas, mostram como as redes de comércio começaram a ressurgir em todo o continente, após o seu apogeu nos séculos VI e VII. Utilizando o ADN, um laboratório determinou que os crânios de animais desenterrados numa povoação medieval por baixo da atual Kyiv pertenciam a morsas mortas nas águas entre o Canadá e a Gronelândia, de onde foram transportados 3.000 quilómetros para serem utilizados no fabrico de jóias e peças de xadrez. A análise química de contas encontradas em empórios vikings mostrou que o vidro nelas contido tinha sido raspado de mosaicos romanos, a centenas de quilómetros do seu local de repouso final na Escandinávia.

Pérola a pérola, dente a dente, esta investigação revela uma imagem das ligações que unem o Norte e o Sul, o Leste e o Oeste. Mas será que isto é realmente algo de novo? Os arqueólogos têm tido séculos de prática a adaptar as provas físicas às narrativas históricas. No entanto, sempre houve um desfasamento entre as duas fontes de informação. Os materiais descobertos pelos escavadores fornecem dados abundantes sobre a vida das pessoas comuns, mas não oferecem uma cronologia exacta. Em contrapartida, as fontes textuais utilizadas pelos historiadores tendem a ser firmes quanto às datas, mas vagas quanto às especificidades da vida quotidiana.

Um novo método de estudo dos climas antigos está a permitir aos cientistas colmatar esta lacuna. Atualmente, os paleoclimatologistas podem basear-se em dados obtidos a partir de milhares de árvores antigas e amostras de glaciares para determinar as condições num determinado ponto do globo, num determinado ano. Atualmente, é possível fazer perguntas muito específicas sobre as alterações climáticas que se escondem por detrás de grandes acontecimentos históricos. Por exemplo, como estava o tempo quando os hunos marcharam sobre o império romano? (Extraordinariamente seco, especialmente no verão - exatamente o que levava os pastores a procurar pastos mais verdes). Ou como estava o tempo na Mongólia quando Genghis Khan reunia as suas forças? (Quente e húmido, perfeito para alimentar um exército e as suas dezenas de milhares de cavalos).

Juntamente com o clima, as pandemias constituem outro dos grandes agentes forçadores da história. Nos últimos anos, registaram-se enormes progressos na identificação das fontes e das vias de transmissão das pragas antigas. O mérito é, em grande parte, do estudo dos genes microbianos e virais antigos, que permite aos cientistas identificar com precisão os contágios antigos. A sequenciação dos genomas tornou-se mais rápida e mais barata. Ao mesmo tempo, os cientistas tornaram-se mais capazes de encontrar ADN em restos de esqueletos, por exemplo, ao focarem-se nos ossos do ouvido interno, que contêm uma inesperada bonança de genes antigos. 

Atualmente, mais de 10.000 genomas antigos foram sequenciados e milhares de outros estão a caminho. Esta torrente de novos dados tornou possível seguir a migração ao longo dos milénios. Os antropólogos podem agora traçar a difusão dos primeiros seres humanos a partir de África e os pré-historiadores podem observar o aparecimento de nómadas a cavalo no final da Idade da Pedra e no início da Idade do Bronze.

As doenças deslocaram-se a par das pessoas, mas as rotas exactas pelas quais se espalharam entre os continentes foram durante muito tempo pouco claras. Agora, porém, juntamente com os genes humanos, os paleogenéticos conseguiram sequenciar o código genético das doenças que afectavam as pessoas na altura da sua morte. Isto significa que podem não só diagnosticar doenças antigas, mas também observar a forma como se propagam e sofrem mutações ao longo do tempo.

Ao fazê-lo, a paleogenética ajudou a desvendar uma das grandes catástrofes - e mistérios - de toda a História.

No ano de 536, o mundo começou a ficar desorientado. Primeiro, o sol escureceu no céu. Mesmo ao meio-dia, em pleno verão, permanecia pálido e frio, parecendo-se mais com a lua. O trigo apodrecia nos campos e as uvas estragavam-se na vinha. O inverno desse ano foi terrivelmente frio, tal como os que se seguiram. Cinco anos mais tarde, registou-se uma calamidade ainda pior. Em 541, começaram a chegar às costas do Mediterrâneo notícias de uma terrível doença. Dizia-se que tinha chegado ao Egipto vinda de um lugar distante, talvez da Etiópia ou da Índia. Os viajantes na Palestina relataram ter passado por aldeias abandonadas onde a doença tinha matado todos os que não tinham fugido.

Em 542, o contágio atingiu Constantinopla, a capital do Império Romano do Oriente (também conhecido como Império Bizantino) e uma das cidades mais populosas do mundo. No seu auge, os contemporâneos calculavam que a peste matava 10.000 pessoas por dia. Todo o tipo de trabalho cessou. A fome grassava. Até o imperador, o grande Justiniano, que tinha codificado as leis e construído a grande igreja de Hagia Sophia, adoeceu.

Ao fazê-lo, a paleogenética ajudou a desvendar uma das grandes catástrofes - e mistérios - de toda a História.

Os historiadores têm tido dificuldade em perceber exatamente o que aconteceu e porquê. As poucas crónicas que temos da época da peste - conhecida como a peste justiniana, em homenagem ao imperador - fornecem apenas uma visão panorâmica dos acontecimentos: uma vista da capital, o relato de um viajante da Palestina e pouco mais. Sem qualquer noção de bactérias ou vírus, os que viveram a peste não puderam determinar a sua causa biológica. O estranho período de frio que precedeu a peste foi igualmente misterioso. Seria o arrefecimento algo local ou um acontecimento global? E, para começar, o que é que poderia fazer com que o sol escurecesse de tal forma?

Os efeitos desta estranha dupla catástrofe são também objeto de controvérsia. Até há pouco tempo, para muitos especialistas, não pareciam ser determinantes. Atualmente, os historiadores descrevem por vezes 536 como o "pior ano da história da humanidade", e a década de sofrimento que se seguiu como um dos principais pontos de viragem na história mundial. Para Mischa Meier, professor de história na Universidade de Tübingen, na Alemanha, e especialista em história de Bizâncio, o ano de 536 marcou uma grande "cesura entre épocas", que "desempenhou um papel fundamental na transição da Antiguidade tardia para o início da Idade Média".

O Império Bizantino não caiu em consequência da peste, mas mudou. Tornou-se um lugar mais medroso e mais inclinado a depositar a sua confiança na religião do que na sabedoria dos antigos. Em vez de Afrodite e Cícero, o seu povo começou a idolatrar a Virgem Maria. As procissões religiosas tomaram o lugar das corridas de bigas. Os imperadores governavam menos como césares do que como pregadores de fogo e enxofre, prometendo aos seus súbditos a salvação face a um apocalipse ameaçador. De certa forma, o mundo antigo terminou aqui, não com um cerco, mas com um espirro.

Esta tese sobre a natureza transformadora da peste e da catástrofe que a acompanhou é bastante recente e continua a ser controversa. A história de como as catástrofes da década de 540 passaram de um contratempo historiográfico a um dos grandes pontos de inflexão da história envolve uma geração de trabalho de detetive científico multidisciplinar e demonstra o poder das novas ferramentas à nossa disposição para desvendar o passado.

