Em toda a desordem há uma ordem secreta ~Jung
Amanhã começa o ano lectivo a sério. Começam as aulas.
imagem, TB
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Sexta-feira está marcada uma reunião sindical, em Lisboa, nas imediações do ME onde vão decorrer as conversas entre o ME e o S.TO.P., convocada legalmente. E como se pode ver, os alunos estão connosco.
Fotografias da Rita, do 11°Ano.
A aula começa muito bem (entrámos na Filosofia da Religião) e corre muito bem e de repente os alunos entusiasmam-se e desatam a fazer perguntas e aos poucos vamo-nos afastando do tema e no fim estamos a falar da emigração e da falta de bebés... hã...? Pois, às vezes acontece.
Já não estava habituada a falar de máscara para trinta alunos durante uma hora e meia. A meio da aula tive que vir à porta mudar de máscara porque já estava com a máscara molhada. Vários alunos a faltar por estarem em isolamento ou com Covid.
Fora isso, os alunos põem-me bem disposta. Muito simpáticos. Quando se entra nas aulas está-se ali a 100% como se não existisse mundo fora dali e nem podia ser de outro modo porque os miúdos são demasiados vivazes. Este período vai ser enorme e complicado com a cena do Covid...
Fui, de manhã, fazer um teste ao Covid-19. Recebi agora o resultado no email. Estou negativa.
Entretanto, lembrei-me de transformar uma situação negativa em positiva. Falo de estamos desde o início do ano de máscara -nós e os alunos-, embora os alunos, ao contrário do que li e ouvi nestes últimos tempos psicólogos a afirmaram, i.é., que os alunos estão deprimidos porque não conhecem a cara uns dos outros, seja falso, porque nos espaços exteriores a maior parte anda sem máscara e muitos encontram-se fora da escola uns com os outros mas, como dizia, o facto de estarmos todos de máscara nas aulas e não podermos usar a expressão facial na comunicação (um grande prejuízo para a comunicação) resolvi desafiar os alunos a fazer um vídeo a partir de pequenos vídeos ou fotografias de todos nós. É uma ideia em construção.
Esta semana, para levar os alunos a perceberem a importância da Lógica nas suas vidas, na medida em que o que fazemos é uma consequência do que pensamos, do que se passa nas nossas mentes, roubei a ideia do William James acerca da mente ser uma sala e pedi aos alunos que visualizassem as suas mentes como uma sala e tentassem perceber, em primeiro lugar, como queriam a sala, dado que passam [passamos] grande parte da nossa vida dentro da nossa mente, logo, dentro daquela sala. Em primeiro lugar, concluímos todos, queremos que a sala seja agradável, já que passamos lá tanto tempo, o que significa, ser mais positiva que negativa, ter mais ideias e emoções positivas que negativas. Ser mais clara e alegre que escura e triste. No passo seguinte quis saber como faziam a arrumação da sala das suas mentes. Resposta imediata de uma aluna: 'Arrumação? É uma confusão. Dentro da cabeça é uma confusão. Quando nos pomos a pensar ficamos baralhados.' Bem, aí fui ao quadro e desenhei um quadrado e fui lá pondo dentro as peças desordenadas que eles diziam: mesas, panos, cadernos da escola, imagens de pessoas, buracos no chão, zonas que metem medo, imagens do Verão, etc.' Ficou claro depois disto -o quadrado parecia uma má imitação de um desenho abstracto modernista, que é impossível uma pessoa ser capaz de se organizar na vida e ter acções coerentes e consequentes, tendo a 'cabeça' naquela desarrumação que torna impossível a orientação. É claro que há uma parte da mente que tem mesmo de ser um bocado caótica para se manter criativa, mas isso é outro passo mais à frente. Agora é o tempo de aprender as regras para saber como arrumar as ideias, isto é, como saber pensar e pensar-se. Foi um exercício interessante que fez pensar e progredir. Uma ruptura positiva numa aula muito teórica e abstracta. Em cada aula tem que haver aquilo que chamo, 'uma queda do professor', quer dizer um acontecimento, que pode ser uma ideia como esta, que convoque o pensamento e a imaginação e seja muito significativa na vida deles e um motor de aprendizagem, de maneira que fique lá na memória um marcador indelével que depois espolete todo o assunto da aula- qualquer coisa meio inesquecível como seria a aula em que um professor desse uma enorme queda. Nem sempre se consegue, mas é o ideal.
