Ontem fui ao S. Carlos ver a Madama Butterfly de Puccini. Quando saímos do Teatro, eu estava chateada com o que fizeram no 3º acto, mas atrás de mim vinha um homem completamente furibundo a vociferar impropérios.
Há coisas que não entendo. O compositor escreve a música para um determinado libreto, para expressar as emoções e situações dessa história e pensa a encenação de acordo com a música e as emoções que quer transmitir, mas depois vem um encenador qualquer modernaço e diz, 'epá, se calhar Puccini não sabia o que estava a fazer e eu é que sei...'
Em primeiro lugar não percebo porque puseram uma mezzo a cantar o papel da Cio-Cio-San (Madama Butterfly) quando o papel é para uma soprano dramático com muita maturidade, amplitude vocal, criatividade e ainda capacidade de expressar uma grande complexidade de emoções... isso nota-se quando ela canta Un bel dì, vedremo. Não foi bom, porque foi longe do que devia ter sido. Não é para a voz dela.
A Madama Buterfly é uma tragédia contada do ponto de vista de uma mulher japonesa. A ópera foi estreada em 1904.
Conta a história de Cio-Cio-San, uma japonesa de 15 anos, orfã de pai, que apesar de ser oriunda de uma família nobre, depois do suicídio do pai tem de trabalhar para viver e torna-se uma geisha. Ela é de uma beleza tão delicada que lhe chamam, Butterfly.
Um dia, um casamenteiro japonês (Goro) vai ter com ela e propõe-lhe casar com um oficial americano (Pinkerton) que acaba de chegar ao Japão e ela diz que sim. Enquanto o americano se ri do casamento e espalha dinheiro por todo o lado -ao casamenteiro para lhe arranjar uma casa e criados, à família dela-, e troça dos rituais japoneses, Butterfly leva aquilo tudo a sério, adopta o deus dele, renega os seus deuses (por causa disso é renegada pela família e amigos e fica só), casa-se com ele e dedica-se inocentemente a amá-lo. Isto é o 1º acto e em geral foi bom.
No 2º acto Butterfly espera por Pinkerton que regressou à America, não antes de prometer-lhe que voltaria rapidamente - ela espera-o na sua casinha que fica num alto para que possa olhar o porto e ver quando o barco dele chega. Passaram 3 anos e o dinheiro que ele deixou está quase a acabar.
Pois ontem, puseram a casa dela no meio de ruas frequentadas por prostitutas... não tem nada a ver com a personagem. Ela tem uma inocência cheia de dignidade e uma enorme fé no amor dele e na palavra dele. Ela tem um filho dele e está quase sem dinheiro mas rejeita uma proposta de casamento de um homem muito rico e continua na na sua casa, americana, como diz, à espera dele e insiste que a tratem por Madama Pinkerton, apesar de Susuki lhe dizer constantemente que ele não volta. Ela nunca deixa de acreditar nele. Quando bem cantado, todo este acto é muito comovente, esse amor todo que ela tem por ele e se sente na voz dela.
No fim do segundo acto, ela avista o navio de Pinkerton. Veste o kimono do casamento, arranja-se toda, espalha flores pela casa e espera, com o filho, que ele apareça. Ela não sabe mas ele casou com uma americana que sabe do filho e vem para convencê-la a dar-lhe o filho para ser educado na América.
O 3º acto devia abrir com ela na mesma posição, à espera dele enquanto a criada e o filho adormeceram. Ela fica toda a noite acordada à espera dele. A música é muito dramática com intervalos de silêncio.
De manhã, vê aparecer a mulher americana no jardim e não percebe quem é, mas pressente que algo de morte se aproxima.
Pinkerton, a quem o cônsul amigo lhe conta como ela espera inocentemente por ele, só então se apercebeu do que fez, não tem coragem de ir vê-la e mandou a mulher falar com ela, mas é a criada, Suzuki, quem lhe diz que Pinkerton não vem mas quer levar o filho para a América para ser educado pela mulher a sério.
Butterfly despedaçada pela dor e pela humilhação, despede-se do filho, vai à caixa onde tem o punhal com que o pai fez o
seppuku e cheia de uma imensa dignidade, depois de ler a inscrição que o pai pôs na faca,
Morre com honra, quando é impossível viver com honra, faz ela mesmo o
seppuku segundo o ritual japonês, na altura em que Pinkerton, arrependido da sua cobardia, chama por ela e entra na casa, apenas para a ver morrer.
Pois quando se abre a cortina do 3º acto no S.Carlos, Butterfly é uma velha de cabelo branco e saia plissada que parece avó da sua própria mãe e que adormeceu numa cadeira de sem-abrigo, num bairro dos subúrbios... what??
Todo o 3º acto ela se arrasta como morta e no fim quando ouve a voz dele, em vez de se matar, atira a faca ao ar e morre, não se percebe de quê, caída na cadeira. Um horror... Claro que cantar vestida e arranjada com o quimono tradicional do casamento para se suicidar segundo o ritual japonês e cantar mascarada de velha a arrastar-se, projecta, para a própria cantora e para nós uma atmosfera completamente diferente e em vez daquele final comovente onde o heroísmo e a fortaleza do seu sacrifício contrastam com a sua delicadeza trágica, temos uma cena patética e tudo isso transparece na voz.
Daí que o homem atrás de mim estivesse furibundo a vociferar - apesar disto, imensa gente gritou e bateu palmas a esta barbaridade. Ainda bem que houve quem saísse de lá feliz.
A história de Butterfly não é sobre mulheres abandonadas por homens maus, mas sobre diferenças culturais. Pinkerton é o americano pragmático de sucesso que olha as outras culturas como inferiores, muito atrás no progresso industrial que ele representa e ainda apegadas a rituais disparatados retrógrados. Quando volta ao Japão, manda o cônsul falar com ela porque não está para ter que se incomodar a dar-lhe explicações inúteis do seu ponto de vista, uma vez que só quer o filho, o que para ele é sinal de pragmatismo, isto é, querer dar uma educação decente ao filho. Total falta de delicadeza e respeito para com as outras pessoas de outras culturas diferentes. Ele não age assim para magoar Butterfly, mas por puro egoísmo e sobranceria cultural, inconscientes. Só ganha consciência de que é vil no seu comportamento quando dá de caras com a inocência e a dignidade dela.
Pois, o encenador não percebeu nada e transformou uma cena extremamente sensível, dramática e comovente numa cena patética. Uma pena. O elenco era quase todo português e era bom. Estamos com boas vozes na casa e não percebo porque não fazem mais óperas jé que a prata da casa cumpre. Podem poupar dinheiro em encenadores da moda. Vamos à ópera para ouvir cantar a música que os compositores compuseram e não para sairmos de lá chateados com desvirtuações experimentais de encenadores que querem parecer modernaços.