April 06, 2023

Livros e Leituras - Kuhn

 

The Last Writings of Thomas S. Kuhn: Incommensurability in Science 
edited by Bojana Mladenović.
Chicago, 302 pp., £20, November 2022, 978 0 226 82274 7


Paradigmas à Solta

Steven Shapin

A tragédia da vida de Thomas Kuhn foi ter escrito um grande livro. Tinha quarenta anos quando a "Estrutura das Revoluções Científicas" foi publicada, em 1962 e depois passou o resto da sua vida angustiado com o seu próprio sucesso. Vendeu 1,7 milhões de exemplares e foi traduzido em 42 línguas. São raros os livros académicos que vendem esses números e menos ainda aqueles que, passados sessenta da sua publicação, continuam a ser vistos como o último grito. 

A obra cruza disciplinas. É lida por historiadores, sociólogos e filósofos cujo trabalho é pensar no que é a ciência e como muda e também por cientistas que têm um olhar reflexivo. É lida por teólogos que ponderam as diferenças e semelhanças entre ciência e religião e por antropólogos que consideram as características do pensamento 'ocidental' e 'não-ocidental'. 
O livro insinuou-se na linguagem quotidiana. Kuhn arrancou a palavra 'paradigma' da linguística - onde se referia à permutação de formas com uma raiz comum, como a conjugação de verbos ou a declinação de substantivos - e redireccionou-a como o termo para um recurso regulador, chave, na investigação científica, um modelo de 'o caminho certo a seguir'. 
Por fim, muitas coisas destinadas a serem consideradas como "inovadoras" e "boas" foram marcadas como "mudanças de paradigma": novas formas de produzir frangos criados em fábricas, a mais recente solução para as dificuldades colocadas pelo Brexit para acordos comerciais na Irlanda do Norte, o surgimento da cultura de chefes-cozinheiros celebridades. 
Uma banda desenhada nova-iorquina mostra vagabundos encostados a uma parede: 'Boas notícias - ouvi dizer que o paradigma está a mudar'. Uma outro tem dois homens, com as suas roupas a esvoaçar, especulando que deve ter havido uma 'mudança de paradigma'. Lê-se num autocolante: Shift Happens: Buddy Can You Paradigm?

Os 'últimos escritos' aqui recolhidos incluem os textos de várias conferências que Kuhn deu nos anos 80 e que circularam como textos samizdat entre os académicos próximos dele, mas o principal interesse do livro está nos esboços editados de cerca de dois terços da 'magnum opus' sobre a qual Kuhn vinha trabalhando há mais de dez anos quando morreu, em 1996, com o título provisório 'The Plurality of Worlds: An Evolutionary Theory of Scientific Development'. 
Não vou aqui comentar esses textos, mas sim descrever o significado do caminho de Kuhn desde o seu estudo na área da Física em Harvard nos anos 40, até à escrita de "Estrutura das Revoluções Científicas" e depois ao seu esforço ao longo da vida para gerir as explosões de entusiasmo e críticas que o livro desencadeou.

Uma teoria sobre mudanças científicas não é um assunto óbvio para gerar um bestseller americano, mas na época da sua publicação, pensar sobre a natureza da ciência estava na ordem do dia. 
Na Segunda Guerra Mundial o radar e a bomba atómica tinham instalado a ideia de que a ciência podia gerar a supremacia militar e o governo dos EUA derramava somas de dinheiro exorbitantes na investigação académica. 
A contínua mobilização da ciência na corrida ao armamento da Guerra Fria garantiu o lugar da física e de várias outras disciplinas a favor do Estado, mas a proximidade com o governo, os militares e a grande indústria deixou alguns sectores da intelectualidade desconfortáveis. 
Poderiam as virtudes da ciência (as mesmas que as da democracia: mente aberta, universal, contra a autoridade) florescer em espaços secretos, sendo a sua agenda controlada por forças externas e as suas crenças distorcidas pelo dogma? A comunidade científica americana estava muito empenhada em questões deste tipo e o tom era dado pelos físicos que tinham construído a Bomba H. 