Estava numa turma na semana passada e estávamos a falar do que são os problemas humanos e a questão do sentido da vida estar ligado à felicidade foi trazida à colação por uma miúda e eu disse, 'não sei o que entende por felicidade'. Depois perguntei à turma qual é a ideia deles de felicidade. Uma aluna disse logo, 'não acredito que haja uma coisa que dê toda a felicidade. Há várias coisas que vão dando felicidade'. Um rapaz disse, 'para mim a felicidade está ligada a atingir objectivos'. Outra aluna, 'para mim a felicidade é ter paz' (percebi logo tanta coisa desta aluna...); outra: para mim é estar bem com os outros e sentir-me bem'; outro: precisamos de ter coisas para podermos depois tratar de procurar a felicidade'. As respostas foram todas neste tom. Tenho expectativas muito positivas com esta turma.
Há qualquer coisa de esperança no mundo quando vemos miúdos no começo da vida já tão engagées.
Hoje as aulas já foram a sério. Já não foram sobre regras da escola, regras do Covid, instruções e isso. Hoje entrámos na filosofia e armei a confusão para tomar balanço às turmas. Estivemos a falar sobre perguntas, problemas, delimitação de problemas, tipos de perguntas e sobre a vida e a morte. Há lá miúdos que dão luta e pareceu-me que há ali material. Vamos ver. Para já estou animada.
Uma das turmas ainda não tem professor de Inglês.
Já não estava habituada ao ritmo das aulas. E ao calor das salas. Porém, quando o tempo esfriar um bom bocado vai saber-me bem sair da escola ao fim da tarde e vir por aí a apanhar o fresco na cara.
Hoje perguntei nas aulas quem é que tem, ou alguma vez teve, um plano de estudo. Ninguém. Nunca.
Enfim, vamos ter de alterar isso.
Agora estava à procura de umas cenas para as aulas e fui dar com este molho de cadernos. Excepto dois que são dedicados a DTs, os outros 15 são cadernos -que compro na escola todos os anos- de apontamentos das discussões de trabalhos das turmas. No fim de cada ano atiro-os para o molho. Não sei porque os guardo, mas de vez em quando, dá-me para abrir um caderno e, não só me lembro das turmas e dos alunos, como de muitas das discussões.
A maioria destas notas diz respeito a trabalhos que os alunos argumentam uns com os outros de um conjunto de temas que eu e eles sugerimos. Eu só intervenho na preparação da discussão e orientação da parte escrita do trabalho. A argumentação são eles que a fazem, num cenário que montamos dentro da sala, para ser tudo muito sério e formal.
Eu aponto todos os argumentos que cada um usou durante a discussão argumentativa e vou logo qualificando, com um critério que tenho, para ajudar depois a ponderar as classificações. Há discussões muitos boas. Esta cujas notas se vêem aí no caderno aberto tem dez anos e foi de uma turma do 11º ano. Estes dois grupos, em particular, estavam a discutir o tema, 'A guerra é inevitável ou a paz é possível?' Cada grupo tinha a defesa de uma posição face à questão. A discussão foi muito boa. É claro que folheio os cadernos e encontro muitas discussões pobres... há de tudo.
Enfim, teve piada vir dar com isto.
Hoje fui à farmácia onde costumo ir. O espaço é maior que uma sala de aula e só é permitido estarem lá dentro cinco pessoas de cada vez, fora os funcionários da farmácia que são em número máximo de quatro, embora raramente lá estejam mais de três. Às vezes também lá está uma senhora da limpeza. Portanto, no máximo, dez pessoas naquele espaço.
Quero ver se as turmas estão a trinta alunos como de costume, dentro de um espaço onde devia estar uma dúzia mais o professor. Vá lá, dezasseis, um por mesa.
Depois venho aqui contar como é.
... nesta questão. Não vejo qual é o problema da aula estar a ser transmitida para casa dos alunos. Até me parece que, havendo condições técnicas, é a melhor solução. Dizem-me que numa grande quantidade de escolas, os professores cumprem o horário na escola e depois vão dar aulas online para casa, para os alunos que não puderam ir à escola, o que me parece uma muito clara violação do contrato de trabalho. É a duplicação do horário de trabalho, em cada turma em que isso acontece.
Mais, até penso que relativamente aos alunos mais velhos, devia ter-se adoptado, sempre que houvesse condições técnicas, a estratégia de metade da turma ter aulas na escola e o resto assistir em casa, numa semana e na seguinte trocavam, o que garantia que em vez de turmas com 30 se tivesse turmas com 15. Um outro nível de segurança.
