October 07, 2021

A voz de Zarifa




A voz de Zarifa



Carlos Carreiras
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Zarifa fala pelas meninas e mulheres que não têm voz. Não sejamos cúmplices com o silêncio. Que com a nossa ajuda a sua voz se ouça ainda mais alto e mais longe.

Quando se fala, nem que seja por minutos, com alguém como Zarifa Ghafari, o resultado só pode ser um grande banho de realidade. Tinha acabado de celebrar mais uma vitória eleitoral em Cascais. A noite de domingo 26 de setembro tinha sido longa. Segunda-feira, logo ao início da tarde, o meu primeiro compromisso de agenda assinalava uma “receção oficial a uma das primeiras mulheres presidente de câmara no Afeganistão”. Por mais que nos sintamos próximos desta massacrada nação que diariamente nos entra pela televisão adentro, não estamos, nunca podemos estar, preparados para o contacto, ainda que remoto, com o Afeganistão, também conhecido como o lugar onde a loucura e a bondade andam de braço dado. Uma coisa é saber que a violência faz parte do dia-a-dia. Outra, bem diferente, é estar cara a cara com os que exibem, nas palavras e na pele, as marcas da crueldade dos teocratas.

Quero falar-lhe do encontro que tive com Zarifa. Ou, melhor, quero contar-lhe a história desta jovem afegã de 29 anos, voz firme e olhar intrépido. Zarifa Ghafari tornou-se uma das primeiras mulheres autarcas do Afeganistão. Tinha apenas 26 anos quando, em 2018, foi eleita presidente de Maidan Shar, uma cidade conservadora, onde os talibãs são bastante populares, a apenas uma hora de caminho a oeste de Cabul. Sem surpresa, a presidente de Câmara viu-se demasiadas vezes envolvida em problemas. Colecionava ameaças diariamente. A sabotagem ao seu trabalho começava dentro do seu próprio gabinete, onde uma corte de informadores passava aos talibãs a rotina da sua líder. A coragem que movia Zarifa, reforçada pela esperança de um futuro melhor para a sua cidade e o seu país, estava ausente nos que a rodeavam.

Zarifa era uma ameaça para os talibãs não apenas por ser presidente de câmara ou por trabalhar com o Ministério da Defesa na proteção das vítimas da guerra. Zarifa é uma ameaça para os radicais pelo que representa: ela é a cara dos direitos das mulheres e das meninas num dos lugares mais violentos e brutais do mundo. “Não tenho armas, mas tenho a minha voz”, disse-me Zarifa.

Escusado será dizer que destemor lhe valeu uma sentença de morte pelos talibãs.
Durante o seu mandato, interrompido abruptamente pela queda do Governo afegão democraticamente eleito, Zarifa sofreu três tentativas de assassinato. Certo dia, enquanto encostou para ir à farmácia, um grupo de homens passa e “pum, pum, pum, pum”, descarrega rajadas sucessivas no carro da ‘mayor’. Outra vez, tentaram matá-la com uma explosão de gás em sua casa – as marcas contam essa história. Ao todo, três tentativas de assassinato falhadas. Zarifa não tombou. Por isso procuraram a sua família. Oficial do exército, o seu pai foi o primeiro alvo dos talibãs.

Enquanto isso, os americanos retiram-se de forma atabalhoada. Numa questão de dias, num dos fiascos estratégicos do Ocidente que a história se encarregará de lembrar, os talibãs tomam conta de todo o país. “Estava à espera que me viessem buscar para morrer”, confessa a jovem. Felizmente, não esperou. Zarifa percebeu que a sua permanência no Afeganistão, onde queria continuar a luta, seria em vão. Pior, estava a colocar toda a sua família em risco.

Esborrachada contra o chão de uma carrinha, saiu de Maidan Shar em direção a Cabul nos caóticos dias de Agosto, enquanto o mundo assistia pela televisão ao desmoronar de um país em direto. Escapou por um triz a um controlo dos talibãs no acesso ao aeroporto e conseguiu fugir em direção à Turquia num golpe de sorte.

Hoje a viver exilada na Alemanha, Zarifa não tem poupado esforços para erguer a voz das meninas e mulheres afegãs junto das opiniões públicas Ocidentais. De passagem por Cascais, ela promete continuar a lutar. E pede apoio a todos. Porque todos podem fazer a sua parte: os cidadãos podem levantar a sua voz, colocando pressão nos governos; os governos podem sentir a pressão dos cidadãos, pressionando diplomaticamente os talibãs e os seus apoiantes (nomeadamente o Paquistão) para uma solução que preserve os direitos humanos no Afeganistão. Aquele que é, provavelmente, o pior lugar do mundo para se ser menina ou mulher.

Só para os crédulos o fim de uma guerra eterna seria sinónimo de paz eterna. O “acordo de paz” negociado por Washington com os Talibãs está morto – se é que alguma vez viu a luz do dia. Logo em 2020, ainda a tinta no papel estava fresca, já os talibãs levavam a cabo uma campanha de assassinatos dirigidos, ataques a escolas, hospitais e maternidades, num total de mais de 3000 mortos e 5800 feridos. Todos civis.

Na loucura do verão, duas imagens ficaram gravadas na minha memória como prenuncia de tempos de chumbo para o povo afegão. Por um lado o desespero às portas do aeroporto de Cabul, num amontoado de gente que se espezinhava para escapar à tirania. Por outro a profanação e destruição do mausoléu de Ahmad Shah Massoud, o mítico “Leão de Panjshir” e Némesis dos talibãs.

Foi como se a réstia de esperança para o Afeganistão desaparecesse num sopro.

Ouvir Zarifa Ghafari restaura a confiança num futuro melhor para o povo afegão. Um futuro que podemos ajudar a construir com ações concretas, como assinar a petição de Zarifa.

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