Em 1961, o discurso de despedida de Eisenhower alertou para os perigos políticos colocados pelo "complexo militar-industrial" e para o potencial de corrupção da ciência se esta fosse feita a mando do Estado. Na primeira parte do século XX, nos países capitalistas, a ciência era considerada uma planta frágil, prosperando apenas no solo das sociedades abertas; no início dos anos 60, surgiram ansiedades acerca do papel da ciência no reforço da autoridade política e mesmo no estabelecimento de agendas autoritárias.

[Q: não estamos a pagar esta intromissão do Estado e da sua 'agenda' na ciência? Não vemos isso na desconfiança face às vacinas, às questões do ambiente e outras movimentações anti-científicas?]

Uma resposta a este novo estado de coisas era pensar e escrever sobre a ciência enquanto fenómeno cultural e social normal e não algo à parte das preocupações civis. Um fenómeno para ser descrito e interpretado de forma desinteressada, em vez de apenas criticado ou condenado. Assim, havia um terreno fértil para uma teoria geral da ciência escrita de forma cativante. 

A Estrutura das Revoluções Científicas tinha apenas de 172 páginas de texto, na sua maioria acessível aos leitores em geral, com aforismos inolvidáveis : uma notável fusão de virtude intelectual e literária. 
Kuhn considerou-o como pouco mais do que um "esboço altamente esquemático" de uma monografia muito mais longa e mais profissional que tinha em mente para o futuro. 
Originalmente, não foi concebido como um livro independente, tendo sido encomendado como uma entrada alargada na Enciclopédia Internacional da Ciência Unificada, editada por filósofos emigrados do Círculo de Viena. Mesmo assim, Kuhn antecipou um público exclusivamente académico, principalmente historiadores e filósofos da ciência. Por conseguinte, não estava preparado para o sucesso popular, não sabia lidar com isso, e não gostava.

Kuhn não tinha formação em filosofia, e a "Estrutura# referia-se ao trabalho apenas de alguns filósofos do século XX (Wittgenstein, Quine, Popper, Nelson Goodman, Norwood Russell Hanson). Porém, os filósofos reconheceram-na como um exercício pertencente à sua disciplina. 

A ciência era vista como a instanciação da racionalidade, objectividade, abertura de espírito e progressividade. Comparava metodicamente expectativas teóricas contra evidências observacionais e experimentais; purgava-se de preconceitos e expectativas anteriores; o seu conhecimento era cumulativo; a qualidade desse conhecimento era garantida por normas metodológicas explícitas partilhadas por toda a comunidade científica; os vários pedaços de ciência faziam parte de uma unidade fundamental de conceitos, de factos ou de métodos; chegava à verdade, ou pelo menos aproximava-se dela. 

A Estrutura das Revoluções Científicas negava todas estes pressupostos:
- As observações não podiam ser confrontadas com uma teoria específica, mas apenas com uma rede alargada de teorias, tornando problemáticas as noções de confirmação e de desconfirmação. 
- Os cientistas não tinham uma mente aberta. A sua formação encorajava o abraço daquilo a que Kuhn chamou 'dogma': 'uma educação rígida, provavelmente mais do que qualquer outra, excepto talvez na religião ortodoxa'. 

Se a descrição da "Estrutura" fosse aceite, as noções de ""progresso científico" e de "objectividade científica" poderiam parecer em parte redundantes". Podemos "ter de renunciar à noção" de que a mudança científica aproxima os cientistas "cada vez mais da verdade", escreveu Kuhn. O conhecimento científico não se acumula: passou de momentos de "ciência normal", uma espécie de resolução de puzzles, orientada por um paradigma, para períodos de "crise" e "revolução", até entrar outra vez em "ciência normal" governada por um novo paradigma. E os paradigmas (a mecânica aristotélica versus a clássica, digamos, ou astronomia geocêntrica versus heliocêntrica) eram 'incomensuráveis': não havia uma forma independente de os comparar; o abraço de um novo paradigma 'só pode ser feito com base na fé'.

O livro de Kuhn foi ao encontro das tendências revisionistas que então emergiram entre os historiadores da ciência. O novo pensamento era que não se podia descrever inteligentemente a ciência passada como uma ciência falhada; não se podia trazer "uma ciência mais antiga para a barra do juízo de uma ciência mais recente". Em casos cruciais de julgamento científico, "não há norma mais elevada do que o consentimento da comunidade relevante". 