É verdade que os alunos podem gravar as aulas sem autorização, mas isso também podem gravar o Nogueira quando aparece e na TV e depois manipular a imagem... tanto num caso como noutro, arriscam-se a levar com um processo. É para isso que existem leis.
Aulas presenciais filmadas e/ou gravadas não são solução. Validade pedagógica questionável, prejudicando os alunos e pondo em causa a autonomia profissional e pedagógica dos docentes
Surpreendentemente [pelo menos para mim] uma grande maioria de alunos, quando estamos a discutir o que é ser-se humano, ainda diz é sermos racionais. E quando lhes contrapomos que os outros animais também têm inteligência e são racionais, negam e teimam que não, que os outros animais são irracionais. E mesmo quando fazemos notar que têm cérebro, um sistema nervoso, que aprendem -muitos deles têm cães e gatos- eles não querem acreditar e ficam com uma expressão de confusão na cara, de quem acabou de descobrir que certa coisa que pensavam pertencer-lhes em exclusivo, afinal é banal e muitos outros o têm.
Aliás, eles dizem, 'os animais são irracionais' e eu corrijo, 'os OUTROS animais não são irracionais'. A maioria não vê o humano como um animal e é por isso que acredita não ser possível partilharmos certas características. Os miúdos não são parvos e acabam por pensar e perceber até porque mostramos evidências, mas é um choque para a maioria deles, perceber que são mais parecidos com os outros animais do que julgavam. Acho isto um sinal cultural interessante e que pode explicar alguns comportamentos.
Enfim, este vídeo onde é visível que o cão está a perceber o que se passa no filme e fica emocionalmente perturbado, é bom para provocar quando surgirem estas 'certezas' de que os outros animais são pensam, não compreendem, não têm inteligência e estão num universo oposto ao nosso.
Quem pensa que as aulas de Moral nas escolas são muito diferentes da cidadania, se fosse às escolas tinha grandes surpresas. Digo isto, sendo, não apenas uma não-crente como uma grande crítica da influência nefasta das igrejas e da educação religiosa, o pior veneno contra os direitos das mulheres da toda a história e uns fanáticos do controlo sexual de toda a gente.
No entanto, devo também dizer que a disciplina de Moral na escola não tem nada a ver com o que era quando fui aluna. A professora de Moral da minha escola faz um trabalho muito válido. Não endoutrina os alunos. Faz um trabalho ligado a questões éticas e a problemas da adolescência.
Organiza conferências e palestras à volta de temas que interessam aos alunos. Todos os anos leva lá pessoas da área da saúde para falar de diversos assuntos: sexualidade, alcoolismo, questões ligadas ao sofrimento psicológico, como a depressão, o bullying, a bulimia, a anorexia. Também leva à escola polícias para falar da violência no namoro, do ciúme e do controlo no namoro e como isso leva à violência doméstica. É muito interessante porque os polícias contam casos típicos onde muitos alunos se revêem.
Organiza estas sessões para todos os alunos da escola que queira inscrever-se. Nós professores, se podemos, levamos a turma a participar. Trabalha com a colaboração de uma enfermeira que faz a ponte entre a escola e o hospital e os centros de saúde e arranja consultas para alunos que precisem e os pais não possam. Eu uso-me muito dela e da enfermeira para ajudar alunos que precisam urgentemente de ajuda.
Ela ouve os problemas dos miúdos, fala com eles. Tem um trabalho difícil porque não trabalha com turmas completas, dado que em cada turma há três ou quatro que escolhem a disciplina, de modo que trabalha com 45 turmas, por exemplo. Não é nada fácil, nomeadamente os miúdos do 7º e 8º anos. Há dois anos, a propósito da violência no namoro, um grupo de alunos dela fez uma instalação no átrio da escola, muito boa. Faz melhor trabalho nesses assuntos que alguns professores que se armam em grandes éticos mas não têm respeito nenhum pelos colegas e endoutrinam alunos sem vergonha nenhuma e com o aplauso de muitos [estou um bocado amarga..?. estou chateada].
Isto tudo para dizer que os comentadores de jornais, que sabem quase nada do que se passa nas escolas têm uma ideia muito errada do que lá se faz e dos méritos desta disciplina do evangelista. Outro dia, no DN, um indivíduo começava a crónica assim, 'eu sei tudo de dar aulas porque a minha mãe era professora'. Isto é o nível dos comentadores. O meu pai era engenheiro. Naturalmente percebo tudo de engenharia. Ahh, não, espera lá... engenharia é diferente de educação porque educação toda a gente é especialista...