Há muito que os historiadores suspeitavam que a peste de Justiniano era causada pela Yersinia pestis, ou seja, a bactéria responsável pela peste bubónica. Mas, sem provas genéticas, não havia forma de ter a certeza. Então, em 2014, os paleogeneticistas identificaram finalmente a primeira assinatura clara da peste bubónica datada do século VI. A assinatura veio de uma fonte inesperada - o sul da Alemanha, longe das cidades movimentadas do Mediterrâneo, que se supunha ser o lar natural da peste. Desde então, foi identificada em restos mortais do século VI em França, Espanha e Reino Unido. A análise de corpos enterrados num cemitério medieval na zona rural de Cambridgeshire revelou que 40% das pessoas aí enterradas tinham morrido com a peste bubónica. Cumulativamente, estas descobertas sugerem que a peste justiniana estava muito mais disseminada do que as fontes escritas indicavam, ultrapassando as fronteiras remanescentes do império romano para afligir regiões bárbaras como a Baviera e Cambridge. A baixa variação entre as amostras do século VI indica que a peste deve ter-se espalhado por toda a Europa à velocidade da luz.

A identificação do culpado por detrás da outra metade do desastre de 536 - o estranho clima que começou nesse ano - exigiu um conjunto diferente de ferramentas científicas. Os anéis das árvores forneceram a primeira peça do puzzle. Utilizando informações obtidas de árvores dos Alpes austríacos e das montanhas Altai, Ulf Büntgen, professor de análise de sistemas ambientais em Cambridge, e os seus co-autores conseguiram demonstrar que 536 foi realmente um ano excecional, "o verão mais frio do hemisfério norte nos últimos 2000 anos". A década que se seguiu a 536 foi igualmente a década mais fria dos últimos 2000 anos.

Mas o que é que causou esta súbita e chocante vaga de frio? Para o descobrir, os cientistas tiveram de espreitar para dentro dos glaciares do Ártico. Quando os paleoclimatologistas examinaram núcleos de gelo que datam do século VI, notaram uma concentração invulgarmente elevada de sulfatos nos anos que se seguiram ao início da pequena idade do gelo da antiguidade tardia. No passado pré-industrial, o enxofre na atmosfera tinha uma fonte principal: os vulcões. 

As gigantescas erupções vulcânicas bombeiam enormes quantidades de gás para a atmosfera superior, onde podem despoletar episódios de arrefecimento global ao devolverem a energia solar ao espaço. Os dados do núcleo de gelo sugeriram aos cientistas do clima que uma série de enormes erupções vulcânicas deve ter deprimido as temperaturas globais algures em meados do século VI. Mas havia um problema: as datas não coincidiam. Os núcleos de gelo indicavam que a primeira erupção tinha ocorrido em 543. Como é que o arrefecimento global poderia ter começado sete anos antes da erupção que o causou? A solução para este enigma veio de uma fonte improvável.

Em 2012, uma astrofísica japonesa chamada Fusa Miyake estava a estudar a forma como o comportamento do Sol se alterou ao longo do tempo. Para o efeito, mediu as concentrações de carbono-14 - também conhecido como radiocarbono - encontradas em anéis individuais de cedros antigos das florestas luxuriantes e cobertas de musgo da ilha de Yakushima. Miyake descobriu que a quantidade de radiocarbono aumentava em certos anos, provavelmente em resultado das enormes tempestades solares que atingiram a Terra nesses anos. Qualquer material orgânico vivo na altura de uma destas tempestades tem uma assinatura química reveladora. Estes picos de carbono-14 - agora conhecidos como eventos Miyake - permitem associar objectos de sítios arqueológicos a anos específicos. Entre outras coisas, os eventos Miayke foram utilizados para estabelecer que os Vikings chegaram à Terra Nova em 1021, duas décadas mais tarde do que os historiadores pensavam anteriormente.

Ao procurar picos de radiocarbono em núcleos de gelo retirados das profundezas dos glaciares da Gronelândia e da Antárctida, os cientistas conseguiram resolver o mistério do intervalo de sete anos. Tornou-se claro que tinha havido erros de cálculo nos dados anteriores dos núcleos de gelo, o que deitou por terra a cronologia. Os novos dados de Miyake corrigiram o erro e o intervalo de sete anos desapareceu: houve de facto uma erupção em 536, que causou a estranha nuvem que tapou o sol nesse ano. E duas erupções subsequentes, em 540 e 547, contribuíram ainda mais para o arrefecimento extremo que caracterizou toda a década.

Com estas novas datas, os investigadores puderam reunir os dados dos genes, anéis de árvores e núcleos de gelo numa única narrativa coerente sobre o que aconteceu após 536. Era um quadro de pesadelo: anos de verões sem sol e invernos gelados, coroados por um surto da doença talvez mais mortal da história da humanidade. Há dados arqueológicos que apoiam esta imagem de um mundo apanhado em pleno colapso. As escavações efectuadas na Escandinávia mostraram que os meados do século VI foram um período de extrema pobreza e violência. Foi um momento, nas palavras do arqueólogo dinamarquês Frands Herschend, em que toda a região "se afundou no inferno". Não admira que os bizantinos pensassem que o mundo estava prestes a acabar.

Mas, por outro lado, não acabou. O império bizantino não caiu em 541. Resistiu aos choques de uma epidemia mortal sem precedentes e de um fenómeno climático vulcânico extremo simultâneo sem entrar em colapso. Este facto levou alguns historiadores a duvidar que o acontecimento marcasse algo como o "fim do mundo antigo". Para Lee Mordechai e Merle Eisenberg, historiadores da Universidade Hebraica e da Universidade do Estado de Oklahoma, respetivamente, a peste justiniana não passou de uma "pandemia inconsequente". Segundo eles, há poucas provas de que a peste tenha provocado a queda de impérios ou o colapso de Estados.

Falando comigo por telefone, a partir de Oklahoma, Eisenberg comparou a história da crise do século VI a um "mistério de homicídio sem corpo". Há um assassino, há um modus operandi, mas a vítima não morre. De facto, como salientou Eisenberg, depois da peste, Bizâncio esteve "bem" durante mais "80 anos", até que as conquistas árabes devastaram o império e o privaram de grande parte do seu território, três gerações mais tarde. "Como é que se pode relacionar de forma plausível algo que acontece na década de 540 com a década de 630? pergunta Eisenberg. "É como dizer que a recessão de 2008 foi causada pela gripe de 1918".

Esta tensão, entre as descobertas científicas, por um lado, e as narrativas históricas, por outro, é uma caraterística recorrente da nova era da história interdisciplinar e laboratorial. Na história, a causalidade raramente é tão simples como um resultado de laboratório. Os acontecimentos ocorrem no interior de uma teia de instituições e ideias humanas. Só ganham significado na medida em que as pessoas lhes atribuem significado. Para gerações de historiadores, incluindo eu próprio, isto significa que qualquer tentativa de compreender uma mudança no passado exige que se mergulhe nos pormenores da cultura, religião, economia e organização política.

Mas quando os cientistas interpretam os acontecimentos, tendem a dar mais importância ao clima do que à cultura e às pandemias do que à política. Só a seca foi responsabilizada pelo colapso dos maias clássicos, dos hititas e dos acádios, de Angkor no Camboja, de Tiwanaku no Peru e dos ancestrais Puebloans do sudeste americano. Entretanto, as erupções vulcânicas foram consideradas responsáveis pela queda de várias outras civilizações, para além do colapso do Império Bizantino.