De facto, a "Estrutura" desafiou implicitamente a noção de que existia algo como uma comunidade científica unificada; pelo contrário, havia muitas comunidades, cada uma delas organizada através do seu empenho em realizações específicas, métodos específicos e normas específicas de ajuste entre expectativa e evidência. 
A muito apreciada ideia de "unidade científica" também foi sacrificada: a ciência era uma "estrutura ramificada com pouca coerência entre as suas várias partes". Os filósofos da ciência há muito que aceitavam o seu papel na justificação da ciência, defendendo que o conhecimento científico era verdadeiro, objectivo, racional, fiável, progressivo, poderoso. Pois Kuhn argumentava que os filósofos tinham estado a apontar as suas investigações para alvos errados.

A "Estrutura" fez de Kuhn uma estrela de rock intelectual. Desde o momento em que o livro foi publicado até à sua morte, Kuhn não conseguiu libertar-se desses leitores todos. Todos queriam algo dele: saber o que ele realmente pensava; se aprovava a leitura que tinham feito do seu livro; se aceitava as críticas que lhe tinham feito; e, especialmente, o que viria a seguir. 

Alguns leitores Kuhn ignorou, outros desprezou e outros, passou o resto da sua carreira a tentar desesperadamente satisfazer-los. De um modo geral, os filósofos foram críticos, alguns de forma violenta. Tomaram o livro como um exemplo virulento de 'relativismo', 'construtivismo' ou 'subjectivismo'. 

Kuhn recordou que, logo após a publicação, grupos de filósofos tinham-se "reunido e dito que o livro deveria ser queimado". Os historiadores ficaram intrigados, mas poucos deles viam a teorização sobre "a natureza da ciência" como a sua área. Os sociólogos estavam eventualmente entre os entusiastas do livro, mas sobretudo um pequeno número de sociólogos epistemológicos na Grã-Bretanha; o corpo muito maior de sociólogos americanos levou mais tempo a apreciar o que se estava a passar. 
As ciências humanas estavam notavelmente ausentes do livro - quase todos os exemplos históricos foram extraídos da física, astronomia e química. No seu prefácio, Kuhn sugeriu que a inspiração para a ideia do paradigma/ciência normal lhe tinha chegado durante um ano passado no Stanford Centre for Advanced Study in the Behavioural Sciences, onde ficou espantado ao ver que os cientistas de ciências humanas discutiam sobre os fundamentos das suas próprias disciplinas, enquanto nas ciências físicas, em que tinha sido formado, parecia haver um grande consenso.

Onde os filósofos se opuseram à "Estrutura", Kuhn aceitou de um modo geral que eles tinham posto o dedo nas fraquezas ou ambiguidades genuínas. Talvez a natureza e o alcance das "revoluções" não tivessem sido suficientemente circunscritas. Talvez não tivesse insistido na 'racionalidade' residual da ciência. Talvez o sentido adequado dos 'paradigmas' não tivesse sido coerentemente especificado. 

Kuhn definiu paradigmas como "realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, proporcionam problemas de modelo e soluções para uma comunidade de profissionais", ou "exemplos partilhados de práticas bem sucedidas" que poderiam alcançar o tipo de consentimento colectivo que as regras formais não conseguiriam. 

Mas Kuhn apercebeu-se de que tinha convidado a possibilidade de estas serem mal concebidas como quadros perceptuais vinculativos. A "Estrutura" aborda o famoso problema da Gestalt da imagem do coelho-pato, no qual se pode ver apenas um dos animais de cada vez, implicando que cada um representa uma constelação diferente de crenças ou de quadros perceptuais. 
Kuhn tinha permitido que uma ajuda metafórica fosse tomada literalmente e mais tarde admitiu que tinha sido um "erro terrível". Respeitou os filósofos e ficou horrorizado ao descobrir que muitos deles o acusavam de ser um relativista, um irracionalista ou um negacionista da verdade - Kuhn era, como disse, "muito mais admirador dos meus críticos do que dos meus fãs".

Nas ciências sociais, havia uma tendência excitável para ler a "Estrutura" como um manual de como ter sucesso académico: "Uau, só precisamos de descobrir qual é o nosso paradigma e aplicá-lo", dizia-se, como se os paradigmas fossem teorias a serem tiradas da prateleira de um supermercado intelectual. 

