(conclusão deste capítulo: todos os que são mantidos num estado de servidão ou de ignorância, todos que não têm meios de romper o tecto que se estende sobre as suas cabeças estão condenados a uma vida de facticidade, sem possibilidade de se transcenderem, de se revelarem no ser. As extremas desigualdades actuais impostas por pessoas que mandam nos Estados ou que se constituem como seus servos tiranos são idênticas às dos antigos esclavagistas que sujeitavam, desonestamente, os outros serem humanos a uma existência de absolutos dados, sem falhas. Não há liberdade sem a liberdade dos outros e o tirano reduz-se a si mesmo a uma vida de facticidade animal sem transcendência. Uma grande maioria das pessoas foge de si mesmo, da sua ambiguidade e refugia-se no útil, na glória, nas posses, no poder e em outras máscaras de negação das suas falhas - falhas, não no sentido moral, mas no sentido de (gaps) possibilidades de ser e de se transcender. Não há projecto humano solipsista. A existência é uma relação de liberdade que inclui a liberdade de ser dos outros. Quem impede os outros de cantarem as suas canções, digamos assim, e impede o canto por medo da ameaça, também não consegue cantar nenhuma das suas canções interiores e vive na facticidade alienada. Vive como um bruto. Daí tantos frustrados, desonestos consigo mesmos que vivem vidas brutas de ódio aos outros, de pequenos moralismos, de pequenas tiranias - vamos ver o que nos reserva o último capítulo)
A ética da ambiguidade. Simone de Beauvoir 1947
(continuação)
Como é muito grande, destaquei a negritos passagens que, se lidas em sequência, dão ideia do que trata o livro e como. O texto abaixo é o 2º capítulo 🙂 Falta mais um.
II. A liberdade pessoal e os outros
A infelicidade do homem, diz Descartes, deve-se ao facto de ter sido criança. De facto, as escolhas infelizes que a maioria dos homens faz só podem ser explicadas pelo facto de terem sido feitas com base na infância. A situação da criança é caracterizada pelo facto de se ver lançada num universo que não ajudou a criar, que foi criado sem ela e que lhe aparece como um absoluto ao qual só pode submeter-se. Aos seus olhos, as invenções, as palavras, os costumes e os valores humanos são factos dados, tão inevitáveis como o céu e as árvores. Isso significa que o mundo em que vive é um mundo sério, pois a caraterística do espírito de seriedade é considerar os valores como coisas prontas.
Isto não significa que a criança seja séria. Pelo contrário, é-lhe permitido brincar, gastar livremente a sua existência. No seu círculo infantil, ela sente que pode perseguir com paixão e alegria os objectivos que estabeleceu para si própria. Mas se realiza esta experiência com toda a tranquilidade, é precisamente porque o domínio aberto à sua subjetividade lhe parece insignificante e pueril aos seus próprios olhos. Sente-se felizmente irresponsável.
O mundo real é o dos adultos, onde só lhe é permitido respeitar e obedecer. Vítima ingénua da miragem dos para-outros, acredita na existência dos seus pais e professores. Toma-os por divindades que eles tentam em vão ser e cuja aparência gostam de emprestar aos seus olhos ingénuos. Recompensas, castigos, prémios, palavras de louvor ou de censura incutem-lhe a convicção de que existe um bem e um mal que, tal como o sol e a lua, existem como fins em si mesmos. No seu universo de coisas concretas e substanciais, sob o olhar soberano das pessoas adultas, pensa que também tem um SER concreto e substancial. É um bom rapazinho ou um malandro; gosta de o ser. Se algo no seu íntimo desmente a sua convicção, esconde essa imperfeição. Consola-se de uma incoerência que atribui à sua pouca idade, depositando as suas esperanças no futuro. Mais tarde, também se tornará uma grande estátua imponente. Enquanto espera, brinca de ser, de ser um santo, um herói, um maltrapilho. Sente-se como aqueles modelos cujas imagens são esboçadas nos seus livros em traços largos e inequívocos: explorador, bandido, irmã de caridade.
Este jogo de seriedade pode assumir uma tal importância na vida da criança que ela própria se torna séria. Conhecemos crianças assim, que são caricaturas dos adultos. Mesmo quando a alegria de existir é mais forte, quando a criança a ela se abandona, sente-se protegida contra o risco da existência pelo tecto que as gerações humanas construíram sobre a sua cabeça. É em virtude disso que a condição da criança (embora possa ser infeliz noutros aspectos) é metafisicamente privilegiada. Normalmente, a criança escapa à angústia da liberdade. Pode, se quiser, ser recalcitrante, preguiçosa; os seus caprichos e os seus defeitos só a ela dizem respeito. Não pesam sobre a terra. Não podem fazer mossa na ordem serena de um mundo que existia antes dela, sem ela, onde se encontra num estado de segurança em virtude da sua própria insignificância. Pode fazer impunemente o que quiser. Sabe que nada pode acontecer através dela; tudo já está dado; os seus actos não envolvem nada, nem mesmo ele próprio.
Há seres cuja vida desliza num mundo infantil porque, tendo sido mantidos num estado de servidão e de ignorância, não têm meios de romper o tecto que se estende sobre as suas cabeças. Tal como a criança, podem exercer a sua liberdade, mas apenas no interior desse universo que lhes foi montado à frente, sem eles. É o caso, por exemplo, dos escravos que não tomaram consciência da sua escravatura. Os fazendeiros do sul não estavam totalmente errados ao considerar os negros que se submetiam docilmente ao seu paternalismo como "crianças crescidas". Na medida em que respeitavam o mundo dos brancos, a situação dos escravos negros era exatamente uma situação infantil. Esta é também a situação das mulheres em muitas civilizações; elas só podem submeter-se às leis, aos deuses, aos costumes e às verdades criadas pelos homens.
Ainda hoje, nos países ocidentais, entre as mulheres que não tiveram no seu trabalho uma aprendizagem da liberdade, há muitas que se abrigam à sombra dos homens; adoptam sem discussão as opiniões e os valores reconhecidos pelo marido ou pelo amante, o que lhes permite desenvolver qualidades infantis que são proibidas aos adultos, porque se baseiam num sentimento de irresponsabilidade. Se aquilo a que se chama futilidade feminina tem muitas vezes tanto encanto e graça, se tem por vezes um carácter verdadeiramente comovente, é porque manifesta um gosto puro e gratuito pela existência, como os jogos das crianças; é a ausência do sério. O que é lamentável é que, em muitos casos, essa irreflexão, essa alegria, essas invenções encantadoras implicam uma profunda cumplicidade com o mundo dos homens, que elas parecem contestar tão graciosamente e é um erro espantar-se, quando a estrutura que as abriga parece estar em perigo, ao ver mulheres sensíveis, ingénuas e levianas mostrarem-se mais duras, mais amargas e até mais furiosas ou cruéis do que os seus senhores.
É então que descobrimos a diferença que as distingue de uma criança real: a situação da criança é-lhe imposta, enquanto a mulher (refiro-me à mulher ocidental de hoje) a escolhe ou, pelo menos, a consente. A ignorância e o erro são factos tão incontornáveis como os muros da prisão.
O escravo negro do século XVIII, a mulher maometana encerrada num harém não têm nenhum instrumento, seja em pensamento, seja por espanto ou raiva, que lhes permita atacar a civilização que os oprime. O seu comportamento só se define e só pode ser julgado dentro desta situação, e é possível que nesta situação, limitada como todas as situações humanas, ela realize uma afirmação perfeita da sua liberdade. Mas quando aparece uma possibilidade de libertação, é a resignação da liberdade que não explora essa possibilidade, uma resignação que implica desonestidade e que é uma falta positiva.