Os críticos salientam que, nos períodos da história para os quais dispomos de documentação mais detalhada, o colapso súbito em resposta ao stress ecológico é bastante raro. Nicola Di Cosmo, especialista em China e Ásia Central no Instituto de Estudos Avançados de Princeton, observa que "não existe um modelo ou paradigma único" para a forma como as sociedades reagem às catástrofes climáticas. Os impérios nómadas que estuda, eram particularmente vulneráveis às alterações climáticas sazonais, pois dependiam de manadas de animais que podiam ser facilmente dizimadas por "secas prolongadas e catástrofes invernais"

Mas mesmo vivendo tão perto do limite ambiental, os Estados podiam mostrar-se resistentes perante a calamidade. Pouco depois de o império turco oriental ter sido atingido por uma série de invernos extremamente frios no final da década de 620, sofreu uma série de derrotas militares e acabou por ser desmantelado pela China Tang, sua vizinha a sul. Um século e meio mais tarde, o império uigur, que ocupava aproximadamente a mesma área que os turcos orientais, enfrentou o que deveria ter sido uma seca devastadora de várias décadas. Mas, em vez de implodir, prosperou, em grande parte graças ao estabelecimento de uma aliança militar e à manutenção de valiosos laços comerciais com a mesma dinastia Tang.

Em cada um destes casos, as condições de sobrevivência ou de colapso foram moldadas por decisões políticas e económicas, mais do que pelos factos brutos do clima. Mas as mudanças na política externa e a direção do comércio internacional não aparecem nos anéis das árvores. O trabalho histórico baseado em genes antigos enfrenta um problema paralelo. Gera enormes quantidades de informação, mas esta vem desprovida do tipo de contexto rico que só os métodos humanísticos mais tradicionais podem fornecer

Nem toda a investigação científica recente sobre o passado se centrou em conquistas e catástrofes. Para Michael McCormick, o verdadeiro impacto da nova "história molecular" é a sua capacidade de "abrir janelas para a vida de pessoas sem voz". As mulheres, as pessoas com deficiência e os escravizados estão todos presentes nas fontes escritas, mas normalmente apenas em "números minúsculos" e vistos através dos olhos de outros. No entanto, nos cemitérios, todas estas pessoas estão presentes, e em grande número.

Em 2014, cientistas examinaram o cálculo dentário - essencialmente, a placa antiga - nos dentes de uma freira falecida cujo corpo tinha sido escavado num cemitério medieval no centro da Alemanha. O cálculo dentário revelou pequenas manchas de lápis-lazúli, que nessa altura era tão caro como o ouro. A sua principal utilização era como pigmento: o lápis-lazúli era o ingrediente crucial do ultramarino, o azul mais vivo e belo que existia no mundo medieval.

Porque é que esta freira anónima, que morreu por volta do ano 1100, tinha pedaços desta substância rara e preciosa nos dentes, entre todos os lugares? O melhor palpite dos arqueólogos é que foram parar lá como resultado do seu trabalho de pintar manuscritos iluminados, quer preparando o pigmento, quer como resultado de lamber um pincel (talvez para lhe dar uma ponta mais fina) enquanto pintava as páginas dos manuscritos.

Pouco se sabe em pormenor sobre o papel das mulheres na criação de manuscritos iluminados. Embora estes manuscritos se encontrem entre as maiores obras-primas artísticas da Idade Média, poucos foram assinados. Dos manuscritos deste período, apenas cerca de 1% pode ser atribuído de forma segura a mulheres. Mas, como mostram os dentes desta freira, o silêncio das fontes escritas não deve ser tomado como prova da ausência de mulheres.

É muito provável que nunca venhamos a saber o nome desta freira alemã. Há limites para o que qualquer artefacto ou vestígio corporal nos pode dizer na ausência de fontes escritas. No entanto, esses limites estão a ser alargados a todo o momento. Novas técnicas de análise de isótopos, baseadas no exame minucioso dos elementos químicos no interior dos dentes e fragmentos de ossos humanos, estão a permitir aos cientistas seguir os movimentos das pessoas não só ao longo das gerações, mas também ao longo de uma única vida. 
Combinadas com a análise do ADN, estas técnicas produziram um fluxo de histórias íntimas (ainda que fragmentárias) do passado profundo: um rapaz africano que cresceu nas margens do Mar Vermelho e morreu jovem na Sérvia romana; uma rapariga da idade do bronze nascida no sul da Alemanha e enviada para norte (para casar? Para morrer? ) na Dinamarca; um jovem sármata - um dos herdeiros dos citas de Heródoto - criado à sombra das montanhas do Cáucaso, que foi para o Ocidente no tempo do imperador Marco Aurélio, ainda criança, e morreu na Grã-Bretanha, sepultado numa campa sem identificação numa vala à beira de uma quinta no que é hoje Cambridgeshire.

Terá ido para lá como soldado ou como escravo? Após cerca de 10 anos no império, terá adotado os costumes romanos ou terá mantido os costumes dos seus antepassados nómadas? É mais uma questão que apenas podemos adivinhar. Mas o facto de podermos colocar estas questões mostra como o estudo do passado mudou profundamente em apenas alguns anos. A história entra agora na sua fase pontilhista, em que os grandes movimentos são apanhados em mil movimentos individuais. Com este indivíduo, vemos a história desenrolar-se em duas escalas. Em segundo plano, as coisas da grande história - guerras, rotas comerciais e confrontos que abrangem a maior parte de um continente. Em primeiro plano, um jovem, morto, longe de casa, cuja vida e destino apenas podemos imaginar.

February 26, 2024

Leituras pela madrugada - 'viver bem' e os livros de auto-ajuda

 


Os historiadores remetem frequentemente as origens da autoajuda para 1859, quando Samuel Smiles publicou Self-Help: With Illustrations of Character and Conduct, um guia prático para o auto-aperfeiçoamento que se tornou um êxito de bilheteira internacional. (O termo em si, deriva de escritos anteriores de Thomas Carlyle e Ralph Waldo Emerson.) Smiles inspirou leitores em todo o mundo, da Nigéria ao Japão. E inspirou imitadores - milhares deles. Entre o seu tempo e o nosso, a autoajuda transformou-se numa indústria multibilionária.

Smiles era um reformador social, mas o seu livro diz às pessoas que a reforma começa em casa: a auto-transformação é, promete ele, um caminho seguro para o sucesso. 

A fantasia da auto-suficiência é um foco de crítica política. De acordo com Beth Blum, "a auto-ajuda é amplamente entendida como uma tecnologia de auto-governação neoliberal utilizada para disciplinar os cidadãos e gerir as populações": a função social da auto-ajuda é ofuscar a injustiça, orientando-nos para trabalhar não na sociedade, mas em nós próprios. De acordo com os seus detractores, a auto-ajuda é superficial, politicamente obtusa e intelectualmente desonesta: embaraçosa, se não mesmo vergonhosa. A filosofia está melhor sem ela.
(...)
Numa passagem que chocaria Aristóteles, Daniel Kaufman, cuja "filosofia de vida preferida [é] o aristotelismo", compra por atacado a metáfora da roupa: "Não basta, portanto, admirar uma filosofia pelas suas qualidades intelectuais. Tem de se adequar bem ao tipo de pessoa que se é e ao tipo de vida que se leva, sendo que uma filosofia que não serve é ainda mais óbvia e desajeitada e, em última análise, inútil do que um fato que não serve". Mas Aristóteles acreditava que a sua filosofia era verdadeira - um tamanho serve a todos - e não uma boa aparência para alguns que outros não precisam de usar.