Os cientistas não estavam, na sua maioria, incomodados com o livro - estavam demasiado ocupados a fazer ciência para teorizar sobre ela - embora uma leitura casual oferecesse um vocabulário útil para aqueles que queriam distinguir entre ciências 'maduras' e 'genuínas' (que tinham um paradigma) das pseudo-ciências (que não tinham). Na opinião de Kuhn, estas pessoas eram apenas idiotas. Mas o que o chocou mais profundamente foi o abraço do livro pelos radicais dos anos 60. 

Kuhn leccionava em Berkeley quando foi publicado e sabia ser provável que o livro fosse (mal) lido como um tratado anti-científico. Estava "certo de que parte da razão pela qual o livro atraía tanta atenção, particularmente entre as pessoas que tinham menos de trinta anos na década de 1960", era que "podia ser usado como um chicote para bater nas ciências". Ficou angustiado ao descobrir que na Universidade do Estado de São Francisco - que rivalizava com Berkeley pelo radicalismo - os dois grandes heróis intelectuais dos estudantes eram Herbert Marcuse e ele próprio. A ideia de 'ser um guru', disse ele, 'assustou-me'.

Os radicais do campus leram o livro de Kuhn como uma exposição brilhantemente subversiva. Tal como tinham suspeitado, a ciência não era a busca objectiva aberta da verdade, mas apenas mais um modo de autoritarismo. Os cientistas eram tão dogmáticos como qualquer outro e uma forma de ver o mundo era tão boa como outra. 
Se o critérios de juízo era o consenso da comunidade, por que haveria alguém de se curvar perante os pronunciamentos dos cientistas? 
Os estudantes radicais leram a "Estrutura" como uma revelação da irracionalidade na ciência - o que, disse Kuhn, "me deu cabo da cabeça". Kuhn foi acusado de ser mais um "corruptor filosófico da juventude". 

Kuhn desprezava os 'kuhnianos' politicamente radicais. Não via que houvesse algo de interesse ideológico na "Estrutura": descrevia revoluções mas, devidamente compreendido, era "um livro profundamente conservador". 
Os cientistas eram criaturas de tradição: o seu objectivo era conservar e alargar a tradição e não derrubá-la e a mudança revolucionária - quando ocorria - era o produto de impulsos conservadores que esbarravam contra provas obstinadas. 
As "anomalias" que provocaram as crises científicas só surgiam quando as comunidades científicas que se esforçavam por preservar os métodos e realizações existentes eram forçadas a enfrentar os fracassos. Muitos na área do ensino da ciência viram na "Estrutura" algo que os radicais deixaram passar: o livro podia ser utilizado para apoiar a ideia de que a pedagogia deveria encorajar não a abertura de espírito, mas o seu oposto. E se havia algum sentimento marxisante no livro, era o Marx de The Eighteenth Brumaire of Louis Bonaparte: 'Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem como querem'. Eles fazem-no 'em circunstâncias já existentes, dadas e transmitidas do passado'.

Kuhn agonizava sobre poder ter ter alguma responsabilidade por todas as leituras erradas. Um filósofo visou aquilo a que chamou purple passages de Kuhn - por exemplo, não haver um padrão de juízo científico superior ao "parecer favorável da comunidade relevante". Kuhn aceitou a crítica: "Para minha consternação ... as minhas 
purple passages levaram muitos leitores da Structure a supor que estava a tentar minar a autoridade cognitiva da ciência". 
Kuhn sentiu-se obrigado a registar oficialmente que era 'pró-ciência'. Era um homem apaixonado, desconfiado e propenso a explosões - pela sua própria descrição, "ansioso" e "neurótico". Os entrevistadores eram tratados como maus leitores crónicos, obrigados a apresentar previamente as perguntas escritas e, na maioria das vezes, era-lhes negado o acesso. 
Kuhn aceitou uma responsabilidade limitada por erros de leitura, mas foi necessário traçar uma linha. Convidado para um seminário por estudantes universitários de Princeton inspirados pelo que tomaram como anti-autoritarismo do livro, Kuhn entrou em erupção. Dizia continuamente: "Eu não disse isso! Eu não disse isso! Eu não disse isso!"

