June 15, 2021

A escrita é sobretudo um hábito

 


E como todos os hábitos, quanto mais os praticamos mais nos envolvemos neles, mais eles nos transformam. Positivamente se são bons e negativamente se são maus. Digo isto a propósito de Tolstói. Estou muito inspirada pelo livro 'Guerra e Paz' que estou a ler. Como tenho este feitio de tudo ou nada e estou cada vez mais inspirada com o livro, não sou capaz de ler 15 minutos por dia (há dias em que vou deitar-me madrugada dentro porque não consigo pousar o livro) e já vou no último volume. Já devo ter gravado as leituras até Julho ou assim.

Há bocado à hora do almoço li dois capítulos, um deles particularmente comovente. E pesado. Muito bem escrito. Nem toda a gente tem uma escrita literária, mesmo que tenham excelente domínio da língua e conhecimento da vida e do mundo como ele. Dá ideia que Tolstói, à medida que ia escrevendo a obra ia-se inspirando cada vez mais com a própria escrita, como acontece com o hábito da escrita quando uma pessoa está, 'na zona', como dizem os americanos. A escrita dele cada vez é mais profunda, mais rica, cheia de insight sobre a vida e as pessoas. Tem trechos notáveis que não vou dizer aqui para não estragar aos leituras.

Há muito tempo que não lia literatura -com excepção de um livro que a Manuela me deu. Desabituei-me porque li tanta, tanta e tão boa que agora tudo me sabe a pouco e a déjà vu. Porém, se a literatura fosse toda desta qualidade lia todos os dias. 

À medida que o livro avança, a narrativa e os quadros que ele nos pinta, são mais crus e verdadeiros. Ele fala muito, a partir de certa altura, em um certo tipo de amor como a única coisa verdadeiramente transformadora e que faz a vida valer a pena. Fez-me lembrar a Hanna Arendt, um artigo que li há pouco tempo sobre a tese de doutoramento dela - deixo para quem tem interesse no pensamento dela e no tema.

Entretanto, hoje fecho esta loja. Vou ler um bocadinho de Tolstói antes de ir dormir.


O que Hannah Arendt sabia sobre o amor

A célebre pensadora escreveu um dia que o amor era a mais anti-política das forças - mas também acreditava que tinha o poder de mudar o mundo.

Por Peter Salmon


Hannah Arendt dizia que não era filósofa, por uma série de razões, entre as quais o fracasso da filosofia em se precaver contra os tempos políticos em que se viu atirada, e o fracasso moral de muitos dos filósofos com quem trabalhou e estudou. No entanto, se ela é -como afirmam- uma das maiores do século XX, o que é fundamental para o seu brilho é precisamente que, para ela, o que estava em jogo na sua obra era o humano e o que significava. Como Samantha Rose Hill aponta, em Hannah Arendt, mesmo em obras como, 'As Origens do Totalitarismo' - bestseller da era Trump - o político é invariavelmente trazido de volta ao pessoal.

Nascida
 em Hanover em 1906, Arendt estudou filosofia em Marburg de 1924 a 26 sob a direcção de Martin Heidegger, com quem teve um famoso caso. (...) Não se deve dizer que a influência de Heidegger sobre o pensamento de Arendt foi decisiva - uma inteligência como a dela teria, sem dúvida, florescido em várias direcções - mas num aspecto foi fulcral. 

Em 1920, Heidegger tinha dado uma palestra sobre Santo Agostinho; em 1929, Arendt apresentaria a sua tese de doutoramento e a sua primeira obra em livro, "Sobre o conceito de amor no pensamento de Santo Agostinho". Introduziu alguns dos temas mais profundos do seu trabalho posterior.

Nos vários conceitos de amor de Santo Agostinho - pelo próximo, por Deus - o eu revela-se e define-se a si próprio, entregando-se ao outro. O eu não é uma "coisa" que existe no mundo como outras "coisas", como cadeiras ou árvores, ou mesmo cores ou sons. Pelo contrário, é um processo interminável de se tornar. 

Inspirado por Agostinho, Heidegger trabalhou a teoria do 'ego' de René Descartes, mais conhecida pela expressão, cogito ergo sum ("penso, logo sou"). A afirmação postula que a consciência individual é um objecto anterior a todos os outros objectos - a única coisa de que podemos ter a certeza.