A filosofia é linguagem e para se entender o pensamento de um filósofo, é necessário saber o significado dos conceitos que usa como ferramentas para analisar a realidade. Tome-se uma palavra como substância: embora ela tenha uma raíz que a identifica como o que subjaz, os filósofos usaram-na em sentidos e interpretações diferentes e a palavra tem uma longa história. Isto não é nenhuma ideia extraordinária. Também nas ciências exactas cada termo é definido com rigor. Basta olhar a tabela periódica com os pesos atómicos exactos dos elementos. Mas a linguagem da filosofia não tem o rigor matemático da Física, por exemplo, de modo que antes de começarmos a falar temos que clarificar muito bem os conceitos.
O que é que aquele filósofo quis dizer com aquele conceito e com que propósito? Por muito abstracta e hermética que pareça a linguagem de uma filosofia, ela refere-se sempre a nós, humanos e aos nossos problemas e os conceitos que usa são essa ponte que permite passar do pensamento que pensa às coisas pensadas. Os termos têm um contexto porque o filósofo é um indivíduo com um pé no seu tempo, embora tenho outro a transcendê-lo.
Há filósofos que são relativamente fáceis de ler, comparativamente a outros. Kant, por exemplo, é muito sistemático, explica com clareza os conceitos, dá exemplos, contextualiza. Mas não Hegel.
Lembro-me de estudar Hegel, na faculdade. Tirei uma grande nota nessa cadeira. Fizemos um teste sobre Hegel e eu falei muito bem daquilo tudo sobre o espírito e o absoluto que se desdobra em alteridade e como é necessária a negatividade e sem ela a essência é vazia e isso tudo, mas sem perceber o que raio ele queria dizer com isso... ele estava a falar de quê propriamente? De Deus? E o que era aquilo de se dividir em alteridade?
Eu falava dele como se o pensamento dele fosse um jogo lógico, onde eu sabia sem me enganar a ordem de encaixe dos conceitos, da mesma maneira que vejo muitos alunos saberem resolver um problema de trigonometria, mas quando lhes pergunto o que é a matemática e o que é a trigonometria, não sabem dizer, não fazem ideia. Resolvem os problemas como se fosse um jogo de que conhecem as regras e nada mais.
Era o que eu fazia a falar de Hegel, percebendo muito bem e com alguma frustração que o significado do jogo me escapava completamente. Lembro-me de falar com o professor da cadeira e de dizer-lhe que nem sempre percebia do que Hegel estava a falar. E ele explicou-me os conceitos com as mesmas palavras e frases que já tinha usado e que não clarificam nada e eu fiquei na mesma e resolvi pôr Hegel no purgatório, onde já estavam mais alguns filósofos que eu achava que só com muitas leituras e experiência é que seria capaz de percebê-los porque me faltavam as ferramentas conceptuais e experiência de vida para ser capaz de os assimilar e integrar na minha arquitectura conceptual. No que não estava errada.
A questão é que, quando percebemos ou alguém nos esclarece o sentido que Hegel dá a cada termo: fenomenologia, essência, substância, negatividade, etc., depois o pensamento dele aparece com clareza.
Isto é válido com todos os filósofos: uma filosofia é uma espécie de universo paralelo alternativo onde tudo é parecido com o nosso, sendo simultaneamente diferente e estranho - é uma visão muito pessoal que alguém construiu acerca da realidade e do seu sentido. Para entrar dentro dela é necessário um insight ou um ajuste do olhar como acontece quando queremos ver estereogramas e temos que fazer um esforço para focar o olhar de um modo diferente do habitual. Assim que se consegue, depois anda-se lá dentro à vontade a explorar e ver tudo e tudo faz sentido, se é que me faço entender.
Este aspecto da filosofia ter uma linguagem que não é necessariamente acessível é algo que tenho sempre presente nas aulas porque não quero que os alunos tenham uma experiência hegeliana das aulas de filosofia, onde sabem falar usando os conceitos e sabem desfiar os argumentos a favor e contra o utilitarismo mas sem perceber ao certo do que falamos e, por isso, sem aproveitar nada da riqueza da filosofia enquanto ferramenta valiosa de transformação interior e formação de uma visão que permita vários enfoques sobre a realidade.