E como todos os hábitos, quanto mais os praticamos mais nos envolvemos neles, mais eles nos transformam. Positivamente se são bons e negativamente se são maus. Digo isto a propósito de Tolstói. Estou muito inspirada pelo livro 'Guerra e Paz' que estou a ler. Como tenho este feitio de tudo ou nada e estou cada vez mais inspirada com o livro, não sou capaz de ler 15 minutos por dia (há dias em que vou deitar-me madrugada dentro porque não consigo pousar o livro) e já vou no último volume. Já devo ter gravado as leituras até Julho ou assim.
Há bocado à hora do almoço li dois capítulos, um deles particularmente comovente. E pesado. Muito bem escrito. Nem toda a gente tem uma escrita literária, mesmo que tenham excelente domínio da língua e conhecimento da vida e do mundo como ele. Dá ideia que Tolstói, à medida que ia escrevendo a obra ia-se inspirando cada vez mais com a própria escrita, como acontece com o hábito da escrita quando uma pessoa está, 'na zona', como dizem os americanos. A escrita dele cada vez é mais profunda, mais rica, cheia de insight sobre a vida e as pessoas. Tem trechos notáveis que não vou dizer aqui para não estragar aos leituras.
Há muito tempo que não lia literatura -com excepção de um livro que a Manuela me deu. Desabituei-me porque li tanta, tanta e tão boa que agora tudo me sabe a pouco e a déjà vu. Porém, se a literatura fosse toda desta qualidade lia todos os dias.
À medida que o livro avança, a narrativa e os quadros que ele nos pinta, são mais crus e verdadeiros. Ele fala muito, a partir de certa altura, em um certo tipo de amor como a única coisa verdadeiramente transformadora e que faz a vida valer a pena. Fez-me lembrar a Hanna Arendt, um artigo que li há pouco tempo sobre a tese de doutoramento dela - deixo para quem tem interesse no pensamento dela e no tema.
Entretanto, hoje fecho esta loja. Vou ler um bocadinho de Tolstói antes de ir dormir.
O que Hannah Arendt sabia sobre o amor
A célebre pensadora escreveu um dia que o amor era a mais anti-política das forças - mas também acreditava que tinha o poder de mudar o mundo.
Por Peter Salmon
Hannah Arendt dizia que não era filósofa, por uma série de razões, entre as quais o fracasso da filosofia em se precaver contra os tempos políticos em que se viu atirada, e o fracasso moral de muitos dos filósofos com quem trabalhou e estudou. No entanto, se ela é -como afirmam- uma das maiores do século XX, o que é fundamental para o seu brilho é precisamente que, para ela, o que estava em jogo na sua obra era o humano e o que significava. Como Samantha Rose Hill aponta, em Hannah Arendt, mesmo em obras como, 'As Origens do Totalitarismo' - bestseller da era Trump - o político é invariavelmente trazido de volta ao pessoal.
Nascida em Hanover em 1906, Arendt estudou filosofia em Marburg de 1924 a 26 sob a direcção de Martin Heidegger, com quem teve um famoso caso. (...) Não se deve dizer que a influência de Heidegger sobre o pensamento de Arendt foi decisiva - uma inteligência como a dela teria, sem dúvida, florescido em várias direcções - mas num aspecto foi fulcral.
Nos vários conceitos de amor de Santo Agostinho - pelo próximo, por Deus - o eu revela-se e define-se a si próprio, entregando-se ao outro. O eu não é uma "coisa" que existe no mundo como outras "coisas", como cadeiras ou árvores, ou mesmo cores ou sons. Pelo contrário, é um processo interminável de se tornar.
Na lição de Heidegger, Descartes tinha saltado do verbo 'penso' para o substantivo 'coisa que pensa'. Para Heidegger é uma 'perversão' que falhou em capturar a maleabilidade e a natureza sempre mutável da existência humana. A própria palavra de Heidegger para o 'eu' era Dasein, que pode ser traduzida como 'Estar-aí' [no mundo]. Como Agostinho afirmou, 'ser' é um processo, não uma coisa [estática, definida]. Em vez de cogito ergo sum, Heidegger oferece cogito me cogitare -'penso a pensar-me'.
Esta intuição marcou o trabalho de Arendt. O eu revela-se em acção e através do fazer, em vez do ser. É através do nosso envolvimento com o mundo - incluindo e talvez seja o mais importante, através de actos de amor - que nos 'tornamos' nós próprios. E, como um processo, o eu está sempre em mudança e é mutável. Como ela diz em, 'A Condição Humana' (1958):
"O facto de o homem ser capaz de agir significa que podemos esperar dele o inesperado, que ele é capaz de realizar o infinitamente improvável". E isto mais uma vez só é possível porque cada homem é único, de modo que, a cada nascimento, algo de singularmente novo chega ao mundo".Nós somos, cada um de nós, um processo de tornarmo-nos - podemos crescer, desenvolver, aprender e envolver-nos em actos como o perdão e o amor.
Também levou de Agostinho a frase amor mundi (amor do mundo) e planeou escrever um livro sobre teoria política com esse título. Não foi escrito, mas o conceito está subjacente a todo o seu trabalho posterior. Amor mundi não é amor abstracto, difuso: é antes o difícil dever de amar o próximo e de amar o mundo, tal como eles são apresentados. Tal como o conceito posterior de Heidegger de 'cuidado' (Sorge), exige um envolvimento total no mundo. As barreiras a esta relação, tais como a condição atomizada do mundo contemporâneo - incluindo a nossa ausência dos outros devido à pandemia - conduzem a uma ligação inautêntica ao mundo, e portanto a um eu inautêntico.
Ao não nos envolvermos nos outros - para cuidarmos deles e sermos cuidados por eles, não podemos alcançar o que Agostinho chamou de benevolência.
Arendt tornar-se-ia mais tarde famosa pela sua frase "a banalidade do mal". O mal não precisa ser, nem, "pervertido nem sádico", mas pode ser aterradoramente brando e normal. Pode ser, como no caso de Adolf Eichmann, uma forma de falta de pensamento, uma forma de 'des-envolvimento'. Para Arendt, esta banalidade provém, em grande medida, de uma incapacidade de estar à altura do desafio de ser humano em toda a sua potencial generosidade e capacidade de responsabilidade para com o mundo - e, portanto, de falhar enquanto humano. Como ela escreveu, 'A triste verdade é que a maioria do mal é feito por pessoas que nunca se decidem em ser boas ou más' [não pensam]. É um fracasso do cuidado, do envolvimento [um alheamento, portanto, um desinteresse].
Encontramo-nos actualmente numa época de grande isolamento, político e pessoal. Para além do facto físico do confinamento, a sociedade continua a tornar-se mais atomizada e mais dividida. Para Arendt, estes não são novos desafios, nem intransponíveis. Mas há formas de resistir, como ela passou a sua vida a fazer, e talvez o primeiro destes seja o mais presente a ter à mão. Como ela disse, "o amor, pela sua própria natureza, não é mundano e é por esta razão e não pela sua raridade que é, não só apolítico mas também anti-político, talvez a mais poderosa de todas as forças anti-políticas".
Pois eu, só leio literatura. Mas, por vezes, acontece-me reler livros e já não lhes achar graça nenhuma...
ReplyDeleteHá livros que são para ler numa certa idade.
ReplyDeleteExatamente!
ReplyDeleteNa idade em que estou, parece que já não fazem sentido...
Todas as grandes obras literárias foram lidas na adolescência.
Quando entrei na Faculdade, na cadeira de Introdução à Literatura, foi-me dada uma lista de livros para ler até ao Natal. Eu já tinha lido mais de metade....