Quando era jovem, o realizador de documentários Errol Morris entrou na escola de Princeton com a esperança de estudar com Kuhn. A experiência não foi o que esperava. 
Morris escreveu um trabalho de trinta páginas, em espaço duplo, para o seminário de Kuhn, incluindo passagens em que encontrou falhas na noção de paradigma. Kuhn detestou o artigo e escreveu trinta páginas de comentários em espaçamento simples como resposta; na discussão, Morris argumentou; o professor voltou a argumentar; os ânimos inflamaram-se. 
Segundo Morris, Kuhn ' gemia, pôs a cabeça entre as mãos e murmurou: "Ele está a tentar matar-me". 
No fim da discussão Kuhn, irado, atirou um cinzeiro 'com malícia', na sua direcção: 'Veio correndo pela sala, aos gritos'. (Kuhn e cinzeiros eram companheiros constantes; ele fumava mais de seis ou sete maços de cigarros por dia, e morreu de cancro na garganta). 
Primeiro Kuhn atirou o cinzeiro, depois atirou Morris para fora da universidade. A experiência roeu Morris durante cinquenta anos e foi suficientemente traumatizante para que em 2018 escrevesse um livro intitulado The Ashtray (Or the Man Who Denied Reality), no qual Kuhn é retratado como um intelectual pernicioso.

Eu próprio tive uma mão cheia de encontros com Kuhn ao longo dos anos. Eram geralmente simples, embora ele tenha acabado por me ver como um dos seus tristemente mal orientados 'fãs'. 
Os seus humores, contudo, podiam ser voláteis. Uma vez, como estudante júnior, fiz parte de um painel de conferências no qual Kuhn iria ser comentador. Na noite anterior, veio ter comigo ao átrio da conferência e disse que gostaria de me dar uma palavrinha. Disse-me que no dia seguinte iria ter de me "destruir". No entanto, o painel correu realmente bastante bem e o comentário de Kuhn apenas foi ligeiramente crítico. Mais tarde, veio pedir-me desculpa pela conversa no átrio: tinha relido o meu trabalho e apercebeu-se que tinha 'confundido' o meu argumento com o de outra pessoa. (Nunca percebi o que foi aquilo, ao certo).

A recepção da "Estrutura" foi um espinho constante. As críticas deixavam-no tão zangado que ele 'atirava-as pela sala' como um cinzeiro.
Kuhn foi educado numa série de ambientes relativamente isolados. Filho de uma família judaica de Nova Iorque (não praticante) abastada, Kuhn andou em escolas privadas progressistas e em 1940 entrou em Harvard, que o seu pai e outros membros da sua família também tinham frequentado. 
Sem saber exactamente o que queria fazer, Kuhn acabou por se dedicar à física, embora não a achasse emocionante. 
Dedicou-se à literatura inglesa e frequentou vários cursos de história. Recém licenciado em física, queria frequentar seminários de filosofia, mas as pessoas com quem desejava estudar ainda não tinham voltado da guerra e ficou ofendido com a ideia de ter de fazer cursos introdutórios. 
Quando era estudante de doutoramento, o presidente de Harvard, o químico James Bryant Conant, pediu-lhe para ensinar um novo curso de graduação - ciência para não cientistas - concebido como resposta à nova importância cultural e política da ciência no mundo pós-Hiroshima. 
A ideia de Conant era introduzir os futuros líderes da sociedade -o que os licenciados de Harvard iriam obviamente ser - às realidades da ciência tal como esta era realmente praticada. Para Conant, isto significava que, em vez da imagem tradicional da ciência, os estudantes seriam expostos a estudos de casos históricos da prática experimental. Foi o primeiro encontro significativo de Kuhn com a história da ciência e os estudos de caso do curso tiveram um lugar proeminente na "Estrutura".

A relação de Kuhn com o presidente de Harvard ajudou-o a ser eleito para a Society of Fellows de elite, onde teve três anos livres de responsabilidades para fazer o que quisesse e ler o que quisesse. 
Começou um programa auto-dirigido de leitura na história da ciência e áreas afins da psicologia e filosofia. 

