Hannah Arendt
O caráter representativo do juízo e da opinião tem implicações importantes na questão da validade.
Arendt sempre enfatizou que a formação de opiniões válidas requer um espaço público onde os indivíduos possam testar e aprimorar as suas visões por meio de um processo de debate e esclarecimento mútuo.
No entanto, era totalmente contrária à ideia de que as opiniões devem ser medidas pelo padrão da verdade ou que o debate deve ser conduzido de acordo com rigorosos padrões científicos de validade.
Em seu entender, a verdade pertence ao domínio do conhecimento demonstrativo, ao domínio da lógica, matemática e das ciências rigorosas, e carrega sempre um elemento de coercção, uma vez que exclui o debate e deve ser aceite por todos os indivíduos com capacidades racionais.
Em contraste com a pluralidade de opiniões, a verdade [demonstrativa, lógico-científica] tem um caráter despótico: ela impõe o consentimento universal, restringe a liberdade de pensamento, elimina a diversidade de pontos de vista e reduz a riqueza do discurso humano.
Nesse sentido, a verdade é anti-política, porque, ao eliminar o debate e a diversidade, elimina os próprios princípios da vida política. Como Arendt escreve, "O problema é que a verdade factual, como toda a verdade, exige que seja reconhecida peremptoriamente e exclui o debate e o debate constitui a essência da vida política.
Os modos de pensamento e comunicação que lidam com a verdade, se vistos do ponto de vista político, são necessariamente dominadores; eles não levam em consideração as opiniões de outras pessoas; ora, levar em consideração essas opiniões é a marca do pensamento estritamente político" (BPF, 241).
A defesa de Arendt da opinião é motivada não apenas pela crença de que a verdade não deixa espaço para o debate, a dissidência, ou o reconhecimento da diferença, mas também pela convicção de que as nossas faculdades de raciocínio só podem prosperar em um contexto dialógico.
Ela cita a observação de Kant de que "o poder externo que priva o homem da liberdade de comunicar os seus pensamentos publicamente, priva-o ao mesmo tempo da sua liberdade de pensar" e enfatiza o facto de que, para Kant, a única garantia da correção do nosso pensamento é que "pensamos, por assim dizer, em comunidade com outros a quem comunicamos os nossos pensamentos, assim como eles nos comunicam os deles" (BPF, 234-5).
Ela também cita a afirmação de Madison de que "a razão do homem, assim como o homem em si, é tímida e cautelosa quando deixada sozinha e adquire firmeza e confiança na medida em que está associada a outros" (BPF, 234).
Para Arendt, a opinião não é uma forma defeituosa de conhecimento que deve ser transcendida ou deixada para trás assim que se possui a verdade. Pelo contrário, é uma forma distinta de conhecimento que emerge da deliberação colectiva dos cidadãos e requer o uso da imaginação e da capacidade de pensar "representativamente". A opinião é própria da esfera da vida e acção políticas, onde tem lugar, não a 'verdade' mas, a validade de opiniões bem fundamentadas e é por isso que o poder político não é coerção, força, controlo ou manipulação, mas persuasão.
Ao deliberar em conjunto e envolver-se no "pensamento representativo", os cidadãos são capazes de formar opiniões que podem reivindicar validade inter-subjetiva.
É importante salientar que Arendt não deseja desconsiderar a tentativa dos filósofos de encontrar padrões universais ou absolutos de conhecimento e cognição, mas sim rever o seu desejo de impor esses padrões à esfera dos assuntos humanos, uma vez que eliminariam a sua pluralidade e relativa essência.
A imposição de um único ou absoluto padrão no domínio da práxis eliminaria a necessidade de persuadir os outros sobre os méritos relativos de uma opinião, obter o seu consentimento para uma proposta específica ou alcançar o seu acordo com relação a uma política específica. Onde a estrita demonstração, em vez de argumentação persuasiva, tornar-se-ia a única forma legítima de discurso.
Agora, devemos ter cuidado para não atribuir a Arendt a visão de que a verdade não tem um papel legítimo na política ou na esfera dos assuntos humanos, porém, ela está preocupada com as consequências negativas da verdade racional-demonstrativa, quando aplicada à esfera da política e da deliberação colectiva, enquanto defende a importância da verdade factual para a preservação de um relato preciso do passado (a que temos que dar um sentido colectivo) e para a própria existência das comunidades políticas.
A verdade factual, diz, "está sempre relacionada com outras pessoas: diz respeito a eventos e circunstâncias em que muitos estão envolvidos; é estabelecida por testemunhas e depende de testemunhos... É, por natureza, política."
Portanto, "factos e opiniões, embora devam ser mantidos separados, não são antagónicos entre si; eles pertencem ao mesmo domínio. Os factos informam as opiniões, e as opiniões, inspiradas por diferentes interesses e paixões, podem diferir amplamente e ainda ser legítimas, desde que respeitem a verdade factual.
A liberdade de opinião é uma farsa a menos que as informações factuais sejam garantidas e os próprios factos não estejam em disputa. Por outras palavras, a verdade factual informa o pensamento político, assim como a verdade racional informa a especulação filosófica" (BPF, 238).
A relação entre factos e opiniões é, portanto, uma de mútuo complemento: se as opiniões não se baseassem em informações correctas e no livre acesso a todos os factos relevantes, dificilmente poderiam reivindicar qualquer validade.
Se fossem baseadas em fantasia, auto-engano ou falsidade deliberada, nenhuma possibilidade de debate e argumentação genuína poderia ser mantida. Tanto a verdade factual quanto o hábito geral de contar a verdade são, portanto, básicos para a formação de opiniões fundamentadas e para a prosperidade do debate político.
Além disso, se o registro do passado fosse destruído pela mentira organizada ou distorcido por uma tentativa de reescrever a história, a vida política seria privada de um de seus elementos essenciais e estabilizadores.
Em suma, tanto a verdade factual quanto a prática de contar a verdade são essenciais para a vida política.
O antagonismo, para Arendt, está entre a verdade (demonstrativa) racional e a opinião bem fundamentada, uma vez que a primeira não permite o debate e a dissidência, enquanto a segunda prospera com eles.
A defesa de Arendt da opinião deve, portanto, ser compreendida como uma defesa da deliberação política e do papel que a persuasão e dissuasão desempenham em todos os assuntos que afectam a comunidade política.
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