Ler Hannah Arendt para pensar como ultrapassar alguns problemas actuais da vida política - a crise de compreensão, a crise de poder, a perda de uma narrativa comum que dê sentido ao passado, a crise da 'mentalidade alargada' que suporta o juízo imparcial e a possibilidade de comunicação com os outros espectadores/actores humanos.
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Cidadania e a Esfera Pública Para Arendt, a esfera pública abrange duas dimensões distintas, mas inter-relacionadas. A primeira é o espaço de aparência, um espaço de liberdade e igualdade política que surge sempre que os cidadãos actuam em conjunto por meio da fala e da persuasão.
A segunda é o mundo comum, um mundo partilhado e público de artefactos humanos, instituições e cenários que nos separa da natureza e fornece um contexto relativamente permanente e durável para as nossas actividades.
Ambas as dimensões são essenciais para a prática da cidadania, a primeira fornecendo os espaços onde ela pode florescer, a segunda fornecendo o pano de fundo estável a partir do qual surgem espaços públicos de acção e deliberação. Para Arendt, a reactivação da cidadania no mundo moderno depende da recuperação de um mundo comum partilhado e da criação de inúmeros espaços de aparência nos quais os indivíduos podem revelar as suas identidades e estabelecer relações de reciprocidade e solidariedade.
Há três características da esfera pública e da esfera política em geral que são fundamentais para a concepção de cidadania de Arendt. Estas são, em primeiro lugar, a sua qualidade artificial ou construída; em segundo lugar, a sua qualidade espacial; e, em terceiro lugar, a distinção entre interesses públicos e privados.
No que diz respeito à primeira característica, Arendt sempre enfatizou a artificialidade da vida pública e das actividades políticas em geral, o facto de estas serem criadas pelo homem e construídas em vez de serem naturais ou dadas.
Ela considerava esta artificialidade como algo a ser celebrado em vez de deplorado. A política não resultou de alguma pre-disposição natural ou da realização das características inerentes à natureza humana. Era antes uma conquista cultural de primeira ordem, que permitia aos indivíduos transcender as necessidades da vida e criar um mundo no qual a acção política e o discurso livre poderiam florescer.
O ênfase na artificialidade da política tem várias consequências importantes. Por exemplo, Arendt enfatizou que o princípio da igualdade política não repousa numa teoria dos direitos naturais ou numa condição natural que precede a constituição do domínio político. Pelo contrário, é um atributo da cidadania que os indivíduos adquirem ao entrar na esfera pública e que só pode ser garantido por instituições políticas democráticas.
Outra consequência do ênfase de Arendt na artificialidade da vida política é evidente na sua rejeição de todos os apelos neo-românticos ao
volk e à identidade étnica como base para a comunidade política.
Arendt sustentava que a identidade étnica, religiosa ou racial de alguém era irrelevante para a sua identidade como cidadão e que nunca deveria ser a base de pertença a uma comunidade política.
A ênfase de Arendt nas qualidades formais da cidadania tornou a sua posição relativamente distante daqueles que defendiam, na década de 1960, a participação em termos de recapturar um sentido de intimidade, calor e autenticidade. Para Arendt, a participação política era importante porque permitia o estabelecimento de relações de civilidade e solidariedade entre os cidadãos. Os laços de intimidade e calor nunca poderiam ser políticos, uma vez que representam substitutos psicológicos para a perda do mundo comum.
As únicas ligações verdadeiramente políticas são as da amizade cívica e da solidariedade, uma vez que fazem exigências políticas e preservam a referência ao mundo.
Para Arendt, portanto, o perigo de tentar recapturar o sentido de intimidade e calor, de autenticidade e sentimentos comunitários, é que se perdem os valores públicos da imparcialidade, amizade cívica e solidariedade.
A segunda característica destacada por Arendt tem a ver com a qualidade espacial da vida pública, com o facto de as actividades políticas estarem localizadas num espaço público onde os cidadãos podem encontrar-se, trocar opiniões e debater as suas diferenças e procurar uma solução colectiva para os seus problemas.