Depois disso, ficou em Harvard, ensinando uma série de cursos de história da ciência e escreveu o seu primeiro livro, A Revolução Copernicana (1957). O livro mostrava porque é que o sistema de Copérnico, centrado no Sol, era "em muitos aspectos uma teoria científica típica e como a sua história pode ilustrar alguns dos processos pelos quais os conceitos científicos evoluem e substituem os seus predecessores" - mas o livro não era um trabalho programático, e não abordava o aparente conflito entre revolução e evolução. 
Kuhn esperava que o livro garantisse o seu lugar em Harvard - Conant, na altura Alto Comissário na Alemanha, escreveu um prefácio lisonjeiro - mas a sua candidatura foi recusada. 'Harvard não me queria' pensou, mas de facto, a avaliação de Harvard tinha sido de que o livro se baseava muito em fontes secundárias e pouco na pesquisa de arquivos originais. 
Ele foi procurar emprego noutro lugar. Entre 1956 e 1964 Kuhn esteve em Berkeley, passando um ano no Centro de Estudos Avançados de Stanford. Depois deixou a Califórnia para assumir o programa de história da ciência de Princeton. Em 1979 regressou a Cambridge, como professor de filosofia no MIT. Foi uma carreira de ouro, embora não aquilo a que se poderia chamar uma carreira normal. Estava isolado da cultura quotidiana e das preocupações do dia-a-dia.

Essa desconexão pesou sobre a sua identidade disciplinar. Ele reconheceu que a física teórica era "o único campo em que podia afirmar ter sido devidamente treinado". Tudo o que entrava no seu trabalho publicado provinha do auto-aprendizagem. 
A Estrutura das Revoluções Científicas foi o resultado de Kuhn vaguear entre as disciplinas, algo que na altura era muito difícil e que hoje é quase impossível. Kuhn estava ciente das lacunas na sua educação, mas presumiu correctamente que se tivesse sido educado de forma mais sistemática, não teria escrito um livro como a "Estrutura." 
Alinhou com a sabedoria tradicional de que os historiadores visavam narrativas sobre pormenores do passado e os filósofos visavam a teoria geral - e não pensava que ambos os objectivos pudessem ser realizados de uma só vez. 
Berkeley ofereceu-lhe um compromisso tanto no departamento de filosofia como no de história, e Kuhn aceitou o acordo conjunto porque, como disse, "eu queria fazer filosofia". Ele pensou na "Estrutura" como 'um livro para filósofos'. No entanto, quando pediu a Berkeley o cargo de titular em filosofia, foi-lhe dito que "os filósofos seniores tinham votado unanimemente a favor da sua promoção mas... na história". Essa rejeição corroeu-o durante anos.

A filosofia académica tem tendências de exclusão e as críticas dos filósofos à "Estrutura" tiveram algo a ver com a falta de profissionalismo disciplinar de Kuhn. Quando escreveu o livro, admitiu mais tarde, " não tinha lido muito de filosofia da ciência e não fazia ideia do que se passava nesse campo". 
O livro é frequentemente lido como um repúdio das posições 'positivistas' e 'empiristas lógicas' da ciência, mas a hostilidade de Kuhn não era muito informada por uma profunda familiaridade com essas tradições. 

Quando ele se referia a "esse tipo de imagem quotidiana do positivismo lógico", o que ele tinha em mente eram os pressupostos sobre "a natureza da ciência" frequentemente encontrados nas primeiras páginas dos manuais escolares. Kuhn pensava que os manuais escolares representavam grosseiramente as realidades da investigação científica e presumia o mesmo das opiniões dos filósofos sobre a ciência. 
Os filósofos não gostaram. Pensavam que ele os caricaturava e havia uma sensação de que Kuhn não era um filósofo.

A Estrutura das Revoluções Científicas tinha tornado Kuhn famoso. Tinha-lhe trazido uma audiência que ele não queria nem esperava e cujas atenções ele achava stressantes. 
O que fazer a seguir? Uma decisão firme foi nunca mais escrever esse tipo de livro, nunca mais escrever nada acessível ao leitor geral, nunca mais dar pérolas intelectuais a porcos. 

Nisto, Kuhn foi inteiramente bem sucedido. Em 1953 foi abordado pela primeira vez para escrever o ensaio enciclopédico que acabou por se tornar na "Estrutura", mas afirmou que a concepção básica do livro lhe chegou como uma epifania em 1947 - de modo que, no final, o livro foi um slog de quinze anos. 

