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June 25, 2023

Leituras ao entardecer - Três respostas ao luto




Três respostas ao luto na filosofia de Kierkegaard, Heidegger e Camus


A forma como lidamos com o luto depende em grande medida da nossa visão do mundo. Eis como três filósofos famosos lidaram com a certeza da dor e do desespero.

Cada um de nós experimentará algo na vida que transforma quem somos. A vida humana é uma vida de aventuras e de temperamento. Atualmente, muitas pessoas tendem a usar a linguagem das "experiências formativas", mas a ideia de um despertar ou de uma iniciação de algum tipo é tão central para a condição humana como dormir ou apaixonar-se. 
Aqueles que estudam as histórias e os mitos que contamos salientam que muitas vezes partilham semelhanças notáveis. 
Uma dessas provações transformadoras ocorre quando perdemos alguém que amamos verdadeira e profundamente. Aqueles que conheceram o luto compreendem algo mais sobre a vida. Quando sofremos a perda de alguém que amamos, sabemos o que significa ser deixado sozinho e para trás. 
A nível intelectual, sabemos que todas as coisas têm de morrer. Podemos apreciar racionalmente a transitoriedade da vida, o colapso da biologia e a entropia do universo, mas conhecer a morte, sentir e suportar a perda, dá a alguém uma compreensão que nenhum poema, filme ou livro poderia transmitir.

Muitos filósofos exploraram a ideia do luto e da morte e, para muitos, é a coisa mais importante de estar vivo.

Memento mori

Para muitas pessoas, como os jovens ou os sortudos, não há necessidade de enfrentar a mortalidade. Podem passar os seus dias sem pensar nas grandes questões sobre a eternidade. Não lhes passa pela cabeça refletir sobre a sua própria morte ou a dos que os rodeiam. Provavelmente nunca reflectirão sobre o facto de as pessoas que têm nas suas vidas irem, um dia, embora para sempre.

Nunca compreenderão que chegará uma altura em que cada um de nós terá a sua última refeição, riso e respiração. Que haverá uma última carícia com alguém que amamos e mais nada.

Claro que o sabem numa parte remota do seu entendimento, mas não o sentem. É intelectualmente "objetivo" mas falta-lhe o subjetivo emocional. Falta-lhes o aprofundamento que acontece àqueles que seguraram a mão de um pai moribundo, choraram no funeral de um irmão ou se sentaram a olhar para as fotografias de um amigo que já se foi. Para quem não conhece o luto, é como se ele viesse de fora. Na realidade, o desespero da verdadeira dor é algo que vem de dentro. Dói e pulsa dentro do nosso próprio ser.

A fonte do desespero
Para uma questão tão universal, sensível e pungente como a dor, não existe uma posição filosófica única. Durante grande parte da história, os filósofos eram também geralmente religiosos e, por isso, a questão era para os padres, para as escrituras ou para a meditação.

Os estudiosos pré-cristãos da Grécia e Roma antigas são talvez uma exceção. Mas, mesmo aí, os filósofos vinham cozinhados num caldeirão de pressupostos religiosos. Hoje em dia, tornou-se moda ler as referências antigas à "alma", por exemplo, como sendo metáforas poéticas ou psicológicas. No entanto, com a possível exceção dos Epicureus, o mundo antigo tinha muito mais religião do que a nossa sensibilidade moderna e secular poderia preferir.

Para Søren Kierkegaard, a sensação visceral de mortalidade que sentimos depois de passar por uma experiência de luto, chamava-se "desespero". E na longa noite do desespero, podemos começar a viagem para nos apercebermos do nosso verdadeiro "eu". 
Quando nos apercebemos, em primeira mão, que as coisas na vida não são eternas e que nada é para sempre, percebemos como desejamos apaixonadamente que as coisas sejam eternas. A fonte do nosso desespero é o facto de querermos esse "para sempre". Para Kierkegaard, a única forma de ultrapassar o desespero, de aliviar esta condição, é rendermo-nos. Há um eterno no qual nos podemos perder. Existe a fé, e a dor é a porta escura e de mármore para a crença.

A filosofia do luto
Após o Iluminismo e a ascensão de uma filosofia sem Deus, os pensadores começaram a ver a morte de uma nova forma. Ver a morte apenas como uma porta de entrada para a religião já não funcionava.

Os antigos epicuristas gregos e muitos filósofos orientais (embora não necessariamente todos) acreditavam que esta poderosa sensação de luto podia ser ultrapassada eliminando o nosso desejo errado de imortalidade. Os estóicos também aderiram à ideia de que sofremos precisamente porque pensamos erradamente que as coisas são nossas para sempre. Com uma mudança de mentalidade, ou após uma grande meditação, podemos vir a aceitar isto como a falsa arrogância que é.

Martin Heidegger argumentou que a presença da morte nas nossas vidas dá um novo significado à nossa liberdade de escolha. Quando compreendemos que as nossas decisões são tudo o que temos, e que toda a nossa vida é pontuada por um golpe de misericórdia final, isso revigora a nossa ação e dá-nos uma "ousadia". 
Como escreveu, "estar presente baseia-se na viragem para [a morte]". É um tema que ecoa na ideia medieval do memento mori - ou seja, manter a morte por perto para tornar o momento atual mais doce. Quando perdemos um ente querido, reconhecemos que ficamos, de facto, para trás, e isso, por sua vez, confere uma nova gravidade às nossas escolhas.

Para Albert Camus, porém, as coisas são um pouco mais sombrias. Apesar de as obras de Camus constituírem um esforço deliberado e árduo para resolver o abismo indiferente do niilismo, a sua solução do "absurdo" não é um remédio fácil. 
Para Camus, o luto é um estado de ser ultrapassado pela inutilidade de tudo. Porquê amar, se o amor acaba em tanta dor? Para quê construir grandes projectos, se tudo será pó? Com o luto vem a consciência da amarga finalidade de tudo e vem com uma frustração furiosa e gritante: Porque é que estamos aqui? A sugestão de Camus é uma espécie de folia macabra - talvez humor de forca - que diz que devemos aproveitar a viagem pela montanha-russa sem sentido que ela é. Devemos imaginar-nos felizes. Temos de nos imaginar felizes.

Três respostas ao luto
Temos, aqui, três respostas diferentes ao luto. Temos a viragem religiosa de Kierkegaard, o carpe diem existencial de Heidegger e o laugh-until-you-die de Camus.

Para muitos, o luto envolve uma separação da vida. Pode parecer o inverno da alma, em que precisamos de nos curar e voltar a dar sentido à existência. É uma espécie de crisálida. Em muitos casos, regressamos à vida com uma sabedoria adquirida e podemos apreciar o mundo quotidiano de uma forma totalmente transformada. Para alguns, esta hibernação prolonga-se por muito tempo e muitos começam a ver o seu retiro frio como tudo o que existe.

Quer concordemos com Kierkegaard, Heidegger ou Camus, uma coisa é verdade para todos: falar ajuda. Exprimir os pensamentos, partilhar o nosso desespero e voltarmo-nos para outra pessoa é a brisa suave e quente que inicia o degelo.

March 21, 2023

Leituras ao entardecer - "Não sou escravo da escravatura que desumanizou os meus antepassados"




Sobre os enganos da cultura woke e uma esquerda equivocada.

The true Left is not woke

Progressive activists have forgotten their roots

BY SUSAN NEIMAN

Passaram 85 anos desde que o grande músico de blues, Lead Belly, cunhou a frase "stay wake" em "Scottsboro Boys", uma canção dedicada a nove adolescentes negros cuja execução por violações que não cometeram só foi impedida por anos de protestos internacionais e pelo Partido Comunista Americano. 

Permanecer vigilante à injustiça - o que pode haver de errado nisso? Aparentemente, bastante. Em poucas décadas, o 'despertar' passou de um termo de louvor para um termo de abuso. Ainda assim, o facto de políticos que vão desde Ron DeSantis a Rishi Sunak utilizarem "woke" como um grito de batalha não deve impedir-nos de examinar as suas suposições. Pois não só os liberais, mas muitos esquerdistas e socialistas, como eu, estão cada vez mais desconfortáveis com a forma que o woke tem assumido.

O discurso de hoje é confuso porque apela às emoções tradicionais da esquerda: empatia para com os marginalizados, indignação com a situação dos oprimidos, entendimento de que os erros históricos podem ser corrigidos. Porém, essas emoções, são distorcidas por uma série de pressupostos teóricos - geralmente expressos como verdades evidentes - que acabam por miná-las.

Veja-se uma frase que o New York Times publicou pouco depois da eleição de Biden: "Apesar das raízes indianas da Vice-Presidente Kamala D. Harris, a administração Biden pode revelar-se menos clemente em relação à agenda nacionalista hinduísta de Modi". Se lermos isso rapidamente, podemos perder o pressuposto teórico implícito: as opiniões políticas são determinadas pelas origens étnicas. Se não se souber nada sobre a Índia contemporânea, pode não se perceber que os críticos mais ferozes do nacionalismo violento de Modi são eles próprios indianos.

Claro que o New York Times não é único jornal no mundo, nem é particularmente esquerdista, mas estabelece padrões para o discurso progressista em mais do que um país. O que mais me preocupa são as formas como vozes contemporâneas consideradas progressistas abandonaram as ideias filosóficas que são centrais para qualquer ponto de vista liberal ou de Esquerda: um compromisso com o universalismo em detrimento do tribalismo, uma firme distinção entre justiça e poder e uma crença na possibilidade de progresso. Todas estas ideias estão ligadas. 
A Direita pode ser mais perigosa, mas a Esquerda de hoje privou-se das ideias de que necessitamos se esperamos resistir ao abandono da Direita.

Este abandono da Direita é internacional e organizado. A solidariedade entre essas forças sugere que as crenças nacionalistas se baseiam apenas marginalmente na ideia de que os húngaros/Noruegueses/Judeus/Anglo-Saxões/Hindus são a melhor de todas as tribos possíveis. O que os une é o próprio princípio do tribalismo: só se ligará verdadeiramente àqueles que pertencem à sua tribo e não precisa de ter compromissos profundos com mais ninguém.


É uma amarga ironia que os tribalistas de direita de hoje-em-dia achem mais fácil unir-se numa causa comum do que aqueles da esquerda cujos compromissos tradicionalmente decorrem do universalismo, quer o reconheçam ou não. 
O discurso woke é confuso porque muitos dos seus objectivos são de facto partilhados por progressistas em todo o lado. A ideia de interseccionalidade poderia ter enfatizado as formas como todos nós temos mais do que uma identidade. Em vez disso, levou a um enfoque nas partes das identidades que são mais marginalizadas e multiplicou-as numa floresta de trauma.

O Wokeness enfatiza as formas como grupos particulares foram privados de justiça e procura reparar os danos. Mas foca-se tanto nas desigualdades de poder, que se esquece do conceito de justiça. O Wokeness exige que as nações e os povos enfrentem as suas histórias criminais mas fá-lo de um modo que conclui frequentemente que toda a história é criminosa.

O conceito de universalismo em tempos definiu a Esquerda; 'solidariedade internacional' era a sua palavra de ordem e foi precisamente isto que a distinguiu da Direita, que não reconheceu nem ligações profundas nem obrigações obrigações reais a ninguém, fora do seu círculo. 
A Esquerda exigia que o círculo englobasse o globo terrestre. Era isto que significava ser de Esquerda: preocupar-se com a greve dos mineiros de carvão no País de Gales, ou com os voluntários republicanos em Espanha, ou com os combatentes da liberdade na África do Sul. 
O que os unia não era o sangue, mas sim a convicção - antes de mais a convicção de que por detrás de todas as diferenças de tempo e espaço que nos separam, os seres humanos estão profundamente ligados de uma riqueza de formas. Dizer que as histórias e as geografias nos afectam é trivial. Dizer que elas nos determinam é falso.

O oposto de universalismo é muitas vezes chamado "identitarianismo", mas a palavra é enganadora, pois sugere que as nossas identidades podem ser reduzidas a, no máximo, duas dimensões. Na verdade, todos nós temos muitas dimensões. Como Kwame Anthony Appiah nos lembra: "Até meados do século XX, ninguém que fosse questionado sobre a identidade de uma pessoa teria mencionado raça, sexo, classe, nacionalidade, região ou religião".

A redução das múltiplas identidades que todos nós possuímos à raça e ao género não tem a ver com a aparência física. É um enfoque nas dimensões que sofreram o maior trauma. Isto encarna uma grande mudança que começou em meados do século XX: a história já não se focava no herói, mas na vítima. 

