April 10, 2023

L'ennui

 

Acordei cedo e vi um um filme enquanto tomava o pequeno-almoço. O filme é da Sofia Coppola e chama-se, “Some­where”. Começa com uma imagem de um Ferrari preto a entrar numa estrada movimentada de Los Angeles e acaba com o mesmo Ferrari a sair em direcção ao deserto, onde a personagem principal do filme, Johnny Marco, a certa altura pára o carro, sai e vai-se embora a pé. No meio destas duas cenas acompanhamos um pedaço da sua vida completamente vazia de actor famoso de Hollywood, onde o Ferrari representa o absurdo de ter um carro que anda velozmente para... lado nenhum.

Neste filme, Johnny Marco é um actor famoso que está hospedado no Chateau Marmont, um hotel para estrelas de Hollywood descansarem. Está com um braço engessado. A vida dele é completamente vazia e ele faz tudo mecanicamente, sem encontrar prazer em nada. Ele é uma pessoa sem recursos internos. Quando a publicista lhe liga e manda ir aqui ou ali dar uma entrevista ele vai e faz o que ela manda. A vida dele é esperar que a agente lhe diga que filme fazer, que a publicista lhe diga que entrevista dar e o que dizer, que lhe liguem a dizer que precisa de regravar uma cena para a qual fica quietinho, durante horas, enquanto o caracterizam, etc. De resto, fora ter um encontro com algum colega de trabalho aqui ou ali ou aparecer numa festa onde tudo é superficial e cheio de álcool, passa o tempo sozinho, apesar de ter sempre muitas mulheres a tentarem falar com ele, mas que não o vêem a ele, só vêem o actor famoso e o suposto glamour que o rodeia. De maneira que ocupa o tempo a beber, a tomar drogas ou com prostitutas, streepers que contrata para irem ao hotel fazer performances particulares. O sexo é como a vida dele: mecânico, vazio e sem significado e as pessoas com quem mais fala são os empregados do hotel. O mais que ele faz é fumar e olhar para as paredes.

É divorciado e a filha adolescente de 11 ou 12 anos anos vai passar uns tempos com ele. Durante esse período anima-se e cria uma relação positiva com ela, mas que vemos ser temporária, porque ela vive com a mãe. Ela acompanha-o a Milão para receber um prémio e dar entrevistas e observa a vida desligada dele. Compreendemos que a própria Sofia deve ter observado muitos actores em hotéis a viver estas vidas de glamour, vazias e extremamente infelizes, como a de Johnny Marco.

A certa altura Johnny Marco vai pôr a filha num campo de férias e volta àquela vida de profundo vazio. Liga à ex-mulher e chora, desabafa, diz-lhe que não é ninguém e que a vida dele é nada. Pede-lhe que vá ter com ele. Percebemos que lhe falta uma relação humana profunda e significativa com alguém, que vislumbrou essa realidade naquele período em que esteve com a filha e que depois disso o vazio é ainda pior. Não sabemos o que se passou entre eles antes do divórcio, mas ela diz que não pode ir ter com ele. Então, ele sai do hotel, diz ao empregado que não vai voltar, acelera o Ferrari em direcção ao deserto -que é a vida dele- onde abandona o carro na berma, com a chave lá dentro e, percebemos, abandona aquela vida vazia.

Gosto muito dos filmes da Sofia Coppola e sobretudo dos intimistas, como este, que são uma espécie de trabalho de relojoeiro onde todo o interior das personagens fica à vista, provavelmente por ele mesmo ter vivido uma vida de hotéis de famosos quando era nova e acompanhava o pai nas filmagens e ter passado horas infindas a observar os bastidores do universo cinematográfico. 

Ter uma vida de sucesso ocupada com muitas tarefas e ter uma vida com sentido são duas coisas diferentes e a primeira sem a segunda leva àquilo que os franceses chamam, l'ennui.

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