O facto é que é muito raro que o mundo infantil se mantenha para além da adolescência. A partir da infância, começam a revelar-se nele falhas. Com espanto, revolta e desrespeito, a criança pergunta-se pouco a pouco: "Porque é que tenho de agir assim? Para que é que serve? E o que acontecerá se eu agir de outra forma?" Descobre a sua subjetividade, descobre a dos outros. Quando chega à idade da adolescência, começa a vacilar, porque se apercebe das contradições dos adultos, das suas hesitações e fraquezas. Os homens deixam de aparecer como se fossem deuses e, ao mesmo tempo, o adolescente descobre o carácter humano da realidade que o rodeia. A linguagem, os costumes, a ética e os valores têm a sua fonte nestas criaturas incertas. Chegou o momento em que também ele vai ser chamado a participar no seu funcionamento; os seus actos pesam sobre a terra tanto como os dos outros homens. Ele terá de escolher e decidir. É compreensível que lhe seja difícil viver este momento da sua história e esta é sem dúvida a razão mais profunda da crise da adolescência; o indivíduo deve finalmente assumir a sua subjetividade.
De um ponto de vista, o desmoronamento do mundo sério é uma libertação. Embora irresponsável, a criança também se sente indefesa perante poderes obscuros que dirigem o curso das coisas. Mas seja qual for a alegria desta libertação, não é sem grande confusão que o adolescente se vê lançado num mundo que já não está pronto, que tem de ser feito; está abandonado, injustificado, presa de uma liberdade que já não está acorrentada a nada. O que é que ele vai fazer face a esta nova situação? É o momento em que ele decide. Se aquilo a que se poderia chamar a história natural de um indivíduo, os seus complexos afectivos, etc., dependem sobretudo da sua infância, é a adolescência que aparece como o momento da escolha moral. A liberdade revela-se então e ele deve decidir a sua atitude face a ela. Sem dúvida, esta decisão pode sempre ser reconsiderada, mas o facto é que as conversões são difíceis porque o mundo reflecte em nós uma escolha que é confirmada através deste mundo que ele moldou. Assim, forma-se um círculo cada vez mais rigoroso do qual é cada vez mais difícil escapar. Por conseguinte, a desgraça que se abate sobre o homem pelo facto de ter sido criança é que a sua liberdade lhe foi primeiramente ocultada e que, durante toda a sua vida, terá nostalgia do tempo em que não conhecia as suas exigências.
Este infortúnio tem ainda um outro aspeto. A escolha moral é livre, e portanto imprevisível. A criança não contém o homem que se tornará. No entanto, é sempre com base no que foi que o homem decide o que quer ser. Ele retira as motivações da sua atitude moral do interior do carácter que lhe foi dado e do universo que lhe é correlativo. Ora, a criança criou este carácter e este universo pouco a pouco, sem prever o seu desenvolvimento. Ignorava o aspeto perturbador dessa liberdade que exercia sem cuidado. Abandonou-se tranquilamente aos caprichos, aos risos, às lágrimas, às cóleras que lhe pareciam não ter futuro nem perigo e que, no entanto, deixaram nele marcas inefáveis.
O drama da escolha original é que ela se desenrola momento a momento durante toda uma vida, que ocorre sem razão, antes de qualquer razão, que a liberdade está lá como se estivesse presente apenas sob a forma de contingência. Esta contingência lembra, de certa forma, a arbitrariedade da graça distribuída por Deus na doutrina calvinista. Também aqui há uma espécie de predestinação que não provém de uma tirania exterior, mas da ação do próprio sujeito. Apenas, pensamos que o homem tem sempre um recurso possível a si mesmo. Não há escolha tão infeliz que não possa ser salva.
É neste momento de justificação - um momento que se estende por toda a sua vida adulta - que a atitude do homem é colocada num plano moral. A espontaneidade contingente não pode ser julgada em nome da liberdade. No entanto, uma criança já suscita simpatia ou antipatia. Cada homem lança-se no mundo fazendo de si próprio uma falta de ser; contribui assim para o reinvestir de significação humana. Revela-o. Neste movimento, mesmo os mais marginalizados sentem por vezes a alegria de existir. Manifestam então a existência como uma felicidade e o mundo como uma fonte de alegria. Mas cabe a cada um fazer de si mesmo uma falta de aspectos mais ou menos variados, profundos e ricos do ser. Aquilo a que se chama vitalidade, sensibilidade e inteligência não são qualidades prontas, mas uma maneira de se lançar no mundo e de revelar o ser. Sem dúvida, cada um se lança no mundo com base nas suas possibilidades fisiológicas, mas o corpo em si não é um facto bruto. Ele exprime a nossa relação com o mundo, e é por isso que é objeto de simpatia ou de repulsa.
Por outro lado, não determina nenhum comportamento. Só há vitalidade através da generosidade livre. A inteligência supõe boa vontade e, inversamente, um homem nunca é estúpido se adapta a sua linguagem e o seu comportamento às suas capacidades, e a sensibilidade não é outra coisa senão a presença atenta ao mundo e a si própria.
A recompensa por estas qualidades espontâneas advém do facto de fazerem aparecer no mundo significados e objectivos. Descobrem razões para existir. Elas confirmam-nos no orgulho e na alegria do nosso destino como homem. Na medida em que subsistem num indivíduo, continuam a suscitar simpatia, mesmo que ele se tenha tornado odioso pelo sentido que deu à sua vida. Ouvi dizer que, no julgamento de Nuremberga, Goering exerceu um certo poder de sedução sobre os seus juízes, devido à vitalidade que dele emanava.
Se tentássemos estabelecer uma espécie de hierarquia entre os homens, colocaríamos no último degrau da escada aqueles que estão privados desse calor vivo - a tepidez de que fala o Evangelho. Existir é fazer-se falta de ser, é lançar-se no mundo. Aqueles que se ocupam em refrear esse movimento original podem ser considerados sub-homens. Têm olhos e ouvidos, mas desde a infância fazem-se cegos e surdos, sem amor e sem desejo. Esta apatia manifesta um medo fundamental perante a existência, perante os riscos e as tensões que ela implica. O sub-homem rejeita esta "paixão" que é a sua condição humana, a laceração e o fracasso desse impulso para o ser que falha sempre o seu objetivo, mas que é assim a própria existência que ele rejeita.
Esta escolha confirma-se imediatamente. Tal como um mau pintor, por um simples movimento, pinta maus quadros e fica satisfeito com eles, ao passo que numa obra de valor o artista reconhece imediatamente a exigência de uma obra superior, do mesmo modo, a pobreza original do seu projeto dispensa o sub-homem de procurar legitimá-lo. Descobre à sua volta apenas um mundo insignificante e sem graça. Como é que este mundo nu pode suscitar nele o desejo de sentir, de compreender, de viver? Quanto menos ele existe, menos razões tem para existir, pois essas razões só são criadas pelo facto de existir.
No entanto, ele existe. Pelo facto de se transcender a si próprio, indica certos objectivos, circunscreve certos valores. Mas ele apaga imediatamente essas sombras incertas. Todo o seu comportamento tende para uma eliminação dos seus fins. Pela incoerência dos seus projectos, pelos seus caprichos aleatórios ou pela sua indiferença, ele reduz ao nada o sentido da sua ultrapassagem. Os seus actos nunca são escolhas positivas, apenas voos. Ele não pode impedir-se de ser uma presença no mundo, mas mantém essa presença no plano da pura facticidade. No entanto, se fosse permitido ao homem ser um facto bruto, ele fundir-se-ia com as árvores e os seixos que não têm consciência de existir; consideraríamos essas vidas opacas com indiferença.