O impulso para mudar o nosso foco para as vítimas da história começou como um acto de justiça. A história era contada pelos vencedores e as vozes das vítimas não eram ouvidas. Virar a mesa e insistir que as histórias das vítimas entrassem na narrativa era apenas uma parte de corrigir velhas injustiças. O movimento para reconhecer as vítimas do massacre e da escravatura começou com a melhor das intenções. Reconhecia que o poder e a razão muitas vezes não coincidem, que coisas muito más acontecem a todo o tipo de pessoas e que, mesmo quando não as podemos mudar, temos que registá-las. É o mínimo. No entanto, algo correu mal quando reescrevemos o lugar da vítima; o impulso que começou na generosidade foi totalmente pervertido.

O caso limiar desta tendência é a história de Binjamin Wilkomirski, o suíço que alegou ter passado a sua infância num campo de concentração e que se descobriu ser uma invenção. Wilkomirski não foi o único. Nas duas décadas que se seguiram, houve uma erupção de contemporâneos a inventar histórias piores do que as que viveram - uma tendência que vai contra alguns dos heróis do pensamento pós-colonial, como Frantz Fanon, cuja Pele Negra, Máscaras Brancas proclama: "Não sou escravo da escravatura que desumanizou os meus antepassados".

As políticas de identidade não só reduzem as múltiplas facetas das nossas identidades a uma só, como essencializam aquela componente sobre a qual temos o menor controlo. 
Prefiro a palavra "tribalismo", uma ideia tão antiga como a Bíblia hebraica. Tribalismo é uma descrição da ruptura civil que ocorre quando as pessoas, seja de que tipo for, vêem como fundamental, a diferença humana que existe entre a nossa espécie e todos os outros.

O universalismo está agora debaixo de fogo à esquerda porque se confunde com o falso universalismo: a tentativa de impor certas culturas a outras em nome de uma humanidade abstracta que se revela reflectir apenas o tempo, o lugar e os interesses de uma cultura dominante. Isto acontece diariamente em nome do globalismo empresarial. 

Constatemos que foi uma proeza fazer essa abstracção original para a humanidade. Os pressupostos anteriores eram intrinsecamente particulares, uma vez que as ideias anteriores de direito eram religiosas. A ideia de que uma lei deveria aplicar-se a protestantes e católicos, judeus e muçulmanos, senhores e camponeses, simplesmente em virtude da sua humanidade comum, é um feito relativamente recente que agora molda  tão profundamente os nossos pressupostos, que não o reconhecemos de todo como um feito.

Consideremos também o contrário: o teórico jurídico nazi Carl Schmitt, que escreveu que "quem diz a palavra 'humanidade' quer enganar-te". Em vez disso, podemos dizer: "quem quer que diga 'humanidade' está a fazer uma reivindicação normativa". Reconhecer alguém como humano é reconhecer neles uma dignidade que deve ser honrada. Implica também que este reconhecimento é um feito: ver a humanidade de todas as formas estranhas e belas em que ela aparece é um feito que exige que se vá além das aparências.

O que lhe parece mais essencial: os acidentes com que nascemos ou os princípios que consideramos e defendemos? Tradicionalmente, era a Direita que se concentrava no primeiro, e a Esquerda que enfatizava o segundo. 
Esta tradição tem sido invertida. 
Não é surpreendente, então, que teorias sustentadas pelos 'woke' minem as suas emoções empáticas e intenções emancipatórias. Essas teorias não têm apenas fortes raízes reaccionárias; alguns dos seus autores eram nazis absolutos. As ideias influenciadas por Carl Schmitt e Martin Heidegger e as suas epígonetas ocupam muito espaço no programa progressivo, apesar de ambos os homens não só terem servido os nazis, mas terem continuado a fazê-lo muito depois da guerra. No entanto, o ultraje, hoje, é reservado às passagens racistas da filosofia do século XVIII.

De facto, muitos dos pressupostos teóricos que sustentam os impulsos mais admiráveis dos 'despertos' provêm do movimento intelectual que mais desprezam. Os melhores princípios do woke, tais como a insistência em ver o mundo de mais de uma perspectiva geográfica, provêm directamente do Iluminismo. As rejeições contemporâneas deste período andam normalmente de mãos dadas com pouco conhecimento do mesmo. Mas não se pode esperar progredir serrando no ramo em que não se sabe que se está sentado.

É agora um dogma que o universalismo, como outras ideias do Iluminismo, é uma farsa que foi concebida para disfarçar visões eurocêntricas que apoiavam o colonialismo. Estas afirmações não são simplesmente infundadas: elas pervertem o que foi o Iluminismo. 
Os pensadores do Iluminismo inventaram a crítica do Eurocentrismo e foram os primeiros a atacar o colonialismo - com base em ideias universalistas. Quando os teóricos pós-coloniais contemporâneos insistem, com razão, em aprender a ver o mundo a partir da perspectiva de não-europeus, estão a fazer eco de uma tradição que remonta aos pensadores do século XVIII, que arriscaram o seu sustento e por vezes a sua vida, para defender essas ideias.

Isto não é apenas uma questão histórica: precisamos de ideias iluministas se queremos ter alguma esperança de avançar contra o que são as tendências autoritárias do presente. Mas não há tempo para delicadezas quando muitos líderes eleitos em todo o mundo estão a minar abertamente a democracia.


O meu livro Left is not Woke esboça os fundamentos teóricos de muito desse discurso e defende um regresso às ideias iluministas que são cruciais para qualquer ponto de vista progressista: o compromisso com o universalismo em vez de tribalismo, a crença numa distinção de princípios entre justiça e poder e a convicção de que o progresso, embora nunca inevitável, é possível. Tais ideias são um anátema para pensadores como Michel Foucault, o filósofo mais citado nos estudos pós-coloniais, ou Carl Schmitt.

Ambos rejeitaram a ideia de humanidade universal e a distinção entre poder e justiça, juntamente com um profundo cepticismo em relação a qualquer ideia de progresso. O que os torna hoje interessantes para os pensadores progressistas é o seu empenho em desmascarar as hipocrisias liberais. Schmitt era particularmente crítico acerca do imperialismo britânico e do compromisso americano com a Doutrina Monroe; ambos, argumentou ele, usaram falsas piedades sobre a humanidade e a civilização para disfarçar a pirataria nua e crua.

Mas Terra e Mar, o seu livro que divulga estas opiniões, foi publicado quando a Alemanha estava em guerra com a Grã-Bretanha e a América. Schmitt não se enganou ao afirmar que as reivindicações universalistas de justiça significavam restringir simples afirmações de poder durante séculos. Concluiu que as tomadas de poder não envernizadas, como as dos nazis, eram não só legais como legítimas. 
Pode pensar que é o melhor que podemos fazer ou pode trabalhar para reduzir o fosso entre ideais de justiça e realidades de poder.

Quanto a Michel Foucault, o seu estilo era transgressivo, mas a sua visão era mais sombria do que a de qualquer conservador tradicional. Ele acha que fazemos progressos no sentido de práticas mais gentis, mais libertadoras, mais respeitadoras da dignidade humana - todos os objectivos da Esquerda? 

Olhe para a história de uma instituição ou duas. O que pareciam ser passos em direcção ao progresso revelam-se formas mais sinistras de repressão. Todas elas são formas em que o Estado estende o seu domínio sobre as nossas vidas. Uma vez que se tenha visto, como cada passo em frente se torna um passo mais subtil e poderoso em direcção à subjugação total, é provável que se conclua que o progresso é ilusório.
Os activistas 'despertos' não conseguem ver que estas duas teorias subvertem os seus próprios objectivos. Sem universalismo não há argumento contra o racismo, apenas um bando de tribos que lutam pelo poder. 

Até ao Outono de 2020, poucas eram as vozes universalizas que defendiam a Black Lives Matter - eu era inicialmente, uma delas. Se isso é o objectivo da história política, não há maneira de manter uma ideia robusta de justiça, quanto mais de lutar coerentemente pelo progresso.

Os pensadores iluministas, entretanto, proclamaram que o progresso é (tangentemente) possível; o seu envolvimento apaixonado com os males da sua época impede qualquer crença de que o progresso esteja assegurado. Mesmo assim, nunca deixaram de trabalhar nesse sentido. Como Kant argumentou, não podemos agir moralmente sem esperança. Deixem-me clarificar: a esperança não é optimismo. A esperança não faz previsões. O optimismo é a recusa de enfrentar os factos. A esperança tem como objectivo mudá-los. Quando o mundo está realmente em perigo, o optimismo é obsceno. No entanto, uma coisa pode ser prevista com absoluta certeza: se sucumbirmos à sedução do pessimismo, o mundo tal como o conhecemos está perdido.

Não é necessário estudar debates filosóficos sobre as relações entre teoria e prática para saber pelo menos isto: o que se pensa ser possível determina o quadro em que se actua. Se pensa que é impossível distinguir a verdade da narrativa, não se dará ao trabalho de tentar. Se achar que é impossível agir sobre qualquer outra coisa que não seja o interesse próprio, seja genético, individual ou tribal, não terá quaisquer escrúpulos em fazer o mesmo.

É frequentemente recordado que os nazis chegaram ao poder através de eleições democráticas, mas nunca ganharam uma maioria a não quando já estavam no poder. Se os partidos de esquerda tivessem estado dispostos a formar uma frente unida, como os pensadores de Einstein a Trotsky pediram, o mundo poderia ter sido poupado à sua pior guerra. As diferenças que dividiam os partidos eram reais; sangue tinha mesmo sido derramado. Mas embora o Partido Comunista Estalinista não o conseguisse ver, essas diferenças empalideciam face às diferenças entre os movimentos esquerdistas universais e as visões tribais do fascismo.

Não podemos permitir-nos um novo erro semelhante.

March 13, 2023

Leituras ao entardecer - 'On the Need to Touch Grass' by Lee Siegel



On the Need to Touch Grass by Lee Siegel



A meio do romance de Ralph Ellison, «O Homem Invisível», o herói negro sem nome, em fuga do opressivo Sul, encontra um vendedor de rua no Harlem a vender inhame quente. "De um cano do fogão saiu uma fina espiral de fumo que fez deslizar lentamente até mim o cheiro de inhame cozido, cravando-me uma facada de nostalgia. . . . Em casa, cozíamo-los nas brasas quentes da lareira, levávamo-los frios à escola para o almoço, espremendo a polpa doce da casca macia enquanto nos escondíamos do professor por detrás do maior livro, o The World's Geography
Conduzido pelas memórias da sua infância, compra um inhame atrás do outro e devora-os. Sentindo-se, pela primeira vez, singularmente ele próprio, confiante e capacitado, grita: "São a minha marca de nascença. I yam what I am!"Ellison faz da memória sensorial, singular e irredutível de um indivíduo a essência da própria identidade.

Não importa a madeleine de Proust. Poderia escrever uma história excêntrica da literatura americana traçando exemplos de memória sensorial que nela ocorrem, desde Huck Finn descrevendo algo como "tudo imóvel e semelhante a um domingo" (ele lembra-se da sensação de um domingo); até Nick Adams de Hemingway pensando que "a tenda pendurada na corda como um cobertor de lona num estendal de roupa"; até Holden Caulfield em Catcher in the Rye sendo varrido por memórias da sua infância quando sente a chave na mão enquanto vai ajudar uma criança a apertar os seus patins.

O cozinheiro cria um prato, recordando o sabor das coisas; o compositor compõe lembrando-se de como certas notas soam quando tocadas juntas; o pintor cria cores recordando os seus efeitos uns sobre os outros - não há arte, humilde ou elevada, sem memória sensorial. 
As autoridades religiosas compreendem os poderosos efeitos de ligação das velas, incenso, canto, degustação, tacto. A própria "personalidade integrada" é nada mais nada menos que um feixe de memórias sensoriais, cuja persistência através do tempo garante um eu contínuo.

Um dos desenvolvimentos mais consequentes do nosso tempo é que as experiências que criam memórias sensoriais estão a desaparecer, ainda mais depressa do que as temperaturas estão a subir.
"Gasolina e perfume barato" são metade do cheiro da aventura americana". Podemos ouvir os risos sarcásticos como resposta a esta evocação de Norman Mailer, mas está a tornar-se cada vez mais difícil conseguir uma versão contemporânea. Estações de carregamento eléctrico e cheiros veganos éticos? Cliques de Twitter e de TikTok? Cartas abertas indignadas ao New York Times ou investigações formais sobre acusações de assédio?

Temo os efeitos da perda de experiências sensoriais da realidade que nos ligam às nossas próprias vidas e às vidas de outras pessoas. Imagine os filhos de pais obcecados pelas alterações climáticas, um dos quais se recusa a voar para outros lugares, o outro evita comer algo mais sensualmente evocativo do que algas marinhas. Que constituinte palpável do mundo trará estas crianças de volta à canção de si próprias à medida que atravessam a vida? Que qualidade tangível íntima das suas vidas irão levar consigo e acarinhar? Os antigos egípcios perfumavam as suas múmias e enterravam-nas com frascos de cheiro doce de fruta e cera de abelha, sem dúvida para que, se os mortos tivessem a sorte de entrar na vida após a morte, os cheiros familiares mantivessem as suas personalidades tão intactas como os seus corpos.