Isto acentua o problema implícito na distinção de Hume. Se estivermos a procurar a verdade, e não a exprimir o nosso gosto, se adoptarmos uma posição crítica em relação às tradições consoladoras, que garantia temos de que a filosofia vai ajudar e não prejudicar? Na sua auto-biografia loucamente egocêntrica, Ecce Homo, Nietzsche escreveu: "a minha verdade é terrível". Tanto quanto sabemos, a filosofia levar-nos-á ao desespero.
(...)
Quando estava a escrever Midlife, no início dos anos 2010, não tinha uma resposta para estes problemas. Acontece que, ao refletir sobre o arrependimento e a rotina incessante de coisas para fazer, surgiram ideias que me serviram de consolo. Penso que já tenho os rudimentos de uma teoria: uma visão da filosofia como auto-ajuda que se baseia na reconceitualização de ambas. 

Começa por distinguir a felicidade - um estado subjetivo da mente - da atividade de viver bem. Imaginemos alguém submerso num fluido de sustentação, com eléctrodos ligados ao cérebro, sendo alimentado todos os dias com um fluxo de consciência que simula uma vida ideal. Sem saber que é irreal, a pessoa sente-se extremamente feliz. Mas a sua vida não corre bem. Não fazem a maior parte do que pensam que estão a fazer, não sabem a maior parte do que pensam que sabem e não interagem com ninguém nem com nada para além da máquina. Não se desejaria isto a alguém que se ama: ser aprisionado numa cuba, sozinho para sempre, enganado.

Se o seu objetivo fosse apenas a felicidade, a auto-ajuda seria um empreendimento sem alma. A ideia de "viver bem" que anima a tradição filosófica - o objetivo da auto-ajuda filosófica - é tratarmo-nos a nós próprios e aos outros como se deve. 

A visão intrínseca ao viver bem não precisa de se basear em raciocínios elaborados ou em teorias sistemáticas do género das que os filósofos ostentam. Visa uma honestidade sobre as circunstâncias, sobre si próprio e sobre os outros. É o conhecimento deste género que nos diz como sentir e o que fazer. 

by Kieran Setiya

(excertos)

February 21, 2024

Leituras pela madrugada - "agarrar-se a crenças e opiniões falsas em nome da verdade"



Antilógica, em grego antigo, é a arte de suspender o juízo



Em Siracusa, há 2500 anos, havia um famoso professor de retórica chamado Corax. Esta nova disciplina era muito procurada: o domínio do discurso persuasivo, esperava-se, conduzia à fama e à riqueza. Segundo a história, o aluno mais talentoso de Corax era Tisias. Corax concordou em ensinar Tísias com o acordo de que o aluno pagaria quando ganhasse o seu primeiro caso em tribunal. Tísias progrediu tão rapidamente com as suas aulas que Corax quis que Tísias lhe entregasse os honorários que tinham acordado previamente que ele pagaria. Mas Tisias recusou-se a pagar antes de ganhar o seu primeiro caso, de acordo com o pacto original. Assim, Corax, para recuperar os seus honorários, levou o seu aluno a tribunal.

No julgamento, Corax apresentou um caso impressionante. Argumentou que, quer ganhasse, quer perdesse, devia receber os honorários: se ganhasse, devia receber porque ganhou, mas, mesmo que perdesse, devia receber porque Tisias tinha prometido pagar quando ganhasse o seu primeiro caso. Portanto, de qualquer forma, Corax deveria receber os honorários. O júri ficou deslumbrado com a argumentação, que, de alguma forma, tinha apresentado um caso igualmente convincente a favor de Corax, mesmo com veredictos opostos.

Mas o julgamento ainda não tinha terminado. Como conta Sextus Empiricus, quando Tisias tomou a palavra, contradisse Corax ponto por ponto. Mas fê-lo, de forma notável, usando "o mesmo argumento, sem alterar nada: "Quer ganhe", disse ele, "quer seja derrotado, não sou obrigado a pagar a taxa a Corax; se ganhar, porque ganhei; e se perder, de acordo com os termos do pacto; pois prometi pagar a taxa se ganhasse o meu primeiro caso, mas se perdesse não pagaria"".

Os jurados já não estavam encantados, mas sim perplexos. Como é que podiam chegar a um veredito? Corax e Tisias tinham apresentado argumentos diametralmente opostos que, de alguma forma, eram inteiramente equivalentes entre si, tanto em força como em plausibilidade. Cada argumento era um contrapeso perfeito para o outro. O conflito era irresolúvel e, por isso, Sextus conta: Os juízes, então, lançados num estado de suspense e perplexidade devido à equipolência dos argumentos retóricos, expulsaram-nos a ambos do tribunal, gritando: "Um mau ovo de um mau corvo! (Corax significa "corvo de carniça" em grego).

Esta prática de pôr em competição dois argumentos de modo a que nenhum possa vencer o outro ficou conhecida como "antilógica" na história das ideias. A antilógica era uma forma de contradição que levava uma pessoa a acreditar simultaneamente em coisas opostas sobre um mesmo acontecimento ou fenómeno, sem qualquer saída ou meio de resolver os pontos de vista contraditórios em que se tinha enredado. 

Os sofistas da Atenas do século V a.C. eram famosos por esta habilidade, que, desde Platão, tem sido definida como a capacidade de "tornar mais forte o argumento mais fraco" - ou seja, fazer com que um mau argumento derrote um bom. Como Aristóteles descreveu os argumentos de Corax e Tisias: "Ambas as alternativas parecem prováveis, mas apenas uma é realmente provável", e tratá-las como sendo igualmente prováveis "é fazer com que a mais fraca pareça a melhor causa". Teoricamente, então, havia uma posição naturalmente mais forte ou mais verdadeira no caso, mas, devido à antilógica, ninguém conseguia discernir qual era. As coisas só podem ser verdadeiras ou falsas, por isso, quando não conseguimos saber qual é qual, é provável que um caso pior tenha sido apresentado de maneira a parecer melhor.

Mas há outra interpretação possível da antilógica dos sofistas: que o objetivo não era fazer com que um mau argumento parecesse um bom argumento, mas sim fazer com que cada posição fosse deliberadamente tão forte quanto o seu oposto, tornando assim impossível estar inteiramente convencido de que uma posição é absoluta e incontroversamente verdadeira. Assim, em vez de acreditarmos sinceramente numa coisa ou noutra - que Tisias deve ou não deve pagar as taxas - suspendemos o juízo.

Porquê suspender o julgamento? É útil saber que havia uma razão científica por detrás da prática antilógica dos sofistas. Apesar de os sofistas históricos terem sido mal vistos na história das ideias, o que é hoje evidente no significado do próprio termo "sofisma", eles eram, de facto, uma espécie de cientistas. O primeiro sofista, Protágoras, que pode até ter inventado a antilógica (nunca saberemos ao certo, uma vez que quase todas as suas obras se perderam), compreendeu que o mundo físico está num estado constante de mudança: sempre em movimento, a fluir e a flutuar. Mas este estado de mudança perpétua definia não só o mundo "lá fora" para Protágoras, como também definia a linguagem, porque tudo, incluindo a linguagem, faz parte do mundo físico.