Mas o sub-homem suscita o desprezo, isto é, reconhece-se que ele é responsável por si mesmo no momento em que o acusamos de não se querer a si mesmo. - O facto é que nenhum homem é um dado que se sofre passivamente; a rejeição da existência é ainda uma outra forma de existir; ninguém pode conhecer a paz do túmulo enquanto está vivo. Aí temos a derrota do sub-homem. Ele gostaria de se esquecer de si próprio, de se ignorar a si próprio, mas o nada que está no coração do homem é também a consciência que ele tem de si próprio. A sua negatividade revela-se positivamente como angústia, desejo, apelo, dilaceração, mas quanto ao verdadeiro retorno ao positivo, o sub-homem escapa-lhe. Tem medo de se empenhar num projeto, pois tem medo de se desvincular e, por conseguinte, de se encontrar em estado de perigo perante o futuro, no meio das suas possibilidades. É assim levado a refugiar-se nos valores prontos do mundo sério. Proclamará certas opiniões; abrigar-se-á atrás de um rótulo; e, para esconder a sua indiferença, abandonar-se-á facilmente a explosões verbais ou mesmo à violência física.
Um dia, monárquico, no dia seguinte, anarquista, é mais facilmente antissemita, anti-clerical ou antirrepublicano. Assim, embora o tenhamos definido como uma negação e uma fuga, o sub-homem não é uma criatura inofensiva. Ele realiza-se no mundo como uma força cega e descontrolada que qualquer um pode controlar. Nos linchamentos, nos pogroms, em todos os grandes movimentos sangrentos organizados pelo fanatismo da seriedade e da paixão, movimentos em que não há risco, aqueles que fazem o trabalho sujo real são recrutados entre os sub-homens. É por isso que todo o homem que se quer livre num mundo humano formado por homens livres, se sente tão desgostoso com os sub-homens. A ética é o triunfo da liberdade sobre a facticidade, e o sub-homem sente apenas a facticidade da sua existência. Em vez de engrandecer o reino do humano, ele opõe a sua resistência inerte aos projectos dos outros homens. Nenhum projeto tem sentido no mundo revelado por uma tal existência.
O homem é definido como um voo selvagem. O mundo à sua volta é vazio e incoerente. Nada acontece, nada merece desejo ou esforço. O sub-homem percorre um mundo privado de sentido em direção a uma morte que apenas confirma a sua longa negação de si próprio. A única coisa que se revela nesta experiência é a facticidade absurda de uma existência que permanece para sempre injustificada se não soube justificar-se a si própria. O sub-homem experimenta o deserto do mundo no seu tédio. E o carácter estranho de um universo com o qual não criou qualquer laço desperta-lhe também o medo. Atormentado pelos acontecimentos presentes, fica desnorteado perante a escuridão do futuro, assombrado por espectros assustadores: a guerra, a doença, a revolução, o fascismo, o bolchevismo. Quanto mais indistintos são estes perigos, mais temíveis se tornam. O sub-homem não sabe muito bem o que tem a perder, pois não tem nada, mas esta incerteza reforça o seu terror. De facto, o que ele teme é que o choque do imprevisto lhe faça lembrar a consciência agonizante de si próprio.
Assim, por mais fundamental que seja o medo do homem perante a existência, embora ele tenha escolhido, desde a mais tenra idade, negar a sua presença no mundo, ele não pode impedir-se de existir, não pode apagar a evidência agonizante da sua liberdade. É por isso que, como acabámos de ver, para se desembaraçar da sua liberdade, é levado a empenhá-la positivamente. A atitude do sub-homem passa logicamente para a do homem sério; ele obriga-se a submergir a sua liberdade no conteúdo que este último aceita da sociedade. Perde-se no objeto para aniquilar a sua subjetividade.
Esta certeza foi descrita com tanta frequência que não será necessário considerá-la longamente. Hegel falou dela de forma irónica. Na 'Fenomenologia do Espirito', mostrou que o sub-homem desempenha o papel de inessencial face ao objeto que é considerado como essencial. Ele suprime-se a si próprio em proveito da Coisa, que, santificada pelo respeito, aparece sob a forma de Causa, ciência, filosofia, revolução, etc. Mas a verdade é que este estratagema é falhado, pois a Causa não pode salvar o indivíduo na medida em que ele é uma existência concreta e separada.
Depois de Hegel, Kierkegaard e Nietzsche também se insurgiram contra a estupidez enganadora do homem sério e do seu universo. 'O Ser e o Nada' é, em grande parte, uma descrição do homem sério e do seu universo. O homem sério livra-se da sua liberdade ao pretender subordiná-la a valores que seriam incondicionados. Imagina que a adesão a esses valores lhe confere igualmente um valor permanente. Protegido por "direitos", realiza-se como um ser que escapa ao stress da existência. O sério não é definido pela natureza dos objectivos perseguidos. Uma senhora frívola da moda pode ter esta mentalidade do sério, tal como um engenheiro. Existe o sério a partir do momento em que a liberdade se nega a si própria em proveito de fins que se pretendem absolutos.
Uma vez que tudo isto é bem conhecido, gostaria de fazer apenas algumas observações. Compreende-se facilmente porque é que, de todas as atitudes que não são verdadeiras, esta última é a mais difundida; porque todo o homem foi primeiro uma criança. Depois de ter vivido sob o olhar dos deuses, depois de ter recebido a promessa da divindade, não se aceita facilmente tornar-se simplesmente um homem, com toda a sua ansiedade e dúvida. O que é que se há-de fazer? Em que é que se deve acreditar? Muitas vezes, o jovem que, como o sub-homem, não rejeitou primeiro a existência, de modo que estas questões nem sequer se colocam, assusta-se, no entanto, ao ter de lhes responder. Após uma crise mais ou menos longa, ou se volta para o mundo dos seus pais e professores ou adere aos valores que são novos mas que lhe parecem igualmente seguros. Em vez de assumir uma afetividade que o lançaria perigosamente para além de si próprio, ele reprime-a. A liquidação, na sua forma clássica de transferência e sublimação, é a passagem do afetivo ao sério na sombra propícia da desonestidade. O que interessa ao homem sério não é tanto a natureza do objeto que ele prefere a si próprio, mas antes o facto de poder perder-se nele. De tal modo que o movimento em direção ao objeto é, de facto, através do seu ato arbitrário, a afirmação mais radical da subjetividade: acreditar por acreditar, querer por querer é, desligando a transcendência do seu fim, realizar a sua liberdade na sua forma vazia e absurda de liberdade de indiferença.
A desonestidade do homem sério resulta do facto de ser obrigado a renovar incessantemente a negação desta liberdade. Ele escolhe viver num mundo infantil, mas para a criança os valores são realmente dados. O homem sério deve mascarar o movimento pelo qual os dá a si próprio, como o mitómano que, ao ler uma carta de amor, finge esquecer que a enviou a si próprio.
Já assinalámos que certos adultos podem viver no universo do sério com toda a honestidade, por exemplo, aqueles a quem são negados todos os instrumentos de fuga, aqueles que são escravizados ou que são mistificados. Quanto menos as circunstâncias económicas e sociais permitem a um indivíduo agir sobre o mundo, mais este mundo lhe aparece como dado.
É o caso das mulheres que herdam uma longa tradição de submissão e daqueles que são chamados "os humildes". Há muitas vezes preguiça e timidez na sua resignação; a sua honestidade não é totalmente completa; mas, na medida em que existe, a sua liberdade continua disponível, não é negada.
Podem, na sua situação de indivíduos ignorantes e impotentes, conhecer a verdade da existência e elevar-se a uma vida corretamente moral. Acontece mesmo que voltam a liberdade assim conquistada contra o próprio objeto do seu respeito; assim, em A Doll's House, a ingenuidade infantil da heroína leva-a a revoltar-se contra a mentira do sério.
Pelo contrário, o homem que dispõe dos instrumentos necessários para escapar a esta mentira e que não quer utilizá-los, consome a sua liberdade negando-os. Torna-se sério. Dissimula a sua subjetividade sob o escudo dos direitos que emanam do universo ético por ele reconhecido; já não é um homem, mas um pai, um patrão, um membro da Igreja cristã ou do Partido Comunista.