Quando ouço a palavra "almíscar" (Musk), penso em noites misteriosas e ombros nus, não em Elon. 
She is as in a field a silken tent, diz a primeira linha de um belo poema de amor de Robert Frost. Mas num mundo de ecrãs, ChatGPT e metáforas, as pessoas vão gradualmente deixar o seu conhecimento táctil da seda se desvaneça. Nessa altura, o poema deixará de fazer sentido. 
A magnífica subestrutura linguística do símil deixará de existir. E sem símile, a língua perderá a dupla alegria de usar as sensações físicas para evocar um significado para além do mundo da aparência material. Os robôs não possuem e nunca possuirão memória sensorial. Bem-vindo à era dos robôs.

"Tudo o que é sólido funde-se no ar". Marx não podia ter previsto o Facebook e o Twitter quando escreveu essa frase, mas a sua profecia foi cumprida de uma forma que nunca teria imaginado. O estandarte do abstracto voa sobre tudo. A tactilidade da arte dá lugar a declarações de justiça social. O senso comum, enraizado na experiência, orientando as pessoas a tolerarem valores que não aceitam, dá lugar a imperativos categóricos, enraizados em piedades abstractas, ordenando às pessoas a abraçarem valores que não aceitam. 
Pronomes colapsam e esbatem, extinguindo domínios inteiros da experiência conhecida. A gama de referências reduz-se e esbate-se. Em breve, a alta comédia de identidade sexual errada em Shakespeare e Oscar Wilde será descartada numa cultura não binária como tragédias cruéis da biologia. 
A própria base da comédia - o contraste, a justaposição ou o deslocamento - desaparecerá porque ninguém terá experiência suficiente para reconhecer o que está a ser contrastado, justaposto, ou deslocado com o quê. Talvez seja por isso que os comediantes da noite tardia soam agora ou como procuradores especiais ou como rígidos mestres-escola.

Até a diplomacia se empobreceu com a supressão da memória sensorial, já que fantasias abstractas de virtude impelem o nosso presidente a realizar a espantosa proeza de antagonizar as outras duas superpotências ao mesmo tempo. Aqui a recordação sensual do que se faz quando se conduz e se chega a um sinal de paragem de quatro vias seria crucial: não se continua a conduzir.
"Sweep away!" tornou-se o grito de guerra dos progressistas loucos por controlo. Mas quando o significado foi disciplinado fora da linguagem e o orgulho de fazer algo melhor do que outras pessoas foi banido, quando a clareza superficial de se ser um homem ou uma mulher foi proibida, quando o instinto prático de protecção e de auto-protecção é proibido e as práticas simples da vida, envergonhadas da existência - quando todas estas coisas humanas intemporais, todas criadas a partir dos sentidos, se fundem no ar, então nada na nossa experiência nos lembrará de mais nada na nossa experiência e perderemos a capacidade de discriminar, de acarinhar, de ajuízar. 
Em vez de expandir continuamente as nossas simpatias, ajudando-nos a seguir o fio da verdade através da dissimilaridade, a imaginação moral encolherá até ao nada. E então qualquer comparação e qualquer equivalência serão possíveis.


February 28, 2023

Leituras ao entardecer - as duas formas de perder o seu 'eu' segundo Søren Kierkegaard (e como não se perder)





Como não ser um impostor: Kierkegaard sobre as duas principais formas de as pessoas perderem o seu verdadeiro "eu".

Segundo Kierkegaard, as pessoas podem perder o seu eu autêntico quando não enfrentam honestamente o potencial da vida.

Jonny Thomson

Kierkegaard, em termos de tomada de decisões significativas e autênticas, somos uma espécie que caminha numa ponte estreita entre dois abismos: o finito e o infinito. 
No lado finito estão as condições fixas de tudo o que somos. Os factos da nossa existência que nos obrigam a viver de determinadas formas: as necessidades do corpo, as fibras do cérebro e os impulsos da necessidade. 
Do lado infinito está um universo de potencial - todas as coisas que pensamos que um dia poderemos fazer ou tornar-nos, um futuro cheio de possibilidades, sem um rumo definido. 

Ambos os lados têm as suas sirenes que nos acenam com promessas de conforto e ambos correm o risco de nos tornar incapazes de avançar autenticamente nas nossas vidas. Para o filósofo dinamarquês, a tarefa sábia mas difícil da vida é percorrer o caminho entre estes dois abismos: não ser finito nem infinito, mas encontrar o caminho do meio.

Tornar-se um número 

Neste momento, cada um tem inúmeros desejos, desejos, preocupações, fobias, ou sonhos que puxam ou empurram desta e daquela maneira. Durante a maior parte da sua vida, vão ceder-lhes: coçar uma comichão, beber água, sorrir para uma rapariga bem-parecida, ir para a cama, cuidar de uma picada de vespa, etc. Nestes momentos, vive-se na finitude da existência - a realidade e a necessidade da vida.

Para muitas pessoas, isto é tudo o que existe: um mundo a que Kierkegaard chama "estético" [o mundo do imediato]. O problema é que se vivermos apenas para as nossas necessidades e caprichos, a vida passará sem nada maior. Quando vivemos apenas para a vida estética, e abraçamos demasiado completamente o finito, arriscamo-nos a perder-nos a nós próprios. Podemos fazer isto de duas maneiras. Uma é tornarmo-nos um escravo dos nossos desejos - uma espécie de autómato hedonista. Outra é tornarmo-nos um zangão sem rosto, desinteressante entre as massas - ou, como disse Kierkegaard, "como os outros, tornarmo-nos uma imitação, um número na multidão".

Tome-se como exemplo a pessoa que se identifica tão fervorosamente e obsessivamente com algum passatempo, profissão, ou papel. Pode ser o Bom Pai, o Piedoso Devoto, o Patriota e assim por diante. Tudo o que eles fazem na vida está sujeito a esta identidade pré-fabricada que usam e todas as suas acções devem satisfazer um papel social. O Adorador Devoto nunca deve contar uma anedota imoral. O Patriota nunca deve insultar o seu país. O Bom Pai nunca pode gritar e queixar-se da sua criança irreprimivelmente barulhenta.

Estas pessoas devem integrar-se num grupo, numa família, ou numa multidão, porque é aí que pensam que se encontrarão. Pensam que fazer isso é o que significa ser uma pessoa. Mas render-se aos rótulos do "finito" é render a própria capacidade complexa que se tem de se reinventar a todo o momento.

Quando o finito é tudo aquilo para que se vive, deixa-se de existir como um "eu" e torna-se uma folha ao vento ou um peão para ser movido.

Agarrar a possibilidade

Kierkegaard acreditava que o finito não é tudo o que existe para ser humano. Há também o infinito - o reconhecimento de que temos a capacidade de escolher e dirigir as nossas vidas essencialmente da maneira a que sonhámos. Mas, passar demasiado tempo a olhar para o cosmos das possibilidades não é inteiramente saudável. Para muitas pessoas, é aterrador.

A maioria de nós consegue lembrar-se da vertigem ansiosa que surge nesses momentos "infinitos" da vida, quando deixamos a casa dos nossos pais, quando terminamos uma relação, ou olhamos fixamente para a primeira página em branco de um romance. Conhecer o infinito é também estar terrivelmente consciente da imensidão do futuro. Numa frase que Kierkegaard tornou famosa (filosoficamente famosa, pelo menos), isto é experimentar e conhecer a "vertigem da liberdade".

Para muitas pessoas, a ansiedade e o pânico que advêm do confronto com o vasto potencial da vida é paralisante. Há uma paralisia que vem por ser incapaz de escolher, porque há demasiadas escolhas a fazer, e demasiadas opções potenciais a escolher. Durante grande parte das nossas vidas somos guiados pela mão daqueles que nos rodeiam, ou recebemos respostas fáceis e impulsivas da nossa biologia. No entanto, um ser humano é alguém que pode fazer um balanço das coisas e que pode - quem tem de o fazer - tomar decisões.

Muitos perder-se-ão na ansiedade de quão momentosas são estas escolhas. Eles vêem até que ponto as suas decisões irão afectar todos à sua volta e sabem que só se pode escolher um caminho uma vez. Muitas pessoas nadarão demasiado tempo no infinito e em pouco tempo, afogam-se.

A ponte estreita
Há um grande perigo em ambos os lados do nosso caminho. De um lado, arriscamo-nos a perder tudo o que nos torna um indivíduo: um ser com escolha e liberdade e do outro, arriscamo-nos a nunca nos comprometermos com a vida, adiando as nossas decisões ou negando a nossa capacidade de escolha. 
Temos de dar um passo ao longo dessa estreita ponte entre o infinito e o finito. 

O conselho de Kierkegaard é que cada um de nós "aprenda a estar ansioso". Temos de tomar uma posição onde nos habituaremos a enfrentar o exterior. Há um paradoxo em tudo isto (e Kierkegaard gosta particularmente de paradoxos) que é o de termos de manter duas crenças aparentemente contraditórias em tandem, sem nunca darmos lugar a nenhuma delas.

Temos de reconhecer que somos frágeis e insignificantes - primatas que correm sobre hormonas e sinapses mas, temos também de reconhecer que somos poderosos e que as nossas decisões definem o nosso futuro. 

Abraçar este paradoxo e viver com ele é uma maturação da alma e é um passo necessário para nos tornarmos um ser humano. Como escreveu Kierkegaard, "direi que esta é uma aventura por que todo o ser humano deve passar". Todos nós vivemos em contradição. A sabedoria vem de aceitar isso.

February 15, 2023

Leituras ao entardecer - O caos e a ordem

 


Pequenos acertos com o caos


Alexandre Lacroix


Se é verdade que ninguém quer uma vida ou uma sociedade completamente arrumadas, sinónimo de aborrecimento e privação de liberdade, também não é fácil medir correctamente a desordem. Poderemos realmente abrir-lhe a porta sem ela devastar tudo?

No seu livro The Sense of Beauty (1893), o filósofo George Santayana propõe esta experiência de pensamento: imagine que as estrelas no céu continuam tão numerosas como agora, mas que estão dispostas de uma forma ordenada. Digamos que traçam linhas paralelas. Ou um triângulo. Ou mesmo uma cruz. Será que o céu nocturno lhe pareceria melhor?

A maioria de nós tenderia a dizer que não. No domínio estético, muitos de nós preferem uma franca desordem, uma abundância de formas surpreendentes. Gostamos de florestas selvagens com os seus troncos caídos, as suas plantas de tamanhos e espécies diversas, mais do que a silvicultura industrial com as suas árvores alinhadinhas. Num filme ou num romance, gostamos de descobrir vidas atormentadas, ricas em acontecimentos inesperados e paixões inexoráveis - por isso estamos mais interessados em seguir a história de uma ninfomaníaca policial investigando os casinos de Macau do que, digamos, a de um engenheiro, bom homem de família e pianista amador.


Contudo, só porque gostamos de desordem em paisagens ou na ficção, isso não significa que estejamos prontos a acolhê-la nas nossas vidas! Temos tendência a sobrestimar o nosso gosto pela desordem porque a achamos bela quando nos é apresentada como um espectáculo. 
Porém, quando a experimentamos directamente, as nossas reacções são mais contidas. Por muito que proclamemos o nosso gosto pela fantasia e liberdade, detestamos ser passados numa fila, desconfiamos das pessoas a cambalear ou a gritar na rua, reviramos os olhos quando alguém puxa do telemóvel e fala alto numa carruagem de comboio, gostamos que os comboios cheguem a horas, que os automobilistas respeitem os sinais vermelhos e as faixas da direita, que haja mostarda no supermercado e gasolina na estação de serviço... Em suma, que todos façam o que têm de fazer e que a vida social seja como uma máquina bem oleada. 
Esta ou aquela pessoa professa simpatia pela anarquia mas odeia greves que paralisam o serviço público ou manifestações que se descontrolam. Num registo mais dramático, o mesmo se poderia dizer da guerra, como mostra hoje o destino da Ucrânia: a imagem de uma invasão aterroriza-nos, porque é uma irrupção do caos; os bombardeamentos parecem ainda mais terríveis do que os confrontos armados, porque com eles, a morte não se restringe à linha da frente, mas cai ao acaso.

De facto, podemos não gostar nem da desordem total nem da ordem total, pois ambas nos parecem contrárias à vida - a primeira destrói a vida, a segunda congela a vida. Em vez disso, procuramos uma combinação das duas. Mas quais são as proporções a respeitar? A história da filosofia sugere três receitas para a preparação deste cocktail.

1. A ordem como uma vitória precária
Segundo uma tradição de pensamento insistente, a ordem é concebida como uma vitória sobre a desordem. Implicitamente, isto significa que a desordem é vista como primária. A realidade ser-nos-ia dada como uma diversidade de fenómenos obscuros e sem sentido, nos quais procuramos localizar as regularidades e criar microcosmos habitáveis para nós próprios.