Protágoras observou um estranho paradoxo acerca da linguagem. Apesar do fluxo e da mudança perpétuos do mundo físico, a linguagem dá a impressão errada de que o mundo não está em fluxo, de que é estável. Como o filósofo presocrático Empédocles tinha observado apenas alguns anos antes, "não há nascimento para qualquer coisa mortal, nem qualquer fim maldito na morte. Mas há apenas mistura e intercâmbio do que é misturado - mas os homens chamam a estas coisas nascimento... Não chamam às coisas o que deviam, mas eu próprio também subscrevo a convenção". Nominalizar um processo de mudança, mistura e transformação, chamando-lhe "nascimento", obscurece o processo cinético de geração e decomposição. Aplica estabilidade a um fenómeno radicalmente instável. E, no entanto, admitiu Empédocles, que outra opção existe? É inevitável que a linguagem crie esta ilusão.

O objetivo da antilógica de Protágoras era fornecer outra opção, uma fuga a esta ilusão. Enquanto as afirmações fixas sobre o mundo implicam uma durabilidade sobre coisas que estão num estado perpétuo de mudança e fluxo, a antilógica perturba essa fixidez e durabilidade. As afirmações podem ser desestabilizadas quando são contraditas, especialmente quando qualquer contradição pode ser igualmente contradita, de tal modo que nenhuma contradição é completa e permanentemente refutada. A linguagem poderia, então, corresponder ao mundo através da desestabilização perpétua da antilógica.

Isto é resumido em dois dos fragmentos mais paradoxais de Protágoras, que, na verdadeira forma antilógica, parecem contradizer-se mutuamente: "Em cada questão há dois argumentos opostos um ao outro" e "a contradição é impossível". (Estas e um punhado de outras máximas são tudo o que sobrevive da filosofia de Protágoras). A antilógica era uma forma de a linguagem participar corretamente no processo de mudança e transformação incessantes que define o universo, sem tentar problematicamente fixar o mundo para produzir conhecimento duradouro, mas inevitavelmente enganador, sob a forma de afirmações.

Suspender o julgamento perturba-nos e frustra-nos atualmente, tal como aconteceu com os juízes no caso de Corax contra Tisias
Era precisamente este o problema de Sócrates (e, por extensão, de Platão e Aristóteles) com a antilógica. Se todas as coisas estivessem perpetuamente em movimento e nada pudesse ser fixado pela linguagem, então nunca se poderia saber verdadeiramente nada sobre nada. Se a antilógica pudesse fazer com que um único assunto fosse simultaneamente belo e o seu oposto, moral e o seu oposto, justo e o seu oposto, então a antilógica colocava o verdadeiro conhecimento para sempre fora de alcance. A antilógica leva-nos a acreditar que "um argumento é verdadeiro (...) e depois, um pouco mais tarde, decidir, com razão ou sem ela, que é falso (...) [de modo] que não há nada estável ou fiável, nem nos factos nem nos argumentos, e que tudo flutua como a água num canal de maré e nunca permanece num ponto durante algum tempo", como Sócrates disse no Fedro.

Então, como é que se pode saber alguma coisa sobre o mundo com algum grau de certeza? Quando Platão descreveu as doutrinas de Protágoras, segundo as quais a contradição é impossível e omnipresente, interpretou-as como significando que, simultaneamente, "nenhuma afirmação é falsa" e "todas as afirmações são verdadeiras". Aristóteles seguiu o exemplo. Caracterizou as doutrinas de Protágoras como uma afirmação absurda de que "é igualmente possível afirmar e negar qualquer coisa de qualquer coisa". Foi apenas reduzindo a antilógica ao absurdo desta forma que puderam estabelecer de uma vez por todas a implacável vontade de saber do Ocidente, captada de forma tão sucinta na linha de abertura da Metafísica de Aristóteles: "Todos os humanos desejam por natureza saber".

Após a derrota dos sofistas, a antilógica, outrora uma disciplina para suspender o juízo, foi simplesmente contra a própria ideia de verdade tal como evoluiu no Ocidente. É por isso que a forma de pensar capturada pela antilógica está hoje praticamente perdida para nós e que a suspensão do juízo não só não é natural, como vai contra alguns dos nossos instintos mais profundos - instintos que foram deliberadamente cultivados pelo próprio pensamento ocidental. 

Suspender o julgamento perturba-nos e frustra-nos hoje, tal como fez com os juízes no caso de Corax contra Tisias. Sócrates, Platão, Aristóteles e o resto da tradição ocidental derrotaram a antilógica porque esta oferecia um conceito alternativo de conhecimento que permitia a dúvida, a incerteza e, acima de tudo, a suspensão do juízo em vez da sua realização, o que significava que ocultava o caminho para a verdade duradoura e absoluta que procuravam tão incansavelmente.

Protágoras sabia que, não saber, suspender o juízo, é uma técnica que tem de ser intencionalmente cultivada. Requer uma arte e um conjunto de competências específicas. Usar a antilógica, em vez de afirmar, postular, declarar ou opinar, era precisamente essa arte e esse conjunto de competências. O seu objetivo era oferecer um caminho para longe das tendências demasiado humanas de nos agarrarmos apenas a opiniões provisórias e momentâneas e de lhes chamarmos verdade certa, e de nos fixarmos num conhecimento duradouro e absoluto que só poderia ser um desajuste à realidade. Como Platão cita Protágoras como tendo dito: "as coisas que nos aparecem são o que algumas pessoas, que ainda estão numa fase primitiva, chamam "verdade"; a minha posição, no entanto, é que um tipo é melhor do que os outros, mas de modo algum mais verdadeiro". Isto não era um sofisma, mas uma disciplina para não ceder ao nosso apetite natural pela certeza.

O objetivo da antilógica é, pois, precisamente este: perturbar uma noção forte de verdade, precisamente porque essa noção é desajustada da realidade. É afrouxar o domínio da verdade dogmática sobre o pensamento e fornecer uma "saída" para o inexorável impulso humano de saber inequivocamente. A prática duramente conquistada do não-saber foi concebida como uma alternativa à nossa tendência demasiado natural para nos agarrarmos a crenças e opiniões falsas em nome da verdade.

Robin Reames in psyche.

January 24, 2024

O jornalismo de crítica musical está em colapso

 



Porque é que o jornalismo musical está a colapsar?

Este é um problema maior que não pode ser resolvido com um diapasão (Pitchfork - um histórico site de jornalismo de crítica musical)

"Parece ser o fim da crítica musical", queixava-se ontem à noite um crítico, deprimido.

Esta previsão sombria é uma resposta à demolição da Pitchfork, um dos principais meios de comunicação de música nos últimos 25 anos. A chefe da empresa-mãe, Anna Wintour, deu a má notícia num memorando aos empregados ontem.

Não se trata apenas de despedimentos - as notícias são muito piores do que isso. Isto porque a empresa-mãe, a Condé Nast, também anunciou que a Pitchfork vai ser incorporada na GQ.

Engolido pela GQ? Isto é alguma piada cruel? 

Ah, mas para os jornalistas isto é demasiado familiar. Nos media musicais, os empregos em extinção são agora mais comuns do que os passes para os bastidores.

Há apenas algumas semanas, o Bandcamp despediu 58 (de 120) funcionários - incluindo cerca de "metade da sua equipa editorial principal".

E o Bandcamp era considerado um empregador mais rentável e estável do que a maioria dos meios de comunicação social. A empresa-mãe, antes da recente venda (à Songtradr) e dos despedimentos subsequentes, a Epic Games, vai gerar quase mil milhões de dólares em receitas este ano - mas é óbvio que não querem desperdiçar esse dinheiro no jornalismo musical.

Porque é que toda a gente odeia os escritores de música?