Se alguém nega a tensão subjectiva da liberdade, está evidentemente a proibir-se universalmente de querer a liberdade num movimento indefinido. Pelo facto de se recusar a reconhecer que estabelece livremente o valor do fim que propõe, o homem sério faz-se escravo desse fim. Esquece que todo o objetivo é ao mesmo tempo um ponto de partida e que a liberdade humana é o fim último, o fim único a que o homem se deve destinar. Ele atribui um significado absoluto ao epíteto útil, que, na verdade, não tem mais significado se tomado por si mesmo do que as palavras alto, baixo, direita e esquerda. Designa simplesmente uma relação e exige um complemento: útil para isto ou para aquilo. O próprio complemento deve ser posto em causa e, como veremos mais adiante, todo o problema da ação é então levantado.
Mas o homem sério não põe nada em causa. Para o militar, o exército é útil; para o administrador colonial, a autoestrada; para o revolucionário sério, a revolução - exército, autoestrada, revolução, produções que se tornam ídolos desumanos aos quais não se hesitará em sacrificar o próprio homem. Portanto, o homem sério é perigoso. É natural que ele se faça tirano. Ignorando desonestamente a subjetividade da sua escolha, finge que o valor incondicionado do objeto se afirma através dele; e, do mesmo modo, ignora também o valor da subjetividade e da liberdade dos outros, a tal ponto que, sacrificando-os à coisa, se persuade de que o que sacrifica não é nada.
O administrador colonial que elevou a autoestrada à estatura de um ídolo não terá qualquer escrúpulo em assegurar a sua construção à custa de um grande número de vidas de autóctones; pois, que valor tem a vida de um autóctone incompetente, preguiçoso e desajeitado quando se trata de construir auto-estradas? O grave leva a um fanatismo tão formidável quanto o fanatismo da paixão. É o fanatismo da Inquisição que não hesita em impor um credo, isto é, um movimento interno, através de constrangimentos externos. É o fanatismo dos 'Vigilantes da América' que defendem a moral por meio de linchamentos. É o fanatismo político que esvazia a política de todo o conteúdo humano e impõe o Estado, não para os indivíduos, mas contra eles.
Para justificar os aspectos contraditórios, absurdos e ultrajantes deste tipo de comportamento, o homem sério refugia-se facilmente na contestação do sério, mas é o sério dos outros que ele contesta, não o seu. Assim, o administrador colonial não ignora o truque da ironia. Contesta a importância da felicidade, do conforto, da própria vida do nativo, mas venera a autoestrada, a economia, o império francês; venera-se a si próprio como servidor dessas divindades. Quase todos os homens sérios cultivam uma leviandade conveniente; conhecemos a genuína alegria dos católicos, o "sentido de humor" fascista. Há também alguns que nem sequer sentem a necessidade de tal arma. Escondem de si próprios a incoerência da sua escolha, levantando voo. Logo que o Ídolo deixa de estar em causa, o homem sério desliza para a atitude do sub-homem. Ele impede-se de existir porque não é capaz de existir sem uma garantia.
Proust observou com espanto que um grande médico ou um grande professor se mostra muitas vezes, fora da sua especialidade, pouco sensível, pouco inteligente, pouco humano. A razão para isso é que, tendo abdicado da sua liberdade, só lhe restam as suas técnicas. Nos domínios em que as suas técnicas não são aplicáveis, ou adere aos valores mais vulgares ou se realiza como um fugitivo.
O homem sério engolfa obstinadamente a sua transcendência no objeto que barra o horizonte e trava o céu. O resto do mundo é um deserto sem rosto. Também aqui se vê como essa escolha é imediatamente confirmada. Se o ser só existe, por exemplo, sob a forma do exército, como é que o militar pode desejar outra coisa que não seja multiplicar os quartéis e as manobras? Nenhum apelo se levanta das zonas abandonadas onde nada se colhe porque nada se semeia. Logo que deixa o estado-maior, o velho general torna-se aborrecido. É por isso que a vida do homem sério perde todo o sentido quando se vê afastado dos seus objectivos. Normalmente, ele não põe todos os ovos no mesmo cesto, mas se acontece que um fracasso ou a velhice arruína todas as suas justificações, então, a menos que haja uma conversão, que é sempre possível, ele já não tem outro alívio senão a fuga; arruinado, desonrado, esse personagem importante é agora apenas um "já foi". Ele junta-se ao sub-homem, a não ser que, pelo suicídio, ponha fim de uma vez por todas à agonia da sua liberdade.
É num estado de medo que o homem sério sente esta dependência do objeto; e a primeira das virtudes, aos seus olhos, é a prudência. Ele escapa à angústia da liberdade para cair num estado de preocupação, de inquietação. Tudo é para ele uma ameaça, uma vez que a coisa que ele erigiu em ídolo é uma exterioridade e está, portanto, em relação com todo o universo e, por conseguinte, ameaçada por todo o universo; e uma vez que, apesar de todas as precauções, ele nunca será o senhor desse mundo exterior ao qual consentiu em submeter-se, será instantaneamente perturbado pelo curso incontrolável dos acontecimentos.
Estará sempre a dizer que está desiludido, pois o seu desejo de que o mundo se endureça numa coisa é desmentido pelo próprio movimento da vida. O futuro contestará os seus sucessos actuais; os seus filhos desobedecer-lhe-ão, a sua vontade será contrariada pela de estranhos; será vítima do mau humor e da amargura. Os seus próprios êxitos têm um sabor a cinzas, pois a seriedade é uma das formas de tentar realizar a síntese impossível do em-si e do para-si. O homem sério deseja ser um deus; mas não o é e sabe-o. Deseja livrar-se da sua subjetividade, mas esta arrisca-se constantemente a ser desmascarada; é desmascarada. Transcendendo todos os objectivos, a reflexão interroga-se: "Para quê?"
Aí, brilha o absurdo de uma vida que procurou fora de si as justificações que só ela poderia dar a si própria. Separados da liberdade que os poderia ter verdadeiramente fundamentado, todos os fins perseguidos parecem arbitrários e inúteis.
Este fracasso do sério provoca por vezes uma desordem radical. Consciente de não poder ser nada, o homem decide então não ser nada. Chamaremos a esta atitude niilista. O niilista está próximo do espírito de seriedade, pois em vez de realizar a sua negatividade como um movimento vivo, concebe a sua aniquilação de uma forma substancial. Ele quer ser nada e este nada com que sonha é ainda uma outra espécie de ser, a exacta antítese hegeliana do ser, um dado estacionário. O niilismo é uma seriedade desiludida que se voltou sobre si mesma. Uma escolha deste género não se encontra entre aqueles que, sentindo a alegria da existência, assumem a sua gratuidade. Aparece ou no momento da adolescência, quando o indivíduo, ao ver esvair-se o seu universo de criança, sente a falta que lhe vai no coração, ou, mais tarde, quando falharam as tentativas de se realizar como ser; em todo o caso, entre os homens que querem livrar-se da ansiedade da sua liberdade negando o mundo e a si próprios. Através desta rejeição, aproximam-se do sub-homem. A diferença é que a sua retirada não é o seu movimento original. Num primeiro momento, lançam-se no mundo, por vezes até com uma grandeza de espírito. Ele existe e sabe-o.
Acontece por vezes que, no seu estado de engano, um homem mantém uma espécie de afecto pelo mundo sério; é assim que Sartre descreve Baudelaire no seu estudo sobre o poeta. Baudelaire sentia um rancor ardente em relação aos valores da sua infância, mas esse rancor envolvia ainda algum respeito. Só o desprezo o libertava. Era necessário que o universo que ele rejeitava continuasse para que ele o detestasse e zombasse dele; é a atitude do homem demoníaco, como Jouhandeau também o descreveu: mantém-se obstinadamente os valores da infância, de uma sociedade ou de uma Igreja para poder espezinhá-los. O homem demoníaco está ainda muito próximo do sério; quer acreditar nele; confirma-o pela sua própria revolta; sente-se como uma negação e uma liberdade, mas não percebe esta liberdade como uma libertação positiva.
