Venho de uma tarde de ópera no S. Carlos. Lucia di Lammermoor de Donizetti. É uma ópera dramática daquelas de faca e alguidar. A Lucia gosta de um tipo, casa com outro, aquele de quem gosta zanga-se, chama-lhe traidora, ela enlouquece de amor, morre e ele quando sabe, suicida-se (canta um bom quarto a plenos pulmões à hora da morte).
A encenação da ópera foi ridícula - o encenador é o mesmo espanhol que no ano passado nos obrigou a ver o Fausto, nu, em palco e uma fulana a lavar-lhe o rabo durante montes de tempo... pois esta encenação ainda foi pior. Tão má e ridícula que houve cenas de grande dramatismo que viraram burlesco à conta das parvoíces da encenação que nos distraiam e, muito pior, faziam rir. Houve alturas em que foi difícil conter o riso. A certa altura alguém num camarote deu uma gargalhada porque enfiaram a Lucia dentro de um carro no meio do palco e ela destravou o carro.
Uma pessoa vai ver esta ópera pelo canto. É uma ópera que requer habilidade e virtuosismo, sobretudo da soprano e do tenor que têm de ser de grande qualidade. Não vamos vê-la por causa do cenário ou da acção. A maioria das cenas têm duas pessoas em palco a cantar os seus estados de alma e de dor e não se passa nada a não ser o que dizem um ao outro.
A ópera passa-se no século XVI na Escócia, entre nobres. O encenador resolveu pôr dois planos temporais na ópera. Num plano estamos na actualidade e está uma mulher a ler a história da ópera... a mulher entra em cena vestida com umas cuecas e um soutien encarnados de renda diminuta, vai mostrar o rabo e as mamas ao público, depois veste um fato de treino ordinário e passa toda a ópera, tipo emplastro a intrometer-se no meio dos cantores. Há alturas em que entram os amigos dela, vestidos como drogados sem abrigo. Um bate-lhe. Em outra altura ela está outra vez de roupa interior e os homens apalpam-na, mexem-lhe no peito, põem-lhe água dentro das cuecas... uma coisa estúpida, de mau gosto e completamente descabida. Enquanto os outros cantam, vestidos à época, está a fulana num sofá encarnado no meio do palco, a rir, depois come bolachas...
O cenário da ópera é uma lixeira de electrodomésticos ladeada por candeeiros daqueles antigos de auto-estradas e um candeeiro de 5 euros do chinês à laia de lustre. A Lucia, o Edgardo e os outros todos, vestidos como nobres da época no meio da lixeira... uma coisa sem sensibilidade e esteticamente agressiva.
Um dueto que a Lucia e o Edgardo cantam muito bonito, estragado pelo emplastro das cuecas encarnadas a meter-se no meio. Uma coisa mesmo de bandalheira.
A soprano é uma portuguesa com uma voz muito bonita, mas a encenação desvalorizou-a completamente. Isso irritou-me. A cena mais emblemática da ópera é quando ela enlouquece. É uma aria enorme de quase um quarto de hora de coloratura extraordinária, que pede grande técnica e ornamentação vocal com efeitos de trilos, mordentes, cadenzas, etc. É muito difícil de cantar. Pois puseram a soprano dentro de um pequeno Lada, no meio do palco, os faróis acesos apontados para nós e projectavam a imagem dela numa tela. Uma coisa indecente. A soprano é grande, a cantar uma aria muito exigente e difícil, sentada apertadinha no carro, mal se ouvia.
A cena, que tem um grande impacto, não teve impacto nenhum. Uma pena, porque se percebe que, se a tivessem deixado cantar com liberdade para usar o corpo, ela teria cantado muito bem. No fim, fazem-na sair do carro vestida com um fato de treino de licra. Distraímo-nos do canto porque só se repara nos pneus que se movem à medida que ela canta. Uma coisa sem dignidade, sem sensibilidade e sem respeito, nem pela música nem pelos cantores.
No fim muita gente bateu palmas à encenação... não percebo... foi um desperdício de boas vozes e foi dinheiro mal gasto. A encenação foi uma coisa feia e absurda que alguém deve pensar que é muito moderna e estragou a ópera.
(nem vou contar a cena do padre agarrado ao telemóvel ou do casamento deles e o coro com facalhões na mão...)
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