Muitas pessoas assumem que se trata apenas da mesma história que noutros meios de comunicação social. E eu próprio já escrevi sobre isso - prevendo que em 2024 haverá mais implosões deste género.

Claro, isso faz parte da História.

Mas há um problema maior com a economia da música, sobre o qual ninguém quer falar. Os despedimentos não estão a acontecer apenas entre os revisores de discos - mas em todo o sector da música.

A Universal Music anunciou demissões há dois dias.

O YouTube anunciou demissões ontem.

O Soundcloud anunciou na semana passada que a empresa está à venda - depois de duas rondas de despedimentos nos últimos 18 meses.

O Spotify anunciou despedimentos há cinco semanas.

Nessa mesma semana, o Tidal anunciou despedimentos.

Algumas semanas antes, a Amazon Music despediu funcionários em três continentes.

Entretanto, quase todas as plataformas de streaming de música estão a tentar forçar aumentos de preços (como previsto aqui). Isto é uma admissão de que não esperam muito crescimento de novos utilizadores - por isso, precisam de espremer os antigos o mais possível.

Como se pode ver, o problema não se limita aos escritores de música - algo está podre a um nível mais profundo.

Qual é a verdadeira causa da crise? Vamos examiná-la, passo a passo:

1. As empresas de música dominantes decidiram que podiam viver confortavelmente de música antiga e de ouvintes passivos. Lançar novos artistas era demasiado difícil - era muito melhor continuar a tocar as músicas antigas vezes sem conta.

2. Por isso, as grandes editoras (e os grupos de investimento) começaram a investir grandes somas na aquisição de catálogos de edição de canções antigas.

3. Entretanto, as plataformas de streaming encorajaram a audição passiva, pelo que as pessoas nem sequer sabem o nome das canções ou dos artistas.

4. A situação ideal era mudar os ouvintes para faixas geradas por IA, que poderiam ser propriedade da plataforma de streaming - pelo que nunca seriam pagos direitos de autor aos músicos.

5. Estas estratégias têm funcionado. Os fãs do streaming já não prestam muita atenção à música nova.
Eu avisei sobre cada uma delas - mas agora estamos a ver os resultados a longo prazo.


É  isso que o Pitchfork está em grandes apuros. Se as pessoas não ouvem música nova, não precisam de críticas de música. E não precisam de entrevistas com estrelas em ascensão. Ou listas de melhores do ano. Ou qualquer uma das outras coisas que os escritores de música fazem pelos seus leitores.

Mas esse problema vai piorar muito. Até as pessoas que tomaram essas decisões vão sofrer - porque viver no passado nunca é uma estratégia comercial inteligente.

Se esses executivos fossem álbuns, eles mereceriam nota zero na escala do Pitchfork.

É por isso que o Pitchfork está em grandes apuros. Se as pessoas não ouvem música nova, não precisam de críticas de música.

Há uma geração atrás, este tipo de preguiça não existia no sector da música. Antes do streaming, toda a gente no negócio precisava de música nova. As lojas de discos iriam à falência se as pessoas se limitassem a ouvir as músicas antigas vezes sem conta.

O mesmo acontecia com os distribuidores de discos, as editoras discográficas, as estações de rádio, os proprietários de clubes noturnos e os escritores de música. Toda a gente precisava de novas canções e de novos músicos em ascensão.

Claro que os fãs também beneficiavam. A vida torna-se aborrecida se ouvirmos apenas as mesmas canções ano após ano, década após década. Mas não havia esse risco. A indústria musical trabalhava incansavelmente para encontrar música nova e excitante e partilhá-la com o mundo.

Esse modelo de negócio está agora a desaparecer. As pessoas que dirigem a indústria mataram-no - e agora vivemos com as consequências.

A ironia é que a música nova e excitante continua a ser lançada - mas quase ninguém a ouve. O sistema trabalha activamente para a esconder.

E, ocasionalmente, um artista rompe a inércia da indústria e prova que os fãs ainda querem experiências musicais novas e excitantes. Mas também aqui, os interesses entrincheirados não fazem quase nada para apoiar isto - e muito para o impedir.

O sucesso de Taylor Swift torna isto claro - noto que ela lutou com as editoras discográficas por causa da obsessão destas com os seus temas antigos (ao ponto de os regravar). E teve sucesso (imenso, devo acrescentar) ao concentrar-se em actuações ao vivo, e não no modelo de streaming entorpecedor.

Esta é a notícia encorajadora que tenho para partilhar - nomeadamente, que as pessoas ainda anseiam por música nova que mude a sua vida. E se lhes dermos uma oportunidade, elas gastarão dinheiro com isso.

Mas as grandes editoras e as plataformas de streaming serão as últimas a perceber isto. Na verdade, estão a agravar o problema com as suas alocações de investimento - em canções antigas, melodias de IA e audição passiva.

Neste ambiente, a coisa mais inteligente que os autores de música podem fazer é deixar de confiar no sistema. Deixar de confiar nos editores, nas editoras e nas pessoas ligadas ao mundo da música.

A única esperança de um escritor é ligar-se diretamente aos ouvintes e leitores - e aos próprios músicos. E talvez algumas editoras independentes que ainda se preocupam mais com o futuro do que com o passado. Tudo o resto é apenas ruído.

Deixar de ouvir os editores? Será que isso é possível?

Eu noto que todos os editores que me disseram para tornar os meus artigos mais simples e para escrever artigos com base em fórmulas estão agora desempregados. Mas os leitores continuam a existir. Os músicos também. Na escrita musical, eles são a verdadeira base, o resultado final, a coisa mais segura num mundo imprevisível - e sempre serão.

Acreditem na música, não no negócio.

Caso contrário, é altura dos escritores de música arranjarem um guarda-roupa melhor. Não vão ter sucesso na GQ se continuarem a usar aquelas t-shirts pirosas de bandas.


Ted Gioia in https://www.honest-broker.com/p/why-is-music-journalism-collapsing

January 17, 2024

Leituras pela madrugada - O mito das redes sociais e do populismo

 


Os populismo é uma espécie de religião onde o líder se comporta como um sacerdote: só ele sabe a Verdade; o seu povo é o escolhido, os outros são o diabo; o que ele faz é para bem do povo e os críticos querem destruir a Verdade; só ele percebe o sentir do povo, os outros navegam no erro; ele exige crença em vez de raciocínio, obediência em vez de respeito; ele e a sua Cúria são quem percebe a revelação, os outros estão por fora dos meandros dos textos sagrados e por isso, nunca entenderão a Verdade. Só ele salva.



O mito das redes sociais e do populismo

Porque é que o pânico moral é descabido.


Por Jan-Werner Müller, um professor de Política na Princeton University.

2024 é um grande ano eleitoral para o mundo: Espera-se que mais de 50 países realizem eleições nacionais, incluindo democracias grandes, mas profundamente danificadas, como a Índia, a Indonésia e os Estados Unidos. Há muitas preocupações de que as mídias sociais, ainda para mais, armadas com inteligência artificial, desempenhem um papel destrutivo nessas eleições.

Desde a eleição de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos em 2016, os especialistas têm-se preocupado com o facto da tecnologia poder condenar a democracia. É verdade que as redes sociais podem beneficiar os aspirantes a autocratas. 

Os populistas, em particular, agarram-se hoje às redes sociais como uma forma de se ligarem directamente às pessoas, contornando as restrições ao seu comportamento que os partidos políticos teriam proporcionado na era pré-internet. Podem também beneficiar das câmaras de eco, que reforçam a sensação de que todo um povo apoia uniformemente um líder populista.