A Teogonia de Hesíodo, um dos mais antigos textos sobreviventes (século VIII a.C.), afirma que no início havia 'caos' - do sânscrito kha, 'cavidade', 'abertura'. O caos não é vazio, uma vez que a sua brecha tem um poder matricial: Hesíodo diz-nos que dele saiu a escuridão e a noite, que por sua vez deram origem ao dia e ao éter... É difícil seguir Hesíodo no seu relato do Génesis. No entanto, o ponto importante é que o abismo está lá antes da Terra e a escuridão antes da luz. O que nos permitirá a nós humanos vir à existência é, portanto, apenas um estado avançado do cosmos [grego κόσμος (kosmos), 'ordem'], onde por nossa vez temos de realizar uma tarefa de ordenação através da criação de cidades.

Numa veia menos mitológica, os teóricos dos primeiros contratos sociais viam o estabelecimento de leis e do poder soberano como uma forma de ultrapassar o estado da natureza, que era vista como uma ausência de regras, ameaçadora. 
No Leviatã (1651), Thomas Hobbes afirma que, no estado da natureza, se algum homem planta, semeia, constrói, ou possui um lugar próprio, pode-se esperar que outros virão, provavelmente tendo-se preparado, unindo forças, para o desapossar e privá-lo, não só do fruto do seu trabalho, mas também da sua vida e liberdade. E o invasor, por sua vez, é exposto ao mesmo perigo por parte de um outro. Pois todo o humano é vulnerável - o forte tem de dormir, apesar de o fraco poder aproveitar para assassiná-lo. O estado da natureza, como Hobbes o entende, não é necessariamente um estado de guerra efectivo, mas a guerra é uma possibilidade sempre em aberto.

Esta situação faz lembrar o carácter do Rei do bosque, introduzido pelo antropólogo James Frazer no início de The Golden Palm (1890): nos tempos antigos, não muito longe de Roma, havia um santuário Da deus Diana onde um homem "de cara sombria", carregando uma "espada afiada", olhava à sua volta, dia e de noite "como se esperasse ser assaltado por um inimigo a qualquer momento". 
Isto deve-se ao facto de o sacerdote-rei deste santuário ter adquirido a sua soberania de uma forma especial, matando o seu antecessor e arrancando um ramo da árvore sagrada. Mas o seu reinado duraria apenas até ao segundo em que um pretendente ao trono conseguisse assassiná-lo. 
Tal é a posição insustentável do indivíduo no estado de natureza: ora predador ora presa, permanentemente exposto à morte violenta. Entrar na sociedade civil tal como a conhecemos, aceitando as suas leis, iria assim satisfazer uma necessidade de segurança e protecção.

A um nível mais psicológico, no século XIX, desenvolveu-se uma visão do homem como um ser que contém dentro dele, num estado selvagem, bastantes impulsos destrutivos - como a brutalidade ou um apetite desenfreado - que a educação, mas também a civilização, teriam de domesticar. 
É esta compreensão positivista do humano que serve de fundo a Sigmund Freud quando descreve, em Malaise dans la civilization (1929), o sujeito movido por "instintos poderosos", aos quais se imporia uma renúncia cultural que torne possível a vida em sociedade. Esse processo civilizador criaria, entretanto, instabilidade pois, quando uma pulsão instintiva sucumbe à repressão, os seus elementos libidinosos transformam-se em sintomas e os seus elementos agressivos em sentimentos de culpa. A repressão, portanto, tem o seu lado luminoso – permite a harmonia – e seu lado sombrio – gera neuroses.

Encontramos aqui um padrão fundamental e recorrente de compreensão da relação entre ordem e desordem: o que seria dado em primeiro lugar seria sempre caótico, tenebroso e violento e deveríamos ver o estabelecimento da ordem como uma vitória frágil - como se o mundo fosse feito de grãos de areia espalhados, que poderíamos erguer em castelos temporários.

2. A fecundidade da desordem
Uma outra visão encoraja-nos a ver a desordem como um estado de jorro criativo. Afinal, se estás aqui e lês estas linhas, é porque dois seres fizeram amor, que uma desordem de desejos, emoções e sensações permitiu o teu nascimento; para não mencionar a hecatombe de milhões de espermatozóides que foi o epifenómeno da fecundação. A vida proporciona-nos o próprio modelo desta profusão louca: um carvalho deixa cair cinquenta mil bolotas por ano, uma estrela-do-mar lança dois milhões de ovos no mar e tudo ao acaso... Onde está a ordem nisso?

Na tradição materialista, de Epicuro a Lucrécio, encontramos uma explicação da formação de mundos pelo clinamen, um conceito grego que se traduz como "declinação do átomo". A palavra não se encontra nos poucos textos sobreviventes de Epicuro, mas é atestada por um dos seus discípulos, Diógenes de Enoanda: Se alguém recorre à teoria de Demócrito e afirma que os átomos não têm movimento livre devido à sua colisão mútua, da qual parece que todas as coisas se movem com um movimento forçado, dir-lhe-emos : não sabe, então, quem quer que seja, que os átomos também têm um movimento livre que Demócrito não descobriu mas que Epicuro trouxe à luz, um movimento que consiste na declinação, como ele mostra a partir de fenómenos? 
Para os Epicurisas, de facto, existem apenas duas coisas no universo: os átomos e o vazio. No início, os átomos caíam no vazio, pelo que seguiam linhas paralelas, como uma chuva de gotas. Depois, sem explicação, um átomo desviou-se ligeiramente da sua trajectória e provocou uma carambola. São estas colisões que criam os agregados que são mundos. Um universo de pura regularidade não teria, portanto, nem estrelas nem planetas, nem seres vivos: tudo isto nasce de uma espécie de capricho atómico, da possibilidade de brincar no interior do Meccano!

Estas considerações provêm da cosmologia, mas é possível dar-lhes uma extensão moral. Gostamos que a sociedade no seu funcionamento global seja regular e protectora, é claro. Mas também precisamos de praticar uma espécie de clinamen existencial, ou seja, desviarmo-nos da trajectória planeada, de tempos a tempos, se quisermos que as nossas vidas se animem. 
Talvez esta exigência nos leve de volta à apreciação estética da desordem, uma vez que parece difícil praticar a arte sem experimentar algum tipo de descarrilamento. 
Numa espécie de paradoxo, o jovem Arthur Rimbaud, na carta ao seu professor Paul Demeny de 15 de Maio de 1871, propõe fazer do descarrilamento um método: O Poeta faz-se vidente por um longo, imenso e racional desarranjo de todos os sentidos. Todas as formas de amor, sofrimento, loucura; ele procura-se a si mesmo e esgota todos os venenos que há nele, para manter apenas as quintessências. Este é um programa muito diferente do programa de positivismo ou de repressão freudiana!

3. O retorno cíclico dos mesmos males
Se uma corrente na história do pensamento favorece a ordem, concebida como uma conquista, enquanto outra corrente realça a vitalidade da desordem, outros filósofos concebem-nas como duas fases do mesmo ciclo. Por muito longa que seja uma paz, um olhar sobre o passado diz-nos que ela será seguida de guerra. Mas o contrário é verdade.

Um termo técnico, pertencente à filosofia política, esclarece esta ideia: anacyclose, que significa que a roda dos regimes gira fatalmente, impulsionada pelos defeitos inerentes a cada modelo. 
Foi Platão que, na República, apresentou uma tal concepção de história. 
A organização que prefere é a aristocracia, mas esta começa a declinar quando os cidadãos livres perdem o sentido de coragem e moderação e se tornam apaixonados pela conquista do dinheiro e da glória. Escorregam por esta encosta, de modo que a aristocracia se degrada numa timocracia (do grego timáô, 'prémios', 'honras'), uma sociedade onde prevalecem os apetites individuais. Isto dá origem à oligarquia, onde o poder é dado a poucos (oligos em grego). Mas esta oligarquia cria um fosso entre as elites e o povo. Nas cidades oligárquicas existem mendigos e ladrões. As elites que se entregam ao luxo e ao prazer não são tidas em alta estima pelas classes trabalhadoras de maneira que se lhes impõem apenas pela força. Isto não é sustentável e a oligarquia cai na democracia - quando o povo, demos na Grécia, toma o poder. No entanto, a democracia não é uma conquista definitiva porque morre pelo valor que mais promove, a liberdade. Como uma "constituição política agradável, privada de governo real, bárbara", a democracia produz uma desordem cada vez maior, insegurança que faz o povo sentir a necessidade de colocar no poder um homem providencial que restabeleça a ordem - e é assim que a democracia dá à luz a tirania, segundo Platão. 
Se este quadro de regimes políticos parece anacrónico, podemos perguntar-nos se certos regimes autoritários, como o Irão ou a China, não estão hoje abalados por aspirações democráticas, enquanto que o populismo de extrema-direita é cada vez mais apelativo nas democracias parlamentares. Em todos os países, não diríamos que a roda está a girar?

Em economia, existem várias teorias cíclicas, nenhuma das quais é unanimemente aceite. A mais conhecida foi proposta pelo economista russo Nikolai Kondratiev (1892-1938). Em seu entender, um ciclo de cinquenta a sessenta anos governou as economias modernas, o que se verificou até aos 'Trinta Gloriosos Anos', embora desde 1989, a relevância desta interpretação tenha sido debatida. 
Não é muito clara, porque a economia mundial está agora a mostrar tanto sinais de saúde - no mercado de trabalho ou nas finanças - como de recessão - com o aumento da inflação ou no aparecimento de penúria.

No entanto, estas concepções cíclicas da história convidam a um certo pessimismo: durante uma década, um conjunto de acontecimentos convergentes - a pandemia de Covid, a guerra na Ucrânia, a instabilidade climática - parece indicar que nós, europeus, estamos em vias de sair de uma fase de ordem prolongada, que começou em 1945, para entrar numa fase mais perturbada e preocupante. 
A declaração conjunta de Vladimir Putin e Xi Jinping na abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno em Pequim, a 4 de Fevereiro de 2022, mostra que alguns dos principais actores geopolíticos estão ansiosos por virar a página da história em que os valores ocidentais, com o sufrágio universal e os direitos humanos na linha da frente, dominam o mundo.

Contudo, há aqui um truque da razão e a visão cíclica da história merece outra complexidade. De facto, os líderes que se fazem passar por defensores da ordem - Vladimir Putin na Rússia ou os Conservadores britânicos - tendem a mergulhar os seus países em aventuras que são, no mínimo, caóticas - a guerra, o Brexit. 
Pelo contrário, as democracias - que Platão acusou de se deixarem levar aqui e ali pela corrente - que toleram dissidências e até motins, parecem garantir uma paz civil mais estável. Assim, é tentador pensar que na política, o discurso da ordem produz os efeitos da desordem e vice-versa - o que leva a que, dependendo se estamos interessados na retórica do poder ou na vida social efectiva, possamos ter a impressão de que as duas fases do ciclo se sobrepõem!

Ao nível das nossas vidas e das nossas sociedades, temos três formas de abordar a questão: ou consideramos que a desordem é o que a realidade nos oferece e que a ordem é um horizonte desejável; ou pensamos que a experiência da desordem é propícia à emergência do novo; ou apostamos que, quando tudo está arrumado, é porque se está a criar uma grande confusão! 
Transformada num menu de cocktail, a história da filosofia convida-o a escolher entre estas três bebidas: Virgin Mojito, B-52 ou Black-Up.

November 08, 2022

Leituras ao entardecer

 


Somos personagens fictícias da nossa própria criação


Os dados sugerem que as histórias que contamos a nós próprios sobre os nossos motivos, crenças e valores, não só não são fiáveis, como são inteiramente fictícios. Os nossos cérebros são mestres contadores de histórias capazes até de justificar escolhas que nós nunca fizemos. A introspecção não é uma estranha percepção interior; é a imaginação humana voltada para si própria.

No clímax de Anna Karenina, a heroína atira-se para debaixo de um comboio. Mas será que ela queria morrer? Várias interpretações deste momento crucial da grande obra-prima de Tolstoi são possíveis. Terá o ennui da vida aristocrática russa e o medo de perder o seu amante Vronsky tornado-se assim tão intolerável? Ou terá sido o seu acto final um mero capricho, um gesto teatral de desespero, não imaginado seriamente nem mesmo momentos antes de surgir a oportunidade?

Fazemos tais perguntas. Mas será que podem ter respostas? Se Tolstoi diz que Anna tem cabelo escuro, então Anna tem cabelo escuro. Mas se Tolstoi não nos diz por que razão Anna saltou para a morte, então os motivos de Anna são um vazio. Podemos tentar preencher este vazio com as nossas próprias interpretações, e podemos debater a sua plausibilidade. Mas não há verdade oculta sobre o que Anna realmente queria, porque, é claro, Anna é uma personagem fictícia.