Na lição de Heidegger, Descartes tinha saltado do verbo 'penso' para o substantivo 'coisa que pensa'. Para Heidegger é uma 'perversão' que falhou em capturar a maleabilidade e a natureza sempre mutável da existência humana. A própria palavra de Heidegger para o 'eu' era Dasein, que pode ser traduzida como 'Estar-aí' [no mundo]. Como Agostinho afirmou, 'ser' é um processo, não uma coisa [estática, definida]. Em vez de cogito ergo sum, Heidegger oferece cogito me cogitare -'penso a pensar-me'.

Esta intuição marcou o trabalho de Arendt. O eu revela-se em acção e através do fazer, em vez do ser. É através do nosso envolvimento com o mundo - incluindo e talvez seja o mais importante, através de actos de amor - que nos 'tornamos' nós próprios. E, como um processo, o eu está sempre em mudança e é mutável. Como ela diz em, 'A Condição Humana' (1958):

"O facto de o homem ser capaz de agir significa que podemos esperar dele o inesperado, que ele é capaz de realizar o infinitamente improvável". E isto mais uma vez só é possível porque cada homem é único, de modo que, a cada nascimento, algo de singularmente novo chega ao mundo".
Nós somos, cada um de nós, um processo de tornarmo-nos - podemos crescer, desenvolver, aprender e envolver-nos em actos como o perdão e o amor.

Também levou de Agostinho a frase amor mundi (amor do mundo) e planeou escrever um livro sobre teoria política com esse título. Não foi escrito, mas o conceito está subjacente a todo o seu trabalho posterior. Amor mundi não é amor abstracto, difuso: é antes o difícil dever de amar o próximo e de amar o mundo, tal como eles são apresentados. Tal como o conceito posterior de Heidegger de 'cuidado' (Sorge), exige um envolvimento total no mundo. As barreiras a esta relação, tais como a condição atomizada do mundo contemporâneo - incluindo a nossa ausência dos outros devido à pandemia - conduzem a uma ligação inautêntica ao mundo, e portanto a um eu inautêntico.


Ao não nos envolvermos nos outros - para cuidarmos deles e sermos cuidados por eles, não podemos alcançar o que Agostinho chamou de benevolência.

Arendt tornar-se-ia mais tarde famosa pela sua frase "a banalidade do mal". O mal não precisa ser, nem, "pervertido nem sádico", mas pode ser aterradoramente brando e normal. Pode ser, como no caso de Adolf Eichmann, uma forma de falta de pensamento, uma forma de 'des-envolvimento'. Para Arendt, esta banalidade provém, em grande medida, de uma incapacidade de estar à altura do desafio de ser humano em toda a sua potencial generosidade e capacidade de responsabilidade para com o mundo - e, portanto, de falhar enquanto humano. Como ela escreveu, 'A triste verdade é que a maioria do mal é feito por pessoas que nunca se decidem em ser boas ou más' [não pensam]. É um fracasso do cuidado, do envolvimento [um alheamento, portanto, um desinteresse].

Encontramo-nos actualmente numa época de grande isolamento, político e pessoal. Para além do facto físico do confinamento, a sociedade continua a tornar-se mais atomizada e mais dividida. Para Arendt, estes não são novos desafios, nem intransponíveis. Mas há formas de resistir, como ela passou a sua vida a fazer, e talvez o primeiro destes seja o mais presente a ter à mão. Como ela disse, "o amor, pela sua própria natureza, não é mundano e é por esta razão e não pela sua raridade que é, não só apolítico mas também anti-político, talvez a mais poderosa de todas as forças anti-políticas".

3 comments:

  1. Pois eu, só leio literatura. Mas, por vezes, acontece-me reler livros e já não lhes achar graça nenhuma...

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  2. Há livros que são para ler numa certa idade.

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  3. Exatamente!
    Na idade em que estou, parece que já não fazem sentido...
    Todas as grandes obras literárias foram lidas na adolescência.
    Quando entrei na Faculdade, na cadeira de Introdução à Literatura, foi-me dada uma lista de livros para ler até ao Natal. Eu já tinha lido mais de metade....

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