No entanto, as redes sociais não são inerentemente populistas. E se os populistas se saírem bem este ano, não será porque não existem ferramentas ou estratégias para os travar.

Para combater o populismo, as democracias precisam de vontade política. Devem não só promover uma melhor concepção e regulamentação das plataformas, mas também trabalhar para reforçar aquilo que alguns consideram uma instituição completamente antiquada: os partidos políticos que têm a capacidade de controlar os líderes que ameaçam a democracia.

Todas as revoluções dos meios de comunicação social ao longo da história provocaram um pânico moral: diz-se que a imprensa escrita provocou guerras religiosas; a rádio deu ao mundo Adolf Hitler; a televisão permitiu o McCarthyismo. Nenhum destes pontos, ainda hoje repetidos por observadores sofisticados, está completamente errado. Mas, em todos os casos, o determinismo tecnológico revelou-se errado, tal como o pressuposto de que os novos media dariam poder a massas irracionais, sempre prontas a serem seduzidas por demagogos.

No início, as redes sociais foram recebidas com grande otimismo. Naquilo que agora parece ser uma era diferente, os promotores da democracia olharam para o Twitter (agora conhecido como X) e para o Facebook como ferramentas para ajudar as revoltas contra os autocratas em todo o lado. Mas assim que a primavera Árabe se transformou no inverno Árabe, o entusiasmo transformou-se em pessimismo. 

O pânico instalou-se em 2016, após o duplo choque do Brexit e da eleição de Trump. Os comentadores liberais foram rápidos a identificar o que consideravam ser o principal culpado dos dois desastres populistas mundiais: as redes sociais e, em particular, as câmaras de eco. Os liberais não só passaram do aplauso ao escárnio. Também se entregaram à nostalgia de uma suposta era dourada de controlo responsável por parte dos jornalistas. As oscilações selvagens de opinião e a idealização do passado são sinais de que ainda não nos orientámos quando se trata de dar sentido aos novos media.

Atualmente, os cientistas sociais sabem um pouco mais do que sabiam em 2016: As bolhas de filtragem - ou câmaras de eco online com curadoria de algoritmos - existem, mas são muito menos comuns do que muitas vezes se supõe- não são a principal causa da polarização, apesar de ajudarem a espalhar a desinformação e a propaganda mais rapidamente; e a nossa vida offline é, em muitos aspectos, menos diversificada do que a nossa existência online.

O que torna as redes sociais únicas é o facto de permitirem o que pode parecer uma ligação directa entre os líderes políticos e os potenciais seguidores. Isto é particularmente útil para os populistas, que afirmam que só eles podem representar aquilo a que muitas vezes chamam o "povo real". 

Isto implica que todos os outros candidatos ao poder não representam o povo, uma vez que, segundo a acusação habitual, são corruptos. Também implica que alguns cidadãos não fazem parte do "povo real" de todo. Pense em Trump a queixar-se de que os seus críticos não só estão errados sobre a política, mas que são "anti-americanos" ou mesmo - como ele disse num comício do Dia dos Veteranos no ano passado - "vermes". 

O objectivo do populismo, portanto, não é apenas criticar as elites. Afinal de contas, encontrar defeitos nos poderosos é muitas vezes justificado. Em vez disso, o objectivo é excluir as pessoas do povo: outros políticos ao nível da política partidária e grupos inteiros - normalmente já vulneráveis, como os muçulmanos na Índia - ao nível dos cidadãos.

Esta ligação aparentemente directa contribui para a erosão dos partidos políticos. O populismo tem como objetivo negar e, eventualmente, destruir o pluralismo; os partidos que funcionam bem podem fazer frente a esta situação e controlar os empresários políticos populistas. 

Alguns países exigem mesmo, por lei, que os partidos tenham estruturas democráticas internas. (O Partido para a Liberdade, do populista holandês de direita radical Geert Wilders, que obteve o maior número de lugares nas eleições de novembro passado, não seria permitido nesses países porque Wilders é o único membro oficial). 

É claro que os partidos unem os partidários. Mas os partidários discordam frequentemente quanto à forma como os princípios que partilham se devem traduzir em políticas. Não há nada de estranho no facto de os partidos formarem uma oposição legítima à sua liderança, e essa oposição tem-se revelado muitas vezes crucial para controlar os líderes. Há uma razão para que populistas como o primeiro-ministro indiano Narendra Modi e o primeiro-ministro húngaro Viktor Orban dirijam os seus partidos de uma forma altamente autocrática.

É certo que a sensação de proximidade criada pelas redes sociais é uma ilusão. Afinal, as redes sociais são mediadoras. No entanto, a perspetiva de um encontro não filtrado - por mais mal orientado que seja - promete autenticidade e uma sensação de ligação que antes só estava disponível em momentos excepcionais, como numa reunião partidária ou num comício de massas. 

A teórica política Nadia Urbinati sugeriu o termo paradoxal "representação directa" para esta relação: A relação entre os cidadãos e os seus representantes parece ter desaparecido.

O trabalho de levar as pessoas às urnas costumava ser feito de forma diferente. Como explica o cientista político Paul D. Kenny no seu livro "Why Populism?", antes da era dos media sociais, a mobilização dependia do clientelismo ou de um partido político bem organizado (dito de forma mais directa: altamente burocratizado). Partidos e candidatos prometiam aos seus apoiantes benefícios materiais ou favores burocráticos em troca de votos. Isto era dispendioso, e os custos aumentariam muito se a concorrência política se intensificasse ou se mais agentes de poder entrassem na luta. A manutenção dos partidos burocráticos também é dispendiosa. Os funcionários dos partidos têm de ser pagos, mesmo que possam contar com o trabalho voluntário de idealistas que sacrificam os seus fins-de-semana para distribuir folhetos ou fazer prospeção porta-a-porta.

Como salienta Kenny, os meios de comunicação social reduzem os custos de mobilização, especialmente no caso de candidatos famosos como Trump, que podem recorrer ao seu crédito na cultura pop. Antigamente, quando a imprensa escrita e a televisão eram dominantes, os circuitos de feedback da propaganda teriam sido construídos com grandes custos pelos estrategas dos partidos; atualmente, são criados gratuitamente por empresas que querem maximizar o envolvimento em nome do lucro.

Tal como acontece com os influenciadores, a presença online de um político requer uma curadoria constante, pelo que não é totalmente isenta de custos. Trump pode ter escrito os seus próprios tweets, com erros ortográficos e tudo, mas outros precisam de pagar a equipas com conhecimentos técnicos. 

As redes sociais podem funcionar melhor para aqueles que já tratam os partidos como instrumentos de marketing de uma personalidade em vez de desenvolverem políticas. 

Veja-se o caso do antigo primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi, cujos especialistas em relações públicas criaram o partido Forza Italia para ele na década de 1990 e o organizaram como uma fusão de clube de fãs de futebol e empresa de negócios. Não é por acaso que Berlusconi se juntou ao TikTok antes das últimas eleições italianas de 2022 (mesmo que os ragazzi a quem tentou apelar possam ter achado a sua atuação, como diriam os jovens adultos, constrangedora).

Os políticos mais bem sucedidos conseguem aproveitar ambas as formas de apoio. Por exemplo, Modi, com o seu enorme culto da personalidade, emergiu de um partido de massas com um aparelho burocrático e pode contar com o trabalho gratuito de soldados rasos partidários. No entanto, também construiu um séquito de seguidores online, onde tem conseguido apresentar-se como uma celebridade acima da política partidária.

