A globalização não é um processo de expansão meramente económico ou político, é também cultural. Sem entrar nas armadilhas, quer do etnocentrismo, quer do relativismo cultural, parece-me pacífica a ideia de que são as pessoas particulares e não os seus dirigentes ou cabides quem devemos ouvir no que respeita à questão da liberdade e do modo de vida das pessoas que constituem os cidadãos de cada país.
A maioria de nós tem agora, pelo menos, duas identidades:
1. a identidade com o seu país/povo de origem;
2. a identidade de cidadão do mundo que até há pouco tempo era algo de meia dúzia de pessoas, por assim dizer, que viviam a passar fronteiras e agora se espalhou a quase toda a população mundial, por várias razões:
- os problemas que nos afectam são globais - o ambiente, o excesso de população, as desigualdades sociais, etc.;
- os valores dos Direitos Humanos vieram substituir os valores das religiões e, ao contrário destas, esbatem fronteiras e criam círculos cada vez mais alargados de identificação e solidariedade: identificamo-nos, enquanto mulheres com o sofrimento de outras mulheres e, num círculo mais alargado, identificamo-nos com elas enquanto seres humanos, independentemente de sermos mulheres ou homens;
- o alargamento da educação obrigatória e, como consequência, a exigência de racionalidade nas normas que regem a nossa vida -por isso, os discursos dos governantes onde 'garantem' que as coisas são de um modo já não passam, porque pedem fé onde as pessoas querem razões;
- a ideia de intervenção e responsabilidade pessoais, herdeiras do despertar da consciência da Humanidade no rescaldo dos crimes nazis;
- a internet e a facilidade de comunicação global.
Por exemplo, sou uma pessoa que se sente cidadã do meu país -portuguesa, neste caso-, mas também europeia, nos valores e, ao mesmo tempo, cidadã do mundo. Isso agora é vulgar. Sinto-me, enquanto mulher, solidária com o sofrimento e a violação de direitos das mulheres oprimidas nestes regimes de fascismo teocrático, sigo as que posso através das redes sociais e acompanho a interacção dessas mulheres com mulheres de todas as culturas. Há uma grande solidariedade e apoio que ultrapassa a cultura fechada dos países respectivos, o que mostra que em todo o lado as pessoas têm um nível de vivência cultural, paralelo ao nacional, mais abrangente, mais abstracto, trans-nacional. As pessoas ligam-se pelos Direitos Humanos umas às outras em qualquer ponto do mundo.
A mesma coisa acontece na participação em grupos ambientais, científicos, artísticos, etc. - são cada vez mais trans-nacionais e em todos os povos, vemos que há valores dos Direitos Humanos que são assumidos e queridos pelas pessoas e que as ligam activamente aos outros seres humanos do planeta.
Aliás, a Carta dos Direitos Humanos -um dos grandes textos da Humanidade- reconhece, no seu preâmbulo, o parentesco de todos nós numa grande família e a existência de uma consciência global da Humanidade, em nome da qual a Carta fala, independente das culturas dos povos:
Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo;
Considerando que o desconhecimento e o desprezo dos direitos do homem conduziram a actos de barbárie que revoltam a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os seres humanos sejam livres de falar e de crer, libertos do terror e da miséria, foi proclamado como a mais alta inspiração do homem;
É por isso que interessa pouco que os líderes talibãs digam que as pessoas do seu país querem a sharia. O que interessa é saber se aqueles que vão sofrer com ela, a querem. Ora, sabemos que não a querem, nem no Afeganistão, nem no Irão, nem na Arábia Saudita bem como em outros países. E sabemo-lo porque o dizem, porque pedem ajuda, porque os regimes só as calam com a prisão, a tortura e a morte.
Assim como já não estamos no tempo em que se dizia, relativamente às cenas de pancada, 'entre marido e mulher não metas a colher', também já não estamos no tempo em que se dizia, 'cada país tem a sua cultura e não podemos intrometer-nos'. Não podemos usar o argumento da tolerância para tolerar o intolerável.
Não quero com isto defender que há culturas ou países que têm a verdade e devem impô-la aos outros, como têm feito as grandes potências. Quero dizer que há limites, dentro de cada cultura para o que nós todos, enquanto consciência da Humanidade, aceitamos que façam na casa ao lado, por assim dizer. E os limites têm que ser aqueles que estão inscritos na Carta dos Direitos Humanos:
Artigo 3.º
Todo o indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.
Artigo 4.º
Ninguém será mantido em escravatura ou em servidão; a escravatura e o trato dos escravos, sob todas as formas, são proibidos.
Artigo 5.º
Ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes.
Artigo 6.º
Todos os indivíduos têm direito ao reconhecimento em todos os lugares da sua personalidade jurídica.
Artigo 7.º
Todos são iguais perante a lei e, sem distinção, têm direito a igual protecção da lei. Todos têm direito a protecção igual contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.
Todos nós vemos quando estes direitos estão a ser grosseiramente atropelados e esse é o limite. Precisamos de mais, não menos, ONU. Mais e melhor, mais eficaz. Uma ONU diferente, com mais força de acção e persuasão. Afinal, todos assinaram a Carta.
E é por isso que não podemos encolher os ombros ao que se passa no Afeganistão, no Irão, na Arábia Saudita, etc., como se fosse uma problema cultural local. Já não o é. Agora é um problema global.
A União Europeia é um excelente balão de ensaio das possibilidades humanas e espero que o resultado desta aventura seja positivo e vá nessa direcção de sermos capazes de ver o global, o que nos une para além do local que nos desune e de construir uma Carta Ética forte e não fraca. É por isso que custa que a Inglaterra tenha abandonado o projecto.
É verdade que a invocação dos Direitos Humanos tem um lado perverso (nada neste mundo é só virtude) que é o de as pessoas assumirem que têm direito a tudo sem esforço e luta, apenas por serem humanas, mas esses casos restringem-se aos direitos que implicam materialização: casa, emprego com salário decente, etc., porque no que respeita aos Direitos fundamentais: de vida, de segurança, de liberdade, de paridade face à lei, de educação, esses, temos de os garantir a todos, independentemente da cultura local.
Em suma: precisamos agora de estratégias e não de desculpas, de atirar culpas e de discursos de relativização da opressão. A globalização não pode ser apenas uma expansão económica à lógica da qual tudo se submete, mesmo a vida das pessoas.