Num discurso proferido no Primeiro Congresso de Escritores Soviéticos da União Soviética, em Moscovo, em 1934, o secretário do Comité Central, Andreï Zhdanov, recordou aos reunidos a recente declaração do camarada Estaline de que, na União Soviética, os escritores eram agora os
engenheiros da alma humana.
Que obrigações implica esta denominação? Diz Zhdanov, a realidade não
deve ser retratada "nem 'escolasticamente' nem sem vida, nem simplesmente como 'realidade objectiva', mas sim como realidade no seu desenvolvimento revolucionário". A veracidade e exactidão histórica da imagem artística deve estar ligada à tarefa de transformação ideológica, da educação do povo trabalhador no espírito do socialismo. Este método na ficção e na crítica literária é o que chamamos o método do realismo socialista".
A literatura, nesta linha, deve ser
fundamentalmente optimista, uma vez que é a literatura da classe proletária em ascensão, hoje a única classe progressista e avançada. -continua ele-
A nossa literatura soviética é forte porque serve uma nova causa - a causa da construção socialista. A literatura das nações imperialistas burguesas, pelo contrário - excluindo aquele pequeno número de autores ocidentais que tinham jogado no seu terreno com o proletariado global, um punhado dos quais estava presente nos Congressos de All-Union - é, pensa Zhdanov,
um motim de misticismo, mania religiosa e pornografia... característico do declínio e decadência da cultura burguesa. As 'celebridades'
daquela literatura burguesa que vendeu a sua caneta ao capital são hoje ladrões, detectives, prostitutas, chulos e gangsters.
Os engenheiros da alma humana lidaram com o «mal» pela supressão.
Ora, a literatura, a literatura real, lida com o mal através do poder da sublimação imaginativa. O que é, obscuro, tabu ou errado é apresentado de uma maneira que faz com que nos compreendamos, através dela, no que temos -individual e colectivamente- de obscuro, tabu ou errado.
Temos hoje Zhdanovs adequados ao nosso tempo: promovem, não tanto uma "engenharia de almas", mas uma "gestão de recursos humanos de almas". A ascensão dos RH como o poder organizador central da sociedade vai muito além da literatura, é claro. Os nossos Zhdanovs, os legisladores de almas do nosso Parlamento, querem instituir a «boa» intervenção pública, seja nas redes sociais, nos jornais, na literatura, nos currículos educativos, nas universidades e no espaço público em geral: quem está de acordo com a «boa» política da empresa, que é a sociedade -para quem ainda não percebeu-, tem lugar, mas quem não está de acordo com a «boa» política da empresa, ou vai fazer uma reeducação (soviéticos e chineses eram/são especialistas nisso) e volta submisso aos valores da positividade actual (como aquele actor que pediu desculpa de modo humilhante por ter chamado 'país' a Taiwan) da empresa ou é suprimido do espaço público.
A democracia favorece os medíocres? A ditadura também... ... o poder em geral, favorece os medíocres.
censura-disseram-eles?José Ribeiro e Castro
(...)
Agora, António Barreto fez as perguntas certas no artigo “A Inquisição, a Censura e o Estado” no Público: «Que se passa com os intelectuais, os jornalistas, os académicos e os artistas que não prestaram atenção a esta lei repressiva e embrionariamente totalitária (…)? Que se passa com os sindicatos, as confederações, os magistrados e as sociedades profissionais tão alheios à aprovação desta lei? Que se passa com os partidos que votaram a favor do condicionamento da liberdade de expressão e de pensamento? Que se passa com a Assembleia de deputados e o Presidente da República que não se aperceberam do que aprovaram (…)? Que se passa com os partidos que se abstiveram? Que se passa com 230 deputados portugueses, eleitos pelo povo, que não criticaram o mais grave atentado contra a liberdade de expressão desde a aprovação da Constituição de 1933? Que se passa com os cidadãos deste país que não viram o que estava a acontecer e que assim permitem que o Estado venha a ter um papel determinante na definição dos limites do pensamento e do tom da sua expressão?»(...)
A lei é uma boa ideia, mas convém descer à Terra: uma Carta de Direitos Digitais. É este, aliás, o seu melhor lado. Não deve misturar a consagração e garantia destes novos direitos com a introdução de restrições no exercício de direitos humanos gerais em modo digital. Não pode pôr em causa liberdades fundamentais. Não pode licenciar a censura, seja directamente, seja em regime de franchising – aqui, a lei é uma nódoa, a remover rapidamente. Além disso, precisa de amadurecer muitas questões abordadas na fase de consultas e que não foram consideradas. Em suma, o melhor seria voltar à casa da partida.