A política, para Arendt, trata-se de pessoas partilhando um mundo comum e um espaço público de aparência, para que as preocupações públicas possam emergir e ser articuladas a partir de perspetivas diferentes.
Na sua opinião, não basta ter um conjunto de indivíduos privados a votar separada e anonimamente de acordo com as suas opiniões privadas. Pelo contrário, esses indivíduos devem ser capazes de se ver e falar uns com os outros em público, de se encontrar num espaço político público, para que as suas diferenças, bem como as suas semelhanças, possam emergir e tornar-se objecto de debate democrático.
Essa noção de um espaço público comum ajuda-nos a compreender como podem ser formadas opiniões políticas que não são redutíveis a preferências privadas, idiossincráticas, por um lado, nem a uma opinião coletiva unânime, por outro.
Arendt desconfiava do termo "opinião pública", uma vez que sugeria a unanimidade insensata da sociedade de massas. Na sua opinião, as opiniões representativas só poderiam surgir quando os cidadãos se confrontavam efetivamente num espaço público, de modo a examinar uma questão a partir de várias perspetivas diferentes, modificar as suas opiniões e alargar o seu ponto de vista para incorporar o dos outros. As opiniões políticas nunca podem ser formadas em privado; pelo contrário, são formadas, testadas e alargadas apenas num contexto público de argumentação e debate.
Outra implicação do ênfase de Arendt na qualidade espacial da política tem a ver com a questão de como um grupo de indivíduos distintos pode ser unido para formar uma comunidade política. Para Arendt, a unidade que pode ser alcançada numa comunidade política não resulta da afinidade religiosa ou étnica, nem da expressão de algum sistema de valores comum. Pelo contrário, a unidade em questão pode ser alcançada ao partilhar um espaço público e um conjunto de instituições políticas, e ao envolver-se nas práticas e atividades que são características desse espaço e dessas instituições.
Uma outra implicação da concepção de Arendt sobre a qualidade espacial da política é que, uma vez que a política é uma actividade pública, não se pode fazer parte dela sem, de alguma forma, estar presente num espaço público.
Estar envolvido na política significa participar activamente nos vários fóruns públicos onde são tomadas as decisões que afectam a comunidade. A insistência de Arendt na importância da participação directa na política baseia-se na ideia de que, uma vez que a política é algo que precisa de um local no mundo e só pode acontecer num espaço público, então se alguém não está presente num espaço desse tipo, simplesmente não está envolvido na política.
Esta concepção pública e centrada no mundo da política está também na base da terceira característica enfatizada por Arendt, a distinção entre interesses públicos e privados.
Segundo Arendt, a atividade política não é um meio para um fim, mas um fim em si mesma; não se participa na acção política para promover o seu bem-estar, mas para realizar os princípios intrínsecos à vida política, como a liberdade, igualdade, justiça e solidariedade.
Num ensaio tardio intitulado "Direitos Públicos e Interesses Privados", Arendt discute a diferença entre a vida de um indivíduo e a vida como cidadão, entre a vida passada por conta própria e a vida passada em comum com os outros.
Arendt argumenta que o nosso interesse público como cidadãos é bastante distinto dos nossos interesses privados como indivíduos. O interesse público não é a soma dos interesses privados, nem o seu denominador comum mais elevado, nem mesmo o total dos interesses próprios esclarecidos. Na verdade, tem pouco a ver com os nossos interesses privados, uma vez que se refere ao mundo que está para além do eu, que estava lá antes do nosso nascimento e que estará lá depois da nossa morte, um mundo que encontra expressão em actividades e instituições com os seus próprios propósitos intrínsecos, que muitas vezes podem entrar em conflito com os nossos interesses a curto prazo e privados.
O interesse público refere-se, portanto, aos interesses de um mundo público que partilhamos como cidadãos e que só podemos perseguir e desfrutar indo além dos nossos interesses privados.