Quando os líderes populistas criam a ilusão de uma ligação directa, é-lhes mais fácil desacreditar os mediadores tradicionais, como os jornalistas profissionais, alegando que estes distorcem as mensagens dos políticos. Isto pode traduzir-se em menos debates pluralistas e menos oportunidades para os jornalistas fazerem perguntas inconvenientes. Modi e Orban não dão uma verdadeira conferência de imprensa há muitos anos; Trump e o primeiro-ministro israelita Benjamin Netanyahu recusaram-se a participar em debates antes das eleições. A recusa de Trump em aparecer no palco com os actuais candidatos republicanos pode parecer uma aposta arriscada: Como o candidato Ron DeSantis tentou sublinhar, o líder parece ter medo de se envolver com o resto do grupo; além disso, está a perder uma oportunidade de mostrar plenamente o seu talento para uma crítica memorável. Mas Trump está a seguir a cartilha do autocrata: aparecer acima da luta e apresentar-se como a encarnação única da vontade popular. Porquê descer ao nível da concorrência se já disse aos seus apoiantes que todos os outros são corruptos ou, no mínimo, completamente não representativos das suas opiniões?

É certo que estas bolhas online não se formam no vácuo. Nos Estados Unidos, há muitas pessoas que vivem numa bolha de extrema-direita, sem qualquer contacto, mesmo com os meios de comunicação de centro-direita, como o Wall Street Journal. No entanto, esta bolha não é o resultado do Facebook ou do X. Tal como os cientistas sociais da Universidade de Harvard demonstraram num estudo de 2018, os seus contornos foram moldados pelo enorme sucesso dos noticiários de direita na TV por cabo e das rádios de discussão na década de 1990. As redes sociais vieram juntar-se a essa infraestrutura. Se os próprios meios de comunicação social criassem um mundo onde reinam sempre as teorias da conspiração e o ódio, veríamos o mesmo resultado em todos os países - mas não é o caso.

As democracias devem rever a forma como as plataformas são governadas para dificultar a sua utilização pelos populistas. Um dos problemas das redes sociais na sua forma atual é que dão demasiado poder a um pequeno número de pessoas. O poder das plataformas - o controlo dos meios de ligação com os outros em linha - é o grande poder não controlado dos nossos dias. Como escreveu o cientista social Michael Seemann, o poder das plataformas resulta da capacidade de dar acesso às plataformas ou de o negar, quer através de proibições directas, quer através do assédio dos trolls online.

Como as mudanças de Elon Musk no Twitter demonstraram, aqueles que controlam as plataformas e a sua maquinaria subjacente podem manipular o discurso online. Desde que assumiu o controlo da plataforma em 2022, Musk não só suspendeu arbitrariamente jornalistas, como também enfraqueceu as regras - e reduziu o pessoal - para a moderação de conteúdos. Como Musk reinstituiu supremacistas brancos e outros fomentadores de ódio, minorias como os transgéneros tornaram-se menos protegidas.

Nas democracias que funcionam a meio caminho, oligarcas caprichosos como Musk conseguem governar as plataformas quase sozinhos. Nos países a caminho da autocracia, o próprio Estado pode pressionar com sucesso as plataformas para que cumpram as suas ordens, como a Índia fez com o Twitter, obrigando-o a bloquear políticos, activistas e até a BBC. 

Nas autocracias definitivas, os governos estão a aperfeiçoar aquilo a que a cientista social Margaret Roberts chamou fricção e inundação. Em vez de se basearem simplesmente no medo criado pela repressão generalizada, como fariam as ditaduras tradicionais, as autocracias agora "inundam" a Web com informações para distrair os utilizadores e utilizam falhas técnicas intencionais ("fricção") para dificultar o acesso dos cidadãos a determinados sites. Estes regimes sabem que a censura pode chamar a atenção para conteúdos escandalosos; os verdadeiros peritos fazem-nos desaparecer. Estas técnicas são omnipresentes na China, tal como a vigilância. Os aspirantes a autocratas, incluindo os populistas de direita que disputam o poder nas democracias, tentarão sem dúvida copiar este repertório.

Um dos problemas das redes sociais na sua forma actual é o facto de darem demasiado poder a um pequeno número de pessoas.

É certo que os populistas não podem ser impedidos de construir os seus próprios contra-públicos online, tal como os partidos não podem - e não devem - ser impedidos de reunir seguidores. A liberdade de reunião e de associação significa que as pessoas com os mesmos interesses têm todo o direito de se juntarem a outras que partilham os mesmos compromissos. Não se pode querer que as autoridades comecem a fechar espaços seguros para grupos dedicados a dar poder às minorias, por exemplo, só porque não são suficientemente pluralistas. 

As ideias para combater a homogeneidade online através da injeção de diversidade de pontos de vista na vida online são bem intencionadas mas impraticáveis. O jurista Cass Sunstein, por exemplo, sugeriu um "botão de serendipidade", que poderia muito bem ser traduzido como: "Agora que está a ver o ponto de vista feminista, que tal clicar no anti-feminista?"

Uma visão mais matizada da vida política online não significa que as democracias devam tolerar o incitamento ao ódio. A concepção das plataformas faz a diferença: Como demonstrou a cientista política Jennifer Forestal, o Reddit, por exemplo, permite uma conversa mais diversificada do que os Grupos do Facebook. O Reddit permite a formação de comunidades, mas mantém permeáveis as fronteiras entre os subreddits; também dá poder aos moderadores e aos utilizadores para cumprirem as regras acordadas por uma comunidade online.

A moderação de conteúdos, em particular, deveria ser obrigatória, como acontece na Alemanha, em vez de ser um luxo que um controlador da plataforma, como Musk, tem o poder de dispensar. 

A moderação pode ser abusada, mas é o que acontece com qualquer tentativa de controlar o poder dos media. (As leis de difamação podem ser - e são - exploradas por actores não democráticos, mas isso não significa que devamos dispensá-las por completo). Para evitar esta situação, a moderação de conteúdos deve ser tão transparente quanto possível e sujeita a uma supervisão adequada; as "caixas negras" dos algoritmos devem ser abertas, pelo menos, aos investigadores, para que estes possam ajudar os decisores políticos a compreender como funcionam as plataformas das redes sociais. 

Isto pode parecer um sonho, mas a União Europeia tem vindo a perseguir estes objectivos com a sua recente 'Lei dos Serviços Digitais' e a 'Lei dos Mercados Digitais', que até agora têm impedido o Facebook de lançar o seu clone X, o Threads, no bloco devido ao seu incumprimento das normas de privacidade.

A legislação e a educação serão instrumentos importantes para as democracias. Os modelos de negócio das redes sociais, que se baseiam na maximização do envolvimento através da oferta de conteúdos cada vez mais extremistas, não estão fora da regulação política. 

As democracias devem também investir recursos sérios no ensino da literacia mediática - algo que muitos líderes afirmam em abstrato, mas que, tal como a educação cívica, acaba sempre por ser pouco valorizado, uma vez que as disciplinas "difíceis", como a matemática, são consideradas mais importantes para a concorrência económica global. 

Não menos importante, as democracias não devem tratar os media sociais de forma isolada. Se promoverem um panorama mediático mais saudável, nomeadamente revigorando o jornalismo local, e regularem os partidos políticos, será muito mais difícil para os populistas terem êxito.