Mas suponha que Anna fosse uma figura histórica e a obra de Tolstoi uma reconstrução jornalística de factos reais. Agora a questão da motivação de Anna torna-se uma questão de história, em vez de uma interpretação literária. No entanto, o nosso método de investigação permanece o mesmo: o mesmo texto seria agora visto como fornecendo pistas sobre o estado mental de uma pessoa real e não de uma personagem fictícia. Advogados, jornalistas e historiadores, em vez de críticos e estudiosos literários, poderiam apresenta e debater várias interpretações.

Agora imagine que perguntamos à própria Anna. Suponhamos que o comboio travou mesmo a tempo e que Anna é transportada anonimamente para um hospital de Moscovo. Contra as probabilidades, sobrevive e opta por desaparecer para escapar ao seu passado. Apanhamos Anna em convalescença num sanatório suíço. Provavelmente Anna estará tão insegura como qualquer outra pessoa sobre as suas verdadeiras motivações. Afinal, ela também tem de se envolver num processo de interpretação: considerando as suas memórias (em vez do manuscrito de Tolstoi), ela tenta fazer um relato conjunto do seu comportamento.

Mesmo que Anna avance com um relato definitivo das suas acções, podemos ser cépticos de que a sua própria interpretação seja mais convincente do que as interpretações dos outros. Ela pode ter "dados" indisponíveis para um estranho - por exemplo, lembrar as palavras desesperadas "Vronsky deixou-me para sempre" correndo pela sua mente ao aproximar-se da beira da plataforma factídica. Contudo, qualquer vantagem deste tipo pode ser mais do que compensada pela lente distorcedora da autopercepção. As nossas interpretações das nossas próprias acções parecem, entre outras coisas, atribuir a nós próprios maior sabedoria e nobreza do que poderia ser evidente para o observador desapaixonado. A autobiografia merece sempre uma medida de cepticismo.

Seremos todos nós personagens fictícios?
Todos nós já ouvimos dizer que "o jornalismo é o primeiro rascunho da história", mas podemos também dizer que o nosso fluxo da consciência, de momento a momento, é o primeiro rascunho de autobiografia. E se a autobiografia merece uma medida de cepticismo, talvez o primeiro rascunho de autobiografia mereça uma dose dupla.

Defendo que a neurociência, a psicologia e a IA modernas nos levam à conclusão de que as histórias que contamos a nós próprios sobre os nossos motivos, crenças e valores não só são pouco fiáveis nas suas especificidades, como são fictícias duma ponta à outra. São improvisações criadas em retrospectiva pelo espantoso espirito da história que é a mente humana. Quando imaginamos, questionamos ou debatemos os motivos de Anna, sabemos que não existe uma resposta correcta sobre os verdadeiros motivos subjacentes às acções de Anna, porque Anna não é real. No entanto, a mesma maquinaria que os nossos cérebros utilizam para criar explicações para as acções de personagens fictícias é utilizada quando interpretamos as acções das pessoas que nos rodeiam e, na verdade, a nós próprios. Somos, num sentido muito real, personagens fictícias da nossa própria criação.

Considere três vertentes de prova. Em primeiro lugar, a neurociência. As explicações linguísticas que criamos do nosso próprio comportamento são geradas pelos centros linguísticos no nosso córtex cerebral esquerdo. Em pessoas cujos cérebros foram cirurgicamente divididos em dois, cortando o corpus collosum que liga o córtex esquerdo e direito, isto significa que a maquinaria geradora de linguagem no córtex esquerdo é completamente alheia às maquinações do córtex direito. Por acaso, o córtex direito vê a metade esquerda do campo visual e controla a mão esquerda. Assim, quando se pede às pessoas com cérebros divididos que expliquem verbalmente as acções da sua mão esquerda, é de esperar que fiquem totalmente mistificadas. Mas não de todo! Estão todos demasiado prontos para confabular uma explicação credível (embora totalmente infundada).

Num estudo clássico de Michael Gazzaniga, da UC Santa Barbara, pede-se a uma pessoa com um cérebro dividido que faça corresponder as imagens nos cartões a uma imagem mostrada num ecrã de computador . O truque é que as duas metades do cérebro são mostradas com imagens diferentes: À metade esquerda (linguagem) do cérebro é mostrada com uma garra de galinha e à metade direita do cérebro uma cena de neve. A pessoa escolhe então qual das cartas da imagem melhor corresponde à imagem. O cérebro direito dirige a mão esquerda para escolher uma imagem de uma pá de neve - que corresponda à cena nevada, claro. Mas o cérebro esquerdo, linguístico, não sabe nada disto - apenas viu uma garra de galinha. No entanto, quando lhe é pedido para explicar as acções da mão direita, o cérebro esquerdo está pronto com uma resposta fluente, imediata e aparentemente convincente: que a pá foi escolhida porque é necessária uma pá para limpar o galinheiro. Esta é uma resposta maravilhosamente criativa: o cérebro esquerdo está a fazer o seu melhor para ligar a garra da galinha com a pá. É também claramente errado. Mas o que é realmente impressionante é que ela é gerada fluentemente e com convicção. Faz-nos suspeitar fortemente que o nosso cérebro esquerdo, o "intérprete", como lhe chama 
Gazzaniga, é um mestre da invenção pois nunca tem acesso directo às verdadeiras causas de comportamento.

Em segundo lugar, a psicologia. Décadas de experiências descobriram que somos criadores de histórias sobre os nossos próprios motivos, pensamentos e emoções. Imaginamos que achamos as pessoas mais atraentes quando acabamos de caminhar sobre uma ponte alta e instável (caso contrário, porquê a adrenalina?). Se tivermos tido uma injecção de adrenalina, classificamos o comportamento irritante como sendo mais irritante (interpretamos a adrenalina como uma pista de que estamos realmente irritados). Mais recentemente, o surpreendente fenómeno da choice blindness
mostra que as pessoas podem ser induzidas a pensar que preferem uma cara, um sabor ou mesmo visão política a outra - e podem justificar de forma fluente e convincente uma escolha que nunca fizeram de facto.

Finalmente, as provas da inteligência artificial. Se pudéssemos revelar (não apenas inventar histórias sobre) as verdadeiras causas do nosso comportamento, então os peritos de todos os campos deveriam ser capazes de nos dizer o que sabem e porquê. Imagine se pudéssemos simplesmente colocar esse conhecimento numa base de dados e usá-lo para recriar essa perícia num computador. Se ao menos fosse tão fácil! Nos anos 70, os investigadores da inteligência artificial tentaram esta estratégia e ela falhou de forma exaustiva. Acontece que os peritos não fazem ideia de como diagnosticar doenças, prever o tempo, ou jogar xadrez: as suas explicações estão simultaneamente cheias de buracos e irremediavelmente auto-contraditórias. Em retrospectiva, talvez, isto não devesse ter sido uma surpresa - afinal de contas, dois milénios de filosofia demonstraram certamente os puzzles desconcertantes e as contradições que surgem quando tentamos explicar as nossas declarações quotidianas sobre o bem e o mal, liberdade e responsabilidade, ou a natureza de causa e efeito.

A mente é um contador de histórias espectacularmente inventivo, se bem que extremamente inconsistente, gerando um fluxo contínuo de explicações, especulações e interpretações, incluindo dos nossos próprios pensamentos e acções. E estas histórias são tão fluentes e convincentes que as confundimos frequentemente com relatos de um mundo interior sombrio. Mas a introspecção não é uma percepção interior estranha; é a imaginação humana voltada para si própria.


May 06, 2021

Leituras ao entardecer - a crise no ensino das Humanidades

 


Esta análise é muito interessante nos termos em que é problematizada a questão. Embora me pareça que o autor deixe de fora perspectivas importantes há muito para pensar a partir desta análise e pode levar-se para outros campos que não o da Literatura, que é aquele que ao autor lhe interessa discutir.



Serão os Professores de Humanidades Peritos Morais?

Ficámos confusos quanto aos nossos papéis como educadores estéticos.

Michael Clune

As perguntas mais importantes para qualquer educador são: porque deveriam os estudantes ouvir-me? Que pretensão tenho sobre o público? Quando estas perguntas já não podem ser respondidas de forma clara e convincente, uma disciplina corre o risco de extinção. Este destino paira sobre os estudos literários. A crise há muito que se manifesta a todos os níveis da profissão - desde o declínio das majors até ao colapso do mercado de trabalho - tem causas complexas, mas é certamente exacerbada pela incapacidade em responder às questões básicas.

Os estudos literários estão paralisados não porque não tenham uma razão de ser convincente, mas porque estão divididos em duas visões incompatíveis do seu trabalho: como educação artística e como educação moral. Estas duas visões têm permanecido semi-articuladas. Mas a sua luta subterrânea é pouco visível na incoerência característica das declarações sobre o valor do estudo da literatura que as nossas organizações profissionais e departamentos emitem espasmodicamente. É tempo de explicitar estas razões, e de escolher entre elas.

As respostas às perguntas básicas devem tomar uma certa forma. O professor deve reivindicar uma espécie de conhecimento e uma espécie de habilidade que traga um benefício para a sociedade. Deve ser capaz de descrever instituições e processos de formação - repetíveis e regulares - que a dotam de tais conhecimentos e competências a um nível que a qualifica como uma autoridade, cujos cursos e investigação merecem um gasto significativo dos escassos recursos das famílias e dos governos.

Os estudantes devem estudar biologia, por exemplo, porque proporciona conhecimentos sobre organismos vivos; conhecimentos valiosos em si mesmos e com a capacidade adicional de melhorar a saúde humana e animal. O professor de biologia, em virtude da formação de pós-graduação, é uma especialista em biologia, no sentido geral de saber muito sobre biologia, e no sentido especial de que as suas opiniões pessoais sobre assuntos biológicos são moldadas por uma compreensão do consenso da disciplina sobre os meios de avaliação das reivindicações biológicas.

Por que razão devem então os estudantes estudar literatura? Observamos primeiro que o objecto de estudo - tal como o da biologia - está à nossa volta. Há talvez um pouco menos de literatura no mundo do que folhas, insectos, ou vírus, mas não falta, e os estudantes são tão livres de ler um romance por si mesmos como de estudar uma árvore.

"Literatura", como é tipicamente ensinada nas faculdades e universidades, não se refere à massa total de material impresso nem a uma amostra representativa, periódica ou aleatória, mas sim a uma selecção informada pelo julgamento de peritos. Assim, a primeira afirmação dos professores de literatura é dar aos estudantes acesso a uma selecção muito pequena de obras literárias valiosas que lhes conferirá competências particulares e melhorará as suas vidas e as suas mentes de formas particulares. A natureza desse valor, e a identidade dessas competências, depende de como é feita a selecção de literatura de valor.

É aqui que esbarramos com a divisão em visões incompatíveis. Uma forma de fazer a selecção é usar o juízo artístico; a outra é usar o juízo moral. O estudo literário é, ou uma educação em obras de arte ou uma educação em moralidade. Não há outras opções e as opções não são compatíveis. Mas a diminuição da educação artística por acusações de elitismo, e a diminuição da educação moral por receio de que os professores de literatura possam não ser autoridades morais, significa que a maioria das pessoas - e a maioria dos professores de literatura - não estão conscientes destas opções nem da sua incompatibilidade. Mas os estudos literários devem escolher.

Uma das razões para o estudo da literatura é que ela familiariza os estudantes com grandes obras de arte e confere aos estudantes a capacidade de as interpretar e apreciar. A educação artística transforma a nossa relação com a cultura. Torna-nos melhores juízes. Revela valores e percepções. A literatura ilumina a história, o poder, a sexualidade, a natureza, a raça, a ciência, o dinheiro, o mobiliário, os carros e a morte.

Os professores de literatura são especialistas em juízo literário. O "juízo" não se refere à atribuição bruta de valor, mas a um processo pelo qual revelamos e testamos os valores e capacidades particulares de uma obra literária. A obra, vista antes e depois do processo de educação artística, não é a mesma obra. O estudante vê-a com novos olhos.

Os juízos dos professores não são opiniões privadas, mas são moldados por um sentido da ética de interpretação da profissão e testados pela exposição à avaliação de outros especialistas. Os professores são formados em juízo por uma formação de pós-graduação que lhes confere uma variedade de competências e conhecimentos - desde uma compreensão do género, a um estudo profundo de um período histórico, bem como à capacidade de identificar conceitos estéticos.

Mas a base final dos juízos dos professores de literatura é uma capacidade que John Keats chamava, "capacidade negativa": a capacidade de perceber uma obra enquanto minimizamos as nossas projecções subjectivas. Esta capacidade é desenvolvida através da formação no conjunto de práticas tácitas e formais referidas pelo famoso e vago termo, "leitura próxima".