Pode-se ir muito mais longe na rejeição, ocupando-se não em desprezar, mas em aniquilar o mundo rejeitado e a si mesmo com ele. Por exemplo, o homem que se entrega a uma causa que sabe estar perdida escolhe fundir o mundo com um dos seus aspectos que traz em si o germe da sua ruína, envolvendo-se nesse universo condenado e condenando-se com ele. Um outro dedica o seu tempo e as suas energias a um projeto que não estava condenado ao fracasso à partida, mas que ele próprio está empenhado em arruinar. Outro ainda rejeita cada um dos seus projectos, um após o outro, desperdiçando-os numa série de caprichos e anulando assim sistematicamente os fins a que se propõe. A negação constante da palavra pela palavra, do ato pelo ato, da arte pela arte foi realizada pela incoerência dadaísta. Seguindo uma injunção estrita de desordem e de anarquia, consegue-se a abolição de todos os comportamentos e, portanto, de todos os fins e de si próprio.
Mas esta vontade de negação está sempre a negar-se a si própria, pois manifesta-se como uma presença no momento em que se mostra. Implica, portanto, uma tensão constante, inversamente simétrica da tensão existencial e mais dolorosa, pois se é verdade que o homem não é, também é verdade que ele existe, e para realizar positivamente a sua negatividade terá de contradizer constantemente o movimento da existência.
Se não se resignar ao suicídio, desliza-se facilmente para uma atitude mais estável do que a rejeição estridente do niilismo.
O surrealismo fornece-nos um exemplo histórico e concreto de diferentes tipos possíveis de evolução. Certos iniciados, como Vache e Crevel, recorreram à solução radical do suicídio. Outros destruíram os seus corpos e arruinaram as suas mentes com drogas. Outros conseguiram uma espécie de suicídio moral; à força de despovoar o mundo à sua volta, encontraram-se num deserto, reduzidos ao nível do sub-homem; já não tentam fugir, estão a fugir. Há também alguns que voltaram a procurar a segurança do sério. Reformaram-se, escolhendo arbitrariamente o casamento, a política ou a religião como refúgios. Mesmo os surrealistas que quiseram manter-se fiéis a si próprios não puderam evitar o regresso ao positivo, ao sério.
A negação dos valores estéticos, espirituais e morais tornou-se uma ética; a falta de regras tornou-se uma regra. Assistimos à instauração de uma nova Igreja, com os seus dogmas, os seus ritos, os seus fiéis, os seus padres e até os seus mártires; hoje, não há nada do destruidor em Breton; ele é um papa. E como todo o assassinato da pintura é ainda uma pintura, muitos surrealistas viram-se autores de obras positivas; a sua revolta tornou-se a matéria sobre a qual a sua carreira foi construída. Finalmente, alguns deles, num verdadeiro regresso ao positivo, conseguiram realizar a sua liberdade; deram-lhe um conteúdo sem o renegar. Empenharam-se, sem se perderem, na ação política, na investigação intelectual ou artística, na vida familiar ou social.
A atitude do niilista só pode perpetuar-se como tal se se revelar como uma positividade no seu âmago. Rejeitando a sua própria existência, o niilista deve também rejeitar as existências que a confirmam. Se ele quiser ser nada, toda a humanidade deve também ser aniquilada; caso contrário, através da presença deste mundo que o Outro revela, ele encontra-se a si próprio como uma presença no mundo. Mas esta sede de destruição toma imediatamente a forma de uma vontade de poder.
O gosto do nada junta-se ao gosto original do ser pelo qual todo o homem se define pela primeira vez; ele realiza-se como ser ao fazer-se aquilo pelo qual o nada vem ao mundo. Assim, o nazismo foi ao mesmo tempo uma vontade de poder e uma vontade de suicídio. De um ponto de vista histórico, o nazismo tem ainda muitas outras características; em particular, para além do romantismo sombrio que levou Rauschning a intitular a sua obra "A Revolução do Niilismo", encontramos também uma seriedade sombria. O facto é que o nazismo estava ao serviço da seriedade pequeno-burguesa. Mas é interessante notar que a sua ideologia não impossibilitou esta aliança, pois o sério muitas vezes se une a um niilismo parcial, negando tudo o que não é seu objeto para esconder de si mesmo as antinomias da ação.
Um exemplo bastante puro deste niilismo apaixonado é o conhecido caso de Drieu la Rochelle. A Mala Vazia é o testemunho de um jovem que sentiu de forma aguda o facto de existir como uma falta de ser, de não ser. Trata-se de uma experiência genuína com base na qual a única salvação possível é assumir a falta, ficar do lado da falta. Trata-se de uma experiência genuína, com base na qual a única salvação possível é assumir a falta, colocar-se do lado do homem que existe contra a ideia de um Deus que não existe.
Pelo contrário - um romance como Gilles é a prova - Drieu persistiu obstinadamente no seu engano. No seu ódio por si próprio, escolheu rejeitar a sua condição de homem, o que o levou a odiar todos os homens e a si próprio. Gilles só conhece a satisfação quando dispara sobre os operários espanhóis e vê o sangue correr, que compara ao sangue redentor de Cristo; como se a única salvação do homem fosse a morte de outros homens, alcançando assim a negação perfeita. É natural que este caminho termine em colaboração, fundindo-se para Drieu a ruína de um mundo detestado com a anulação de si próprio. Um fracasso externo levou-o a dar à sua vida a conclusão que ela dialeticamente exigia: o suicídio.
A atitude niilista manifesta uma certa verdade. Nesta atitude, experimenta-se a ambiguidade da condição humana. Mas o erro é que ela define o homem não como a existência positiva de uma falta, mas como uma falta no coração da existência, quando a verdade é que a existência não é uma falta enquanto tal.
Se a liberdade é experimentada, neste caso, sob a forma de rejeição, ela não é verdadeiramente realizada. O niilista tem razão em pensar que o mundo não tem justificação e que ele próprio não é nada. Mas esquece-se de que é a ele que cabe justificar o mundo e ao próprio homem existir validamente. Em vez de integrar a morte na vida, vê nela a única verdade da vida que lhe aparece como uma morte disfarçada. No entanto, há vida, e o niilista sabe que está vivo. É aí que reside o seu fracasso. Rejeita a existência sem conseguir eliminá-la. Nega qualquer sentido à sua transcendência e, no entanto, transcende-se a si próprio. Um homem que se deleita com a liberdade pode encontrar no niilista um aliado, porque contestam juntos o mundo sério, mas também vê nele um inimigo, na medida em que o niilista é uma rejeição sistemática do mundo e do homem, e se esta rejeição desemboca num desejo positivo, a destruição, instaura então uma tirania contra a qual a liberdade deve fazer frente.
A falha fundamental do niilista é que, desafiando todos os valores dados, ele não encontra, para além da sua ruína, a importância desse fim universal e absoluto que é a própria liberdade. É possível que, mesmo neste fracasso, um homem mantenha o gosto por uma existência que originalmente sentiu como uma alegria. Não esperando nenhuma justificação, ele terá, no entanto, prazer em viver. Não se afastará das coisas em que não acredita. Procurará nelas um pretexto para uma atividade gratuita. Esse homem é o que se chama geralmente de aventureiro. Atira-se com entusiasmo aos seus empreendimentos, à exploração, à conquista, à guerra, à especulação, ao amor, à política, mas não se prende ao fim que visa, apenas à sua conquista. Gosta da ação por si mesma. Sente alegria em espalhar pelo mundo uma liberdade que permanece indiferente ao seu conteúdo. Quer o gosto pela aventura pareça ter por base o desespero niilista, quer nasça diretamente da experiência dos dias felizes da infância, implica sempre que a liberdade se realize como uma independência em relação ao mundo sério e que, por outro lado, a ambiguidade da existência seja sentida não como uma falta, mas no seu aspeto positivo.