Em 1951, foi-lhe pedido para dar um conjunto de palestras de interesse geral em Boston, que continham uma série de ideias centrais para a "Estrutura". Fio-lhe difícil prepará-las e "quase se foi abaixo". 

Depois da "Estrutura", demorou mais dezasseis anos até publicar um novo livro. Esta foi a Teoria de Corpo Negro e a Descontinuidade Quântica, 1894-1912 (1978), a única monografia que Kuhn publicou após a "Estrutura", um relato detalhado e exigente do papel de Max Planck no desenvolvimento da mecânica quântica. 
A Teoria do Corpo Negro foi bem recebida pelos historiadores da física moderna e por alguns filósofos da ciência, mas atraiu poucos outros leitores. Depois houve o grande livro deixado inacabado aquando da sua morte, muito do qual foi editado para inclusão nos Últimos Escritos. O livro tinha sido prometido, e fofocado, durante muitos anos. Kuhn esperava que ele fosse definitivo, e que resolvesse muitas das questões que a "Estrutura" tinha deixado penduradas
No entanto, embora milhões agora conheçam o nome Thomas Kuhn e saibam algo do seu segundo livro, poucos serão capazes de nomear qualquer outra coisa que ele tenha escrito, e menos ainda irão querer, ou ser capazes de trabalhar através dos rascunhos contidos nos Últimos Escritos.

Um público restrito era exactamente o que Kuhn pretendia. A esse respeito, a sua carreira acompanhou a trajectória da profissionalização académica em geral. A "Estrutura" era, como agora se diz, "interdisciplinar" - uma palavra que estava apenas a entrar em voga quando o livro apareceu. Era interdisciplinar não porque Kuhn o pretendesse como tal, mas devido ao problema que estava a abordar e ao ambiente institucional em que trabalhava, o que lhe permitia vaguear livremente entre as disciplinas estabelecidas. E à medida que essas disciplinas foram crescendo no poder ao longo das décadas que se seguiram, o ambiente de onde Kuhn emergiu tornou-se um habitat em perigo de extinção. 

Kuhn disse intermitentemente que era um historiador, mas à medida que o tempo foi passando, foi-se dirigindo cada vez mais às preocupações da filosofia anglo-americana. Kuhn desesperava com o estado da história da ciência. Ninguém, incluindo quase todos os seus estudantes (que eram poucos em número), estava a fazer a "história das ideias analíticas" que ele aprovou; a moda crescente do trabalho sobre "ciência e sociedade" irritava-o imensamente. Durante muitos anos, disse, não tinha "lido praticamente nada na história da ciência".

O caminho desde A Estrutura das Revoluções Científicas até aos esboços dos Últimos Escritos foi, em grande medida, uma longa caminhada de regresso - a tentativa de Kuhn de clarificar, rever, assegurar e modificar as purple passages, para se dissociar a si próprio e ao seu livro dos relativistas. 
Uma questão, contudo manteve com firmeza: não devia pensar -se que a mudança científica aproximava cada vez mais os cientistas "da verdade". Ele tinha procurado recuperar uma ideia de progresso a partir do relato de mudanças revolucionárias descontínuas e usou a linguagem da evolução para resolver problemas precipitados pela ideia de revolução. 

A evolução darwiniana descreve a mudança orgânica sem referência ao objectivo final - sem a ideia de que a mudança ia no sentido da perfeição da espécie humana. Então porque é que a noção de mudança científica deveria necessariamente implicar ir no sentido ou aproximar-se de "um relato completo, objectivo, verdadeiro da natureza"? 
O resultado da mudança, em termos kuhnianos, foi "a selecção por conflito no seio da comunidade científica da forma mais adequada de praticar a ciência do futuro". Kuhn invocou a mudança evolucionária para resolver alguns dos problemas filosóficos colocados pela sua própria noção de revoluções científicas descontínuas.

As tarefas assumidas do editor dos Últimos Escritos a que chama "o Kuhn tardio" ou "a filosofia madura de Kuhn" eram triplicadas: reparar e renomear a sua concepção original do "paradigma"; restringir o âmbito da "incomensurabilidade" e os problemas que ela colocava à objectividade científica; mostrar como o progresso poderia ocorrer através dos paradigmas e porque é que o envolvimento da subjectividade na ciência poderia ser considerado inócuo.