Nada é mais comum, na minha experiência, do que um estudante encontrar uma ideia ou valor ou mesmo uma frase numa obra de literatura que não existe. Como mostraram psicólogos como Lisa Feldman Barrett, é simplesmente de natureza humana ver na vida e na arte o que se espera. A obra de Barrett explora o fenómeno do "realismo afectivo", a forma como a nossa percepção do mundo é criada por "previsões ... baseadas em experiências passadas". Os tipos peculiares de atenção que os professores trazem às obras literárias permitem-nos descobrir pensamentos, imagens, e mesmo critérios que não esperávamos e não podíamos esperar. Discernir e julgar os valores artísticos é uma aptidão, na qual se pode ser melhor ou pior e esta aptidão é o que ensinamos aos nossos alunos.

Esta justificação para o estudo académico da literatura tornou-se embaraçosa nas últimas décadas em virtude de uma mudança histórica: a extensão gradual do princípio da igualdade das pessoas à igualdade das escolhas dos consumidores, transformou o juízo especializado em questões de arte, num tabu. A educação artística, que afirma que as preferências actuais podem ser informadas e transformadas, é decretada como "elitista", enquanto as obras que dominam o mercado são consideradas como sendo a escolha do povo. Tal é a força deste tabu que mesmo os professores que atacam a suposta democracia do mercado em todas as outras esferas, se submetem a ele.

A nossa era é testemunha da ideia bizarra e sem precedentes de que não existe um padrão público para as obras culturais. O culminar deste movimento é a situação - documentada por escritores como Christian Lorentzen - em que os críticos jornalísticos passaram a pensar em si próprios como algoritmos encarnados. Os críticos não nos mostram obras que possam desafiar ou informar as nossas preferências existentes; apenas nos mostram os tipos de coisas, com base nos nossos gostos existentes, que também podemos gostar.

Entre as raízes intelectuais desta mudança está a vitória da visão dos economistas neoclássicos sobre a igualdade das preferências dos consumidores em relação à teoria de J.S. Mill de maiores e menores prazeres. Ao longo do início e meados do século XX, pensadores desde I.A. Richards até Theodor Adorno tomaram consciência da ameaça que a cultura comercial representa para a perspectiva da educação artística. No final do século XX, os seus receios tinham sido realizados: a profissão de estudos literários já não se entendia em termos de juízo.

Esta rejeição pública do juízo obrigou os professores de literatura a descrever a sua disciplina como dotando os estudantes de diferentes tipos de conhecimentos (de história, de raça, de natureza) sem pretender dizer aos estudantes que algumas obras literárias eram melhores - mais merecedoras do seu tempo - do que outras. No entanto, estas afirmações sobre o conhecimento são insustentáveis sem um compromisso de juízo artístico. Se pensa que uma obra de literatura pode mostrar aos estudantes algo novo ou interessante sobre história, raça, ou natureza, está a fazer um juízo artístico sobre a capacidade da obra. E se não o fizer - se pensar que a literatura simplesmente fornece exemplos de verdades que os estudantes podem obter nas aulas de história, sociologia ou biologia - então os estudantes não têm motivos para desperdiçar o seu precioso tempo e dinheiro nos seus cursos.

O tabu do juízo do especialista obriga os professores à hipocrisia. Um compromisso para com a igualdade das preferências dos consumidores milita de facto contra a igualdade das pessoas, paralisando os esforços educacionais para transformar vidas. Isto apresenta um exemplo de uma dinâmica familiar - analisada pela primeira vez há um século e meio por Karl Marx - em que a adesão dogmática a um princípio libertador subverte os objectivos de libertação.

A ideia de que o estudo literário é agnóstico relativamente ao valor artístico e visa simplesmente transmitir conhecimento sem juízos de valor, é incoerente. No entanto, existe outra razão para a disciplina, que rejeita o valor artístico sem incoerência. Esta lógica é igualmente poderosa, e talvez mais venerável, do que a da educação artística. Durante milénios, professores e críticos têm aplicado a literatura à tarefa da educação moral.

Há, evidentemente, muitas maneiras de se descobrir valores morais em obras de arte ou de se ganhar conhecimentos morais. Mas quando falo aqui de educação moral, refiro-me à prática de tomar as obras de literatura como meio de inculcar boas atitudes morais nos estudantes. O conteúdo dessas atitudes muda ao longo do tempo - pense nas diferenças, por exemplo, entre as atitudes apropriadas em relação ao comportamento sexual preconizado numa sala de aula de literatura dos séculos XIX e XXI - e as atitudes correctas são hoje tão frequentemente descritas como "políticas", "sociais", ou "éticas" como "morais". Mas o estudo literário institucional tem funcionado como formação moral tão frequentemente, ou mais, do que a educação artística.

Tal como a educação artística, a educação moral também se tornou embaraçosa nos últimos anos. Este embaraço surgiu com o desenvolvimento da universidade de investigação do século XX e o seu compromisso com o valor central da perícia. Tornou-se difícil para os professores de literatura dizer exactamente como a nossa formação nos dá competência especial para inculcar atitudes morais correctas nos nossos estudantes. Em parte, isto deve-se à competição de outras disciplinas - como a história ou a ética - que parecem ter um melhor argumento a favor da perícia moral. Em parte deriva de questões sobre a compatibilidade da educação moral com a própria ideia de perícia moral.

Portanto, tal como acontece com a educação artística, a educação literária moral vê-se obrigada a falar em código. Ouvimos frequentemente, por exemplo, que o estudo da literatura aumenta a capacidade de empatia dos estudantes. No entanto, a empatia é uma capacidade moralmente ambivalente. Se tenho um inimigo, nada me serve tão bem como a capacidade empática para entrar nos pensamentos e sentimentos do meu inimigo, para compreender como ele vê o mundo, para saber como certas situações lhe irão parecer. Neste caso, a empatia ajuda-me a derrotá-lo, humilhá-lo e matá-lo. Poe's Montresor é tão bom - e tão mau - exemplo literário de empatia, como Austen's Fanny Price.

Quando os professores de literatura afirmam que ensinamos aos estudantes empatia, queremos realmente dizer que mostramos aos estudantes como empatizar de forma moralmente correcta com pessoas que consideramos moralmente merecedoras. Uma decisão prévia sobre atitudes morais correctas rege a nossa pretensão de dotar os estudantes de uma capacidade cognitiva ou emocional. No entanto, hesitamos em dizer aos nossos estudantes que é isto que estamos a fazer. Esta dissimulação torna toda a nossa prática questionável. O professor de literatura que afirma poder ensinar história ao aluno enquanto permanece agnóstico quanto ao valor da literatura faz uma figura tão ridícula como o professor de literatura que afirma fazer dos alunos pessoas melhores porque a literatura envolve empatia.

Por vezes, é verdade, os professores de literatura compreendem o seu trabalho em termos políticos, e vêem-se envolvidos em acções políticas, transformando de facto as vidas das pessoas oprimidas de acordo com os nossos valores morais. No entanto, nas palavras de Benjamin Fong, "ensinar justiça racial não é justiça racial". O currículo dos departamentos de literatura não constitui uma acção política transformadora, mas sim um programa de educação. E esta educação, que envolve inculcar certas atitudes e crenças morais, faz parte da longa tradição da educação moral através da literatura.

Os professores fazem juízos artísticos ou morais. Receamos admitir o primeiro porque não queremos ofender a fé da nossa cultura na igualdade sagrada das preferências dos consumidores. Recusamo-nos a admitir o segundo porque duvidamos que o público reconheça a nossa particular reivindicação de conhecimentos morais.

A nossa confusão sobre o que fazemos suscita na mente dos nossos públicos a suposição não irrazoável de que não sabemos o que estamos a fazer. A crise das humanidades exige que sejamos abertos e honestos sobre as razões da nossa disciplina.

Há um argumento convincente a favor dos estudos literários como a educação artística. Pode haver um bom argumento a favor dos estudos literários como a educação moral. Mas é impossível que a mesma disciplina faça as duas coisas. Platão estava certo. Os objectivos e métodos da educação artística minam a educação moral. E o inverso também é verdade. Os objectivos e os métodos da educação moral minam a educação artística. Se a educadora moral já sabe o que é bom e o que é mau antes de abrir o trabalho, a educadora artística entrega o que sabe à possibilidade de descoberta e transformação.

A forma como a educação artística mina a educação moral é talvez mais familiar hoje em dia. A ideia de que a boa arte por vezes se recusa a confirmar a nossa perspectiva moral, já vigorosamente articulada no Renascimento, tornou-se comum no século XIX e foi reforçada por vitórias nas batalhas de censura que assolaram as obras de Les Fleurs de Mal a Ulisses e Lolita. Estas vitórias conduziram à arrogância. Da ideia razoável de que os valores artísticos por vezes diferem dos valores morais surgiu a ideia de que os valores artísticos triunfam sobre os valores morais - ou pelo menos sobre a moralidade cristã reinante dos Estados Unidos.

Quando a educação moral começou de novo a ganhar vantagem nos anos 80 e 90, os defensores da educação artística de Harold Bloom a John Guillory responderam com a ideia de que o próprio juízo moral é problemático. Guillory argumentou que aqueles que se encolhem dos juízos estéticos, mas fazem juízos morais com confiança, são "estão aquém da crítica de Nietzsche à moralidade". Bloom, adoptando a terminologia de Nietzsche, rotulou os novos críticos morais de "a escola do ressentimento". Ambos os escritores referiam-se à ideia amplamente influente do filósofo alemão de que a moralidade cristã do Ocidente expressa a vingança dos fracos sobre os fortes, através da veneração do sofrimento e da vitimização.

Esta provou ser uma forma infeliz de defender os valores da arte. Em primeiro lugar, o ataque à moralidade cristã pode ser o fracasso mais espectacular da história das humanidades. Os princípios fundamentais da moralidade cristã não enfraqueceram com o movimento de um número crescente de intelectuais afastados da prática ritual cristã. Tanto quanto posso dizer, a crítica de Nietzsche à moralidade não deixou quase nenhuma marca nas práticas das humanidades contemporâneas e muito menos na sociedade em geral. Os valores morais de uma sociedade exercerão sempre uma força muito mais forte do que os seus valores artísticos, quando os dois diferem.
Ao procurar defender a educação artística atacando a própria moralidade, Bloom e Guillory levaram um palito de dentes, como arma, a um tiroteio.

Se a defesa da educação artística só pode ser feita desacreditando o sistema moral reinante dos Estados Unidos da América, o seu futuro é sombrio. Felizmente, existem formas melhores de proceder. Pode-se abraçar uma perspectiva moral que evita a injustiça e a opressão e, ao mesmo tempo, descobre uma dignidade especial na experiência do sofrimento, sem pensar que os cursos de literatura universitária são o meio certo para inculcar estas crenças nos estudantes. Por exemplo, pode-se - tal como Nan Da num extraordinário ensaio recente - argumentar que o "prescritivismo moral" na realidade mina a base da moralidade ao sanear o trabalho árduo de encontrar o outro. Ou - como Sumana Roy argumentou - pode-se adoptar uma perspectiva pós-colonial que vê o intenso moralismo da sala de aula literária dos EUA como a expressão de uma suspeita colonizadora (e muito americana) "de prazer e deleite". Talvez a educação que Da e Roy descrevem seja menos moralista do que moralista.

Existe um conflito ainda mais básico. A ética profissional associada à educação literária é incompatível com a educação moral. Estas éticas são expressas através da capacidade negativa encarnada na leitura próxima, a crença de que a grande literatura pode mostrar-nos algo que não esperamos. Os professores de literatura procuram, na frase do poeta Li Young Li, "derrotar as nossas projecções", olhar para além dos nossos conceitos e valores existentes para discernir os conceitos e valores da obra.

Mas este compromisso profissional de surpreender, de desafiar as nossas noções existentes, de suspender os nossos juízos de modo a tornarmo-nos receptivos a novas percepções e pensamentos, novos fundamentos de juízo, é a última coisa que se quer na educação moral. Na educação moral, não queremos que os estudantes suspendam as suas crenças sobre o direito moral da escravatura ou da homofobia. A educação moral, em contraste com a educação artística, já sabe no que acredita. Toda a sua prática pode ser definida como a projecção intencional dos nossos compromissos morais em vários exemplos e situações.

Considere, por exemplo, este excerto de um recente workshop sobre "Pedagogias Antiracistas em Estudos Literários", organizado pelo departamento de inglês da Universidade de Columbia. Anti-racismo é um dos principais programas de educação moral em estudos literários contemporâneos e Brigitte Fielder dá-nos as seguintes sugestões concretas:

Se o anti-racismo é uma oposição activa ao racismo, é mais eficaz quando é visível e transparente para os estudantes. Utilizar palavras como "racista" e "racismo" é fundamental, e não deve ser tão facilmente permutável com "racial" ou "raça". A atenção à linguagem pode servir como uma forma de correcção! Seja preciso e claro sobre o problema - recuse-se a usar termos vagos ou neutros sobre coisas prejudiciais.