Esta atitude envolve dialeticamente a oposição do niilismo ao sério e a oposição ao niilismo pela existência enquanto tal. Mas, evidentemente, a história concreta de um indivíduo não abraça necessariamente esta dialética, pelo facto de a sua condição lhe ser inteiramente presente em cada momento e porque a sua liberdade perante ela é, em cada momento, total. Desde a adolescência, o homem pode definir-se como um aventureiro. A união de uma vitalidade original e abundante com um ceticismo reflexivo conduzirá particularmente a esta escolha.
É evidente que esta escolha está muito próxima de uma atitude genuinamente moral. O aventureiro não se propõe ser; ele faz de si mesmo, deliberadamente, uma falta de ser; ele visa expressamente a existência; embora empenhado no seu empreendimento, ele está, ao mesmo tempo, desligado do objetivo. Quer seja bem-sucedido ou mal-sucedido, ele vai em frente, lançando-se numa nova empresa à qual se entregará com o mesmo ardor indiferente. Não é das coisas que ele espera a justificação das suas escolhas. Se o existencialismo fosse solipsista, como geralmente se afirma, teria de considerar o aventureiro como o seu herói perfeito.
Antes de mais, é preciso notar que a atitude do aventureiro nem sempre é pura. Por detrás da aparência de capricho, há muitos homens que perseguem um objetivo secreto com toda a seriedade; por exemplo, a fortuna ou a glória. Proclamam o seu ceticismo em relação aos valores reconhecidos. Não levam a política a sério. Deixam-se assim ser colaboracionistas em 1941 e comunistas em 1945, e é verdade que se estão nas tintas para os interesses do povo francês ou do proletariado; estão apegados à sua carreira, ao seu sucesso. Este arrivismo está nos antípodas do espírito de aventura, porque o gosto pela existência nunca é então vivido na sua gratuidade. Acontece também que o verdadeiro amor pela aventura é indissociável de um apego aos valores da seriedade. Cortez e os conquistadores serviram Deus e o imperador servindo o seu próprio prazer. A aventura também pode ser atravessada pela paixão. O gosto pela conquista está muitas vezes subtilmente ligado ao gosto pela posse. Será que Don Juan só gostava de sedução? Não gostava ele também de mulheres? Ou será que nem sequer procurava uma mulher capaz de o satisfazer?
Mas mesmo que consideremos a aventura na sua pureza, ela só nos parece satisfatória num momento subjetivo, que, na verdade, é um momento bastante abstrato. O aventureiro encontra sempre outros no caminho; o conquistador encontra os índios; o condottiere abre um caminho através do sangue e das ruínas; o explorador tem camaradas à sua volta ou soldados sob as suas ordens; cada Don Juan é confrontado com Elviras. Todos os empreendimentos se desenrolam num mundo humano e afectam os homens. O que distingue a aventura de um simples jogo é o facto de o aventureiro não se limitar a afirmar a sua existência de forma solitária. Afirma-a na relação com outras existências. Tem de se afirmar a si próprio.
Duas atitudes são possíveis. Ele pode tomar consciência das exigências reais da sua própria liberdade, que só pode querer-se a si própria destinando-se a um futuro aberto, procurando alargar-se através da liberdade dos outros. Portanto, em qualquer caso, a liberdade dos outros homens deve ser respeitada e eles devem ser ajudados a libertar-se. Esta lei impõe limites à ação e, ao mesmo tempo, dá-lhe imediatamente um conteúdo. Para além da seriedade rejeitada, encontra-se uma seriedade genuína. Mas o homem que age desta forma, cujo fim é a libertação de si próprio e dos outros, que se obriga a respeitar este fim através dos meios que utiliza para o atingir, já não merece o nome de aventureiro. Não se sonharia, por exemplo, em aplicá-lo a um Lawrence, tão preocupado com a vida dos seus companheiros e com a liberdade dos outros, tão atormentado pelos problemas humanos que toda a ação suscita. Estamos então na presença de um homem verdadeiramente livre.
O homem a que chamamos aventureiro, pelo contrário, é aquele que permanece indiferente ao conteúdo, isto é, ao significado humano da sua ação, que pensa poder afirmar a sua própria existência sem ter em conta a dos outros.
O destino da Itália pouco importava ao condottiere italiano; os massacres dos índios não significavam nada para Pizarro; Don Juan não se comovia com as lágrimas de Elvira. Indiferentes aos fins que se propunham, eram ainda mais indiferentes aos meios para os atingir; só se preocupavam com o seu prazer ou a sua glória.
Isto implica que o aventureiro partilha o desprezo do niilista pelos homens. E é por esse mesmo desprezo que ele acredita romper com a condição desprezível em que estagnam aqueles que não imitam o seu orgulho. Assim, nada o impede de sacrificar esses seres insignificantes à sua vontade de poder. Tratá-los-á como instrumentos, destruí-los-á se se puserem no seu caminho. Mas, entretanto, aparece como um inimigo aos olhos dos outros.
O seu empreendimento não é apenas uma aposta individual, é um combate. Ele não pode ganhar o jogo sem se tornar um tirano ou um carrasco. E como não pode impor essa tirania sem ajuda, é obrigado a servir o regime que lhe permite exercê-la. Ele precisa de dinheiro, de armas, de soldados, ou do apoio da polícia e das leis. Não se trata de um acaso, mas de uma necessidade dialética que leva o aventureiro a ser complacente com todos os regimes que defendem o privilégio de uma classe ou de um partido, e mais particularmente com os regimes autoritários e o fascismo. Ele precisa de fortuna, de lazer, de gozo, e tomará estes bens como fins supremos para estar preparado para permanecer livre em relação a qualquer fim. Assim, confundindo uma disponibilidade exterior com a liberdade real, ele cai, com um pretexto de independência, na servidão do objeto.
Colocar-se-á do lado dos regimes que lhe garantem os seus privilégios, e preferirá aqueles que o confirmam no seu desprezo pelo rebanho comum. Tornar-se-á seu cúmplice, seu servo, ou mesmo seu criado, alienando uma liberdade que, na realidade, não pode confirmar-se como tal se não usar o seu próprio rosto. Para a ter querido limitar a si mesmo, para a ter esvaziado de todo o conteúdo concreto, ele só a realiza como uma independência abstrata que se transforma em servidão. Ele deve submeter-se aos senhores, a menos que se faça senhor supremo. Circunstâncias favoráveis são suficientes para transformar o aventureiro num ditador. Ele traz dentro de si a semente de um, pois considera a humanidade como matéria indiferente destinada a suportar o jogo da sua existência. Mas o que ele conhece então é a servidão suprema da tirania.
A crítica de Hegel ao tirano é aplicável ao aventureiro na medida em que ele próprio é um tirano ou, no mínimo, um cúmplice do opressor. Nenhum homem pode salvar-se sozinho.
Sem dúvida que, no próprio calor de uma ação, o aventureiro pode conhecer uma alegria que se basta a si mesma, mas uma vez terminada a empresa e transformada atrás de si numa coisa, esta deve, para permanecer viva, ser animada de novo por uma intenção humana que a deve transcender para o futuro em reconhecimento ou admiração.
Quando morrer, o aventureiro estará a entregar toda a sua vida nas mãos dos homens; o único sentido que ela terá será aquele que eles lhe conferirem. Ele sabe disso, pois fala de si mesmo, muitas vezes em livros.
À falta de uma obra, muitos desejam legar a sua própria personalidade à posteridade: pelo menos durante a sua vida, precisam da aprovação de alguns fiéis. Esquecido e detestado, o aventureiro perde o gosto pela sua própria existência. Talvez sem o saber, ela parece-lhe tão preciosa por causa dos outros. Ele quis ser uma afirmação, um exemplo para toda a humanidade. Quando recai sobre si próprio, torna-se fútil e injustificado.