Kuhn considerava as críticas dos filósofos legítimas, respondeu-lhes e continuou a desenvolver as suas ideias sobre as estruturas regulamentares na ciência durante o resto da vida. 
Mas os paradigmas - que se tornaram selvagens na cultura - também o incomodaram; queixou-se de ter "perdido totalmente o controlo" da utilização correcta do termo, e prometeu que no futuro "raramente" o utilizaria. A Teoria do Corpo Negro continha apenas uma menção de um paradigma e não fazia qualquer referência à "Estrutura." 

Durante todo o tempo, Kuhn procurou reter a ideia de paradigmas como estruturas concretas, não regulamentares, e ao mesmo tempo rebaptizá-los como algo menos cativante, mais reconhecível para os filósofos, menos susceptível de circular na cultura mais ampla. 
Uma das primeiras possibilidades era a "matriz disciplinar", embora, à medida que Kuhn lustrou o termo, se parecesse muito com o paradigma. 

Na "Estrutura, o 'paradigma' figurava num relato da forma como a prática científica era organizada no dia a dia; em rascunhos do seu último trabalho, a palavra 'paradigma' aparece quase exclusivamente como referências à "Estrutura". Para escolher o que era que os grupos tinham em comum e utilizavam para coordenar as suas actividades, Kuhn veio a preferir os termos 'léxico estruturado' e 'conjunto de tipo estruturado', sinalizando assim uma filiação com teorias gerais de linguagem, significado e aplicação de conceitos.

Talvez as passagens mais puras da "Estrutura" fossem as que continham as alegações de que os paradigmas eram 'incomensuráveis' e que os cientistas de paradigmas diferentes vivem e trabalham 'num mundo diferente'. 
Não havia corpos de factos, métodos para estabelecer factos, ou teorias para interpretar os factos, que fossem independentes do paradigma; não havia um 'algoritmo neutro' para o juízo. 

Este era o Kuhn que era considerado um relativista realista e renegador da razão. Como se podia falar de objectividade ou de progresso, dada a incomensurabilidade de "outro mundo"? Kuhn distingue a compreensão dos historiadores da compreensão dos cientistas. 

Independentemente das questões que eram disputadas entre grupos científicos no passado, os cientistas eles partilham o suficiente para poderem compreender os métodos, conceitos e conhecimentos factuais dos opositores. Para eles, a incomensurabilidade é apenas local. Os historiadores, porém, olham para o passado a partir de uma distância cultural e para eles a incomensurabilidade parece total. 
Esta distinção limitou o problema da incomensurabilidade e impediu-o de estragar a imagem da racionalidade científica.

A Estrutura das Revoluções Científicas foi o trabalho de um amador. Tinha muitas das falhas, excessos e declarações a que os amadores são propensos. A sua concretude, os seus momentos aforísticos, e a indeterminação da sua identidade disciplinar tornaram-na acessível a muitos. No relato de Kuhn, a ciência continuou a ser um feito humano eminente, mesmo enquanto desacreditava as histórias tradicionalmente contadas sobre a forma como a ciência funcionava. 

A "Estrutura" não conseguiu fornecer uma história alternativa completamente convincente, mas na sua destruição do mito, foi um triunfo. Os escritos de Kuhn nos seus últimos anos são o trabalho de um profissional. São bem referenciados, bem defendidos contra possíveis mal-entendidos, firmemente centrados num público filosófico particular, purgados de retórica, estilizados para assegurar a sua inacessibilidade ao intelectualmente inculto. 
Os filósofos acabarão por dar o seu veredicto. Alguns aplaudirão a tentativa de Kuhn de fundamentar o seu relato da ciência numa teoria geral de significado e aplicação de conceitos; poucos, se é que há algum, assinalarão que isto é exactamente o que estava a ser feito há anos atrás pelos sociólogos da ciência que ele tanto desprezava.

Outros hão-de reter o juízo sobre um projecto inacabado e tomarão estes esboços principalmente como fontes-materiais para a biografia intelectual. Mas o caminho da "Estrutura" até aos últimos escritos tem as suas próprias histórias para contar. Uma delas tem a ver com a ambição de um autor individual - brilhante, original, picuinhas, apaixonado, outra sobre o poder das disciplinas à medida que controlam cada vez mais a vida académica e se afastam da esfera pública.


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