Como é inteiramente apropriado na educação moral, a ênfase aqui reside na correcta identificação dos erros morais e na forte expressão de atitudes morais apropriadas - neste caso, no que diz respeito à injustiça racial. Esta abordagem, que se encontra na posse confiante dos seus conceitos-chave, critérios, valores e termos antes do encontro com qualquer trabalho dado, é o oposto da ética associada à leitura atenta no contexto da educação artística.

Quando as minhas aulas de educação artística examinam o "Bloodchild" de Octavia Butler, por exemplo, atendemos a alguns elementos que uma abordagem moral educativa da literatura também descobre na obra - tais como a sua evocação dos horrores da escravatura. Mas também passamos tempo com outros elementos - como a sua celebração da liberdade de possuir armas, e a sua ideia de que a fundação da agência é a capacidade de cometer suicídio - que, da perspectiva do programa dominante de educação moral da universidade, parecem perversos, mas que constituem parte do seu poder peculiar como obra de arte. A história envolve sujeitos moralmente comprometidos - escravatura, suicídio - mas o seu tratamento dos mesmos não produz o tipo de clareza moral útil no reforço de atitudes correctas. Colegas que conheço que seguem um programa de educação moral, simplesmente elidem os aspectos do "Bloodchild" que não exemplificam os valores morais que desejam afirmar. Cada uma destas abordagens faz sentido nos seus próprios termos. Mas estes termos são diferentes e entram em conflito.


Há outra forma mais subtil de as práticas da educação artística minarem os objectivos da educação moral. A fusão da educação artística e moral nos actuais departamentos de literatura - a nossa relutância ou incapacidade de fazer distinções cruciais nas nossas práticas - por vezes cria monstros. Há uns anos fiz uma série de leituras e em cada paragem discutia um livro recente que admirava - Maggie Nelson's The Argonauts - com os meus anfitriões da faculdade. No início, os professores elogiaram o livro pelas suas qualidades morais, mas acabei por encontrar um professor que tinha desenvolvido uma forma sofisticada de descrever a história de Nelson de criar uma criança com um homem trans como sendo horrivelmente transfóbica. A ênfase na originalidade, novidade e surpresa - valores profissionais associados à educação artística - mistura-se com o compromisso de clareza moral e consistência. Isto cria uma pressão para inovar na linguagem moral e conceitos para individualizar perspectivas morais - de tal forma que se pode falar, por exemplo, da abordagem especial de um crítico ou autor em questões de justiça.

Este híbrido de valores morais e artísticos profissionais é mau por duas razões. Por um lado, cria a impressão de que a competência moral é algo que só pode ser adquirido através de uma educação dispendiosa que nos familiariza com os mais recentes termos morais. Isto torna o projecto de educação moral vulnerável à acusação de hipocrisia, e às acusações de cépticos que vêem nele simplesmente uma nova forma de capital cultural, concentrada nas mãos das elites.

Por outro lado, a inovação é muitas vezes simplesmente superficial. A moralidade, nos seus valores fundamentais, não é, em última análise, susceptível ao tipo de inovação associada às artes. A força irresistível da moralidade é de um tipo diferente. Os estudantes podem ser ensinados a aplicar princípios morais a novos casos, ou a utilizar uma linguagem menos ofensiva do que a linguagem antiga, mas a inovação ou transformação moral básica, se acontecer de todo, acontece para além da academia. De facto, os educadores morais nos departamentos de literatura raramente ou nunca tentam tal transformação. Raramente encontrei uma prática ou trabalho ou afirmação de educação moral que não pudesse ser prevista por alguém na posse da visão moral básica das classes educadas. Isto é inteiramente apropriado, dada a natureza da educação moral. Mas entra em conflito com os valores - moldados pelo projecto de educação artística - que impulsionam a promoção, publicação, posse e distinção.

Descobri que a grande maioria dos alunos das minhas aulas já são plenamente competentes para realizar leituras de obras literárias de acordo com os objectivos da educação moral. Talvez nos anos 80 ou 90, os departamentos de literatura pudessem reivindicar uma certa prioridade sobre outras disciplinas em certas esferas da educação moral. Mas esse tempo já passou. Hoje em dia, aqueles que defendem tornar o anti-racismo, por exemplo, central no estudo da literatura, enfrentam uma crise de legitimação. O problema não diz respeito ao conteúdo das crenças morais dos humanistas, mas sim se os professores de literatura se justificam a fazer uma reivindicação sobre o público como educadores morais.

Todos os departamentos estão actualmente a incorporar práticas anti-racistas na sua ética profissional. O estudo literário como a educação artística está a fazer o mesmo - intensificamos os nossos esforços para sermos inclusivos como professores, e para encorajar a diversidade tanto dos estudantes como do corpo docente. Mas aqueles que vêem as humanidades - e o estudo literário em particular - como um veículo de educação moral, devem ir mais longe. Devem dizer que o anti-racismo, e programas conexos de educação moral, não representa um conjunto de princípios éticos para nos guiar no ensino da nossa disciplina - pelo contrário, a educação moral é a nossa disciplina.

É possível que alguns administradores - à procura de uma lógica clara para os departamentos de humanidades face à nossa imprecisão histórica - possam achar este programa convincente, pelo menos no início. No entanto, os professores de literatura têm dificuldade em convencer-se até a si próprios de que são especialistas em moral. No Verão passado, na sequência do assassinato de George Floyd, a Associação de Departamentos de Inglês enviou aos presidentes dos departamentos um e-mail sugerindo que os membros do corpo docente empreendessem um curso de educação moral em anti-racismo. Os dois trabalhos que sugeriram para orientar esta educação não foram realizados por professores de inglês, mas por um historiador e um consultor empresarial: How to Be Anti-Racist, de Ibram X. Kendi, e White Fragility, de Robin d'Angelo.

Embora estes livros tenham recebido vários tipos de críticas, a maioria dos leitores - e eu próprio me conto entre eles - não questionam porque é que os autores destas áreas se consideram especialistas na moralidade da raça. Um historiador que dedicou a sua carreira à história do racismo e um consultor com um diploma de ensino que dedicou a sua carreira à compreensão de como a raça afecta as interacções no local de trabalho parece ter as qualificações certas. Como os estudiosos que dedicaram a sua carreira ao estudo de obras literárias poderiam qualificar-se, é uma questão mais difícil.

Mas talvez algo na literatura conceda às pessoas que a estudam uma espécie de reforço moral, de modo que a formação em literatura propriamente dita confere autoridade moral? Só posso dizer que 20 anos de experiência na profissão de estudos literários - como estudante e membro do corpo docente - não conseguiram convencer-me de que os professores ou estudantes de literatura são particularmente morais, quando comparados com outros trabalhos que tive ou outros grupos de pessoas com quem interagi. Os deões da profissão não me parecem nem mais nem menos racistas, egocêntricos, sexistas, aquisitivos, manipuladores, compassivos, ou hipócritas do que as pessoas com quem trabalhei na construção, fast food, ou na recuperação de máquinas de montar. Nem parecem moralmente melhores ou piores do que as pessoas que conheci noutras disciplinas académicas, quando em férias, ou enquanto estive encarcerado. No entanto, eles sabem muito mais sobre literatura.

Talvez as identidades dos professores de literatura confiram autoridade moral? A minha própria identidade tem facetas relevantes para alguns programas de educação moral. Mas falando inteiramente pessoalmente, a minha experiência como deficiente, estudante universitário de primeira geração, ex-condenado e imigrante com familiares sem documentos deu-me apenas uma capacidade limitada para falar com autoridade moral sobre as experiências gerais dos grupos dos quais sou membro. Em parte porque a capacidade de aplicar correctamente os princípios morais nestes casos requer, por vezes, conhecimentos que as pessoas de outras disciplinas - da medicina à sociologia - possuem em maior medida do que eu. Em parte porque muitas pessoas destes grupos têm prioridades morais diferentes das minhas - pelo menos na minha actual encarnação de classe média-alta.

Tenho tentado descrever como os estudiosos literários são especialistas no juízo de obras de arte literária. Quanto ao que qualifica um professor de literatura para ser um juiz moral, não posso dizer. A minha esperança é que estas reflexões inspirem alguém a defender os professores de literatura como peritos morais, a descrever as competências e conhecimentos subjacentes a esta especialização, a mostrar o que a especialização moral dos professores de literatura nos pode ensinar que ainda não sabemos, e a exemplificar abordagens morais às obras literárias. Então, perante estes modelos alternativos de perícia, talvez os professores de literatura estejam finalmente em posição de decidir o que somos. Os nossos estudantes, Estados e colegas estão curiosos em saber.

Correcção (4 de Maio de 2021, 11:46 a.m.): Este ensaio forneceu originalmente um título errado para um workshop da Universidade de Columbia. Era "Pedagogias Antiracistas em Estudos Literários", e não "Estudos Literários e Anti-Racismo". O texto foi corrigido em conformidade, e foi adicionado um link a um blogue da Columbia descrevendo os trabalhos

(tradução minha)

April 14, 2021

Leitura em tarde chuvosa - os últimos homens e mulheres. Há vida para além do consumismo?

 


Não sei se concordo com alguns pressupostos das virtudes marciais como ele as preconiza e muito menos com a solução de William James, mas o artigo é interessante.


Os Últimos Homens e Mulheres

Algumas virtudes são vítimas do progresso?

Por George Scialabba


Todos nós conhecemos a parábola de Nietzsche sobre o último homem. Certo de que a democracia, a ciência e o humanismo secular reformulariam definitivamente a civilização, Nietzsche - ou, mais precisamente, Zarathustra - pergunta que tipo de ser humano resultaria. A sua resposta, pingando de sarcasmo e desprezo, é que o ser humano comum se tornaria uma espécie de insecto, "uma raça não-erradicável como o besouro das pulgas", uma criatura que "tornaria a própria terra pequena". Aqui está o lamento de Zarathustra:

Infelizmente, o tempo do homem mais desprezível está a chegar, aquele que já não é capaz de se desprezar a si próprio. Eis que vos mostro o último homem.

"O que é o amor? O que é a criação? O que é a saudade? O que é uma estrela?" pergunta o último homem, e ele pisca....

"Inventámos a felicidade", dizem os últimos homens, e eles pestanejam. Deixaram as regiões onde era difícil viver, pois é preciso calor. Ama-se o próximo e esfrega-se contra ele, porque se precisa de calor.

Sem pastor e com uma manada! Todos querem o mesmo, todos são iguais; quem se sente diferente vai voluntariamente para um manicómio...

A pessoa tem os seus pequenos prazeres para o dia e os seus pequenos prazeres para a noite, mas tem um respeito pela saúde.

"Inventámos a felicidade", dizem os últimos homens, e eles pestanejam.
Muitos outros, além de Nietzsche, expressaram desconfiança quanto ao provável carácter de cidadãos democráticos e estes críticos não foram todos opositores da democracia. (Estou a usar aqui "democracia" para significar todo o programa do Iluminismo: não apenas igualdade política, mas também feminismo, pacifismo, direitos humanos, e o Estado Providência, juntamente com uma crença castigada, e modestas esperanças de progresso moral e material). As reservas de Tocqueville são bem conhecidas: "O carácter geral da sociedade passada era a diversidade", escreveu ele. "A unidade e a uniformidade não estavam em lado nenhum. Na sociedade moderna, porém, tudo ameaça tornar-se tão parecido que as características peculiares de cada indivíduo se perderão completamente na uniformidade do aspecto geral". 

Até John Stuart Mill receava que "a tendência geral das coisas em todo o mundo é tornar a mediocridade o poder ascendente entre a humanidade.... Actualmente, os indivíduos perdem-se na multidão". As críticas à sociedade de massas e ao homem de massas incharam até um rugido no século XX: Durkheim, Spengler, Schmitt, Ortega, Lippmann, Heidegger, a Escola de Frankfurt, Foucault, MacIntyre, Bloom, e muitos, muitos outros.