Assim, o aventureiro concebe uma espécie de comportamento moral porque assume positivamente a sua subjetividade. Mas se se recusar desonestamente a reconhecer que essa subjetividade se transcende necessariamente em relação aos outros, fechar-se-á numa falsa independência que será, de facto, uma servidão. Para o homem livre, ele será apenas um aliado ocasional em quem não se pode confiar; tornar-se-á facilmente um inimigo. O seu defeito é acreditar que se pode fazer algo por si próprio sem os outros e mesmo contra eles.
O homem apaixonado é, de certa forma, a antítese do aventureiro. Também nele há um esboço da síntese da liberdade e do seu conteúdo. Mas no aventureiro é o conteúdo que não consegue realizar-se verdadeiramente. Ao passo que no homem apaixonado é a subjetividade que não consegue realizar-se genuinamente.
O que caracteriza o homem apaixonado é que ele coloca o objeto como um absoluto, não, como o homem sério, como uma coisa desligada de si próprio, mas como uma coisa revelada pela sua subjetividade. Há transições entre o sério e a paixão. Um objetivo que foi primeiramente desejado em nome do sério pode tornar-se um objeto de paixão; inversamente, um apego apaixonado pode murchar numa relação séria. Mas a verdadeira paixão afirma a subjetividade do seu envolvimento. Na paixão amorosa, em particular, não se quer que o ser amado seja admirado objetivamente; prefere-se pensá-lo desconhecido, não reconhecido; o amante pensa que a sua apropriação é maior se for o único a revelar o seu valor. É isso que toda a paixão oferece de genuíno. O momento da subjetividade aí se afirma vivamente, na sua forma positiva, num movimento em direção ao objeto. Só quando a paixão se degrada a uma necessidade orgânica é que deixa de se escolher a si própria. Mas enquanto se mantiver viva, fá-lo-á porque a subjetividade a anima; se não o orgulho, pelo menos a complacência e a obstinação.
Ao mesmo tempo que é um pressuposto desta subjetividade, é também uma revelação do ser. Ela ajuda a povoar o mundo com objectos desejáveis, com significados excitantes. No entanto, nas paixões a que chamaremos maníacas, para as distinguir das paixões generosas, a liberdade não encontra a sua forma genuína.
O homem apaixonado procura a posse, procura atingir o ser. O fracasso e o inferno que ele cria para si mesmo já foram descritos muitas vezes. Ele faz aparecer no mundo certos tesouros raros, mas também o despovoa. Nada existe fora do seu projeto obstinado; por conseguinte, nada o pode levar a modificar as suas escolhas. Tendo envolvido toda a sua vida com um objeto exterior que lhe pode escapar continuamente, sente tragicamente a sua dependência. Mesmo que não desapareça definitivamente, o objeto nunca se entrega. O homem apaixonado faz de si mesmo uma falta de ser, não para que haja ser, mas para poder ser. E permanece à distância, faz-se de si mesmo uma falta de ser. E permanece à distância, nunca se realiza.
É por isso que, embora o homem apaixonado inspire uma certa admiração, ele inspira ao mesmo tempo uma espécie de horror. Admira-se o orgulho de uma subjetividade que escolhe o seu fim sem se dobrar a nenhuma lei estrangeira e o brilho precioso do objeto revelado pela força desta afirmação. Mas também se considera prejudicial a solidão em que esta subjetividade se encerra. Tendo-se retirado para uma região insólita do mundo, procurando não comunicar com os outros homens, esta liberdade só se realiza como uma separação. Qualquer conversa, qualquer relação com o homem apaixonado é impossível. Aos olhos daqueles que desejam uma comunhão de liberdade, ele aparece, portanto, como um estranho, um obstáculo. Ele opõe uma resistência opaca ao movimento da liberdade que se quer infinita.
O homem apaixonado não é apenas uma facticidade inerte. Também ele está a caminho da tirania. Ele sabe que a sua vontade emana apenas dele, mas pode, no entanto, tentar impô-la aos outros. Autoriza-se a fazê-lo através de um niilismo parcial. Só o objeto da sua paixão lhe parece real e pleno. Tudo o resto é insignificante. Porque não trair, matar, tornar-se violento? Nunca é o nada que se destrói. Todo o universo é percebido apenas como um conjunto de meios ou obstáculos através dos quais se trata de alcançar aquilo em que se empenhou.
Não pretendendo a sua liberdade para os homens, o homem apaixonado também não as reconhece como liberdades. Não hesitará em tratá-las como coisas. Se o objeto da sua paixão diz respeito ao mundo em geral, esta tirania torna-se fanatismo. Em todos os movimentos fanáticos existe um elemento de seriedade. Os valores inventados por certos homens numa paixão de ódio, de medo ou de fé são pensados e desejados por outros como realidades dadas. Mas não há fanatismo sério que não tenha uma base passional, uma vez que toda a adesão ao mundo sério é provocada por tendências e complexos reprimidos. Assim, a paixão maníaca representa uma condenação para aquele que a escolhe, e para os outros homens é uma das formas de separação que desune as liberdades. Ela conduz à luta e à opressão. Um homem que procura estar longe dos outros homens, procura-o contra eles, ao mesmo tempo que se perde a si próprio.
No entanto, uma conversão pode começar na própria paixão. A causa do tormento do homem apaixonado é a sua distância do objeto; mas ele deve aceitá-la em vez de tentar eliminá-la. É a condição em que o objeto é revelado.
O indivíduo encontrará então a sua alegria na própria chave que o separa do ser de que faz falta. Assim, nas cartas de Mademoiselle de Lespinasse, há uma passagem constante do luto à assunção desse luto. O amante descreve as suas lágrimas e os seus tormentos, mas ela afirma que ama essa infelicidade. É também uma fonte de prazer para ela. Ela gosta que o outro apareça como outro através da sua separação. Agrada-lhe exaltar, através do seu próprio sofrimento, essa estranha existência que ela escolhe como digna de qualquer sacrifício. É apenas como algo estranho, proibido, como algo livre, que o outro se revela como um outro. E amá-lo genuinamente é amá-lo na sua alteridade e na liberdade pela qual ele escapa. O amor é então renúncia a toda a posse, a toda a confusão. Renuncia-se ao ser para que exista o ser que não se é. Essa generosidade, além disso, não pode ser exercida em nome de qualquer objeto que seja. Não se pode amar uma coisa pura na sua independência e na sua separação, pois a coisa não tem independência positiva.
Se um homem prefere a terra que descobriu à posse dessa terra, um quadro ou uma estátua à sua presença material, é na medida em que lhe aparecem como possibilidades abertas a outros homens. A paixão só se converte em verdadeira liberdade se se destinar a sua existência a outras existências através do ser - coisa ou homem - que se tem em vista, sem esperar enredá-lo no destino do em-si.
Assim, vemos que nenhuma existência pode ser validamente realizada se se limitar a si própria. Ela apela à existência dos outros. A ideia de uma tal dependência é assustadora, e a separação e a multiplicidade dos existentes levantam problemas muito inquietantes. Compreende-se que os homens, conscientes dos riscos e do inevitável fracasso de qualquer ação no mundo, tentem realizar-se fora dele. É permitido ao homem separar-se deste mundo pela contemplação, para o pensar, para o criar de novo.
Alguns homens, em vez de construírem a sua existência sobre o desenrolar indefinido do tempo, propõem-se afirmá-lo no seu aspeto eterno e alcançá-lo como um absoluto. Esperam, assim, ultrapassar a ambiguidade da sua condição. Assim, muitos intelectuais procuram a sua salvação quer no pensamento crítico, quer na atividade criativa.
Vimos que o sério se contradiz pelo facto de nem tudo poder ser levado a sério. Desliza para um niilismo parcial. Mas o niilismo é instável. Tem tendência a regressar ao positivo. O pensamento crítico tenta lutar por toda a parte contra todos os aspectos do sério, mas sem se afundar na angústia da pura negação. Estabelece um valor superior, universal e intemporal, a verdade objetiva. E, correlativamente, o crítico define-se positivamente como a independência do espírito.
Cristalizando o movimento negativo da crítica dos valores numa realidade positiva, cristaliza também a negatividade própria de toda a mente numa presença positiva. Assim, ele pensa que ele próprio escapa a toda a crítica terrena. Não tem de escolher entre a autoestrada e o nativo, entre a América e a Rússia, entre a produção e a liberdade. Compreende, domina e rejeita, em nome da verdade total, as verdades necessariamente parciais que todos os compromissos humanos revelam. Mas a ambiguidade está no cerne da sua própria atitude, pois o homem independente continua a ser um homem com a sua situação particular no mundo e o que ele define como verdade objetiva é objeto da sua própria escolha. As suas críticas inserem-se no mundo dos homens particulares. Ele não se limita a descrever. Ele toma partido. Se não assume a subjetividade do seu juízo, é inevitavelmente apanhado na armadilha do sério. Em vez de ser o espírito independente que pretende ser, é apenas o servo vergonhoso de uma causa para a qual não escolheu juntar-se.
O artista e o escritor obrigam-se a ultrapassar a existência de outra forma. Tentam realizá-la como um absoluto. O que torna o seu esforço genuíno é o facto de não se proporem atingir o ser. Distinguem-se assim do engenheiro ou do maníaco. Distinguem-se assim de um engenheiro ou de um louco. É a existência que eles tentam fixar e tornar eterna. A palavra, o traço, o próprio mármore indicam o objeto na medida em que é uma ausência. Só que, na obra de arte, a falta de ser regressa ao positivo. O tempo pára, surgem formas claras e significados acabados. Neste regresso, a existência é confirmada e estabelece a sua própria justificação. Foi isto que Kant disse quando definiu a arte como "uma finalidade sem fim". Ao estabelecer assim um objeto absoluto, o criador é tentado a considerar-se a si próprio como absoluto. Justifica o mundo e pensa, portanto, que não precisa de ninguém para se justificar. Se a obra se torna um ídolo através do qual o artista pensa que se realiza como ser, fecha-se no universo do sério; cai na ilusão que Hegel expôs quando descreveu a raça dos "animais intelectuais".
Não há forma de o homem escapar a este mundo. É neste mundo que - evitando as armadilhas que acabámos de assinalar - ele deve realizar-se moralmente. A liberdade deve projetar-se para a sua própria realidade através de um conteúdo cujo valor ela estabelece. Um fim só é válido através de um retorno à liberdade que o estabeleceu e que se quis através desse fim. Mas esta vontade implica que a liberdade não deve ser engolida por qualquer objetivo; nem deve dissipar-se em vão sem visar um objetivo.
Não é necessário que o sujeito procure ser, mas deve desejar que haja ser. Querer-se livre e querer que haja ser são uma e a mesma escolha, a escolha que o homem faz de si mesmo como presença no mundo. Não podemos dizer que o homem livre quer a liberdade para desejar o ser, nem que ele quer a revelação do ser pela liberdade. São dois aspectos de uma única realidade. E qualquer que seja o aspeto considerado, ambos implicam o vínculo de cada homem com todos os outros.
Esta ligação não se revela imediatamente a toda a gente. Um jovem quer-se livre. Deseja que exista. Esta liberalidade espontânea que o lança ardentemente no mundo pode aliar-se ao que se chama vulgarmente egoísmo. Muitas vezes, o jovem só se apercebe do aspecto da sua relação com os outros, em que os outros aparecem como inimigos. No prefácio de 'A Experiência Interior', Georges Bataille sublinha com muita força que cada indivíduo quer ser Todo.
Ele vê em todos os outros homens, e particularmente naqueles cuja existência é afirmada com mais brilho, um limite, uma condenação de si mesmo. "Cada consciência", disse Hegel, "procura a morte do outro". E, de facto, a cada momento, os outros roubam-me o mundo inteiro. O primeiro movimento é odiá-los.
Mas este ódio é ingénuo, e o desejo luta imediatamente contra si próprio. Se eu fosse realmente tudo, não haveria nada para além de mim; o mundo estaria vazio. Não haveria nada para possuir, e eu próprio não seria nada. Se for razoável, o jovem compreende imediatamente que, ao tirar-me o mundo, os outros também mo dão, pois uma coisa só me é dada pelo movimento que ma tira. Querer que exista o ser é também querer que existam homens pelos quais e para os quais o mundo é dotado de significações humanas. Só se pode revelar o mundo a partir de uma base revelada por outros homens. Nenhum projeto pode ser definido senão pela sua interferência com outros projectos. Fazer o ser "ser" é comunicar com os outros através do ser.
Esta verdade encontra-se sob outra forma quando dizemos que a liberdade não pode querer-se a si mesma sem visar um futuro aberto. Os fins que ela se dá não podem ser transcendidos por nenhuma reflexão, mas só a liberdade dos outros homens pode estendê-los para além da nossa vida. Tentei mostrar em Pirro e Cineas que todo o homem precisa da liberdade dos outros homens e, em certo sentido, sempre a quer, mesmo que seja um tirano; a única coisa que ele não consegue fazer é assumir honestamente as consequências de tal desejo. Só a liberdade dos outros impede que cada um de nós se endureça no absurdo da facticidade. E se acreditarmos no mito cristão da criação, o próprio Deus estava de acordo, neste ponto, com a doutrina existencialista, pois, nas palavras de um padre antifascista, "Ele tinha tanto respeito pelo homem que o criou livre".
Assim, vê-se até que ponto se enganam - ou mentem - aqueles que tentam fazer do existencialismo um solipsismo e que, como Nietzsche, exaltariam a vontade de poder. Segundo esta interpretação, tão generalizada quanto errónea, o indivíduo, conhecendo-se a si próprio e escolhendo-se como criador dos seus próprios valores, procuraria impô-los aos outros. O resultado seria um conflito de vontades opostas, fechadas na sua solidão.
Vimos que, pelo contrário, na medida em que a paixão, o orgulho e o espírito de aventura conduzem a esta tirania e aos seus conflitos, a ética existencialista condena-os; e fá-lo não em nome de uma lei abstrata, mas porque, se é verdade que todo o projeto emana da subjetividade, é também verdade que este movimento subjetivo estabelece por si mesmo uma superação da subjetividade. O homem só pode encontrar uma justificação da sua própria existência na existência de outros homens.
Ora, ele precisa dessa justificação; não há como escapar a ela. A ansiedade moral não vem ao homem de fora; ele encontra dentro de si a pergunta ansiosa: "Para que serve?" Ou, melhor dizendo, ele próprio é essa interrogação urgente. Ele foge dela apenas fugindo de si mesmo, e assim que ele existe, ele responde. Poder-se-á talvez dizer que é para si próprio que ele é moral, e que tal atitude é egoísta. Mas não há ética contra a qual esta acusação, que se destrói imediatamente, não possa ser feita; pois como posso preocupar-me com o que não me diz respeito? Eu preocupo-me com os outros e eles preocupam-se comigo. Aí temos uma verdade irredutível. A relação eu-outros é tão indissolúvel como a relação sujeito-objeto.
Ao mesmo tempo, cai também a outra acusação que é frequentemente dirigida ao existencialismo: a de ser uma doutrina formal, incapaz de propor qualquer conteúdo à liberdade que quer empenhada. Querer-se livre é também querer que os outros sejam livres. Esta vontade não é uma fórmula abstrata. Ela indica a cada um a ação concreta a realizar. Mas os outros são distintos, até opostos, e o homem de boa vontade vê surgir problemas concretos e difíceis nas suas relações com eles. É este aspeto positivo da moral que vamos agora examinar.
(continua)