A maioria destas críticas rejeito, não pelos seus diagnósticos muitas vezes poderosos mas pelas prescrições iliberais que normalmente os acompanham. Concordo com a solução de Richard Rorty para o suposto dilema da mediocridade democrática: a saber, "mesmo que os tipos típicos de carácter das democracias liberais sejam brandos, calculistas, mesquinhos, e não heróicos, a prevalência de tais pessoas pode ser um preço razoável a pagar pela liberdade política". Podemos e devemos separar o privado do público, a autocriação da tolerância, a busca da perfeição da política democrática. Tal como Rorty diz:
De Platão a Kant até [Habermas e Derrida], a maioria dos filósofos tentaram fundir sublimidade e decência, fundir esperança social com conhecimento de algo grande.... O meu próprio palpite é que temos de separar a segurança individual da segurança social, para fazer da sublimidade [ao contrário da tolerância] uma questão privada e opcional. Isso significa conceder a Nietzsche que as sociedades democráticas não têm um objectivo superior ao que ele chamou "os últimos homens" - as pessoas que têm "os seus pequenos prazeres para o dia e os seus pequenos prazeres para a noite". Talvez devêssemos apenas fazer essa concessão e também admitir que as sociedades democráticas não incorporam nada e não podem ser tranquilizadas por nada maior do que elas próprias (por exemplo, pela "racionalidade"). Tais sociedades não deveriam visar a criação de uma nova raça de seres humanos, nem nada menos banal do que a possibilidade de as pessoas tirarem um pouco de prazer das suas vidas. Isto significa que os cidadãos dessas sociedades que têm um gosto pela sublimidade terão de a perseguir no seu próprio tempo, e dentro dos limites estabelecidos por On Liberty, mas tais oportunidades podem ser o suficiente.
É aí que também estou - com o Iluminismo e os seus herdeiros contemporâneos, contra os straussianos, os conservadores religiosos, os neoconservadores de grandeza nacional, os libertários, Ayn Randian e qualquer outra pessoa para quem a tolerância, a igualdade cívica, o direito internacional e um padrão mínimo universal de bem-estar material são menos do que compromissos fundamentais. Mas sem, espero, me contradizer, gostaria de trabalhar o outro lado da questão durante algum tempo: reconhecer a força de algumas críticas à modernidade e ao progresso.

"Nós, pacifistas", escreveu William James, "deveríamos entrar mais profundamente no ponto de vista estético e ético dos nossos opositores".
Talvez o mais importante, embora também o mais frágil, sucesso que o liberalismo iluminista tem tido seja a deslegitimação, por mais parcial que seja, da guerra. A percepção de que o poder arbitrário dos governantes absolutos facilitou guerras desnecessárias e vastamente destrutivas foi um poderoso impulso à soberania popular nos séculos XIX e XX, culminando com a Carta das Nações Unidas. Embora a Carta tenha sido repetidamente violada pelos grandes poderes (e não só por eles), não é bem uma letra morta e uma cultura global de respeito pelo direito internacional pode ser a causa mais urgente a que qualquer activista poderia dedicar a sua vida.

Mesmo assim, a biologia tem os seus direitos. Em 1910, o último ano da sua vida e apenas alguns anos antes da Primeira Guerra Mundial pôr fim à longa paz europeia, William James escreveu um panfleto para a Associação para a Conciliação Internacional, um dos muitos grupos pacifistas cuja proeminência nesse período convenceu muitas pessoas de que a guerra entre nações, sendo tão obviamente irracional, era portanto impossível. O ensaio de James, intitulado "O Equivalente Moral da Guerra", é uma obra de supremo pathos e sabedoria. O próprio James foi um pacifista, membro fundador da Liga Anti-Imperialista, um grupo formado para protestar contra as intervenções militares da América em Cuba, Haiti e Filipinas, e um dos espíritos mais humanos e generosos que a América ou qualquer outra nação alguma vez produziu.

James compreendeu perfeitamente a loucura - a "monstruosidade", como ele lhe chamou - da guerra, mesmo naqueles dias relativamente inocentes, pré-nucleares. Mas ele também reconheceu o lugar das virtudes marciais num carácter saudável. "Herdamos o tipo guerreiro", salientou ele, "e pela maior parte das capacidades de heroísmo de que a raça humana está cheia, temos de agradecer [à nossa sangrenta] história". "As virtudes marciais", continuou, "embora originalmente adquiridas pela raça através da guerra, são bens humanos absolutos e permanentes.... O militarismo é o teatro supremo da tenacidade, o grande preservador dos nossos ideais de dureza; e a vida humana sem qualquer utilidade para a tenacidade e a dureza seria desprezível". "Nós, pacifistas", escreveu ele com uma generosidade intelectual característica, "devemos entrar mais profundamente no ponto de vista estético e ético dos nossos adversários". Para os militaristas, um mundo sem guerra é "um paraíso de ovelhas", plano e insípido. "Sem desprezo, sem dureza, sem valor", ele imagina-os a dizer indignamente. "Ardiloso para um tal pátio de gado de um planeta!" Esta, lembrem-se, foi a era de Teddy Roosevelt, pregador da vida extenuante e instigador de pequenas e esplêndidas guerras. O pacifismo de James pode ser senso comum para si e para mim, mas quando ele escreveu, o senso comum dos americanos estava sobretudo do lado de Roosevelt.

Como alimentar as virtudes marciais sem guerra? James resolveu este aparente dilema com uma sugestão muitas décadas antes do seu tempo: serviço nacional universal, cada jovem a ser recrutado durante vários anos de trabalho físico árduo e socialmente necessário, sem excepções e sem discriminação de classe ou educacional. Este exército sem armas seria o equivalente moral da guerra, reprodução, argumentou James, algumas das virtudes essenciais à democracia: "intrepidez, desprezo da suavidade, rendição do interesse privado, obediência ao comando". Estou certo de que James teria concordado que estas não são as únicas virtudes essenciais à democracia - ele próprio, com o seu activismo anti-imperialista, exemplificou um cepticismo igualmente essencial e resistência à autoridade. Mas pergunto-me se os nossos contemporâneos, que na sua maioria não precisam de ser convencidos da necessidade de cepticismo e resistência à autoridade, também concordariam com James sobre a importância do valor, do rigor, e do auto-sacrifício.


James escreveu na América antes da Primeira Guerra Mundial, uma situação de inocência quase idílica em comparação com a do próximo escritor que quero citar, D. H. Lawrence. A Grande Guerra, como lhe chamavam os contemporâneos, foi uma experiência destruidora de alma para os escritores ingleses. A estupidez complacente com que as classes dirigentes da Europa iniciaram, conduziram e concluíram que a guerra, o chauvinismo e a sede de sangue com que as pessoas comuns a acolheram, e acima de tudo, a moagem mecânica e sem sentido de milhões de vidas por uma máquina de guerra que parecia ir de si mesma - estas coisas enfureceram Lawrence quase até à loucura. Como muitos outros, Lawrence viu a ausência de rosto, a impessoalidade, o carácter quase burocrático desta violência em massa como algo novo e horripilante na história da humanidade. Mas mais do que todos os outros no século XX, Lawrence foi o campeão do corpo e dos instintos contra as forças abstractas e impessoais da modernidade. Tal como Nietzsche, ordenou torrentes de prosa apaixonada contra as intromissões aparentemente inexoráveis do progresso. Aqui está uma passagem de "Educação do Povo", publicada postumamente nos dois volumes de Phoenix.

Somos todos lutadores. Vamos lutar. Será que se tratou de perseguir uma pobre raposa e chutar uma bola de couro? Céus, que espectáculo devemos ser para o grego antigo. Ressuscita o velho espírito masculino. O macho é sempre um lutador. O macho humano é um lutador soberbo e semelhante a Deus, a menos que seja violado na sua própria natureza. Ao lutar até à morte, ele tem uma grande crise do seu ser.
O que é a luta? É uma coisa primária, física. Não é uma coisa horrível, obscena, abstracta, como a nossa última guerra. Não é uma tradução sinistra e blasfema de ideias em motores, e de homens em carne para canhão. Fora com tal guerra. Um milhão de vezes longe com tal obscenidade. Que o desejo dela morra da humanidade.... Vamos bater os nossos arados em espadas, se quisermos. Mas que todos os canhões e explosivos e gases venenosos sejam lançados ao ar livre. Matemos cada homem que faz mais um grão de pólvora, com a sua própria pólvora.
E depois sejamos soldados, soldados de mão em mão. Senhor, mas é uma coisa amarga nascer no fim de uma civilização máquina apodrecida e cheia de ideias. Pense no que nos escapou: a gloriosa paixão brilhante da raiva e do orgulho, imprudente e destemida.
Por outras palavras: luta quando é preciso, quando o teu sangue ferve e a tua raiva não será dita. Mas luta cara a cara, mão a mão, nas tuas próprias querelas e na tua própria pele, como um ser humano responsável e não como uma máquina, ou pior, como um operador de máquina. Penso que James teria concordado com isso. Eu irei mais longe: Penso que Mary Wollstonecraft, Margaret Fuller, Grace Paley, e talvez até Dorothy Day teriam concordado. Acredito que se pode e, deve ser, tanto uma feminista como uma defensora das virtudes marciais, tal como James mostrou que se deve ser simultaneamente uma pacifista e uma defensora das virtudes marciais.
Hoje em dia esse ethos sobrevive apenas em discursos políticos e filmes de Hollywood.
A modernidade põe em perigo outro conjunto de virtudes, que são um pouco mais difíceis de caracterizar do que as virtudes marciais, mas que são ainda mais importantes. Não me refiro às virtudes burguesas, embora haja algumas sobreposições. Suponho que lhes chamaria as virtudes levíticas. Tenho em mente as qualidades que associamos à vida na primitiva república americana - as qualidades positivas, claro, não as qualidades que permitiram a escravidão e o genocídio. Em 1820, 80 por cento da população americana trabalhava por conta própria. O cristianismo protestante, o auto-governo local, e o produtivismo agrário e artesanal fomentaram uma cultura de auto-controlo, auto-suficiência, integridade, diligência e vizinhança - o ethos americano que Tocqueville elogiou e que Lincoln defendeu ser incompatível com a posse de escravos em grande escala. Hoje, esse ethos sobrevive apenas em discursos políticos e em filmes de Hollywood. Numa sociedade baseada no emprego precário e no consumo febril, na dívida, em truques financeiros, na manipulação sem fim, e na incessante distracção, tal sensibilidade parece arcaica.

De acordo com o falecido Christopher Lasch, o advento da produção em massa e as novas relações de autoridade que introduziu em todas as esferas da vida social provocaram uma mudança fatídica no carácter americano dominante. O amadurecimento psicológico - como Lasch, confiando em Freud, explicou-o de forma crucial nas relações face a face, num ritmo e numa escala que o industrialismo perturbou. O resultado foi um eu enfraquecido, maleável, mais facilmente regimentado do que o seu antepassado pré-industrial, menos capaz de resistir a pressões conformistas e manipulações burocráticas - a antítese do individualismo robusto que tinha sustentado as virtudes republicanas.


Se este argumento for verdadeiro - e eu acho-o dolorosamente plausível - onde é que isso nos deixa? O carácter de um indivíduo ou de uma sociedade não pode ser querido para dentro ou fora da existência. Virtudes perdidas e solidariedades não podem ser recuperadas da noite para o dia, ou mesmo, talvez, numa geração. Mesmo as nossas ideologias de libertação podem ter de ser repensadas. Uma transvalorização de valores pode estar em ordem: mais rápida e mais fácil, pode ter de dar lugar a mais lenta e mais dura - não só por razões ecológicas mas também por razões de higiene mental e moral. E mesmo que decidamos, como sociedade, cuspir a maçã envenenada do consumismo e do vício tecnológico, será que existe um caminho para trás ou para a frente, já agora? Se a auto-suficiência individual e o auto-governo local são pré-requisitos para o florescimento humano, então talvez seja demasiado tarde.

Conheço apenas um livro que toma a medida completa dos dilemas que tenho vindo a insinuar e continua a mostrar um caminho para um futuro são e estável. É um romance utópico de Ernest Callenbach, chamado Ecotopia. Foi publicado em 1975 e teve uma breve exposição antes de desaparecer juntamente com o resto da contracultura dessa época. Merece melhor: é política e psicologicamente astuto e ecologicamente muito à frente do nosso tempo. Mas a sociedade utópica que retrata, localizada no Noroeste do Pacífico, torna-se possível pela sobrevivência naquela região de algumas das próprias características e virtudes culturais cuja obsolescência no resto do país tenho vindo a lamentar.

Será que as minhas preocupações aparentemente díspares têm algo em comum? Possivelmente isto: todas resultam de um ou outro movimento por parte da cultura para longe do imediato, do instintivo, do cara-a-cara. Somos seres encarnados, gradualmente adaptados ao longo de milhões de anos para prosperar numa certa escala, os nossos metabolismos uma delicada orquestração de inumeráveis ritmos biológicos e geofísicos. A cultura da modernidade impeliu-nos, por vezes com brusquidão traumática, experiências, relações e poderes para os quais podemos ainda não estar preparados, para os quais podemos precisar de mais tempo para nos adaptarmos.

Mas o tempo é curto. "Tudo o que é sólido funde-se no ar" - Marx falava da crosta da tradição, dissolvendo-se no banho ácido do capitalismo global. Agora, no entanto, a própria terra está a derreter. A grande metáfora de Marx adquiriu um segundo significado aterrador.

E o mesmo aconteceu com a de Nietzsche. Se não conseguirmos abrandar e crescer cautelosamente, uniformemente, gradualmente nas nossas novas possibilidades e responsabilidades tecnológicas e políticas - mesmo as potencialmente libertadoras - os últimos homens e mulheres reconhecidamente individuais podem dar lugar à simultaneamente sub e super-humana civilização da colmeia.

(tradução minha)